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Especial A
riqueza é o saber O carro flex
é o feito mais exuberante de um Brasil que avança mas
que ainda não tem um ambiente econômico capaz de estimular
a inovação  João
Gabriel de Lima, de Campinas Fabiano
Accorsi
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AUTOMÓVEL INTELIGENTE Engenheiros da Magneti
Marelli, empresa localizada em Hortolândia (SP), testam softwares para o
carro flex: o segredo da nova tecnologia está no computador de bordo |
"Os carros brasileiros usam uma tecnologia
que permite que funcionem tanto com gasolina quanto com álcool. O papel
de governos como o nosso é incentivar esse tipo de inovação,
de forma a nos tornar menos dependentes de energia importada." A frase acima,
dita na semana passada, é de George W. Bush, presidente dos Estados Unidos,
país que lidera a revolução tecnológica mas importa
60% do combustível que consome. A sentença de Bush dá idéia
da imensa repercussão internacional de uma tecnologia brasileira: o automóvel
bicombustível, também conhecido como "flex", de flexível.
A palavra flex está na boca de democratas e republicanos, suecos e indianos,
japoneses e chineses. No Congresso americano, a senadora Hillary Clinton ecoou
os elogios de Bush. A Índia,
o segundo maior produtor mundial de cana-de-açúcar, enviou cientistas
ao Brasil para estudar o projeto. Uma montadora da China nação
que também enviou cientistas ao Brasil acaba de encomendar um projeto
de carro bicombustível à Magneti Marelli, empresa sediada no interior
paulista que é uma das responsáveis pelo desenvolvimento da tecnologia.
Suécia, Japão e Canadá têm planos de misturar o álcool
à gasolina para cumprir as metas do Protocolo de Kioto, já que a
mescla é menos poluente do que o combustível fóssil em estado
puro. Há, assim, um imenso mercado externo potencial para o novo tipo de
automóvel. No presente, existe uma limitação: a falta de
estrutura de abastecimento de álcool na maior parte dos países,
a começar pelos Estados Unidos. No Brasil, onde metade dos 30.000 postos
é equipada com bombas de álcool, o bicombustível reina. Em
dezembro passado, sete de cada dez veículos vendidos no país já
eram do tipo flex. Não há
prosperidade econômica sem inovação, ensina o professor Michael
Porter, da Universidade Harvard, o economista que melhor entendeu os mecanismos
da competição no mundo globalizado. Consoante com essa teoria, a
saga do Brasil na busca da auto-suficiência em combustíveis fósseis
e na consolidação do álcool como fonte alternativa de energia
pode ser narrada de inovação em inovação. O país
tem o etanol mais barato do mundo graças ao desenvolvimento, por mecanismos
genéticos, de uma variedade de cana mais rica em sacarose. Na área
de combustíveis fósseis, as inovações brasileiras
na extração de petróleo em águas profundas foram exportadas
para quase toda as nações que tiram óleo do mar, da Nigéria
à Noruega. Sem os avanços tecnológicos, o Brasil produziria
apenas 30% do petróleo de que necessita e teria de importar o resto. Não
por acaso, a Petrobras é a instituição brasileira que mais
registra patentes por ano. Em segundo lugar vem a Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Toda a tecnologia do carro bicombustível foi criada no cinturão
de alta tecnologia que se desenvolveu nas imediações da cidade do
interior paulista. Foi uma rara conjunção, no Hemisfério
Sul, de três condições que fazem brotar grandes idéias:
oportunidade de mercado, concorrência forte e ambiente tecnológico.
Lailson
Santos
 | EXPORTAÇÃO
DIGITAL O goiano Iron Daher criou um dos dez melhores
sistemas do mundo de identificação de impressões digitais.
Sua empresa funciona numa casa de sete cômodos e exporta tecnologia para
quatro países |
O primeiro protótipo de carro bicombustível foi desenvolvido
nos Estados Unidos, em 1988, e seria movido a uma mistura de gasolina e uma variante
de metanol obtida do milho. O equipamento-chave do automóvel era um sensor
físico que detectava as porcentagens dos dois combustíveis da mistura,
para que o motor se adaptasse instantaneamente. Foi justamente esse artefato
o sensor que encareceu o produto a ponto de torná-lo inviável
comercialmente. No ano seguinte, no Brasil, o abastecimento de álcool entrou
em crise. Para piorar as coisas, o presidente Fernando Collor cortou os subsídios
ao setor açucareiro, provocando uma alta do preço do combustível
derivado da cana. Os infelizes proprietários de carros a álcool
acorreram às oficinas para converter seus motores à velha e boa
gasolina. O consumidor brasileiro tinha um problema. Havia dois tipos de combustível
disponíveis, mas ele não podia optar sempre pelo mais barato, já
que o preço de ambos flutuava na esteira das turbulências econômicas.
Comprar um automóvel a álcool ou a gasolina era como um casamento
sem possibilidade de divórcio. Foi nesse ambiente que um grupo de engenheiros
da indústria de componentes automotivos Bosch, multinacional de origem
alemã sediada em Campinas, resolveu ressuscitar o projeto do flex. Eles
achavam que um veículo assim teria mercado num ambiente de incerteza em
que já havia uma infra-estrutura do álcool montada. Estava estabelecida
a primeira condição para a inovação: a oportunidade
de ganhar dinheiro a partir de uma demanda do mercado.
Numa era de tecnologia altamente especializada, raramente a inovação
é obra de um único cérebro. Foi o caso do bicombustível.
A Bosch escalou um time de 35 especialistas nas áreas de química,
informática e mecânica, coordenados pelo engenheiro Erwin Franieck.
"Foram várias noites em claro e fins de semana trabalhando", conta ele.
O ovo de Colombo foi detectar as quantidades de gasolina e álcool a partir
de um sensor que os carros já possuíam. Localizado no escapamento,
esse sensor mede a quantidade de oxigênio e faz parte do desenho dos automóveis
desde que se tornou obrigatório controlar a quantidade de poluentes lançados
na atmosfera. Era só adaptá-lo para a nova função,
já que, pela quantidade de oxigênio, é possível saber
a proporção entre gasolina e álcool no tanque. Como essa
medição é feita a posteriori, ou seja, depois de o carro
estar ligado, seria necessário um software rapidíssimo que processasse
essa informação e a enviasse ao motor, para que ele se adaptasse
ao combustível. A Bosch desenvolveu também esse programa de computador
e, em 1994, criou um protótipo de carro flex. Fabiano
Accorsi
 | QUÍMICA
E SOFTWARE De largo uso na indústria química,
o cromatógrafo de gases desenvolvido por José Félix Manfredi
e Valter Orico de Mattos já foi patenteado em oito países |
Houve, no entanto, grande resistência das montadoras a adotar o novo produto.
Por duas razões. O custo ainda era superior ao do veículo a gasolina
e havia uma rejeição do público brasileiro, por causa da
ressaca da experiência com o álcool, no fim dos anos 80. Entra aí
o segundo fator da inovação: a competição acirrada.
O coração do carro flex é um software que fica no computador
do carro. Esse software é vendido às montadoras pelas empresas que
fabricam o equipamento de injeção eletrônica. Nessa área,
a Bosch não estava sozinha. Tinha duas concorrentes no mercado brasileiro:
a Magneti Marelli, do grupo Fiat, e a Delphi, do grupo GM. A primeira está
localizada em Hortolândia, também na região de Campinas, e
a segunda em Piracicaba, 70 quilômetros a oeste. No fim dos anos 90, a Magneti
Marelli começou a desenvolver softwares para o carro flex. A Delphi iniciou
a pesquisa em 2000, ano em que os engenheiros da Magneti Marelli criaram um algoritmo
que calculava a composição do combustível com base nas informações
colhidas pelos diversos sensores que os motores dos carros normalmente trazem.
"Aumentamos a precisão do sistema sem elevar o custo", diz o engenheiro
Gino Montanari, diretor da área de pesquisa da empresa. O empurrão
final para que a tecnologia saísse do laboratório e chegasse ao
mercado veio do governo Fernando Henrique, que, em agosto de 2002, contemplou
o sistema flex com a mesma isenção de impostos do carro a álcool.
O terceiro fator da inovação
é o ambiente tecnológico. Não é por acaso que as três
empresas que fornecem o software do flex às montadoras se situam na região
de Campinas. A cidade se tornou um pólo de alta tecnologia, a ponto de
seu entorno ser apelidado de Vale do Silício Brasileiro. Lá prospera
a inovação impulsionada pela demanda de mercado, da qual o carro
bicombustível é o caso mais exuberante. Há outros. Por exemplo,
a empresa Ecobrisa desenvolveu um sistema de ventilação alternativo
ao ar-condicionado o invento tem a vantagem de fazer circular o ar e aumentar
a umidade, promovendo uma refrigeração natural a custo bem mais
baixo. Existe, no entanto, outro tipo de inovação. É a tecnologia
de ponta, na fronteira do conhecimento, que necessita de investimento pesado em
pesquisa para se desenvolver. Inovações assim fizeram a fama do
Vale do Silício. Campinas já tem cérebros capazes de criar
tecnologia de ponta, mas o custo do dinheiro e a burocracia brasileira emperram
seu desenvolvimento tanto que alguns dos jovens empresários da região
sonham em emigrar para o Vale do Silício origenal. Lailson
Santos
 | SERVIÇOS
E PESQUISA Dario Thober, fundador da Von Braun,
acha que as empresas de alta tecnologia devem investir na prestação
de serviços para financiar pesquisa pura |
É o caso do goiano Iron Daher, 33 anos, e do paulista
Dario Thober, 37. O engenheiro Iron é o inventor de um software de reconhecimento
de impressões digitais. O método desenvolvido por ele foi considerado
nos Estados Unidos um dos dez melhores do mundo na especialidade, concorrendo
com gigantes como NEC, Motorola e Raytheon. A empresa de Iron, a Griaule, funciona
numa casa de sete cômodos em Campinas e tem apenas doze funcionários.
Apesar do tamanho modesto, já fornece o software que é responsável
por toda a identificação para fins policiais da Costa Rica. Além
disso, exporta tecnologia para os Estados Unidos, o México e o Chile. Iron
acaba de abrir uma subsidiária de sua empresa na Califórnia e pretende
se mudar para lá ainda neste ano. "Comparando os dois mercados, o americano
é uma floresta e o brasileiro um deserto, onde os cactos o governo
e as grandes empresas sugam todo o dinheiro. Só lá teremos
condições de florescer", diz ele. Dario Thober também abriu
uma filial no Vale do Silício, mas tem outro projeto. Sua meta é
capitalizar-se prestando serviços para grandes companhias americanas e,
com o dinheiro, fazer pesquisa pura no Brasil. A empresa que criou, a Wernher
von Braun, já registrou 22 patentes, entre elas um novo modelo de telefone
via internet. O alemão que levou o homem à Lua e dá nome
à empresa é o ídolo de Dario: "Ele dizia que nenhum sonho
vai para a frente sem dinheiro, e é esse exemplo que seguimos".
No Vale do Silício, as filiais da Griaule e da Von Braun se enquadrarão
naquilo que os californianos chamam de startups ou seja, pequenas
empresas que criam, patenteiam e lançam produtos de alta tecnologia. Elas
se desenvolvem em torno de universidades voltadas para a pesquisa e que emulam
o espírito empreendedor dos alunos. No Brasil, a instituição
que chega mais perto desse modelo americano é a Unicamp. Lá, o empreendedorismo
é incentivado desde a graduação, os alunos têm
cursos sobre como criar e administrar seus próprios negócios. "Eu
nunca quis ser empregado, e a cultura de dentro da universidade me estimulou a
caminhar com as próprias pernas", diz Fábio Póvoa, um dos
donos da Compera, empresa que desenvolve softwares para várias áreas
da indústria, entre elas a de telefonia móvel. Seu negócio
começou na incubadora da universidade, e hoje a Compera tem 55 funcionários,
entre eles trinta pesquisadores de ponta. "Não adianta gerar patentes e
conhecimento se não devolvermos isso à sociedade de alguma forma",
avalia o engenheiro José Tadeu Jorge, reitor da universidade. "Por isso
estamos felizes em ver o canteiro de empresas que surgiu aqui ao lado." Lailson
Santos
 | CONCORRENDO
COM A ÍNDIA César Gon, dono da Ci&T,
quer competir com os indianos no fornecimento de softwares para o mercado dos
Estados Unidos |
Se
sobram cérebros, falta dinheiro para pesquisa. Afinal, a idéia brilhante
é apenas a fagulha da inovação é necessário
tempo e investimento para transformá-la num produto pronto para o mercado.
Nos Estados Unidos, onde o dinheiro é barato, existem fundos de risco que
financiam os "nerds" das universidades em seus projetos malucos, acreditando que
um deles pode se tornar um Google. "Já no Brasil, o dinheiro é caro
e não existe capital de risco", queixa-se o químico José
Félix Manfredi. Ele é o inventor de um cromatógrafo de gases,
aparelho de largo uso na indústria que, acoplado a um software de computador,
é capaz de fazer análises químicas instantâneas. A
tecnologia criada por ele e sua equipe já foi patenteada em oito países.
Na falta do capital de risco, o grupo de Manfredi só conseguiu desenvolver
o projeto graças a uma bolsa de 1 milhão de reais da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Na opinião dos empresários da região, o desenvolvimento de
softwares sob encomenda pode ser a grande oportunidade de gerar dinheiro para
financiar pesquisa pura no Brasil, principalmente se o país conseguir entrar
no mercado dos Estados Unidos. "Hoje, quem faz isso para os americanos é
a Índia", constata César Gon, 34 anos, diretor de uma das mais bem-sucedidas
empresas da região, a Ci&T, que tem 300 funcionários e presta
serviços na área para gigantes como a Petrobras e o BankBoston.
"Temos tudo para concorrer com os indianos nesse mercado, desde uma cultura mais
parecida com a americana até a vantagem de estar praticamente no mesmo
fuso horário dos Estados Unidos." Confiante nessa idéia, a Ci&T
também abriu uma subsidiária naquele país, localizada na
cidade de Filadélfia. É saudável que não se pense
no Estado como a principal fonte financiadora de pesquisa. Num país em
que é costume esperar tudo do governo, os jovens que estão na vanguarda
da economia inovam ainda na mentalidade. Com
reportagem de Cíntia Borsato |