Conto Da Esfera Cabeluda PDF
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DESPENTEADA
As palavras e os matemáticos
Muitos imaginam que a vida dos matemáticos se resume a números, fórmulas, contas
mirabolantes, cálculos mágicos que ninguém consegue compreender. Ledo engano! A vida
e o trabalho de um matemático também estão cheios de palavras, em verdade, da minuciosa
busca de boas palavras para transmitir o significado do que exatamente queremos dizer.
É preciso falar de forma concisa e precisa, encontrar a palavra certa para batizar as ideias,
dar o nome ideal a cada habitante da intricada e esotérica fauna matemática.
Os matemáticos vivem em um mundo construı́do aos poucos, criado lentamente, mundo
de definições, de teoremas, demonstrações, de descoberta após descoberta. Pelo caminhos
da pesquisa matemática ninguém sabe exatamente onde vai chegar, na verdade, se vai
chegar, muito menos o que vai encontrar. Nessa trajetória pedimos emprestado algumas
palavras do dia a dia, criamos outras, abduzimos mais algumas.
Entrando em nosso mundo as palavras têm outros usos, significados diferentes, se trans-
formam como se fossem escritas com outras letras, falam outros sons, outro idioma, mas
são, exatamente, as mesmas palavras da lı́ngua de Camões! Sequestramos palavras e
depois as convertemos no que queremos que sejam. Tornam-se nossas!
Passeemos um pouco nesse mundo das palavras matemáticas, sem nos preocupar com
seus significados matemáticos. Nosso trajeto permeia trocadinhos, bom humor, letras,
ideias e, principalmente, palavras!
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2 AS PALAVRAS MATEMÁTICAS E O CONTO DA ESFERA DESPENTEADA - D.C.M. FILHO
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Omar Khayyam (1048-1131): matemático, astrônomo e poeta persa. Na matemática ficou
conhecido, principalmente, por ter resolvido alguns tipos de equações do terceiro grau, usando
métodos geométricos. Mas é na poesia que tornou-se amplamente celebrado e apreciado por seus
versos: Os Rubaiyat. O sucesso como poeta talvez venha de sua filosofia: “Bebe vinho, ele te
devolverá a mocidade, a divina estação das rosas, da vida eterna, dos amigos sinceros. Bebe, e
desfruta o instante fugidio que é a tua vida”. Isso não é nenhum incentivo etı́lico, mas literário! O
livro tem várias traduções em diversas lı́nguas, temos notı́cia de quatro para a lı́ngua portuguesa,
vide uma no endereço http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rubayat.html (consultado em fevereiro
de 2014)
AS PALAVRAS MATEMÁTICAS E O CONTO DA ESFERA DESPENTEADA - D.C.M. FILHO 3
para acompanhar o vinho, ele caminha degustando uma distribuição bem temperada −
com pouco sal − implicitamente escondida em um cubo de Hilbert guardado no bolso do
paletó.
Caso a desorientação seja tanta e garrafa caia, quebrando-se em dois pedaços, tudo
bem, dos cacos ainda ressurgem duas faixas de Möbius, e tudo começa de novo.
Nomes de teoremas
E os teoremas? A gente prova o Teorema do Sanduı́che sem comer nenhum deles,
repassa o Teorema da Alfândega sem precisar fugir da Receita, demonstra o Teorema do
Valor Médio e o Teorema do Valor intermediário sem fazer média com ninguém, ensina o
Teorema do Resto Chinês sem falar Mandarim.
E o Teorema da impossibilidade de pentear uma esfera? Bem, isso merece uma história.
Permitam-me contá-la:
A indignação
De repente, a coisa mudou e a topologia virou caótica. Nunca vi esfera tão brava em
toda minha vida. O tempo ficou fechado e aberto ao mesmo tempo, mudança repentina
de variáveis.
A esfera armou o maior barraco matemático desde o mestre Euclides! Xingou, chorou...e
partiu para o escândalo:
− Olha pra mim, querido! Tenho a forma perfeita! Sou dona de várias propriedades,
vivo em uma cobertura aberta numa vizinhança tubular muito chique de frente para o
mar! Avenida Atlântica, tá? Atlântica! Só apreciando o Teorema do Passo da Montanha
lá de cima... Não é por ter um grupo fundamental trivial e meu grupo ser solúvel que vou
aturar ser humilhada por um estudantezinho de Matemática! Sou de primeira categoria!
Apesar de simples, sou simplesmente conexa, simplexa, simplética, simpática e super! −
pediu respeito e continuou com ódio incontido − Tenho boa projeção estereográfica na
alta sociedade carioca! Sou a maior colecionadora de discos de vinil do Rio de Janeiro,
uma coleção não enumerável de Lp ’s a compactos, pré-compactos e paracompactos, possuo
variedades e subvariedades deles! Por sinal, toda variedade deseja ser a gostosona aqui!
Vivem imitando um pedacinho de mim!
Continuou esbravejando:
− De senos a cossenos, de catetos a hipotenusas, nunca fui tão insultada! Não sou essas
pseudoesferas por ai rebolando seus cı́rculos maiores para qualquer teorema que encontram
pelos caminhos! Não dou o número de Betti do meu celular para nenhuma geometriazinha
que me aparece pela frente! Dá só uma olhadinha em minha curvatura principal! Aprecia!
Sou poderosa, cuidado! Conheço muitos polinômios influentes, todos do mais alto grau!
Tenho uma relação biunı́voca, aberta, simétrica, mas bastante madura e reflexiva com
um plano osculador maximal da Matemática. Gente de projeção, refinado, um conjunto
bom-ordenado! Somos um casal harmônico maravilho, nossa frequência ressonante está
sempre em alta. Ontem, mesmo, me presenteou com um anel de integridade lindo, coisa
mais chique do mundo, feito com rubis e ouro! Comigo, meu filho, para seu conhecimento,
soma de ângulos internos de triângulo tem mais de 900 , e também não tem essa de paralelas
se encontrarem no infinito! Como fui boba! Dava logo para notar que seu interior é vazio,
gente como você é um divisor de zero! Vou lhe empurrar um processo diagonal de Cantor
na Justiça! Sabe qual a Regra da Cadeia que você vai provar de hoje em diante? Pão
seco, água suja e banho de sol uma hora por dia, se o carcereiro permitir, é claro! Pra
você, um nó não-trivial, a Lei do Paralelogramo e o Teorema do Gráfico Fechado, sem
aplicação aberta alguma!
(Suspiros!)
O rapaz, assustado, correu do salão e desistiu de cortar cabelos. A Matemática lhe era
mais fácil e, tonto de ouvir tantas palavras, retornou para seus cálculos e números.
Foi refletir sobre o ocorrido nas areias de Copacabana.
Muitos imaginam que a vida dos matemáticos se resume a números, fórmulas, contas
mirabolantes, cálculos mágicos que ninguém consegue compreender. Ledo engano, ledo
engano...