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E-BOOK
PARTE I
2020
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Sobre o autor
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1. DOCUMENTOS, SOCIEDADE E TUTELA DO ESTADO
Configurações políticas, econômicas e sociais em dada época fizeram eclodir uma nova
forma de relação de verdade no mundo jurídico. Antes, tinha-se uma estrutura binária, onde litigavam
sobre um dado fato somente vítima e suposto autor, estando a verdade tangível em um plano inferior.
Desde o séc. XVIII, o litígio passa a ser revolvido por um poder exterior, que substitui a vítima no
contexto do conflito. A pretensa ofensa passa a ser contra o Estado, que além de lesado, é também o
ente a ser reparado. O inquérito, e paulatinamente a prova pericial, passa a ser fundamental nesse
novo jogo de busca da verdade.
A perícia criminal, ao longo desse processo, foi alçada a uma posição de destaque no jogo
processual penal. Dentre os diversos meios de prova contemporaneamente aceitos, a prova pericial
tem sido considerada essencial tanto para a elucidação de fatos, quanto para a promoção dos Direitos
Humanos.
A Criminalística é ciência sobre a qual se apóia a prova pericial. A partir de ramos mais
diversos do conhecimento científico - matemática, física, química, biologia, etc. -, atua no sentido de
reconstruir um fato do passado ou atestar um acontecimento do presente, mas sempre com uma
característica singular: o lastro da cientificidade. Desse modo, o Perito Criminal - profissional
responsável pela elaboração dessa prova - exerce o papel social de um cientista, aplicando seus
conhecimentos e métodos no sentido de prover o julgador com a verdade que melhor aproxima-se
dos fatos de interesse penal acontecidos.
A gênese da atividade forense, bem como o seu desenvolvimento, relaciona-se com a
nova configuração adotada pelo Estado moderno para solucionar conflitos sociais. Se antes os
conflitos, inclusive aqueles de cunho criminal, eram considerados elementos da esfera privada dos
cidadãos, esse novo rearranjo inseriu um terceiro elemento entre os litigantes: a estrutura burocrática
estatal.
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Os historiadores denominam essa fase de transformação como “racionalização”.
Racionalização pois os processos que permeavam as atividades humanas no meio social foram
burocratizados, para usar o tipo ideal descritivo de Max Weber. A especialidade das funções estatais
entra em voga e o Estado passa a avocar para si de forma monopolizada uma série de atividades que
até então encontravam-se difusas no meio social, entre elas o poder investigativo e o poder de dizer
o direito (poder de subsunção dos fatos sociais às normas abstratas concebidas).
Maliska, em análise da obra de Weber sobre o Estado Moderno, resume essa transmutação
da seguinte maneira (2006, p. 20-21):
Mas essa nova configuração, explica Anitua (2008, p. 39), não poderia ter se desenvolvido
sem a intervenção e a apropriação de fatos sociais por especialistas e burocratas. As novas formas
jurídicas, econômicas, políticas e sociais somente foram alavancadas em função do surgimento desses
novos personagens e de suas novas funções.
No Direito, especificamente, a consequência direta dessa “racionalização” do poder de
punir foi a expropriação do conflito privado. O Estado Moderno avocou para si a solução do conflito.
Ao lado da vítima personificada, o ente estatal tornou-se a vítima abstrata da lesão sofrida, passando
a integrar um dos pólos da relação jurídica estabelecida. A reparação do dano causado, que antes era
direcionada para a vítima personificada, agora é um direito do Estado.
O Estado, portanto, como ente interessado, passa a ser o responsável por reconstruir a
verdade dos fatos delituosos, com o intuito de julgá-los e apená-los. Se antes provas sociais
(importância do indivíduo na sociedade), verbais, mágico-religiosas e até corporais (ordálios) eram
aceitas entre os litigantes, no século XIX ganha fôlego o inquérito como meio primordial de prova,
como forma investigativa de se atingir a “verdade” desses fatos.
Foucault (2005) explica que com o advento do inquérito (inquisitio) os outros sistemas
de provas foram abandonados. Esse novo modelo tem como características a centralização do poder
político e a utilização de uma metodologia (uma série de perguntas a serem respondidas) em busca
da verdade. O inquérito surge com o condão de reconstruir do passado para torná-lo presente nas
mãos do julgador.
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Esse rearranjo, segundo Foucault, condiciona o surgimento de novos saberes. O advento
dessa nova prática judiciária faz nascer um novo sujeito de conhecimento. As novas práticas sociais
que orbitam ao redor do inquérito engendram novos domínios de saber, fazendo aparecer objetos de
estudo, conceitos, técnicas, metodologias.
De fato, no século XIX, a partir desses novos problemas jurídicos, com a emersão de
novas práticas judiciárias, foram desenvolvidas novas áreas do conhecimento humano. É nesse
período, em meio ao cientificismo e positivismo dominantes, que ocorre a gênese de formas
específicas de conhecer o problema criminal. Entre a Sociologia, Psicologia e Criminologia, surge
uma nova forma de conhecer: a Criminalística.
O uso do conhecimento científico no auxílio da formação da prova é anterior ao século
XIX. O Código de Hamurabi (1800 A.C.) já preceituava que a suspeita não era suficiente na
imputação de um crime a uma pessoa. Eram necessárias provas nesse sentido, dentre elas o exame do
local do crime.
Entretanto, a sistematização da matéria, a sua organização, ocorre em meados do século
XIX. O nascimento da Criminalística é atribuído ao austríaco Hans Gross. Em 1893, Gross lança um
livro (Criminal Investigation) descrevendo a aplicação de disciplinas científicas - matemática, física,
geologia, química, biologia - no bojo da investigação criminal. Além disso, é atribuído a Gross a
fundação do primeiro Instituto de Criminalística, na Universidade de Graz da Áustria.
Gross, no capítulo dedicado à inserção do expert na investigação criminal, indica logo no
início a importância desse especialista e seus conhecimentos para a persecução penal (p.178):
“Experts are the most important auxiliaries of an investigating officer; in some way or other they
nearly always are the main factor in deciding a case (...)”.
Ao lado de Hans Gross, Edmond Locard ganhou um papel de protagonista na história do
desenvolvimento da Criminalística. Considerado o pai da Criminalística moderna, o cientista francês
enuncia, em 1920, o princípio basilar da Criminalística, que norteia até os dias de hoje a atividade
forense: o princípio da troca.
Nasce aqui a atividade forense. Criada para auxiliar a investigação criminal, a
Criminalística arvora-se do conhecimento científico das mais diversas áreas para alicerçar conclusões
relacionadas a um fato considerado delituoso. Seu papel primordial é recontar um fato do passado e
apontar o autor desse fato a partir da ciência. Inúmeros acontecimentos ocorreram ao longo desse
desenvolvimento, fortalecendo e sedimentando essa nova forma de conhecer o crime e prová-lo.
Dentre essas diversas novas áreas do saber, destaca-se a Documentoscopia.
O nascimento da Documentoscopia como ciência, além de ter alicerce em todo esse
arcabouço social, político e econômico, é precedido pelo desenvolvimento do documento na
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sociedade. O significado puramente etimológico da palavra - ensinar, informar - sintetiza de forma
cristalina o seu grau de importância ao longo da história humana.
De fato, o ser humano, enquanto ser pensante, produz conhecimento desde sua origem.
As manifestações do intelecto humano sempre abrangeram as mais variadas áreas. Entretanto, tais
manifestações, desde que não captadas por algum meio, perdem-se - ou perderam-se - no mesmo
instante da cessação do pensamento. A ideia basilar sobre documento recai sobre esse incômodo
cognitivo. Como perenizar tais manifestações, de forma que elas possam ser ensinadas, transmitidas
para outras gerações, perpetuadas para futuro aproveitamento? O texto de Sylvio do Amaral condensa
com maestria essa gênese (2000, p.4):
2. O CONCEITO DE DOCUMENTO
O objeto de trabalho da Documentoscopia - área de interesse no escopo desse trabalho - é o
documento. Intuitivamente, o senso comum tem uma certa noção do que seja um documento e uma
série de exemplos podem ser listados de plano quando a questão é posta em discussão. Entretanto,
qual o conceito de documento? Existe um ou vários atributos que reúnam todos os exemplos em um
único enunciado?
No início do século XX, uma nova área do conhecimento surge como resposta a essa
demanda. A documentação, cujos especialistas são denominados documentalistas, passa a ser a
ciência (ou ao menos o conjunto de técnicas) responsável por administrar as questões que envolvem
os documentos, desde o seu armazenamento até o seu oferecimento. No seu nascedouro, esse conjunto
de técnicas tem por escopo os registros impressos. Entretanto, com o seu desenvolvimento, passou-
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se a questionar esse domínio, que, na visão de muitos documentalistas, deveria ser ampliado, pois o
conceito de documento não se restringiria a somente essas espécies de registros.
Essa breve explanação histórica serve para demonstrar que a conceituação não é tarefa
simplória. Muitos documentalistas atuais argumentam que o conceito continua em aberto. Entretanto,
para o propósito da Documentoscopia, precisa-se de uma delineação.
Uma primeira aproximação encontra-se no Direito. Para o Direito Penal, por exemplo,
documento é a peça que possui os seguintes atributos:
a) apresenta-se na forma escrita sobre coisa móvel, não constituindo documento pinturas,
gravações etc.;
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c) deve conter uma manifestação de vontade ou a exposição de um fato: a simples aposição
de uma assinatura em um papel em branco não é um documento, como também não o é escritos
sem sentido ou ininteligíveis;
d) deve ter relevância jurídica, ou seja, o escrito deve ter alguma consequência no campo
jurídico.
Huber e Headrick (1999) explicaram que os documentos são o registro das ações passadas e
das intenções futuras; documento é o portador da mensagem da nossa civilização.
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Desde a antiguidade o homem deseja deixar gravado para a posteridade todo
tipo de vivências, acontecimentos, pensamentos, conhecimentos,
sentimentos, invenções, arte, de alguma maneira tudo quanto afetava a sua
vida e o seu entorno. Para isso tem se valido de todos os modos de expressão
possíveis, e em particular os documentos escritos (tradução nossa).
Documento é a peça que registra uma ideia. Esse registro se faz habitualmente
através da escrita, podendo se apresentar sob a forma de marcas, imagens,
sinais ou outras convenções. Os suportes são os mais variados, sendo o papel
o mais comum. As escritas, no início, resultaram exclusivamente de gestos
humanos. Com o tempo, foram alcançadas por meios mecânicos.
Em primeiro plano, pode-se conceituar prova sob o prisma do ato de provar. Nesse sentido,
trata-se do processo a partir do qual se verifica a procedência, a verdade ou a exatidão dos fatos que
se alegam. Dentro do processo, corresponde à fase probatória, onde as partes estão abertas para
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apresentarem os elementos que servirão para formar a convicção do magistrado. Refere-se ao
conjunto de atos processuais destinado à revelação de um ou mais acontecimentos no mundo dos
fatos.
A segunda acepção relaciona-se aos meios que podem ser utilizados para esse fim. Uma
série de instrumentos estão catalogados e disponíveis para que as partes, e em alguns casos, o próprio
juiz, possam demonstrar que dado fato ocorreu. A prova testemunhal e a prova pericial são exemplos
de instrumentos que podem ser usados no ordenamento brasileiro.
Por fim, tem-se como prova o resultado da ação de provar. Apresentados os meios de prova,
o juiz forma sua convicção. Diz-se, por exemplo, que está provado que o documento A é falso.
Quando o objeto do mundo real a ser analisado é um documento, a prova pericial torna-se
fundamental. É ela, nesse contexto, que irá fazer a perfeita aproximação entre o mundo dos fatos e o
mundo abstrato das normas penais (em Direito, essa aproximação é chamada de subsunção).
A Documentoscopia é o instrumento das Ciências Forenses que irá construir o elo entre tais
mundos. Não obstante, antes de entrar em seu domínio, é importante aventurar-se pelo mundo abstrato
das normas relacionadas aos documentos.
É no Código de Direito Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848 de 1940) que estão nas normas
abstratas - tipos penais - que tratam da proteção do documento. O Título X traz em seu bojo os Crimes
Contra a Fé Pública, e seus 5 (cinco) capítulos detalham as condutas que são reprovadas e gravemente
apenadas quando o assunto é documentos.
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Importante ressaltar que por trás de todo tipo penal há um objeto do mundo real que está
sendo protegido. Quando, por exemplo, o legislador diz no artigo 121 daquele diploma “Matar
alguém: Pena - Reclusão de 06 a 20 anos.”, ele explicita, de forma latente, que o objeto vida está
sendo protegido.
Seguindo esse raciocínio, qual seria, portanto, o objeto do mundo real que está sendo
protegido pelas normas penais relativas aos documentos?
Note-se que essa alteração da verdade deve ser substancial. Não se vislumbra ataque à fé
pública do documento quando ele sofre somente uma alteração em seu aspecto formal. Caso, a título
de exemplo, apresente-se uma Carteira Nacional de Habilitação - CNH - onde sua única mácula seja
a inexistência da película plástica que reveste os dados variáveis que ela contém, não há atentado à
veracidade do documento.
De mesma sorte, não se conjectura atentado à fé pública quando o documento é uma cópia
fidedigna do original. A verdade que o documento contém está preservada, de modo que o bem
jurídico que o Direito visa tutelar encontra-se preservado.
Antes de explorar-se os tipos penais, alguns conceitos basilares serão apresentados a seguir.
São conceitos que permeiam o mundo jurídico dos documentos, e que devem estar na mente do perito
documentoscópico.
Lamartine Bizarro Mendes (2010), autor clássico de uma obra brasileira sobre o assunto,
define a Documentoscopia como sendo a “(…) a parte da criminalística que estuda os documentos
para verificar se são autênticos e, em caso contrário, determinar sua autoria”. Insiste-se nesse trabalho
que a Documentoscopia não trata somente de autenticidades, falsidades ou autorias documentais. Há
um vasto campo por ela alcançado.
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Nesses termos, não há um domínio fechado de possibilidades. O certo é que, se o objeto a
ser estudado é um documento, a Documentoscopia é o laboratório a ser acionado.
A Grafoscopia tem por objeto a escrita. A escrita é um atributo aprendido pelo ser-humano,
não sendo inata. Trata-se de uma tarefa neuromuscular complexa, cujo resultado depende de uma
série de fatores, intrínsecos e extrínsecos ao escritor. A principal tarefa da Grafoscopia é a
determinação da origem da escrita, ou seja, determinar quem foi o responsável por aquele lançamento
gráfico. Assim, o seu escopo básico é determinar se uma escrita foi oriunda da pessoa de quem se
esperava aquele lançamento - uma assinatura em um cheque ou uma carta suicida, por exemplo - e,
caso negativo, apontar-lhe o autor. Chama-se o primeiro objetivo de exame de autenticidade; o
segundo é denominado exame de autoria. Essa separação tem consequências metodológicas
importantíssimas.
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