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Eduardo David de Oliveira

Leonor Franco de Araújo


Luiz Carlos Ferreira dos Santos
Rejane Souza Costa Matos
(organizadores)

PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS:
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO E FILOSOFIA
AFRICANA

ITUIUTABA
2019
© Eduardo David de Oliveira, Leonor Franco de Araújo, Luiz Carlos Ferreira
dos Santos, Rejane Souza Costa Matos 2019.
Editora da obra: Mical de Melo Marcelino.
Arte da capa: Anderson Pereira Portuguez.
Diagramação: Anderson Ferreira de Azevedo Filho

Editora Barlavento
CNPJ: 19614993000110. Prefixo editorial: 68066 / Braço editorial da Sociedade
Cultural e Religiosa Ilè Àse Babá Olorigbin.
Rua das Orquídeas, 399, Residencial Cidade Jardim, CEP 38.307-854, Ituiutaba, MG.
barlavento.editora@gmail.com

Conselho Editorial da Editora Barlavento


Mical de Melo Marcelino (Editora-chefe)

Pareceristas:
Dr. Anderson Pereira Portuguez
Dr. Antonio de Oliveira Jr.
Dra. Luciane Dias Gonçalves Ribeiro
Dra. Maria Aparecida Augusto Satto Vilela
Maria Izabel de Carvalho Pereira

Perspectivas contemporâneas: filosofia da libertação e filosofia


africana. Eduardo David de Oliveira, Leonor Franco de Araújo,
Luiz Carlos Ferreira dos Santos, Rejane Souza Costa Matos (org).
Ituiutaba: Barlavento, 2019, 507 p.

ISBN: 978-85-68066-92-8
1.Filosofia. 2. Filosfia da Libertação. 3. Filosofia Africana.
I. OLIVEIRA, Eduardo David de. II. ARAÜJO, Leonor Franco
de. III. SANTOS, Luiz Carlos Ferreira dos. IV. MATOS,
Rejane Souza Costa.

Todos os direitos desta edição reservados aos autores, organizadores e editores. É expressamente
proibida a reprodução desta obra para qualquer fim e por qualquer meio sem a devida
autorização da Editora Barlavento. Fica permitida a livre distribuição da publicação, bem como
sua utilização como fonte de pesquisa, desde que respeitadas as normas da ABNT para citações e
referências.
SUMÁRIO

Apresentação 09

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO
El gran relato o el sujeto, su acción y retorica
Carlos Francisco Bauer.............................................. 19
A Filosofía de la Liberación y los desafíos actuales:
una contrucción interlógica de la inteligibilidad y
racionalidad
Dina V. Picotti C......................................................... 55
Atreverse a pensar como filosofo latinoamericano:
notas introductorias a los problemas de la filosofia
latinoamericana
Hander Andrés Henao................................................. 65
Por filosofias insurgentes
Hugo Allan Matos........................................................ 83
Para uma filosofia da tecnologia: as contribuições de
Enrique Dussel
Lucas Barbosa da Paz
Angela Luzia Miranda................................................. 107
A compostagem como prática de transformação
social
Pedro Henrique Oliveira Zanette................................ 129
Redes de colaboração solidária: prolegômenos para
uma economia da libertação
Rejane Matos
Eduardo Oliveira......................................................... 153
Violas e congadas: aprender para a vida
Vivian Parreira da Silva
Aida Victória Garcia Montrone.................................. 197
FILOSOFI A AFRICANA
Filosofia africana tecida pelos saberes ancestrais
femininos: poéticas de encantamento
Adilbênia Freire Machado.......................................... 223
África o la possibilidad de uma antropología
filosofico-económica de la liberación
Carlos Francisco Bauer.............................................. 243
La presencia negro africana en nuestra identidad
Dina V. Picotti C......................................................... 269
A concepção de raça e a razão negra em Achilles
Mbembe
Eliseu Amaro de Melo Pessanha................................. 303
Rodofo Kusch e Lélia Gonzalez na descolonização
do pensamento: América profunda, amefricanidade e
a perspectiva feminina de Lélia
Ineildes Calheiro
Eduardo David Oliveira.............................................. 319
A ausência imposta a Beatriz Nascimento na
construção e utilização do conceito de quilombo
Leonor Franco de Araújo
Eduardo David de Oliveira......................................... 341
Estética da Libertação: deriva, travessia e outros
itinerários
Luiz Carlos Ferreira
Eduardo Oliveira......................................................... 355
Arte afro-brasileira: um traço decolonial?
Nelm Cristina Silva Barbosa de Mattos...................... 377
A capoeira na ginga com a modernidade
Paulo Andrade Magalhães Filho............................... 395
Tradições, mudanças e permanências na festa de São
Franciso das Chagas
Renata Araújo dos Reis............................................... 417
Cada dança é uma mulher, cada dança é uma avó,
criança!
Sílvia Monique Rodrigues Ferreira
Lara Rodrigues Machado............................................ 433

ANEXOS
Resumos – Filosofia da Libertação............................. 457
Resumos – Filosofia Africana..................................... 481
Programação do V CBFL e II EIFA............................ 503

SOBRE OS ORGANIZADORES............................ 505


APRESENTAÇÃO

Nos Congressos Brasileiros de Filosofia da Libertação


tem desfilado os temas inaugurais da Filosofia da Libertação
como também os temas atuais. A partir de Salvador, os
Congressos passaram a acontecer concomitantemente com os
Encontros Internacional de Filosofia Africana, colocando em
diálogo essas duas vertentes do pensamento contemporâneo, em
estreito diálogo com o Pensamento Social Brasileiro e em
intercâmbio com outros movimentos organizados do
pensamento como são a decolonialidade, a interculturalidade, o
afrocentrismo, o pensamento da subalternidade, dos estudos
culturais, do feminismo negro, do mulherismo, do orientalismo,
do hibridismo, da criolização, do corredor das ideias... Enfim,
temos sido um mosaico das principais discussões filosóficas no
eixo Sul-Sul e, quiçá, no mundo.

Perspectivas Contemporâneas: Filosofia da


Libertação e Filosofia Africana reúne, sob o signo da
diferença, uma multiplicidade de artigos que exploram o diálogo
seja interno da filosofia da libertação e da filosofia africana, seja
entre elas e delas com as vertentes contemporâneas em
perspectiva de libertação, num intercâmbio crítico e criativo.
Este livro é, em síntese, uma mostra da produção
contemporânea da filosofia latino-americana da libertação e da
filosofia africana seja no continente ou na diáspora. É um
acontecimento de renovação e continuidade da tradição dessas
clivagens filosóficas, que lançam abordagens teóricas e
metodológicas muito atuais juntamente com abordagens
históricas e interpretativas da sua história. O encontro de
gerações, bem como o diálogo entre os continentes, nos coloca
diante da mesma necessidade: produzir e manter processos de
libertação.

Vivemos tempos difíceis no Brasil. Os atores e atrizes


que construíram o V CONGRESSO BRASILEIRO DE
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO e II ENCONTRO
INTERNACIONAL DE FILOSOFIA AFRICANA:
Movimentos Sociais Populares e Libertação, no povoado do
Bonfim, no Kilombo Tenondé, BA, nos dias 19, 20 e 21 de
setembro de 2017, são um dos alvos que o Estado brasileiro
elegeu como inimigo: a academia, o movimento social e os
artistas.

O evento foi realizado na conjuntura do Golpe contra o


governo Dilma. O espaço construído no kilombo Tenondé foi de
muita provocação ao tempo que vivemos e possiblidades de
atravessá-lo. O encontro possibilitou que moçambicanos,
argentinos e brasileiros se encontrassem com o objetivo de
apresentar perspectivas para se pensar uma filosofia latino-
americana e africana a partir do eixo de libertação.

Na seção da filosofia libertação, o trabalho intitulado


Educação Filosófica e Resistência Cultural em Dussel de Altair

10
Gabardo Percicotty e Geraldo Balduino Horn problematizam a
filosofia da libertação em Dussel, com intuito defender uma
perspectiva de filosofar como educação filosófica e formação
cultural crítica. No trabalho Como a monitoria indígena passa a
ser um lugar de trocas interculturais dentro do curso de
Pedagogia da UFRGS? Ana Isabel Melo dos Santos; Ana Lúcia
Castro Brum; Magali Mendes de Menezes oferta para o debate a
urgência de se pensar o acesso e permanência dos discentes nas
universidades estaduais e federais advindos das comunidades
indígenas. O trabalho aponta para a importância de construir
conhecimentos a partir das experiências dos sujeitos, para isso a
chave de leitura da interculturalidade é trabalhada. O trabalho
de Ana Lúcia Castro Brum, intitulado A Educação escolar
indígena: um diálogo intercultural, provoca o debate acerca do
diálogo da educação escolar indígena com a formação
continuada de professores indígenas buscando promover um
espaço intercultural de libertação. Neste itinerário de libertação,
o resumo de Daniel Pansarelli, Suze Piza e Hugo Allan Matos, A
tarefa da Filosofia da libertação no Brasil: por uma filosofia da
insurgência, tem como objetivo provocar uma elaboração
coletiva de ações insurgentes contra o atual estado de coisas,
para isso traz a seguinte questão: Qual a tarefa da Filosofia da
libertação no Brasil? Na trilha do solo latino americano, o
resumo, de Dorvalino Rafej Cardoso e Magali Mendes de
Menezes, Notas de um diálogo intercultural: as
(des)orientações entre um indígena e um não indígena, oferece
uma reflexão instigante da relação de orientação entre uma
professora não indígena e um estudante indígena. Ainda na
virada decolonial, de se pensar apartir de outras perspectivas, o
resumo Decolonialidade no cinema brasileiro contemporâneo:
o caso de Que hora ela volta? de Fagner de Lima Delazari e
Maria Lyvia Pinheiro Barros problematiza o tema da

11
decolonialidade no longa-metragem Que horas ela volta? O
filme, além de outras questões, problematiza o espaço de poder
disputado por grupos sociais distintos. A filha da empregada
doméstica acessa a uma universidade pública. Os grupos de
trabalhadores problematizam os privilégios no Brasil. O artigo
de Hugo Mattos, por filosofias insurgentes, desafia-nos a
abertura para outros paradigmas da reflexão filosófica na
América Latina. O resumo de Lucas Gois Pereira e Antonio
Enrique Fonseca Romero, O trabalho como fonte de direitos,
debate a relação entre o trabalho e os demais direitos, sob uma
ótica sócio-histórica. O trabalho caminha para a libertação. No
resumo, Para uma filosofia da tecnologia: as contribuições de
Enrique Dussel. de Lucas Barbosa da Paz e Angela Luzia
Miranda, os autores questionam que papel cumpre a tecnologia
nos processos de exclusão e dominação social? E, em
contraposição, pode a tecnologia exercer e significar um
processo de libertação? No trabalho de Pedro Henrique de
Oliveira Zanette, A compostagem como prática de
transformação social, busca compreender a compostagem dos
Resíduos Orgânicos do Restaurante Universitário do Campus 2
da USP São Carlos - Balanço do funcionamento inicial e
propostas de melhorias. Rejane Matos e Eduardo Oliveira
apresentam as Redes de Colaboração Solidária, na formulação
de Euclides Mance, como os prolegômenos de uma Economia
da Libertação no artigo Redes de Colaboração Solidária:
prolegômenos para uma economia da libertação. O resumo de
Vívian Parreira da Silva, Violas e Congadas: aprender para a
vida, apresenta a experiência de uma inserção realizada junto ao
grupo de violeiros da cidade de São Carlos denominado Rancho
do Abacateiro.

12
O trabalho de Carlos Francisco Bauer, El gran relato o el
sujeto, su acción y retórica, problematiza se a “macro” história
está morta ou ainda está viva? Ele defende que esta
“grande”história não morreu, mas algo foi fragmentado, e o que
foi que morreu desta grande história? É o que o texto persistir
em responder. O trabalho de Dina Picotti, La filosofía de la
liberación y los desafíos actuales-una construcción interlógica
de la inteligibilidad y racionalidade, problematiza a filosofia da
libertação. Picotti chama atenção para a periodicidade do
momento em que emergiu a filosofia da libertação como
movimento filosófico e qualifica dois aspectos em que esta
filosofia reivindica, o primeiro é a perspectiva histórico-
geocultural e segundo, o método analético. Na discussão da
filosofia latino-americana, o texto: Atreverse a pensar como
filósofo latinoamericano: «Notas Introductorias a los
Problemas de Filosofía Latinoamericana» de Hander Andrés
Henao, problematiza as condições históricas e biográficas dos
pensadores latino-americanos da nova geração, pois, de acorod
com Henao, já tem um vasto avanço para pensar de uma
maneira situada e crítica sobre sua própria realidade mundial.

Na seção da filosofia africana tem o trabalho, de


Adilbênia Freire Machado, Filosofia africana tecida pelos
saberes ancestrais femininos: poéticas de encantamento,
buscando o diálogo com a filosofia africana contemporânea
desde os saberes ancestrais femininos. A perspectiva de
libertação alinhada com a educação é uma chave que a
perspectiva do movimento social negro encontra sua unidade. O
resumo de Eduardo Oliveira Miranda, Formação docente em
geografia: mitologia africana na prática intercultural, busca
problematizar a práxis docente em geografia alinhando na
formação de docentes o olhar intercultural e a educação das

13
relações étnico raciais, com isso, propondo a epistemologia do
sul com a sociopoética na disputa de sentidos. No trabalho de
Eliseu Amaro de Melo Pessanha, A concepção de raça e a razão
negra em Achille Mbembe, ele apresenta uma leitura de que a
ideia que a humanidade subalternizada irá se tornar o negro do
mundo. Na trilha de um pensamento negro, Ineildes Calheiro e
Eduardo Oliveira, apresenta uma leitura inovadora do diálogo
entre Lélia Gonzalez com Rodolfo Kusch, Descolonização do
pensamento com Rodolfo Kusch nos anos 40-70 e Lélia
Gonzalez nos anos 80: pensando “amefricanidade” no
feminismo hoje. A categoria do espaço, tanto a amefricanidade
como o pensamento seminal, Gonzalez e Kusch, mobilizam uma
libertação do pensamento. Leonor Araújo e Eduardo Oliveira,
no ausência imposta a Beatriz Nascimento na construção e
utilização de Quilombo, faz jus a pensadora negra que, apesar de
sua profícua produção, foi invisibilizadas no pensamento social
brasileiro, valendo-se ainda do filme Ori de Raquel Geber sobre
Beatriz, para a vitalidade dos argumentos que, em tempo, traz a
mulher atlântica novamente para o cenário da produção do
conhecimento. No percurso de provocar uma estética da
libertação, Luís Carlos Ferreira e Eduardo Oliveira
problematizam a filosofia africana como estética de libertação:
Estética da libertação: deriva, travessia e outros itinerários,
discutindo, tal perspectiva, desde as categorias: deriva, travessia
e arquipélagos. O resumo de Luís Thiago Freire Dantas,
intitulado, Travessias epistemológicas: narrativas filosóficas de
África, busca apresentar um diálogo com a filosofia africana de
maneira que permite problematizar a história da filosofia como
uma atividade contínua de descolonização. Na dimensão do
debate negro com a perspectiva decolonial, Nelma Cristina Silva
Barbosa de Mattos, apresenta em seu trabalho Arte afro-
brasileira: um traço decolonial? que a produção plástica de

14
experiência negra pode ser compreendida como uma consciente
ferramenta decolonial do sujeito negro no Brasil. no caminho de
provocar a poética com os discentes, Paula Viviane Cordeiro
pretende, em Oralidade: A Literatura Africana e Afro-Brasileira
e a voz negra na formação de declamadores/leitores na escola,
contar histórias através do declamar poesias afro-brasileiras e
africanas na busca de potencializar nos discentes uma relação
entre a fantasia e a realidade para o desenvolvimento de um
mundo encantado. O trabalho de Paulo Andrade Magalhães
Filho, A capoeira na ginga com a modernidade, busca entender
como a capoeira se relaciona com a Modernidade. No trabalho
de Renata Araújo dos Reis, Tradições, mudanças e
permanências na festa de São Francisco das Chagas, Reis
apresenta a provocação de como as tradições atuam de forma a
legitimar o presente, considerando as constantes transformações
a que estão sujeitas, para isso estabelece uma análise sobre a
Festa em Louvor a São Francisco das Chagas, festa anual que
possui uma centralidade no fortalecimento dos valores
identitários e simbólicos do Remanso - comunidade
remanescente de quilombos localizada em Lençóis/Bahia.

O trabalho de Carlos Francisco Bauer, África o la


posibilidad de una Antropología filosófico-económica de la
liberación, problematiza a antropologia filosófico-econômica
da libertação a partir da África. O trabalho La presencia negro
africana en nuestra identidade de Dina V. Picotti C.,
problematiza o apagamento do pensamento africano, e este
pensamento existe mesmo que não o conheçamos ou ignoremos,
pois poucos pesquisadores ocidentais estão interessados nessa
filosofia, apesar de sua importância, afirma Picotti.

15
O texto de Sílvia Monique Rodrigues Ferreira e Lara
Rodrigues Machado, Cada dança é uma mulher, cada dança é
uma avó, criança! Mobiliza uma memória criativa e engajada. É
um texto que traz a força do gesto e a poética das palavras. É um
gesto que carrega consigo uma contra-violência. Cada dança é
uma mulher, cada dança é uma avó, é poética e violento.

Escolhemos publicar nesta coletânea os artigos dos(as)


participantes que nos enviaram o texto, bem como os resumos
(em anexo), a fim de dar um panorama da produção
contemporânea da filosofia da libertação e da filosofia africana,
assim como a programação do evento, para que os leitores que
não estiveram presentes no V CBFL e II EIFA possam ter uma
ideia da riqueza e da alegria que nos reuniu naqueles dias (19 a
21) de setembro de 2017, no Kilombo Tenondé, justo um
território de liberdade, valendo-nos de linguagens acadêmicas,
artísticas e ativistas na horizontalidade das práxis de libertação.
Feito o convite, desejamos o comprometimento!

Axé/Nguzo!

Eduardo Oliveira

Coordenador Geral do V CBFL e II EIFA


Coordenador do Grupo de Pesquisa Rede-Africanidades
Coordenador da Linha de Pesquisa Conhecimento e
Cultura do Doutorado em Difusão do Conhecimento – DMMDC
Professor Adjunto da FACED-UFBA

16
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

17
18
EL GRAN RELATO O EL SUJETO, SU ACCIÓN Y
RETÓRICA

Carlos Francisco Bauer1


UNILA-ILAESP-PTI

“Yo soy el dueño de todo,


pero nunca tengo nada.
El día que yo me canse,
¡van arder las llamaradas!
Yo soy el dueño de todo (Canción popular-Milonga)
Jorge Cafrune

Introducción

¿El gran relato ha muerto o aún vive? Quiero partir de


esta pregunta que me formulé en el momento en que comenzaba
a preparar las clases para el dictado de un seminario de
formación docente en la Facultad de Ciencias Económicas en
Córdoba-Argentina. Como se trataba de un tema estructural, en
la medida que avanzaba me iba respondiendo provisional y
progresivamente. Ese gran relato no murió del todo, lo podemos
1
Profesor de historia y filosofía a cargo de las disciplinas de Filosofía
Latinoamericana, Introducción a la Problemática de la Filosofía
Latinoamericana, Filosofía de la Economía, Introducción al Pensamiento
Científico, Ética y Ciencia, Seminario de Filosofía Latinoamericana,
Filosofía de los Pueblos Indígena, en la Universidad Federal de Integración
Latinoamericana. carlos.bauer@unila.edu.br,
carlosfrancisco120@yahoo.com.ar

19
ver en muchos campos diseminado y todavía más afirmado en
su fragmentación. Entonces, ¿qué murió de este gran relato?
¿Qué es lo que vive de él y cómo vive? Deberé irlo investigando
en el desarrollo de estos surcos, que no pretenden acabar el
tema, sino tal vez, algo más interesante, dejarlo abierto para
otras contribuciones, replanteos y reformulaciones.

Mucho se ha hablado de la muerte de los grandes relatos,


de la muerte del sujeto como de la muerte de Dios, y detrás de
ello hay muchos y muchas intelectuales conocidos y conocidas
por todos y todas. De alguna forma trataré de retomar esta
discusión. Los grandes relatos ¿para quienes han muerto y para
quienes siguen vivos? ¿Qué parte de los grandes relatos siguen
vivos para unos y para otros? ¿Qué parte de los grandes relatos
están muertos para unos y para otros? Es evidente que no se
trata de ensayar respuestas formalistas y universalistas en este
sentido, sino, apuntar a una geografía de la razón, a una geología
de la razón y a una genealogía de la razón que en ellas opera y,
que se reconfiguran conjuntamente en el despliegue de una
historia particular.

América, con su posición y realidad, cuenta, en primer


lugar, con una historia de interregionalidad propia, previa a la
conquista, con cualidades y notas particulares, raíces que hoy se
encuentran fortalecidas; en segundo lugar, América como
oprimida es fundante del nuevo sistema entre-regional de
carácter empírico mundial; en tercer lugar, en la misma medida,
es directa y proporcionalmente dominada, excluida, victimada;
en cuarto lugar, la escisión del norte de América erigiéndose
como una geo-razón pragmática de dominio, con el Americano-
centrismo, como no ha existido hasta ahora en la historia
humana; y en quinto lugar, con su diversidad propulsiva de

20
regenerar una nueva historia de amor y justicia para la
humanidad.

América bajo este geo-contexto debe y puede pensar


todos los temas que enriquecen los pliegues de sus senso-
razones, e incluso una diversidad de realidades que no han sido
aún ni siquiera sospechadas. La geología y geografía de la razón
americana o de Alas posee cualidades únicas en el mundo actual
en el que vivimos. Es un gran pulmón natural y espiritual de la
humanidad. Las claves son nuevas ¿quiénes se animan a
emplearlas y a armonizar con ellas? ¿La genealogía de la muerte
de los grandes relatos es la misma que la que se percibe en
América Latina? Diseñado nuestro tiempo-espacio de trabajo,
así como las tejedoras diseñan un telar, trataremos de establecer
directrices que nos guíen en la construcción de nuestra tela y en
el tratamiento de las problemáticas propuestas para nuestro
abordaje de dicho tema.

El gran sujeto o la muerte de su genealogía ontológica

Lo que murió del gran relato es la visión ontológica del


sujeto absoluto que lo formuló, muriendo dicha absolutización
epistemológica de tal sujeto. Pero posibilitando en cambio la
emergencia de una diversidad de epistemologías de “lo mismo”
(tò autó) que el capital. Terminando el proceso en una narrativa
y una comedia trágica para la humanidad. Matar los
fundamentos propios y los de la diversidad para autodestruirse,
es esencialmente tragicómico. Mientras existió dicho relato
permanecimos dominados, alienados, obnubilados por el brillo
del gran sujeto, incluso queriéndolo imitar, cuestión que todavía
persiste en muchas regiones e incluso en sus partes orgánicas
más retrógradas como son las élites. Cuando muere la visión

21
impositiva de la otología del gran sujeto, dicha acta de
defunción, funeral y entierro dispersó la mirada crítica,
universalizando el problema y desamparando a la diversidad
subjetiva de sus sujetos vivientes sometidos a tal proceso, que
de ninguna manera debían morir o caer en esta rodada.

Se trataba, al contrario, de sujetos colectivos que deben


poder vivir, que deben poder re-existir, resucitar de la muerte
política, ética, económica, social, cultural, sexual, estética a la
que fueron sometidos por la genealogía histórica del sujeto
absoluto que los dominó. Un sujeto dominador (ego dominus)
que comenzó como ego partior2, seguida de un ego conquiro,
proseguida de un ego cogito que se arquitectonizaría,
sistematizaría y absolutizaría como una mono-substancia única
y totalizadora. Serán los propios egos dominus los que se van a
encargar de des-absolutizarse entre sí. Tengamos en cuenta que
aún no entran del todo las periferias en lo grandes debates
artificiales impuestos por ellos, y menos en aquel entonces. Lo
que va a quedar de esta genealogía es su voluntad pensante de
dominio global. Entonces ¿cuál es el dabar, la carnalidad de este
absoluto? El ego-voluntad, raíz genealógica de todo el proceso
en permanente mutación, que hasta por lógica no puede ser de
otra manera, así sea que pendule entre la esencia y el
relativismo. El “ser” deviene ego, el “ser” deviene capital, el
“ser” deviene técnica. El ser-ego deviene capital y técnica. Su
sentido es su armadura. Este absoluto se acrecienta, aunque haya
caído una única lógica epistémica que la ha estructurado
megalómanamente. Cayó esta fantasía patológica, pero la
patología carnal egológica se mantiene y se acrecienta.

2
Al concepto lo introduzco en el artículo “Entreculturalidad II”.
(http://www.grupokaweiro.hol.es/index.php/129-art-america-honda-
entreculturalidad-2-es)

22
La muerte ontológica del sujeto absoluto ocultó al
rizomático sujeto absoluto empírico, venal, al sujeto bruto que
lejos de disolverse continuó creciendo, llegando a niveles de
acumulación insospechados en otros tiempos. Los que luego
fueron disueltos por la larga noche neoliberal fue la diversidad
de sujetos oprimidos por un sistema subjetivo que siguió
incrementándose geométricamente. Los sujetos oprimidos
quedaron con sus solos nombres, pero sin historias ni tradiciones
que los unan, ni organicen, ni liberen. Este neoliberalismo es el
que hoy Joseph Stiglitz llama a su “sepultara civilizada”. Aún el
gran relato recomienda como sepultar algunas notas del gran
relato que ha sepultado a sociedades y comunidades completas
de la forma más cruel de concebir. Se continua des-
absolutizando epistemologías discursivas de este gran relato,
pero su cuerpo empírico (ego-capital-técnica) continúan en la
misma dinámica, incrementándose aún, para no decrecer.

El sujeto absoluto o el gran sujeto, no es epistémico-


ontológico, esta es apenas una de sus notas históricas y la que ha
durado menos en el tiempo. El sujeto absoluto es histórico y su
forma es la del ego-capital-técnica, las demás son notas
características de la producción de su estructura que va
mudando según la época y su circunstancia. Son determinantes
políticos-económicos-culturales. Este ego-capital-técnica no
morirá hasta que el sistema, no sea transformado histórica,
intersubjetiva, intercultural y entre-culturalmente. Seguimos
sometidos bajo este proceso aún de forma más diversificada,
cual fuera un Leviatán o una hidra de dominación invertida,
decimos contra la percepción de Hobbes. Se trata de notas
pertenecientes a cabezas de dominios imperiales que han ido
sucediéndose en el proceso histórico de estos 525 años,
conteniendo ya 21 generaciones en el proceso de aculturación

23
latinoamericano, siendo la primera periferia de esta caverna
global. En este 2017 comienza la generación 22 dentro de este
proceso de aculturación. Bajo esta visión genalógica de
aculturación toda la dominación debe estar en permanente
renovación.

Pero avancemos un poco más. Con respecto a las notas


históricas del ego dominus, debemos agregar que tampoco
desaparecen del todo, permanecen con cierta ambigüedad y van
siendo subsumidas en el acto de las nuevas arremetidas e
incursiones imperiales en el proceso dialéctico de irse
sucediendo a sangre y fuego en la carrera imperial,
profundizando la diferencia imperial que tiene el fin de
determinar el cuadrante absoluto de dominio del mundo. De lo
que hay que asegurarse es que sea desde una episteme fáctica, si
lo es desde una episteme discursiva científica mejor aún, aunque
esta no es la última instancia. El gran sujeto o sujeto absoluto
nada desecha absolutamente, subsume a su proyecto de dominio
toda experiencia (teórico-práctica) de la que en definitiva
depende. Esta nota epistémica es críticamente clara y distinta
debido a que el ego-capital-técnica no es una esencia o un a
priori creacionista que anteceda a la órbita del mundo.

Entonces, podemos describirlo internamente con una


serie de elementos que están relacionados intrínsecamente entre
sí. Pues veremos en lo que sigue notas que se desprenden y a la
vez se co-determinan con la empírea de estos sujetos
colonizadores. Funciona como un sistema rizomático. La
necesidad patológica del organismo del ego dominus es la que
ordena la asimetría del capital en un mundo devenido técnica,
capital y egoísmo. Son las relaciones causa-efecto que persisten
mientras se mantenga dicho sistema histórico.

24
Consecutivamente sería la voluntad, el estómago y el corazón
del sistema. La parte rizomática de este sistema se encuentra en
todos los demás elementos que se relacionan al modo de un
organismo viviente, pero no de manera fija, sino variando según
el imaginario de dominio y la funcionalidad que presta al ego-
capital-técnica. Es una absolutización de la vida que juega con
extremos de rigidez y extremos de plasticidad en un horizonte
patológico que posee una lógica interna que “todo” lo permite.
Es el momento más riesgoso de la historia humana. El
pensamiento crítico debe tener una profundidad, mediación y
alturas meridianas para no reproducir las lógicas de un ser que
devino patología espiralada creciente y que ha envuelto al
mundo. O para transformarlas cuando las hemos absorbido, que
es lo que común y generalizadamente sucede. El ser deviene
voluntad, y la voluntad deviene organismo patológico de
dominio contemporáneo en cuadros históricos de este tipo.

Dispositivo estructural de dominio de las conexiones


neurocerebrales

Crítica descolonizadora a los dispositivos y sub-


dispositivos del gran sujeto

En este punto amplío la temática en referencia directa a mi


artículo “Historia para la liberación. Crítica a la voluntad (razón-
práctica) global”3. Existe todavía una visión de historia, de
civilización, de técnica, de progreso, de filosofía, de ciencia, de
época, etc., que dominan al mundo, a la naturaleza y a las

3
El artículo puede verse en
file:///C:/Users/Public/Documents/backup/c/Nueva%20carpeta/Mis%20docu
mentos/Brasil/UNILA/UEPG%20(Publicaci%C3%B3n%20Brasil)/Historia%
20para%20la%20liberaci%C3%B3n.pdf

25
conciencias de la gente-en-el-mundo. La conquista y
colonización han sido las formas en las que han comenzado los
dominios modernos, y una serie de dispositivos las maneras en
la que dicho dominio se ha desplegado y mantenido en el
tiempo. Intentaré analizar esta matriz a nivel histórico-filosófico
y sus sub-dispositivos. Dicha matriz se conceptualiza y explicita
fines del Siglo XVII, es decir con la segunda modernidad. Pero
de manera implícita ya viene operando dicha visión de forma
teórico-práctica en los sujetos hegemónicos, por ejemplo, en un
Sepúlveda desde la primera modernidad en el Siglo XV-XVI.

Esto se debe a que la matriz que voy a desarrollar con sus


dispositivos y sub-dispositivos, depende de lo que
provisoriamente podemos llamar como meta-matriz, debido a
que, aún pasa desapercibido y no se capta como núcleo ético-
mítico de dominio conformado por el ego-capital-técnica.
Quiero decir que aún no se lo toma ni como núcleo conjunto, ni
como ética negativa, ni como un horizonte mítico, sino como
natural, como lo dado, como lo a mano. A este respecto se está
en el plano de la conciencia ingenua de Freire.

El sujeto que hegemoniza la historia empírica y la visión de


la historia aunque ésta no coincida con el desenvolvimiento de
la diversidad cultural, es como el que controla la sal de la vida.
Quien domina la historia controla la vida humana y la vida
ecológica. Sólo para ordenar lo que he mencionado en este
punto. La meta-matriz de la que hablo sería el núcleo ético-
mítico conformado por el ego-capital-técnica dado como valores
absolutos y universales aún vigentes en lo empírico. Por otro
lado, la matriz de la que hablo son las tres edades. Aunque si la
meta-matriz es visualizada como matriz, las tres edades pasarían
a ser dispositivos. Mantengo el término meta-matriz cuando su

26
contenido no es concientizado críticamente como núcleo-ético
mítico, manteniéndose al nivel de la conciencia inauténtica de,
por ejemplo, un G. Germani, olvidando a qué clase social
pertenece dicho núcleo ético-mítico. De todos modos, lo que
voy a denominar como sub-dispositivos de las tres edades, sea
que estas se tomen como matriz o como gran dispositivo fáctico
y relatorio, una vez subsumidos en ella operarán como una gran
red práctica e instrumental que tiende a atrapar a todo tipo de
sujeto como si fueran presas.

Las tres edades de la historia son propuestas por el


historiador alemán Cristoph Keller (1638-1707), profesor de
retórica e historia en la Universidad de Halle. Estas tres edades
surgidas en la segunda modernidad, sean tomadas como matriz o
como gran dispositivo, cumplen la función epistémica de dar
sentido a toda práctica empírica además de ejercer un poder
retórico de conformación subjetiva inexpugnable. Desde el
inicio nos queda claro que ni este sujeto absoluto ni su retórica
están muertos, sino, solo su fondo substancial ontológico único
que imposibilita el despliegue, incluso, de los demás sujetos
hegemónicos. Keller en base a un pensamiento de dominio
moderno que estaba ya en marcha creó la división de las tres
edades, y a este autor se lo conoce sobre todo por conceptualizar
y dividir la historia en edad antigua, medieval y moderna. Lo de
posmodernidad y contemporaneidad son conceptos que se
agregan después y que en gran medida significan profundas
críticas a la modernidad, pero con un sentido de mayor
profundidad crítica dichos agregados consistieron en seguir
desarrollando etapas superiores de dicha modernidad, incluso
como llegó a plantear el antropólogo francés Marc Auge con el
concepto de sobre-modernidad. Las formulaciones de Keller se
encuentran en el Manual escolar de historia antigua editado en

27
1685 y por la gran repercusión que tuvo llevó a que lo formule
en Historia Medii Aevi a temporibus Constanini Magni ad
Constaninopolim a Turcis captam deducta en Jena en 1688.
Luego se editaría Historia Vniversalis. Breviter ac perspicve
exposita en 1753.

¿Hablar de las cuatro edades de la historia y la filosofía es


hacer mención a un mero cuadro interpretativo? De ninguna
forma, implican incluso una cierta visión teológica y teleológica
en cumplimiento de un fin universal totalizador. Aunque se
proponga erradicar una edad teológica a manos de una era de
revoluciones, en realidad lo que se hizo fue rotarla y suplantarla
introyectándola en el sujeto absoluto antropocéntrico en
cumplimiento de la realización del capital como fin. Luego con
la posmodernidad o contemporaneidad o modernidad tardía,
como otros gustan llamarla en las corrientes angloparlantes, se
deconstruyó el sujeto absoluto en función de continuar
acrecentando el capital como fin, llegando a su máxima
expresión con la definición y posibilidad de crecimiento de los
EE.UU como máxima potencia de la historia humana. El sujeto
absoluto como capital y técnica había quedado camuflado y
fortalecido en una lucha subjetiva entre potencias mundiales que
sacudieron la vida y conciencias del mundo.

Se trata de marcos totalíticos ante los cuales le


antepondremos, como ya se puede observar desde el comienzo,
una visión ana-lítica que transcienda constructivamente estas
momificaciones o petrificaciones con pretensiones de
permanencia en el tiempo. Estas edades históricas propuestas
con las que se estudia la historia y el pensamiento en el mundo
no son meros esquemas, sino la construcción de un proceso que
acompaña la emergencia y realización del capital como fin

28
último de la historia. El fin de la historia -etapa de etapas, cierre
de cierres- no se relacionó sino con esta realización última que
no debe ser modificada, ya que ha sido la última finalidad
“divina” de la vida para una corriente capitalista, o cósmica de
la vida para el “ateísmo” capitalista.

Son cuatro edades que se corresponden con la realidad


histórica como tal y que dan cuenta fehaciente de la evolución
del desarrollo de la vida, de las culturas, de lo humano hasta
llegar a la civilización de civilizaciones en una marcha real y
concreta de la humanidad. Ya observaremos críticamente todo
esto. De todos modos, debemos decir previo a la crítica, que
también se trata de redescubrir dicha propuesta y a la misma
Europa. Se trata de un constructo muy complejo y único en la
historia humana en la que se ha invertido, a lo largo de los
siglos, incalculables presupuestos para ser desarrollados, para
ser difundidos en el mundo y para bloquear el desarrollo de
opciones críticas explicativas opcionales al interior y en las
periferias del mundo. Es un presupuesto tan elevado como los
de la guerra, los de los medios de comunicación, los de la
pornografía, los del futbol, los de la droga, etc. De todos modos
tal constructo no deja de ser sorprendente, ya que es el primero
en la historia humana a escala mundial concreta que busca
identificarse con la mundialidad empírica.

Desde una lectura crítica interna y externa de este fenómeno


¿que son estas cuatro edades? Son para este estudio una matriz,
o dispositivo complejo, por las conexiones y desconexiones que
establece e impone. En sentido general, lo analizo de manera
crítica como un dispositivo dominador, falaz, reductor,
distorsionante, etc. En sentido específico lo critico como: una
falacia desarrollista eurocéntrica; como un dispositivo

29
arquitectónico y sistemático de dominio sobre la conciencia, la
materia, la naturaleza y el espíritu; como forma episódica de la
voluntad (razón práctica) global desencajada, desarticulada,
dislocada. Si el capital operado por el ego es su meta-matriz o
primer dispositivo que marca el ritmo del movimiento de la
cultura comenzando su escalada a nivel planetario con el
comienzo de la modernidad (segundo dispositivo o segunda
meta-matriz) siendo su horizonte de sentido.

Entonces, la biografía genealógica des-oculta y oculta de


esta marcha, en la geografía del mundo, son estas cuatro edades
(tercer dispositivo o matriz) a través de las cuales las
generaciones han conocido el desarrollo civilizatorio quedando
literalmente presas en él. El primer dispositivo ha sido criticado
por Marx; el segundo dispositivo por Marx, Nietzsche, Freud,
Levinas, Zubirí, y todas las corrientes liberacionistas
latinoamericanas, el movimiento de la sub-alternidad de la India
y los procesos descolonizadores revolucionarios del mundo,
etc.; y el tercero dispositivo comenzamos a explicitarlo. El
primer dispositivo opera sobre el horizonte y la órbita completa
de la vida, el segundo dispositivo opera sobre el horizonte
ontológico de las demás culturas o civilizaciones y el tercer
dispositivo interno a aquellos dos pero internalizándolos a los
dos anteriores opera sobre la órbita de la conciencia ad intra y
ad extra de la propia civilización.

Llevar a cabo un estudio crítico a la arqueología de la


primera voluntad o razón práctica global eurocéntrica es tener
que analizar estos tres elementos como dispositivos
dominadores, como voluntad del todo, en sí y para sí. Todo lo
quiere para sí, al mundo y a sus fronteras del más allá. Se trata
de un universal reducido equivalente a la totalidad de un mundo

30
empíricamente transitado, teórica e intencionalmente contraído a
unas cuantas partes, en la que una se impone a las demás.
Comenzar a desarrollar una crítica a este dispositivo orgánico
biográfico es empezar a realizar diversas rotaciones, giros
históricos, investigativos, desarrollistas, progresivos, etc. Se
trata incluso si se quiere de cumplir hasta con el precepto
propio de la modernidad, pero sobre todo de nuestra exigencia
de liberación en el espíritu crítico y constructivo. Los dos
primeros dispositivos se hayan contenidos explicativamente en
el tercer dispositivo científico que a su vez interioriza a aquellos
dos con la fundamental tarea de consolidar el núcleo de la
conciencia ético asimétrica mítica de su mito civilizador y
desarrollista.

Sub-dispositivos de la estructura de dominio

La historia reflexionada filosóficamente debe integrar lo


que, por ejemplo, pretendía Heródoto de Halicarnaso,
construyendo una historia con otros y con sus sujetos
participantes, o Tucídides de Atenas en cuanto a que la historia
debe brindar su utilidad (prag) para la vida, esto es, aprendiendo
de los errores pasados para no repetirlos, o mejor aun para
corregirlos, proyectos aun vigente. O lo que pretendía Cicerón
de Arpinum (Arpino) al considerar a la historia como maestra de
la vida, algo debe poder enseñarnos y algo debemos poder
aprender incluidas las tantas tragedias, o Marx empleando los
servicios des-mitologizantes de la historia respecto al capital, a
la riqueza, que se reproducen a sí mismos en vez de a la vida a
la cual inmolan en su propio beneficio. La historia debe poder
transformarse. Nuestra historia no solo debe integrar lo dicho,
sino, también criticar los perjuicios de la historia eurocéntrica
para la vida como pretendía Nietszche, conduciendo la trama

31
hacia una historia de liberación para la ampliación y el cuidado
de la vida. La liberación ya no pasa solo por el fundamental
hecho de reconocer derechos civiles, sino que se trata del
complejo de resguardar la vida, última instancia para la
elección, proyección y construcción de todo derecho inherente
de libertad. La nueva historia debe cuidar la vida entera, más
que su horizonte, decimos su órbita completa que todos los días
vemos marcharse ante pálidas miradas expectantes de un nuevo
tiempo. Debemos favorecer filosofías, historias para el cuidado
de la vida.

Para la construcción de institucionalidades futuras es


necesario detectar, en el interior de los dispositivos
mencionados, una multiplicidad de sub-dispositivos. Ellos son
los que a continuación desarrollaré:

1) Griegocentrismo: la historia, la filosofía y todas las


filosofías políticas occidentales u occidentalizadas comienzan en
Grecia o como si fueran griegas en su expresión más acabada y
olvidan, por ejemplo, que nacen entre África y Asia, y que, por
ejemplo, demos es un término egipcio que significa aldea, como
dike (justicia) es un término caldeo que proviene del acadio.

2) Occidentalismo: no se advierte la importancia del


Imperio romano oriental de Bizancio o Constantinopla. Se
olvida que el renacimiento italiano fue el fruto del exilio de los
griegos que abandonaron su ciudad capital tomada por los turcos
en 1453. En 1456 comienzan las traducciones de Ficino4 en

4
Marcillo Ficino nace en Figline Valdarno en 1433 y muere en Careggi en
1499, ambos poblados se encuentran en las cercanías de Florencia. Como
sacerdote y filósofo renacentista fue el artífice del renacimiento neoplatónico
encabezando la academia platónica florentina.

32
Florencia. Posteriormente será el esplendor de Florencia, a la
que Maquiavelo le dará un lugar modelo con respecto a los
Estados Modernos que habían comenzado a asomar en la
historia desde el mundo bizantino, como sucede con Venecia,
Génova y Amalfi. Ambas ciudades son comerciales, culturales y
políticamente del Mediterráneo oriental que es parte del mundo
bizantino.

3) Eurocentrismo: se omiten los grandes aportes y


producciones de la historia, de la filosofía, de la filosofía
política de las demás culturas y con ello no se estudia en
filosofía y en política las altas culturas de Egipto, Mesopotamia,
China, la Indostaní y el Islam. En Latinoamérica no se realiza un
abordaje de los Olmecas, Toltecas, Aztecas, Mayas, Incas,
Guaraníes, afroamericanos, etc., y a este respecto de la filosofía
y la política. En relación a la historia quedan reducidos, muchas
veces, a cuestiones arqueológicas o de revueltas. En este
aspecto el orientalismo5 es eje de la tergiversación y omisión.

4) Periodización lineal: emerge el constructo de la


linealidad causa-efecto de la falacia eurocéntrica ideológica
desarrollista en historia, filosofía y política estableciendo,
cerrada y reductivamente, cuatro segmentos de edades como son
la edad Antigua, Medieval, Moderna y Contemporánea bajo una
visión romántica surgida explícitamente en el Siglo XVII,
fortalecida en el Siglo XVIII, sistematizada en el Siglo XIX y
consolidada en el Siglo XX con lo que, por ejemplo, Martín
Bernal llamó críticamente el mito radical ario extremando la
visión hegeliana sistemática, totalizadora y excluyente. En el
Siglo XXI comenzamos explícitamente la destrucción y

5
Véase Said, E.: Orientalismo. Editorial Debate, Barcelona, 2002.

33
desconstrucción de este gran relato como falacia histórica
desarrollista que aún se enseña en el mundo, conjuntamente con
la construcción de marcos explicativos alternativos, provisorios
pero con correspondencia con los procesos históricos entre-
regionales.

5) Secularismo: se plantea esquemáticamente y de


manera distorsionada, ya que se olvida u omite que T. Hobbes
hace teología política. La mitad de la obra más importante de
este filósofo político, el Leviatán, es en su tercera y cuarta parte,
una fundamentación de la autoridad del Rey en el poder de Dios
y la autoridad de los obispos anglicanos bajo el desarrollo de
una explícita hermenéutica bíblica-teológica. Carl Smith ha
sabido notarlo. Lo desarrollado aquí es teología política de la
cristiandad, como aspecto propio de la Modernidad. Marx, entre
otros, ha criticado detenidamente esta política anti-comunitaria
(mandar avasallando) que demoniza al pueblo.

6) Colonialismo teórico mental: sobre todo afecta a los


países periféricos como el otro rostro antagónico del
eurocentrismo. Sus historias, filosofías, filosofías políticas no
advierten la lectura metropolitana de los filósofos políticos que
incorporan en sus vidas, como son los casos paradigmáticos de
H. Arendt, J. Rawls, J. Habermas que, se mueven en filigranas
eclécticas sutiles y complejas, que no son fácilmente
detectables. En el fondo poseen una linealidad desarrollista, que
van siempre morigerando, pero de la que no se terminan nunca
de desdecir. Es lo que también A. Jauretche llamó colonización
pedagógica de la población y de la intelligentzia local. Son
elementos que comprometen la vida colectiva y la estructura del
Estado. Pero si las filosofías políticas periféricas parten de una
auto-localidad crítica pueden realizar una rotación, giro o viraje

34
histórico descolonizador que de-construyan lo que el ya
mencionado Jauretche nombró como el estatuto legal del
coloniaje en cada región. Ver el mundo desde aquí6 proponía
Jauretche como método. Pero su aquí incluía un nosotros
nacional y popular que tendía a cerrarse en un claro ontologismo
propio de la época y acorde al de Abelardo Ramos. El aquí
ampliado que planteamos como auto-localizado y pluri-
localizado comprende un nosotros interactuando con un
vosotros7, ambos, a su vez y en su interior pluriculturales,
pluriétnicos, plurinacionales, como acción popular inter-des-
ontologizante desde un movimiento interior, y que, a su vez,
garantiza no caer en populismos ontológicos.

7) Cristiandad céntrica imperial: se trata de deconstruir el


centrismo institucional de la cristiandad imperial, reconociendo
a la diversidad religiosa que no respetó, que obliteró y eliminó.
Por otro lado, deconstruir la falacia religiosa desarrollista que
impone una teología del desarrollo funcional y subsumido a la
teleología y teología superior de realización del capital, al cual
debe justificar en su misión civilizadora y sacrificadora del
mundo, las religiones, la naturaleza, las culturas y las personas.
Se debe criticar la linealidad cerrada, distorsionante y falaz entre
Dios, Iglesia, Rey, ego conquistador, empresas, Estado,
alienando, enajenando, oprimiendo, conjunta, arquitectónica y
sistemáticamente a los pueblos, obligándolos a subsumirse a
este horizonte imperial siguiendo este fin escatológico
ontológico. Es necesario distinguir los niveles y subniveles en
cada uno de los sujetos mencionados y al interior de cada uno de
ellos, realizando una crítica estructural y particular y elaborando

6
Véase Jauretche, A.: F.O.R.J.A y la década infame. Obras completas Vol. 9.
Editorial Corregidor, Buenos Aires, 2008, p. 57 y siguientes.
7
Tema analizado en “Punto de partida…” de Bauer, C. 2008.

35
opciones liberadoras en cada uno de estos sujetos, como se
viene haciendo, por ejemplo, desde las distintas teorías y
movimientos liberacionistas latinoamericanos.

8) Etnocentrismo: este concepto es precedente del


concepto de eurocentrismo y posee un potencial aún no
descubierto por la filosofía latinoamericana. Podemos
circunscribirlo para este caso a la autocrítica, como misión
liberadora, que le compete a la alteridad para no caer en líneas
cerradas como, por ejemplo, experimentaron el indigeno-
centrismo, los movimientos de la negritud, el afro-centrismo, el
criollo-centrismo, las izquierdas cerradas, estáticas, opresivas,
etc.

9) La exclusión de América en el origen de la


modernidad como obstáculo epistemo-histórico de esta primera
voluntad global expulsando a América Latina de la constitución
de la Modernidad y su gesta, lo que nos lleva a definir a la
misma como co-modernidad. Este concepto la redefine en
relación directa y proporcional con aquello que la ha
posibilitado. Esta negación más que negarla hay que superarla
reconociendo a América Latina como principal participante de
la iniciada historia del primer desconcierto mundial. Su papel es
inédito básicamente en dos aspectos. Por un lado,
constituyéndose como primera periferia de un otro inédito
sistema-mundial, y por otro lado, porque América es lo nuevo,
horizontal y verticalmente hablando. En las crónicas europeas
previas a la conquista, siempre hay una referencia a oriente,
India, África, pero no así con respecto a América. Es lo nuevo
que estuvo desconectado de los anteriores sistemas
interregionales, de manera estructural durante miles de años y
que a partir de 1492, entra, violentamente a iniciar, desde su

36
puesto de afectada, la primera e inédita historia mundial que
comienza Europa desde su posición de dominador en este
primer desconcierto mundial.

La plata y el oro de América será el primer dinero


moderno de la acumulación originaria del sistema-mundo. La
crítica iniciada desde la voz ética o el grito histórico y filosófico
de América desde su indigencia originaria (Kusch) será la
primera historia, filosofía, política de la modernidad. Este grito
de la voz-ética es concientizado en el Siglo XVI por Bartolomé
de la Casas. Bartolomé (iniciador del contra-discurso),
Sepúlveda (padre de la filosofía moderna, de la filosofía política
imperial), F. de Vitoria (fundador del derecho internacional y
defensor de los indígenas, pero justificando el régimen después),
F. Suárez (culminación y síntesis de la primera modernidad
hispánica lusitana) son los primeros filósofos políticos europeos
de la modernidad, antes de Descartes, Spinoza, Bodin, Hobbes,
Locke, etc. Contra Hegel hay que afirmar al sur de Europa con
España como primera modernidad y a América como primera
periferia, ya que para el filósofo de Stuttgart el sur no era
propiamente europeo, sino África, es decir, de los pirineos hacia
allá. Es interesante el fenómeno, ya que la negación de Hegel
reconoce el mestizaje de lo que estos primeros colonizadores
impusieron como lo puro. Es uno de los grandes desafíos para
una nueva construcción institucionalista (histórica, filosófica,
política, etc.) no desarrollarla con características etnocéntricas,
como por ejemplo, sucedió con los movimientos de la negritud,
con el indigeno-centrismo, con diferentes propuestas de
izquierdas opresivas, estáticas, cerradas, etc.

10) Historiografía: mide el mundo de acuerdo a los


logros de los procesos europeos y pretende ordenar el mundo de

37
acuerdo al desarrollo de su historia interna, como si dichos
logros y procesos fueran intrínsecamente su única posibilidad de
desarrollo. La historiografía europea impone su linealidad
cientificista de causa-efecto des-vinculante como forma de
dominio del mundo histórico, como si su centralidad se dedujera
simplemente de su-yo.

11) Totalidad homogenizante reductiva: se trata de un


tipo de universalismo eurocentrista y la postulación de verdades
científicas válidas en todo tiempo y lugar. Se trata de una red
omniabarcativa de la que no se puede salir por propios medios,
sino solo por la gracia de la ciencia tutelada por Europa, en el
desarrollo excelso de sus propios parámetros.

12) Civilización: Europa es la especialmente civilizada


por excelencia. En ello consiste su excepcionalidad. Su
colonización hace una ecuación con la civilización. Las demás
culturas son bárbaras, incivilizadas, salvajes. La colonización, la
asimilación, la aculturación les trae civilización, salvación,
desarrollo, progreso, etc.

13) Orientalismo: es el reverso del concepto de


civilización siendo una caracterización abstracta, prejuiciosa de
las civilizaciones no occidentales. Esta distinción posee su
origen en la Edad Media, y del binomio cristiano/pagano se pasa
al de occidental/oriental, moderno/no moderno.

14) Progreso: presupuesto y explicación subyacente de la


historia del mundo. Se trata de la cultura del progreso que va
más allá de las culturas míticas, idolátricas, y supersticiosas. Sin
notar que se estaba construyendo uno de los mitos más nefasto

38
de la historia de la humanidad como he mencionado señalando
críticamente el núcleo ético-mítico.

15) Derecho: se trata del derecho eurocéntrico, a


diferencia del romano y compartiendo el círculo familiar, es
autónomo de los dioses y la naturaleza. Tiene una potestad
autorreferencial absoluta de actuación que el romano no poseía.

16) Justicia: se imparte justicia sacando a los bárbaros de


la dominación de las estructuras míticas, lo que equivale a
destruir sus culturas. Este hecho se encuentra muy lejos de
provocar una responsabilidad o culpabilidad, al contrario, los
redimía internamente. He ahí el “misterio” de la gran tragedia
que es la modernidad. Crucificando al otro se redime y se libera.
Decrece sino se acrecienta haciendo decrecer. Sólo un tipo de
deidad actúa de esta forma. El Moloch, Satán. Consensuar esto a
nivel de red colectiva es un proceso que puede llevar 500 años
más.

17) Economía: por eso la economía aunque por un lado


contradiga los postulados de la justicia distributiva, en realidad
por otro lado cumple con el proceso del metabolismo de este
tipo de civilización subjetiva que come a los otros para poder
vivir. La economía de la civilización superior tiene este
horizonte de justificación en la que se redime destruyendo. Es
todo ello una gran falacia de vida colectiva ecológica.

18) Existencia espiritual: aunque el otro es


absolutamente negado desde la ontología, sin el otro no había
ninguna posibilidad para que la civilización se haya erigido.
Aun hoy el otro no puede ser suplantado ni como negación, ni
como posibilidad del desarrollo de la civilización. El concepto

39
de justicia y economía lo comprueba. No hay redimido sin
redentor, lazos y caminos de sangre derramada los unen para
siempre.

19) Globocentrismo: la explotación del otro no puede ser


llevada a cabo de manera separada de la explotación de la
naturaleza o este gran otro del que pende la vida humana. El
horizonte de la naturaleza ha sido reducido a una presa a cazar.
Ello implica una doble faz, a la vez que desnaturaliza el mundo
consumiéndolo, naturaliza el mundo capitalista como
consumidor.

20) Capitalcentrismo: es resultado lógico del


desplazamiento del colectivo humano, de la persona, de la
naturaleza, de Dios, y de los Dioses. Es el organismo del ego-
capital-técnica que hoy reclama todos los sacrificios del mundo
y del cosmos.

21) Imaginario eurocéntrico: imaginario de un mundo


compacto y homogéneo, el imaginario eurocéntrico totaliza el
hemisferio occidental desconectando con lo que está conectado
para desviar las raíces de la historia. A-historiza el sistema
mundo para vincularlo a su sola fuerza creativa. O también
impone el otro extremo de este imaginario, que es la total
liquidez de un mundo que así se manifiesta de forma natural y
que solo es dominable bajo la tecnología occidental.

22) Falacia desarrollista: significa que lo occidental es


igual a lo griego más lo romano y más lo cristiano formando
parte de la periodificación lineal, de la esencia de la linealidad
del progreso civilizatorio y redimidor como tal. El cristianismo
imperial le da la condición de salvación a la propia conquista.

40
Los procesos son más complejos y en muchos casos lo que
muestran como conectado está desconectado y lo que muestran
como desconectado está conectado. Es ocultar y producir con la
historia un imaginario que puede llevar 1000 años deconstruirlo.
La planificación de dicha falacia esta intrínsecamente vinculada
a la producción de un imaginario de larga duración que tiende, a
su vez, a modificar el contenido de las conexiones cerebrales.
Ojalá un día no muy lejano se comprenda este sólo hecho.

23) Sujeto: se trata del ego como nuevo eje. Del ego
partior ya mencionado arriba, al Ego Rex y de este al ego
conquiro, con consecuencia directa sobre el ego cogito y su
autoconciencia y trascendentalidad subjetiva o comunitaria
posterior. El ego es un espacio no vacio, sino maleable para ser
intercambiado siempre con nuevos significantes.

24) Burgués-burguesía: elijo casi al final introducirla con


el objetivo de que no suene a vacío ni a frase hecha, sino
teniendo en cuenta todos los elementos ya transitados que son al
fin manipulados por el burgués, que es al fin la subjetividad, el
sujeto concreto, con nombre, apellido, domicilio, empresas,
ejércitos, etc., el agente operador del capital en un mundo por él
devenido técnica. Crece el sujeto capitalista y crecen los
espacios artificiales decreciendo los espacios naturales y
colectivos, como así disminuye la diversidad cultural y
espiritual. Aunque parezca irónico pero ilustrativo y lógico,
crece un tipo de animal como es la vaca, el chancho y el pollo,
así como algunos tipos vegetales como la soja, el eucaliptus y el
pino y decrece la biodiversidad. Crece el dinero y decrece en
horizonte completo de la vida. Crece geométricamente un tipo
de sujeto citadino homogéneo y decrece exponencialmente la
diversidad cultural-espiritual ¿Porque? La lógica unívoca

41
destructora y consumista del gran sujeto y su retórica
necesitan indefinidamente materia.

25) Salvación como sub-dispositivo relacionado


intrínsecamente al progreso: no se trata de una salvación para el
destino o vademécum del alma después de la muerte, sino en
relación directa y proporcional al disfrute, goce y confort de los
beneficios del mundo objetual y “terreno” a través, por ejemplo,
del dinero (como eje) producto de la explotación y uso
mercantil. La acumulación significa aquí salvación en la
realidad temporo-espacial del ego-capital-técnica.

26) Violencia: es concebida como transformación


“creativa” de las jerarquías de poder. Se destruyeron las
estructuras nobles clericales. Se crearon las relaciones burguesas
privativas de vida y producción constituyendo el mundo de hoy
como maqueta de lo que acontece, como maqueta
acontecimental. La voluntad de violencia de un poder concebido
como coerción en la visión de M. Weber es su formulación del
monopolio legítimo de dicha violencia. C. von Clausewitz
sostuvo que la guerra es la continuación de la política por otros
medios, luego Foucault que la política es la continuación de la
guerra por otros medios, y antes Lenin, ya había adelantado lo
que puede ser una conclusión luego de lo de Foucault, que la
paz es la continuación de la guerra por otros medios. El
pensamiento liberal se funda en dicha lógica y justifica dicha
lógica. El pensamiento religioso conservador subsumido por el
estado laico también justifica dicha lógica. El pensamiento
religioso crítico como el de la teología de la liberación crítica
dicha lógica, y el pensamiento marxista heterodoxo igualmente.

42
Por otro lado, y en los orígenes de la violencia colonial,
la figura de la Malinche es utilizada para erotizar la violencia de
la conquista. Además de que se la oculta como mujer que pierde
su pueblo por la pasión sexual. La dependencia de estas
estructuras de la violencia tiene vigencia aún. La
descolonización y liberación a este respecto están pendientes
todavía.

27) Género: el género cuando es estático funciona como


sistema de opresión, interiorización, control y uso del sistema
hegemónico capitalista burgués varonil como la norma concreta,
real, verdadera y sin contestación. “El género es la sexualización
del poder” (Graciela Hierro, 2001: 9-10). En el sistema
capitalista es imperante en el ámbito de la fábrica y de la casa.
El dueño de la empresa es opresor en la fábrica y en la casa. El
trabajador es oprimido en la fábrica y opresor en la casa. La
mujer dueña de la empresa es opresora en la fábrica y puede ser
oprimida en la casa por parte de su marido empresario y puede
ser opresora ante sus hijos y empleadas domésticas, y demás
empleados o incluso ante su marido sea o no empresario. La
empleada es oprimida en la empresa y oprimida en la casa y
puede ser una opresora de sus hijos.

Hay un primer paso consistente en ir más allá del par


macho-hembra (diferencia) de este corset conceptual. Un
segundo paso es la jerarquización del par conceptual superior
inferior (jerarquía) que en J. G. de Sepúlveda podemos ver un
comienzo estructural. El aporte de este dispositivo nos hace
constar también, que al superponer el par masculino-femenino a
los pares jerarquizados mente-cuerpo; universal-particular;
abstracto-concreto; racional-emocional; identidad-alteridad;
producción-reproducción, estos se sexualizan y se refuerzan en

43
su ontología las jerarquizaciones existentes entre no solo
varones y mujeres, sino entre todos los opuesto adquiriendo una
naturalización ipso facto y ad hoc acompañado de una
manipulabilidad asombrosa. Por otro lado, al restar valor
cognoscitivo a las cualidades asociadas con lo femenino se
aseguran que las mujeres no tengan con que revestir la lógica
dicotómica y sólo integren la parte desfavorecida. El corset se
teje en cuatro pasos simultáneos: 1) elaboración de las
dicotomías; 2) jerarquización; 3) sexualización; 4) exclusión del
valor cognoscitivo del lado femenino.

28) Racismo: el problema de la segregación étnica,


cultural, colonizadora puede remontarse incluso a Egipto, siendo
auto-concebida como la cultura civilizada, frente a las culturas
blancas del mediterráneo como las incivilizadas. Pero no es
objeto de este trabajo tratar este tema aquí. Sólo a los fines de
este escrito, integro este dispositivo como parte del fundamental
gran relato de la modernidad aún vigente. El racismo también es
un fundamento de la conquista moderna, pero no el único, ni al
que se subordinan todos los demás, ya que al hacerlo detonaría
el riesgo de caer en un ontologismo simplificador, sino, que es
también un efecto de los demás fundamentos conjuntamente con
muchos otros elementos discriminatorios que podemos ver
reflejados en todos estos dispositivos. No será de inicio la
cuestión del color de piel y la biología humana el fundamento
inicial, había que superar incluso, todo cuerpo. Para el hombre
“blanco”, las culturas “negras”, musulmanas, asiáticas, hindúes
eran el mundo desarrollado y del cual se debía temer, a fuerza
de haber sido conquistados por ellos durante siglos, y habiendo
sido clasificados del lado de lo impuro. El ego es todavía un
espectro plus-corpóreo que utiliza al cuerpo como vehículo.
Cualquier cosa externa va a ser inferior, no necesariamente lo

44
que tenga tal o cual color. Incluso Dios será inferior. No aparece
la cuestión del color discriminado en, por ejemplo, J. G. de
Sepúlveda quien formuló una cosmovisión jerarquizada para la
modernidad. Pero es cierto que la racialidad en la modernidad,
pasará luego a ser un fundamento principal conjuntamente con
todos los demás fundamentos, incluso antes de su posterior
formulación como teoría moderna de la racialidad. El elemento
de la racialidad es muy maleable, a la vez que fortalece a los
demás fundamento, se fortalece con los mismos, (ego-capital-
técnica-raza superior). Anteponer este elemento al corset
conceptual, como también post-ponerlo, fortalece y solidifica
corporal, económica y ontológicamente dicho dominio del
mundo moderno. Son de raza superior los hombres modernos y
de raza inferior los antiguos y medievales. El sintético esfuerzo
para este dispositivo, no es minimizarlo, pero tampoco
totalizarlo de forma que impida integrarlo a los muchos
fundamentos que lo determinaron a redescubrirse después de la
opresión experimentada, sino ubicarlo en un marco histórico
más amplio y comprensivo que pueda trascender la visión del
color ontológico, como artífico. Y poder, en cambio, construir
una visión integral como especie humana sin tales divisiones
que terminan imponiendo un determinismo a la historia en una
dinámica de sucesión e inversión de criminales jerarquías del
“color” y de la supuesta “bilogía” superior.

29) Subjetividad: El ego partior desde la ruptura


occaniana con la relación razón-fe preparó el terreno ontológico
y el horizonte de sentido que llevarían al Siglo XV y XVI en el
que realizarían la práctica ultramarina el Ego Rex y el ego
conquiro. El ego cogito vendría a coronar esta experiencia
sofisticando la concepción del ego, funcional ya no para un
colonialismo, sino más bien preparando el terreno para el

45
neocolonialismo que encontrará consolidarse en su versión de
ego trascendental, arquitectónico y sistemático autoconsciente.
Este ego sofisticado posee un sub-dispositivo interno que es el
androcentrismo consistente en percibir el mundo desde la
óptica exclusiva de los hombres, de forma paternalista,
protectora, misógina. Sub-dispositivos internos al
antropocentrismo. Luego de la implosión posmoderna del
sujeto absoluto dicho ego se fragmentó en su ontología, pero
lejos de desaparecer se etnocentrizó aún más, por ejemplo, como
comunidad ideal de habla. Comunidad trascendental ideal
egótica en Apel-Habermas. El etnocentrismo norteamericano
comunitarista de EEUU y multiculturalista Canadiense son un
paradigma. Digo implosión porque la explosión subjetiva ya
había acontecido con los noventa millones de muertos del
proceso de conquista americano. No cae el gran relato fáctico
con la posmodernidad. Lo fáctico disolvente es una evolución
mutacionista de sí mismo. Su lógica al fin (telos) sigue
incrementándose y la contradicción, en vez de diluir al gran
sujeto de la económica (Capital) lo hace más grande y peligroso.
La subjetividad hegemónica disuelve su discurso esencialista
pero cambia de absolutismo por uno aun más objetual
incrementando su poder. Y las subjetividades populares-
culturales absorben toda la disolución subjetiva quedando
desorientadas porque se les importa dicha muerte. Se perjudica
su organización que además deben absorber las agudas crisis
neoliberales casi sin capacidad de reacción colectiva. La vida
artificial del capital incrementada a través de la acumulación
intensifica las contradicciones llevando el riesgo de la existencia
a un paroxismo que hace peligrar el horizonte completo de la
vida. De todos modos el eurocentrismo en este nivel subjetivo ni
se sospechaba, hace solo algunas décadas era el ideal concreto a
seguir no a suplantar.

46
30) Vida cotidiana: la cotidianeidad ha perdido su
desenvolvimiento ritual a manos del proceso de secularización
del modo de producción capitalista burgués. La cotidianeidad ha
sido robada y puesta a trabajar para el capital como si fuera un
conjunto conformado por la ecología y la colectividad de
subjetividades dominadas y puestas a trabajar para dicho capital.
La cotidianeidad produce exclusivamente capital, siendo un
subsistema del capital. La cotidianeidad deviene esclava,
deviene ego-capital- técnica.

31) Diversidad cultural: lo que de ella queda ha sido


sometida a criminales procesos de subjetivación perdiendo o
debilitando sus redes colectivas. Han sido transformadas en
colonias y las colonias en mercados. Y la población colonial en
una clientela que compra y ya no que porta principios. Si el
cliente es el que tiene la razón, dentro de este perímetro y lógica,
en realidad esta razón son los criterios, principios como esferas
orbitales. Los “clientes” son en realidad personas colectivas
profundas.

32) Evolución: el spencerianismo no admite


dogmatismos, y afirma la necesidad de la duda metódica en una
meditación científica. Aprender a dudar es ya una evolución
histórica. El hombre es naturalmente dogmático, le cuesta
mucho no serlo. Acepta la metafísica y la religión al lado de las
verdades científicas. Es la fragmentación conservadora de un
Comte y su ley de los tres estados. Para realizar una síntesis del
universo y esta síntesis como campo de batalla en la vida social
que conquistará sus derechos. Iletrados son los indios, los afros,
la diversidad, etc. Está justificada en la síntesis su dominación,
no su articulación ya que no hay elementos significativos que
haya que articular. Con todos estos dispositivos actuantes por

47
grados, hay lógica lineal, unívoca, de una equivocidad que solo
el dominio sintetiza y que atraviesan las épocas y las
circunstancias. La duda y la ciencia spenceriana atacan los
criterios y principios de todos estos sujetos milenaristas
oprimidos.

33) Racionalidad: no se puede negar dicho elemento,


pero debemos observar un fondo irracional. Se trata de una
propedéutica racional de base irracional-racional que abre todas
sus posibilidades intentando eliminar a priori todo posible
condicionante. El paradigma irracional-racional también se fija
con Sepúlveda y sus clasificaciones posibilitantes de concebir
un sistema cerrado futuro, y con Descartes al dividir la res
pensante de la res extensa meramente cuantitativa desprovista
de cualidades. No es sólo desde Schelling como sostiene G.
Lukács. Pero termina siendo un predominio de lo irracional ya
que se auto-desfundamenta, es decir, perfora el piso en donde
está parado. La disolución ontológica del sujeto absoluto lo ha
solidificado como sujeto empírico lejos de hacerlo desaparecer.
Dicha ontología del sujeto terminaba siendo un obstáculo al
desarrollo del capital en otras regiones y culturas del planeta.
Dicha disolución ha ramificado y expandido al sujeto capitalista.
Algunos dispositivos entran en crisis pero luego re-emergen y se
re-establecen, a veces con más fuerza y peligro.

El estilo de este trabajo, si tuviese que proponer un


concepto que lo represente, mencionaría el de la acupuntura. No
pretendí abarcar la totalidad, sino, puntos que consideré
fundamentales dentro de un cuerpo histórico. Desde donde, a su
vez, dicho cuerpo histórico o totalidad provisoria puede
desarticularse. El sistema-moderno tiene su heurística de
recomposición. La esencia del capitalismo no ha muerto, ni

48
subjetiva, ni epistemológica, ni científica, ni religiosa, ni
retóricamente para la época, para el sistema, para la opinión
pública mundial. Sí declaro, que la esencia del capitalismo y del
capital han muerto en mí corazón, en mi inteligencia, en mi
cuerpo, en mi espíritu. Es mi subjetiva y pequeña contribución
en esta tarea. Esto se corresponde con una de mis mayores
felicidades de liberación en medio del desierto de la modernidad
que aún anuncia sus peores tormentas (léase Trump). Se trata de
ser ateo de la estructura del sistema y del organismo del sistema
del capital también. Una cosa es ser ateo del capital como
estructura, y otra cosa es matar al capital como organismo
patológico en uno mismo y declararlo muerto dando paso a la
vida constructiva. Ambos puntos están relacionados. El primer
aspecto, en general, antecede a los dos que siguen. Ser ateo del
capital lo desarrollo en La analéctica (Tomo I)8 y en relación a
otros aspectos en Anápolis (Tomo II) sobre todo en su segunda y
tercera parte. Sobre la muerte del capital en mí, es una
declaración que la llevo a cabo en el extenso artículo “Historia
para la liberación. Crítica a la voluntad (razón-práctica) global”.
La parte constructiva frente a la declaración de este enunciado la
represento por ahora en el poliedro pluri-histórico y pluri-
trascendental que significa Anápolis. De forma similar declaro
en este artículo la muerte de la modernidad y de su ego en mi

8
Este es el tomo I que en realidad hoy lo re-titularía como Mi propuesta
analéctica en correspondencia con la historia latinoamericana y en diálogo
con lo elaborado por E. Dussel. Tomo el tema 32-33 años después de que
fuera planteado (1973-1974) y 10 años antes de que Dussel lo retome
nuevamente (2016). Cuando comencé a trabajar el tema lo hice a
contracorriente incluso de los círculos más allegados, debido a que se
consideró que fue postulado en el 73-74 y el autor no lo tocó más. En el tomo
I demuestro que no es así. En el tomo II desarrollo cabalmente las diferentes
dimensiones. La justificación de mi trabajo es más extensa y sutil, pero no es
el espacio para desarrollarla, salgo del paso remitiendo estas obras.

49
corazón racional. Debo también declarar la muerte de la
necesidad de élites en mi razón filial. No es posible la necesaria
transformación de la subjetividad, para un presente de vida, sin
dar de baja a estos elementos. Es preciso desapegarse y
dejarlos partir para que la nueva vida pueda gestarse, para que la
nueva subjetividad pueda nacer, ya que todos esos elementos
han sido incrustados en nosotros y vosotros. No solo
necesitamos una nueva persona no egótica ni consumista, o un
nuevo sistema, sino una nueva vida filial y cordial en todos los
sentidos y dimensiones.

La retórica fragmentaria del sujeto hegemónico cual


hidra ctónica de dominación se continúa multiplicando, pero
uniendo sus partes bajo los hilos finos y fuertes del ego-capital-
técnica como una gran episteme de poder-saber-sentir-imaginar
que se ejerce. No hay que ver la fragmentación como el fin de la
absolutización, sino tal vez, solo como una de sus fases y
formas, fragmentación que así como la hidra también es una
puerta de entrada al inframundo que mantiene unida sus partes,
por más que éstas provisoriamente se fragmenten y se muestren
aparentemente inconexas.

Veritas filia temporis


(La verdad es hija del tiempo)

Forsan et haec olim meminisse juvabit


(Tal vez, algún día, aún a esto lo avivará el recuerdo)

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54
A FILOSOFÍA DE LA LIBERACIÓN Y LOS DESAFÍOS
ACTUALES:
Una construcción interlógica de la inteligibilidad y
racionalidad

Dina V. Picotti C.
UNGS - Univ.Nac.de
Gral.Sarmiento, Argentina

La así llamada ‘Filosofía latinoamericana de la


liberación’, que surge como movimiento filosófico en Argentina
en la década de 1970, se presenta públicamente en el Congreso
de Filosofía realizado en Córdoba en 1972 y es formulada por
varios autores en la obra Hacia una filosofía de la liberación
latinoamericana9 en 1973, se ha caracterizado desde sus inicios
por reivindicar dos aspectos: 1) la función mediadora de las
ciencias humanas, en tanto se imponía la necesidad de realizar
una tarea de discernimiento y análisis crítico que permitiera
situar los conocimientos histórico-geoculturalmente, 2) Un
método que denomina ‘analéctico’ por su intento de relacionar
la universalidad y la particularidad del conocimiento y la

1 Ardiles, Osvaldo A.; Casalla, Mario; Cerruti Guldberg, Horacio; Cullen,


Carlos; Dussel, Enrique; Kusch, Rodolfo; Roig, Arturo Andrés; De Zan,
Julio (1973). Hacia una filosofía de la liberación latinoamericana. Buenos
Aires: Bonum, Buenos Aires, 1973.,

1.

55
práctica con una mirada universal situada y analógica del
hombre, de modo que "los aportes regionales de las ciencias
'encarnen', sitúen y concreticen la universalidad y la radicalidad
filosóficas sin reducirlas a una dimensión humana particular, ni
a una sola época, ni a un solo ámbito social o geocultural",
trascendiendo las particularidades, pero sin diluir las
abstracciones universales que puedan considerarse superiores10.

E. Dussel alude a la singularidad del movimiento en su


libro Filosofía de la liberación11, puesto que la situación de
estar y nacer en la periferia ofrece una posición privilegiada con
respecto al tipo de filosofía que se puede practicar en los centros
hegemónicos de poder. Mientras que en Europa la filosofía se
convierte pronto en un instrumento al servicio de la dominación
del centro, en la periferia se trueca en instrumento de liberación,
es necesariamente una filosofía de la liberación, cuando en los
centros de poder es una ontología que enuncia una mismidad:
"El ser es, el no-ser no es", lo cual significa que todo lo que esté
fuera de las fronteras del ser, carece del mismo. Y esta frontera
coincide con las fronteras imperiales. "El ser llega hasta las
fronteras de la helenicidad. Más allá de este horizonte está el no-
ser, el bárbaro."

Al delimitar el ser, la ontología delimita lo humano een aquello


que se circunscribe a las fronteras de un grupo en particular: el
grupo de los conquistadores. Quién está más allá de esas
fronteras es visto como un bárbaro, como alguien que carece de
ser y puede, por ello, ser esclavizado y asesinado. Esto es
exactamente lo que ocurrió con la llegada de los conquistadores
10
Scannone, Juan Carlos (2009). «La filosofía de la liberación: historia,
características, vigencia actual». Teología y Vida .
11
E.Dussel, Filosofía de la liberación, FCE, México, 1977.

56
a las Américas. La primera pregunta filosófica que se hicieron
estuvo marcada por la ontología: ¿son los indígenas hombres o
no lo son? La filosofía está siempre ligada con la geopolítica.

El teólogo J.C. Scannone, uno de sus formuladores y


referente del Papa Francisco, señala que la Filosofía de la
liberación latinoamericana, que en la década de 1970 se centraba
en el concepto de "explotación", debe formularse desde el
surgimiento de la globalización tomando como eje el concepto
de "exclusión", y que la "opción por los pobres" que
caracterizaba a la filosofía de la liberación, "se concretiza hoy
en una opción por los excluidos", sean éstos pueblos, grupos
sociales o personas, que son la mayoría del mundo global y de
América Latina; por esta razón propone que toda contribución
académica o política de las ciencias sociales se realice desde la
"perspectiva de los excluidos"

El método analéctico

La Filosofía de la Liberación presenta como método la


‘analéctica’, desarrollado por pensadores como el teólogo Juan
Carlos Scannone, el filósofo Enrique Dussel y el
antropólogo Rodolfo Kusch. Dussel lo considera en su
obra Filosofía de la liberación, como método adecuado para
realizar la tarea filosófica, en tanto el término analéctica -
en griego antiguo, ανωλεκτική- formado con la unión de los
términos griegos ανω anó, que significa "más allá",
y λογιζομαι loguizomai, que significa "razonar"., alude a que,
mientras la dialéctica considera la unidad de los diferentes, de
los contrarios en la totalidad del ser, la analéctica significa un ir
más allá de la totalidad y encontrarse con ‘el otro’, que es
originalmente ‘distinto’ y por tanto su logos irrumpe

57
interpelante más allá de la propia comprensión del ser, más allá
del propio interés.3Este método integra, al menos en su base, dos
modos de análisis filosóficos ya tratados y utilizados por la
tradición filosófica: la analogía -método clásico, bastante
utilizado en el tomismo y otras escuelas de la escolástica-, y
la dialéctica -ya se la entienda en su vertiente platónica o en su
vertiente hegeliana/marxista-. En la obra Método para una
Filosofía de la Liberación (1974), Dussel analiza la dialéctica,
desde Aristóteles hasta la superación de lo que denomina la
“ontología dialéctica hegeliana” por parte de la analéctica como
método de un filosofar meta-físico, así como en Filosofía de la
Liberación (1977) expone de manera detallada lo que podría
considerarse un resumen de su “primera ética”.

Con el desarrollo del método analéctico, “se trata de dar


el paso metódico esencial”, que significará la superación de la
ontología dialéctica hasta Hegel, puesto que el método
dialéctico sólo llegaría hasta el horizonte del mundo, y
allí englobaría al otro anulándolo en su alteridad. Empero, más
allá de la identidad divina del saber y del fin de la historia
hegeliana, y aún más allá de la dialéctica ontológica de
Heidegger, existiría un momento antropológico incomprensible
“di-stinto”, que afirma un nuevo horizonte del filosofar, así
como las condiciones que hacen posible una ética antropológica
y una meta-física, que abre el camino de la historia. Para Dussel,
los antecedentes de la analéctica se dan con los post-hegelianos
y, sobre todo, con Lévinas, no, por lo tanto, con los filósofos
modernos, ni con Heidegger, porque éstos incluirían todo en su
concepción del ser, si bien consideramos que en el caso de
Heidegger hay que advertir que su concepción del ser como
acaecer y del ‘otro comienzo del pensar’ con respecto a la
filosofía, supera a ésta en el sentido de que requiere construir un

58
pensar pasando por las diferencias, pensar a partir de lo abierto
de la historia.. Al respecto, sostiene que los verdaderos críticos
del pensar dialéctico dominador son los movimientos de
liberación del Tercer Mundo, porque éstos escuchan al otro no-
europeo que ha sido oprimido. Dussel entiende que el rostro del
otro, ante el que nos situamos en el cara-a-cara, reconocido por
la filosofía de Lévinas, está más allá del pensar; es
primeramente un hombre y no puramente “manifestación de los
entes en el mundo como para Heidegger. Desde Lévinas, Dussel
allana el camino del método analéctico, el mismo “viene de un
nivel más alto (aná) que el del mero método dialéctico”, que
sería el camino que la totalidad realiza en ella misma, desde los
entes al fundamento y desde el fundamento a los entes, mientras
de lo que se trata es partir del otro como libre, de su palabra, de
su revelación. “El método ana-léctico es el pasaje al justo
crecimiento de la totalidad desde el otro y para “servir-le”
creativamente. Como afirmaba Feuerbach “la verdadera
dialéctica” parte del diá-logo con el otro y no del “pensar
solitario consigo mismo”. De este modo, la verdadera dia-léctica
tiene un punto de apoyo ana-léctico, es un movimiento ana-dia-
léctico); mientras que la dialéctica falsa, dominadora e inmoral
es simplemente un movimiento conquistador: dia-léctico.” Sólo
la analéctica es capaz, entonces, de comprometerse con el
proceso de liberación del otro, que se aproxima desde más allá
de nuestro sistema reclamando justicia. A partir de ello, la
analéctica se entiende como una económica,
una erótica, una pedagógica y una política, que trabaja por la
realización de la alteridad humana, que nunca es solitaria, sino
“la epifanía de una familia, de una clase social, de un pueblo, de
una generación, de un sexo, de una época de la humanidad y de

59
la humanidad misma por entero, y, más aún, del otro
absoluto.”12

De allí que lo propio de este método, según Dussel, es


que sea intrínsecamente ético y no meramente teórico, como lo
sería el discurso óntico de las ciencias u ontológico de la
dialéctica; en otras palabras, si no hubiere praxis no habría
analéctica, porque la práctica -la relación hombre-hombre-, es la
condición para comprender al otro. El momento clave del
método analéctico es, antes que leer, interpretar o ver, el saber-
oir; esto es, el saber ser discípulo del otro, para poder
interpretarlo y comprometerse por su liberación. Ello implica
que “el filósofo ana-léctico o ético debe descender de su
oligarquía cultural académica y universitaria para saber-oír la
voz que viene de más allá, desde lo -ana-, desde la exterioridad
de la dominación.”

Dussel afirma al respecto que la misma noción de


analogía es analógica: la analogía del ser y el ente no es la
analogía del ser mismo. De allí en más si el ser mismo es
analógico, los dos analogados del ser no son ya di-ferentes sino
dis-tintos, y a esta diversidad del ser en una y otra significación
originariamente dis-tinta, la denomina “dis-tinción meta-física”.

Tanto la Filosofía de la Liberación como el método analéctico,


nacen después de la modernidad, son transmodernos, como un
nuevo momento de la historia de la filosofía humana, no en
sentido unívoco, sino en el de una humanidad analógica, “dónde
cada persona, cada pueblo o nación, cada cultura puede expresar
12
Dussel, Enrique, Para una ética de la liberación latinoamericana I. Bs.
As. Siglo XXI, 1973.

60
lo propio en la universalidad analógica, que no es ni
universalidad abstracta (…) ni la universalidad concreta.” Por lo
que se entiende que sin tener en cuenta el método analéctico
todo método se reduciría sólo al científico, a lo fáctico natural y
ello comportaría el riesgo de reducirse únicamente a lo lógico-
matemático, donde, según lo advierte el autor, “se refugia el más
ingenuo pero gigantesco peligroso cientificismo”. Por el
contrario, el campo de la analéctica es la exterioridad meta-
física, su punto de partida es la epifanía de la proximidad del
otro, su principio es la lógica de lo di-stinto y su categoría
propia es la alteridad13.

Una vez explicado el método analéctico como


superación de la modernidad y, sobre todo, de la dialéctica, pasa
a caracterizar y a ubicar los métodos científico-naturales,
formales, prácticos, poiéticos, científico-humanos, ideológicos y
críticos. La dialéctica en su sentido positivo, esto es la “ana-dia-
léctica” nos permite abrirnos a métodos científicos, a los que no
sólo no son científicos, y a los que, según el autor, ni siquiera
son teóricos. Esto es posible gracias a que la analéctica, “es un
método cuyo punto de partida es una opción ética y una praxis
histórica concreta” Por lo mismo, la tarea que se nos impone es
“saber avanzar por el camino (metà-ódos) de la teoría, de la
práctica, de la poíesis” y ver cómo el método o momento
analéctico, imprime en los mismos una nueva significación y
nuevos alcances.

Entre los diversos comentarios que ha suscitado este


método con respecto a su continuidad y dificultades
13
Dussel, E. Método para una Filosofía de la Liberación.
Superación analéctica de la dialéctica hegeliana. Ed. Sígueme, Salamanca,
1974.

61
epistemológicas, R. Fornet Betancourt14 registra una
redefinición en el tránsito de Lévinas, al cual Dussel remonta la
categoría de exterioridad, a Marx, en quien descubre una
diálectica positiva, en tanto integra la exterioridad y por lo tanto
ya no es impulsada por una negación de la negación, que tiene
por último horizonte la totalidad y por lo tanto cae en tautología,
sino por una afirmación de la exterioridad, que da paso a lo
nuevo, diferente.

Una propuesta interlógica

A nuestro parecer resulta evidente que la categoría de


exterioridad, que permite avanzar hacia la novedad y alcanzar el
conocimiento y la actitud ética imprescindible de respeto por el
otro, lleva a tener que construir permanentemente la
inteligibilidad y la racionalidad en la medida en que se pasa por
las diferencias. De algún modo lo entiende así el planteo de un
‘pensar intercultural’, que no logra ser consecuente consigo
mismo sino construyendo una nueva lógica al pasar por las
diferencias. Entonces se continuará hablando de ser, pero en el
sentido de una noción abarcadora que surja de aquí; no será
necesario distinguir entre ontología y meta-física, sino dejarle el
sentido que tienen en la filosofía. Adquiere importancia
fundamental el horizonte simbólico del que se parte y la
capacidad humana de ir asumiendo diferentes horizontes, como
de hecho se dan en la misma historia humana. La pluralidad de
paradigmas ya adoptada en el terreno científico debiera ser
aleccionadora. La exterioridad del otro sólo puede ser asumida
14
Fornet-Betancourt, Raúl, Transformación del Marxismo. Plaza y Valdés,
México, 2001

62
en tanto ertenece a otro horizonte simbólico que pasa a ser
reunido con el propio.

La situación histórica mestiza latinoamericana resulta ser


entonces un lugar privilegiado para un pensar liberador
instruyéndose en las diferentes identidades. Significa superar no
sólo la dialéctica que incluye las diferencias en lo mismo, sino la
exclusión, partiendo de las diferencias y de los excluidos de los
sistemas imperantes. De allí que resulte muy significativa la voz
de los movimientos sociales reclamando reconocimiento, para
no recaer en la tautología de lo mismo sino instruirse en y
transformarse con el permanente acaecer de lo humano en sus
diferencias.

63
64
ATREVERSE A PENSAR COMO FILOSOFO
LATINOAMERICANO:
notas introductorias a los problemas de filosofía
latinoamericana

Hander Andrés Henao

Estamos ante una nueva generación de pensadores


latinoamericanos, que a diferencia de las anteriores, tiene ya un
vasto avance para pensarse de manera situada y crítica su propia
realidad mundial. Sin embargo, somos la generación que más
cerca está en experimentar la extinción de la especie humana por
ella misma. Hoy, más que en ninguna otra época, tenemos que ir
más allá de Kant, de la ilustración, ya que no se trata solo de
atreverse a pensar la realidad, de tomar las riendas del propio
entendimiento; sino que se trata de atreverse a pensar como
filósofo latinoamericano, lo cual implica ir más allá de la
prehistoria del pensamiento, de abandonar la filosofía europea.
No se trata de un mero problema bibliográfico, sino biográfico e
histórico: es un asunto de direccionamiento del pensamiento y la
acción. Arriesgarse a pensar así, desde un locus de enunciación
latinoamericano, es arriesgarse a encarar toda la filosofía desde
sus comienzos, con el objetivo de que la filosofía se supere a sí
misma y venza la parcelación en la que se ha visto envuelta,
pues, cuando la filosofía piensa situada y críticamente la
realidad de latinoamerica, deja de ser mera filosofía y se
convierte en historia, sociología, arqueología, antropología, etc.,
es decir, se trasciende a sí misma para convertirse en

65
pensamiento y praxis de liberación. Lo anterior nos obliga a
realizar un des-arme del andamiaje categorial eurocéntrico con
el que hemos pensado hasta el momento la realidad; realizar un
salto cualitativo y des-mitologizar la historia atreviéndonos a
pensar como verdaderos filósofos latinoamericanos.

La modernidad hechizó el mundo, negó la mitología para


construir así el mito de la razón irracional. La modernidad es un
problema fundamental para la filosofía latinoamericana, ya que
es la construcción de una nueva temporalidad histórica,
fundamentada en el En-cubrimiento de lo Otro, de lo No-
europeo y de la auto-afirmación de Europa sobre las demás
culturas.

Para tal afirmación de la cultura Europea sobre las demás


culturas, se hace necesario crear un mito alrededor del
desenvolvimiento de la historia en el que el centro del desarrollo
sea precisamente Europa (del Norte). Este mito es el mito de la
modernidad. La experiencia temporal de los pueblos es el eje
central por medio del cual se da su experiencia-en-el-mundo, así
como el vehículo de su significatividad; es por ello que para
configurar un régimen de dominación, Europa (norte) configuró
una experiencia Espacio-Temporal con pretensiones de validez
universal, por medio del cual impulsó su particularidad como
única experiencia espaico-temporal y cultural existente en el
mundo.

Surgen así tres épocas históricas fundamentales:


antigüedad, edad media y edad moderna. Todas diferenciadas
entre sí, cada una con sus características propias, pero lo más
importante es que cada una es la manifestación de un espíritu

66
(geist) que se desarrolla a lo largo de la historia y que tiene a
Europa como centro de ese proceso.

Hegel será aquella figura de la filosofía eurocéntrica que


elevará a máxima suprema este mito de la modernidad, por
medio de la colonización del Espacio-tiempo; dirá que el Todo
será lo verdadero, porque la verdad está su propio desarrollo,
considerando con ello, que el destino inevitable del espíritu
universal humano está en la modernidad. ¡Hegel instauró la
falacia desarrollista! Hipostasiando el devenir material
histórico, impuso una única dirección y forma de devenir
histórica para todos los pueblos del mundo. Lo “clásico” griego
– y germánico- se impondrá sobre todo lo clásico diverso de
todos los demás pueblos del mundo. El desarrollo histórico y
cultural de europa es el devenir necesario del Ser.

La falacia desarrollista posee una dimensión ontológica


(filosófica) fundamental, ya no tanto sociológica y económica,
en la medida que manifiesta la existencia de un sujeto-histórico-
cultural-universal, que se desarrolla a través del tiempo y que
tiene su máxima expresión concreta en un espacio geográfico
específico: Europa central y del norte (Alemania, Francia,
Dinamarca, los países escandinavos). Se establece la
modernidad como aquella fase (momento) del Espíritu como el
garante de ese derecho absoluto de Occidente, de Europa de
imponer su propio desarrollo histórico cultural, como el
verdadero y más racional. El espíritu universal nace en Asía,
pero tiene en Europa su fin y centralidad.

Lo anterior, nos lleva a considerar el carácter


supremamente Eurocéntrico de la filosofía y pensamiento
Occidental, entendiendo por este concepto, una realidad

67
concreta real, interrelacionado con otras realidades concretas
reales, en el que se conjugan procesos históricos fundamentales
como: la Colonialiddad del Poder, la Modernidad y el
desarrollo del capitalismo; ahora, lo que caracteriza al
Eurocentrismo es la falacia desarrollista, en la que se considera
a Europa como centro y fin del proceso histórico cultural
universal

Como generación 25 de ese proceso, tenemos que


reconocer, luego de los avances críticos en la desmitologización
de la historia, que estamos más obligados que nunca, a
interpretar la historia de manera dis-tinta: postulando un nuevo
concepto de periodización y una historia plural (analógica) en
lugar de una univoca historia universal. Estamos hablando de la
necesidad de una filosofía de la historia latinoamericana, como
uno de los proyectos inacabados para los pensadores críticos de
nuestro continente. El tiempo es tanto objetivo como subjetivo,
por ello, el trabajo hermenéutico crítico, pasa por un proceso
también fenomenológico: se trata de vincular la historia mundial
con los procesos de subjetivación.

La periodización es la división en segmentos, “partes”,


etapas de la historia, que permita ordenar el desenvolvimiento
de un proceso cultural y social a lo largodel tiempo. La
periodización eurocéntrica adscrita a los procesos de
colonialidad del poder, construye una periodización que
inaugura un mito: la modernidad. Es necesario construir una
nueva periodización, como decimos, para desmitologizar la
modernidad y derribar el hechizo sobre la historia mundial; en
otros términos, es necesaria una nueva interpretación de la
modernidad; una que permita entender que la historia es un
continum incondicional inteligible en el que es imposible

68
realmente generar una totalización universal a partir de un
sujeto-histórico-cultural particular. La modernidad es un sistema
totalizador que impone lo mismo (tó autó) del sujeto del capital
y de un sujeto cognoscitivo único.

Estamos hablando que una fenomenología hermenéutica


crítica situada, porque consideramos que un locus de
enunciación crítico latinoamericano parte de una
intencionalidad situada, en el que el objeto de la intencionalidad
se enmarca en nuestros límites intencionales, que son los de
nuestra situación geográfica, cultural, social e histórica. Dussel
siempre como pensador crítico de la historia mundial y, como
latinoamericano, nos advierte, como lo recuerda el profesor C.
Bauer, que los límites del horizonte de la historia es el Pueblo
(Volks), una intersubjetividad intra-etnica que se enfrenta a la
historia con sus formas significativas singulares. Para
desmitologizar la periodización, tenemos que partir de momento
(Gestalt) histórico en el que cada pueblo se encuentra en su
particularidad, acabando con los particularismos, construyendo
un horizonte limítrofe que manifieste nuevas posibilidades de
comprensión, centrados en cada una de las particularidades
culturales, es decir, de la situacionalidad propia y singular de
cada pueblo. Este hecho es lo que permite que se construya una
historia, no ya universal, sino mundial, en el que el Otro quede
como fundamento de la propia construcción: una historia
analógica

El proyecto de esta nueva interpretación sobre la historia


mundial (analógica) parte, como dijimos más arriba, de una
nueva interpretación de la modernidad, una interpretación
fenomenología hermenéutica crítica y situada que devele la otra

69
cara ocultada y victimizada de la modernidad eurocéntrica:
Latinoamérica.

Latinoamérica no solo pone la modernidad en el


escenario de los momentos históricos de la humanidad, sino que
también es su primera víctima, llevando dentro de sí la negación
del elemento liberador (racional) de la modernidad, al demostrar
su lado más irracional. Antes de 1492 Europa había sido una
periferia del mundo Asiático y Musulmán; con la conquista y la
colonización de América latina, posibilita no solo configurar un
Sistema Mundo, sino que posicionarse a sí misma como centro
de ese sistema y, a Latinoamérica como primera de sus
periferias.

El sistema mundo es un sistema inter-regional, en el que


se establece todo un conjunto de procesos (políticos,
económicos, culturales) que interrelacionan todos los espacios
geográficos entre sí a nivel mundial. La conquista y la
colonización de América (latina) es el centro de todos esos
procesos, ya que nunca antes de ese evento histórico, se había
configurado un sistema tal15.

Un historiador tradicional enmarcaría los orígenes de la


modernidad en el siglo XVIII, con los eventos de la revolución
industrial, la revolución francesa, la ilustración y la reforma
luterana fundamentalmente. Sin embargo, el momento de
origen, la conquista de América, es un momento (Gelstalt) de

15
El profesor Carlos Bauer en una de sus clases introductorias a los
problemas de la filosofía latinoamericana, nos recuerda que el sistema inter-
regional mundial en su desenvolvimiento histórico presenta cuatro momentos
(Gelstalt): I): Egipto-Mesopotamia; II): Indu-Europeo; III):Asiatico-Afo-
Mediterraneo y, IV): Sistema Mundo. Notas de clase.

70
constitucionalidad, ya que es el inicio del Sistema Mundo. Es
por ello que Hegel se encargó de dejar por fuera del
desenvolvimiento del espíritu a la periferia Europea: España y
Portugal.

La pregunta para los tradicionalistas en filosofía sería:


¿Cuándo inicia la filosofía moderna? La filosofía moderna
comienza cuando inicia el Sistema Mundo, cunado, por primera
vez en la historia, Europa se conforma como centro del mundo,
al autodefinirse a partir del ocultamiento del Otro: el indio, el
negro, el pobre, el mestizo, la mujer. El Ego Conquiro es más
primigenio que el ego cogito cartesiano, por ello lo determina en
sus fundamentos más internos. No es posible concebir la
filosofía moderna, sin concebirla en relación al proceso de
colonialidad (de la naturaleza, del saber, del poder, de la
economía, de la subjetividad, del Otro, etc.). La filosofía
moderna inicia con la conquista y exterminio de lo Otro no-
europeo, de lo dis-tinto a lo Europeo. La filosofía moderna
inicia con la construcción del mito irracional de la modernidad,
cuando se establece una retórica de la Razón y la civilización,
que justifica y sustenta una lógica de la barbarie y la destrucción
y una gramática de la colonialidad, parafraseando a W.
Mignolo.

Ahora, también existe un discurso crítico, analógico, en


los albores de la filosofía modernidad temprana: el primer
antidiscurso de la modernidad. Bartolome de las Casas era
consciente, nos recuerda E. Dussel, de que la imposición de un
ideal de humanidad por medio de la fuerza, era la imposición de
lo mismo (To autó) por medio de lo mismo. Bartolome de las
Casas inicia la indicación de los efectos negativos de la
modernidad, de la civilización euro centrada.

71
De un lado tenemos el discurso mitologizante de J. G. de
Sepúlveda, que sostenía que la modernidad es emancipación,
liberación de las cadenas y entrada en el reino de la libertad por
medio de la razón. Desde su perspectiva se trata de entender el
estatuto ontológico de los indios (de lo No-europeo), desde la
lógica de su falta de humanidad por medio de la cultura, esto es,
son considerados humanos, en la medida que creados por Dios,
pero inhumanos, en razón a sus hábitos y formas culturales
(inmadurez culpable ontológica dirá Kant más tarde). Se parte
de la superioridad de la propia cultura para encontrar lo ya
considerado inicialmente: la inferioridad cultura de los demás
pueblos. Queda justificada entonces la barbarie “civilizadora” de
Europa frente a los pueblos latinoamericanos originarios.

Diametralmente opuesto a J. G. de Sepúlveda, Bartolomé


de las Casas, crítica la pretendida superior etnicidad y eticidad
europea, en tres pasos:

1. Refutando la pretendida superioridad de la cultura


europea y con la cual sustenta la contraria barbarie de
las otras culturas latinoamericnas. Para ello, se
encarga de mostrar la irracionalidad de los procesos
de racionalización y evangelización occidentales, a la
par que deja claro la riqueza cultural del indio.
Entender como verdadero, dice B. de las Casas, lo que
el Otro nos dice. Eso es reconocer al Otro como Otro,
como un horizonte de responsabilidad.

2. Critica la pretensión de universalidad para el indígena,


a la vez que se otorga validez única de
universalización para la cultura occidental Europea.
Ello, lo hace manifestando las contradicciones

72
internar en el argumento evangelizador, en el que se
presenta al indio como creación divina pero a la vez
que como su negación absoluta. Reconocer que el
otro es universal porque Dis-tinto, porque
absolutamente Otro.

3. Refuta rotundamente la falsedad de que la última


causa posible de la violencia sería salvar a las
víctimas de los sacrificios humanos por ser contrario
al derecho natural. Para B. de las Casa es necesario
que el otro sea Libre, entenderlo en sus lógicas
propias particulares como pueblo, pues la sede del
poder no reside en el rey, sino en el pueblo, por ello,
es irse contra la ley natural el acto irracional de
imponer la violencia y la barbarie al indidio.

En 1550 inicio entonces le primer debate de la


modernidad en el que se enfrentan estos dos discursos
contrapuestos: el uno encubridor de la irracionalidad del mito
moderno; el otro des-cubridor, liberador y analógico. Hoy,
atrevernos a pensar como filósofos latinoamericanos, significa
recuperar las bases críticas del ese antidiscurso filosófico de la
modernidad, lanzándonos en una interpretación situada de
nuestra realidad mundial como latinoamericanos.

Lo dicho anteriormente nos abre el horizonte de los


problemas de la filosofía latinoamericana más allá del aspecto
de la modernidad, el eurocentrismo y la colonialidad. Uno de
esos problemas fundamentales es el indigenismo y, junto con él,
el problema por la integración y la autonomía de los pueblos
indígenas y demás pueblos latinoamericanos.

73
La idea de indigenismo es entendida por lo general desde
el sentido y consciencia común, como la apelación positiva de
los valores, prácticas y símbolos de las culturas indígenas.
Ahora, esta categoría, debemos entenderla, como bien lo refiere
Hector Diaz- Polano en un pequeño ensayo dedicado al tema,
como una categoría teórica socio-política, en donde el
indigenismo es entendido como una política de Estado en
defensa de la vida indígena, sin real participación de las
comunidades indígenas en esos procesos. El problema de
América latina desde sus orígenes ha sido un problema étnico,
relacionado con su ethos, en la medida que con la configuración
del sistema mundo eurocéntrico colonial se configura la
negación de la autonomía de desarrollo de tal eticidad. Entonces
el indigenismo, lejos de permitir un desarrollo de esa autonomía,
ha permitido la configuración de estrategías de gobiernos anti-
democráticos. El carácter teórica socio-político del indigenismo
se manifiesta en que deja por fuera de la verdadera óptica del
problema, siendo realmente parte del mismo.

Surgen entonces dos posiciones desde la óptica de


Hector Diaz- Polano, aquella vinculada a los etnopopulismos y
aquella vinculada con los verdaderos y reales procesos
emancipatorios de los pueblos víctimas de los procesos de
colonización y exterminio de la razón occidental. El primero se
sustenta en un indigenismo etnicista pone énfasis en la
diversidad cultural y social en contraposición a la idea de nación
(que hasta el momento había sido la característica de los
discursos de identidad cultural), pero manteniendo con ello el
rechazo a las demás formas de cultura nacional (mestiza) como
una forma de cultura occidental; mantiene también una idea de
esencia indígena primigenia, configurando una especie de
etnocentrismo invertido. El indigenismo mantiene entonces una

74
doble cualidad: por una parte son inorgánicos y por otra, son
homogeneizadores no analógicos.

Los discursos más críticos, con ello decimos, analógicos,


son aquellos vinculados a los proyecto étnico-nacional,
posicionados, según Hector Diaz- Polano, desde los años 80´s.
Estos discursos y prácticas defienden la construcción de
proyectos autónomos y de integración entre los diferentes
pueblos latinoamericanos, negando los indigenismos y,
configurando con ello, verdaderos proyectos democráticos de
sociedad. Se plantean desde una lectura crítica del proyecto de
modernidad, pues encuentran dos tipos de desigualdades: la
sociocultural y la socio-económica, como dos caras de una
misma contradicción histórico-social. Si bien ambas
dimensiones mantienen lógicas y procesos propios, se presentan
de manera simultánea y, la lucha se realiza desde los dos frentes,
el socio cultural y el socioeconómico, desde el indio y desde el
no-indio (el mestizo) planteando con ello, el problema de la
construcción del sujeto de la revolución (El proletariado, el
indio, el negro, la mujer, el gay?). La autonomía y la
autodeterminación son entendidos por Hector Diaz- Polano,
como el proceso por medio del cual los pueblos oprimidos, sean
estos indígenas o no, configuran un a construcción de una
sociedad justa en relación a los procesos de igualdad
socioeconómica y sociocultural. Así, no se puede interpretar la
realidad indígena sin considerar la realidad nacional, así como
no se puede considerar la realidad nacional, sin considerar la
realidad indígena. Los principios de autonomía se centran en
relación a la:

a). unidad nacional


b) igualdad cultural y económica

75
c) igualdad de los grupos sociales, solidaridad y
fraternidad
d) empoderamiento, potenciando el fundamento de
lo político

Tenemos que aclarar que esta crítica a los indigenismos


no nos imposibilita para rescatar la matriz de pensamiento
filosófico indígena; todo lo contrario, nos abre vías para su
recuperación crítica y situada en el horizonte histórico actual. Si
pensamos por ejemplo en la filosofía guaraní, vemos que este se
configura como un sistema de pensamiento que nunca fue
rescatado por los pensadores paraguayos, como lo reseña
Bartolomé Melià. Es necesario por ejemplo hoy, rescatar esta
matriz de pensamiento al margen de caer en cualquier
indigenismo.

La forma de vida del indígena guaraní, se extendió por el


territorio que va desde Paraguay, noreste de Argentina hasta el
suroeste del Brasil (rio grande do sul, Santa Catarina, Paranáy
Mato Grosso do Sur), siendo sociedades fundamentalmente
agrarias que ponían en práctica técnicas y procesos de
redistribución de los medios de producción, logrando configurar
una especie de comunismo anárquico, en la medida que eran
una sociedad contra el Estado, teniendo una formación más
ecológico-cultural que imperial, como lo reseña Bartolomé
Melià. Para ellos la palabra lo es todo, siendo esta el propio
guaraní hecho carne; así, la palabra dicha mitológicamente, nos
dice Bartolomé Melià, es lo cotidiano mismo, su religión, siendo
la palabra el hombre de pie. La filosofía Guaraní es una muestra
de cómo el pensamiento indígena, lejos de ser etnocentrista,
como imponen los indigenismos, es analógico, revela la

76
búsqueda de hacer a parecer la alteridad por medio de la
palabra.

Lo dicho hasta el momento, nos abre el camino para


intentar formular un camino para la construcción de la utopía
factible. De la mano del profesor Carlos Fernando Bauer en su
seminario y con la lectura de su texto “Analectica…” hemos
logrado comprender un poco el proceso destructivo-
deconstructivo que debe realizar quien tarta de pensar como
filosofo latinoamericano, como lo hace Enrique Dussel.

Estamos hablando de atreverse a pensar no solamente


problemas complejos, sino también y en la misma medida,
problemas difíciles. Lo difícil, guarda en relación a lo complejo,
la necesidad de perspectivas transdisciplinares, pero va más allá
de este, en la medida que presenta el ocultamiento de las lógicas
más internas de los fenómenos, situaciones y procesos
considerados en los problemas tratados. Lo complejo abre hacía
la constelación de dimensiones posibles del problema, lo difícil,
enuncia la necesidad de su re-formulación para generar una
síntesis de lo complejo.

Como decíamos al inicio, el ego conquiro, el yo


conquisto, que dominó y negó lo Otro para afirmarse, precede al
ego congito, al yo pienso cognoscitivo filosófico y racional,
configurando su estructura interna y sus lógicas de aprensión del
mundo. La ontología del sujeto, la revolución copernicana, no es
sino uma hipostasis de lo subjetivo en búsqueda de la
aniquilación de lo no-identico al sujeto. La modernidad Totaliza
al sujeto posicionándolo como nuevo Dios sobre la naturaleza.
Todo es lo Uno, porque el uno es Europa y Todo son los pueblos
originarios latinoamericanos que deben ser ocultados, negados y

77
subsumidos a una lógica de exterminio y de barbarie. La
modernidad necesita operar como una ontologización de la
subjetividad como totalidad, para de ese manera encarar la
conquista de los entes (lo Otro).

El concepto de sujeto, que desde siempre se ha


caracterizado por su matriz epistemológica, guarda dentro de sí
el proceso de dominio y de configuración de un mito: La
modernidad Eurocéntrica. El Ser, el saber cómo totalidad
absoluta, enmarcaba el transito del desarrollo de la consciencia
individual y social (del pueblo), dentro de una línea en la que el
fin último era imitar el desarrollo occidental. El yo conozco (Ich
Danke) desde Descartes hasta Hegel, pasando por Kant y
Fithche, revela una supervaloración de los elementos racionales
conceptuales por sobre los sensitivos y emotivos, llevando a una
subsunción del sujeto carnal real por el ideal. Lo real no no ya la
experiencia viva del sujeto, lo real son las operaciones lógicas
que este realiza para su propio engaño.

Descartes había postulado el carácter ontológico del


sujeto cognoscente cuando afirmó que para que la realidad
concreta existiese clara y distintamente, era necesario antes
instituir una racionalidad abstracta que la viniese hacer aparecer
y contuviera en últimas su verdad; en el pensamiento cartesiano
la Res cogitans siempre es superior a la res extensa. I. Kant y su
proyecto crítico, hará lo suyo, afirmando la superioridad de un
sujeto formal abstracto trascendental como la condición de
posibilidad de todas mis experiencias y con ellas del mundo
como objetividad. El sujeto en su relación con el objeto, lo
domina, lo devora para aniquilar cualquier indicio de real
existencia concreta. Ahora es Hegel quien corona este proceso
de ontologización del sujeto centrismo. Para Hegel la

78
reconciliación entre sujeto y objeto, se realiza por una
expansión, ampliación del sujeto en la figura de un espíritu
universal, que deviene en el tiempo y que deja tras de sí la
marca de la construcción de la realidad natural e histórica. Lo
Otro, aparece como algo aniquilado al lado de la
autonomización de un sujeto colectivo abstraído de su propia
realidad material.

Cuando más se reivindica y resalta la superioridad del


sujeto, nunca más este estuvo más reprimido y subsumido a su
propia aniquilación. La construcción de ese sujeto abstracto
totalizado por la modernidad y sus representantes filosóficos, se
encargó de enajenar, extrañar y cosificar la realidad corporal
carnal viva de la experiencia de los sujetos. Lo abstracto
reemplaza lo concreto; la adecuación aniquila lo diferente y dis-
tinto para asimilarlo a la identidad; el trabajo vivo se convierte
en trabajo abstracto, que solo muerto produce el
desenvolvimiento del capital.

Pero la modernidad lleva dentro de sí su propia


negación. Nosotros hijos de américa latina y producto de esa
destrucción y barbarie, estamos destinados a consolidar lo
absolutamente Otro como autentico principio filosófico frente a
la supremacía del sujeto. Se trata de la construcción de una
metafísica de la Alteridad; como diría Dussel, una ética
instituida como filosofía primera que establezca un horizonte
trascendental trans-ontologico. Lo trascendental siempre ha
sido para la filosofía aquello que está más allá de la experiencia
de la conciencia; para la Ontología tradicional sería el Ser.
Nosotros, siguiendo a Dussel, decimos que la transcendencia es
el Otro, que nos desborda y supera en todas sus líneas por su
libertad. El Otro y su libertad instituyen una trascendencia ética,

79
un universo no solamente ontológico, sino trans-ontologico, ya
que se trata de lo infinito como pura exterioridad que nos
supera.

No se trata entonces de un pensamiento que se piensa así


mismo en su pensar el objeto; por el contrario, en lugar de
absorber a lo Otro no-identico en la identidad, se establece un
ámbito de lo dis-tinto, de lo alternativo. Estamos hablando que
atreverse a pensar como latinoamericano es encarar un
desvelamiento (alethein) de lo Otro de la alteridad oprimida y
víctima, responsabilizándose por él. El Otro como Otro, como
absolutamente libre, es nuestro punto de partida como filósofos
latinoamericanos, si pretendemos, claro está, atrevernos a pensar
como tales.

Comprender al otro significa adentrarse en su


experiencia vivida, en su mundo de la vida cotidiano. Pero el
Otro es un resto incomprensible, algo que no podemos descifrar
y enclaustrar en el universo de lo mismo, si lo queremos
absolutamente como Otro, esto es, libre. La perspectiva
latinoamericana queda definida éticamente, pues negando al ego
(sujeto) y al Sistema (Totalización egótica), se recupera la
palabra como revelación de la alteridad. Acá el ente no es el Ser,
sino análogo, es decir, diverso, lo que lo convierte no en
idéntico, sino en dis-tinto.

Lo que Dussel entiende por Voz Ética es una filosofía del


oído (ético-biológico-cultural) que escucha y reconoce al Otro
en su hablar. La revelación del Otro como exterioridad única,
como indeterminada e indescifrable experiencia singular propia,
la comunicación se establece como ana-logía. Las semejanzas,
de experiencia, de símbolos y de culturas e historias, es lo que

80
posibilita escuchar la voz del otro, que es una Voz Ética ya que
se trata de ubicarse más allá de la totalidad univoca del Yo
mismo. El Otro comunica la posibilidad de lo real; expresa la
posibilidad de mi libertad con su libertad. El concepto de Voz
Ética revela la posibilidad de la construcción de una razón
hermenéutica, de una racionalidad que aumente las semejanzas,
una posibilidad para la construcción de una realidad más
humana.

El pensamiento analéctico abre el pensamiento hacia la


alteridad oprimida, como aquella exterioridad viva que es
preciso escuchar y liberar. La construcción de una filosofía de
los pueblos pobres justifica la centralidad de la idea de un ethos
vivo, de un Otro no como resto entre el Yo y el Tú, sino como
una unidad entre el Nosotros y el Vosotros. Se trata de una
Éthica como ana-logía, en donde el punto de partida es el Otro
oprimido que construye una ética mundial. El Ethos es el
carácter y costumbre cultural de un pueblo, su núcleo ético-
mítico que manifiesta su singularidad cultural. La Voz Ética se
articula a la idea de ethos, pues la palabra que se escucha son las
de los pueblos ocultados, oprimidos y aniquilados por la
modernidad eurocéntrica.

Referências:

Bauer, Carlos, F. (2008). Analectica de Enrrique Dussel: un


Método para la Construcción de una Utopía Factible o Intitución
Futura para el Tercer Milenio. Universidad Nacional de
Córdoba.

81
Dussel, E. (2009). El Primer Debate Filosófico De la
Modernidad. En: El Pensamiento Filosófico Latinoaméricano,
del caribe y "latino" 1300-2000. Dussel, et al. Siglo XXI
Editores. Mexico

________. (1995) Eurocéntrismo y Modernidad (Introducción a


las Lecturas de Franfurt). Recuperado 20/01/2017
http://enriquedussel.com/txt/Textos_Articulos/243.1993.pdf.

________. (1994). 1492 El Encubrimiento del Otro: " Hacia el


Origen del Mito de la Modernidad". Plurar Editores. La Paz.

Diaz Polano, H. (2009). El Indigenismo: De la Integración a la


Autonomía. En: El Pensamiento Filosófico Latinoaméricano, del
caribe y "latino" 1300-2000. Dussel, et al. Siglo XXI Editores.
Mexico.

Meliá, B. (2009). La Filosofía Guaraní. En: El Pensamiento


Filosófico Latinoaméricano, del caribe y "latino" 1300-2000.
Dussel, et al. Siglo XXI Editores. Mexico.

82
POR FILOSOFIAS INSURGENTES16

Hugo Allan Matos

Filosofia x Movimento social: paradoxo?

Faria sentido iniciar este texto a partir da questão que


indaga o que seja filosofia. Sentido maior para quem participou
deste congresso no Kilombo Tenondé, experiência marcante e
transformadora. A princípio um possível choque entre a cultura
acadêmica eurocêntrica da filosofia e o movimento social-
popular ali representado e num espaço gerido a partir da
permangola – junção de permacultura com capoeira de Angola –
poderiam configurar o caldeirão de uma contradição talvez
indissoluta, de um paradoxo da oposição de dois mundos
contrapostos e não confundíveis.

16
Texto pensado no contexto do V Congresso Brasileiro de Filosofia da
Libertação, Encontro Internacional de Filosofia Africana, com o tema:
Movimentos sociais populares e libertação, nos dias 19 a 21 de setembro de
2017, no Kilombo Tenondé, povoado de Bonfim, Bahia. Tive a honra de
apresentar uma fala junto a amiga e filósofa querida Suze Piza e junto ao
também amigo e filósofo Daniel Pansarelli, contudo que nada respondem
pelo conteúdo deste texto.

83
Talvez na impercepção de algumas pessoas presentes e
para quem a princípio tenha visto fotos e/ou sabido do evento
tenha sido isso que ocorreu. Ou pode ser que o que passarei aqui
a relatar seja apenas minha percepção intelectualizada e
racionalizada desde outras experiências, inclusive textuais, quais
junto aqui para pensar esta importante questão: qual filosofia
temos feito e qual filosofia queremos fazer?

Aqui trarei a síntese de outras duas experiências textuais


(não publicadas, oficialmente), justamente para mostrar o
exercício filosófico frequente, que como no desempenho do
jogo de capoeira, o esforço em aperfeiçoar-se, o exercício, o
ritmo e o corpo devem estar em constante labor, qual é também
atividade necessária para a consolidação de práxis de libertação.
O exercício filosófico nos exige labor outro que a atuação direta
nos movimentos sociais, na capoeira, inegável. Contudo, são
possíveis filosofares que contribuam na construção, inovação,
aperfeiçoamento...da atuação nestes movimentos? Minha
posição é a de que se a filosofia não permite que quem com ela
tome contato seja de alguma forma afetado, esta filosofia está
alienada, desprovida de seu ser filosófico. Se faço filosofia é
para afetar às pessoas. E este afeto, como qualquer afeto, visa a
partir da afeição provocada, transformar a mim mesmo e às
pessoas. E esta transformação segue um critério material de toda
ética que é a produção, reprodução e melhora da vida em
liberdade de cada pessoa e de todas.

Impossível aqui não comentar a tese de Marx sobre


Feuerbach, qual frequentemente é mal interpretada como se
Marx dissesse que não importara que a filosofia continuasse
interpretando o mundo, mas passasse a transformá-lo. Não é
função da filosofia transformar o mundo. Marx bem o sabia,

84
tanto que a escrita de suas obras filosóficas o levara à exaustão,
por diversos problemas de saúde, o de ficar muito tempo
sentado escrevendo lhe rendera diversos furúnculos, por
exemplo, quais eram motivos de frequentes reclamações em
suas cartas e para amigos. A questão é sabendo da importância
da filosofia, enquanto filosofia, ou seja, em seu papel de
problematização, tematização, caraterização e interpretação do
mundo, dentre outras possibilidades, apropriando-se de seu
inegável caráter teórico, quais as possibilidades de a filosofia
auxiliar na transformação do mundo, na práxis?

Assumir a filosofia enquanto instrumento teórico


fundamental para uma boa práxis não é, de forma alguma,
menosprezar a prática, tampouco negar a importância desta na
transformação do mundo. Essa distinção pejorativa de um dos
aspectos da práxis -teoria + prática - interessaria a quem? A qual
tipo de práxis? A meu ver, apenas ideologias cegas e posições
ingênuas poderiam almejar uma prática de transformação sem
teorias que possam auxiliar a traçar ações táticas e estratégicas
na transformação da realidade.

Quais seriam algumas características de uma concepção


filosófica que esteja a serviço da transformação das pessoas e da
realidade? As filosofias de libertação, desde a década de 1940
colaborando com todo um movimento anterior de “libertação
mental” que ocorreu em nosso continente no séc. XIX, mais
notadamente e não por acaso desde 1960, quando aparecem já
caracterizadas contra as ditaduras militares, vêm tratando desta
temática recorrente. O próprio termo libertação, caracteriza uma
retomada do aspecto libertador do fazer filosófico – que é
explícito antes da filosofia eurocêntrica - , contra as imposições
culturais que visam impedir a liberdade aos povos latino-

85
americanos, africanos e asiáticos, como a povos periféricos
dentro da própria Europa. Com isso, quero retomar que a
necessária adjetivação visa lembrar-nos sempre que quem está
nesse campo de produção filosófica não participa, geralmente,
de privilégios garantidos a certos pretensos filosofares ou
profissões de filosofia que só fizeram nestes pouco mais de 300
anos da presença da filosofia na América, perpetuar mecanismos
e dispositivos ideológicos de domínio e de perpetuação da
ignorância e das culturas subalternas que ora nos assolam e se
apresentam como hegemônicas no atual estado social em que
nos encontramos. Assim, urge a necessidade de valorizarmos e
reconhecermos não só à filosofia da libertação, às filosofias
africanas e às filosofias interculturais e descoloniais que já pelo
menos há 6 anos congregam neste importante evento que é o
Congresso Brasileiro de FdL. Mas chega o momento de
compormos, dialogarmos, reconhecermos e valorizarmos tantos
outros movimentos teóricos quais reconhecem a necessidade de
um maior empoderamento cultural e de um envolvimento e
responsabilização histórico-social com a Educação e Cultura de
nosso país. Elementar, mas necessário dizer, que a falta de
valorização desses aspectos, vale repetir, de empoderamento
cultural e educação qualitativa das massas, em muito colaborou
com o atual momento de ode à ignorância e real possibilidade de
totalitarismos e fascismos se apropriarem de nosso sistema
educativo e de nossa cultura, sem resistência à altura. Portanto,
reconhecer a importância da Universidade, do sistema de
educação, além de iniciativas de educação e empoderamento
cultural fora dos espaços formais se faz luta legítima e urgente
para qualquer movimento social e popular. Algumas questões
que ficam, são: qual o sistema educacional que queremos? Qual
modelo de universidade, de educação e cultura? Estas questões
estão umbilicalmente ligadas a outras maiores, quais sejam: qual

86
o projeto de país defendemos? Qual modelo de Estado?
Podemos abrir mãos da democracia – mesmo essa frágil que
conquistamos?

Diante destas questões, me restrinjo a tentar responder


apenas uma delas: quais algumas características de uma filosofia
que possa colaborar com a transformação social, uma filosofia
eu insurja desta realidade que aí está e a partir de todas as
contradições às quais está submetida, possa pensar a realidade e
ao mesmo tempo, instrumentalizar para transformá-la?

A filosofia como pedagógica

Desde 2003, quando começo a estudar Enrique Dussel,


me chamou à atenção seu conceito de pedagógica. Comecei a
estudar e a produzir reflexões textuais sobre a temática17 mas é
só em 2010 que estas reflexões tomam um corpo maior quando
Daniel Pansarelli e eu escrevemos “Filosofia como
pedagógica”18 que foi possível apropriar-me deste conceito
numa compreensão de que a própria filosofia é pedagógica.
Dizer isso significa dizer que qualquer fazer filosófico, que se
pressupõe seja busca pela sabedoria e disponibilização do
resultado desta busca a outras pessoas, já na própria busca pelo
17
Você tem acesso a eles aqui:
https://www.researchgate.net/profile/Hugo_Allan_Matos, incluo neste corpo
minha dissertação de mestrado em educação, na qual penso exatamente o
conceito de pedagógica como uma possibilidade educativa para além da
opressão da corporalidade a partir do Rap como cultura popular
revolucionária.
18
Acesso aqui:
http://periodicos.unb.br/ojs248/index.php/resafe/article/view/5317/0

87
saber e mais ainda na disponibilização desse saber, há uma
dimensão pedagógica, de relação de construção de
conhecimento inerente ao fazer filosófico. Permita-me aqui,
partilhar alguns resultados recentes nos quais continuo estas
reflexões anteriores.

Nosso ponto de partida teórico é bem posterior à obra


“La Pedagógica Latinoamericana”. O problema filosófico mais
recente que retroalimentou esta discussão sobre a pedagógica é
o problema central da “Ética de la Liberación en la Edad de la
Globalización y de la Exclusión”. Permita-me contextualizá-lo:

...Llegamos asi al momento crucial de la Etica de la


Liberación, donde reactualizamos, despues de la caída
del muro de Berlín en 1989, debates antiguos (sostenidos
ya por R. Luxemburg, A. Gramsci, C. Mariategui, y
tantos otros), para situar desde esta meta-etica de la
liberacion nuevos horizontes en cuanto a la razon etico-
estrategica y tactica, donde se mostrara la compleja
articulacion de las masas victimadas, que emergen como
comunidades criticas, teniendo como nucleos de
referencia militantes criticos. Se trata de los nuevos
movimientos sociales, politicos, economicos, raciaies,
ecologicos, del «genero», etnicos, etc., que surgen a
finales de este siglo xx. Luchas por el reconocimiento de
victimas que operan transformaciones en diversos frentes
de liberación», que esta Etica de la Liberación
fundamenta y legitima, pudiendo dar una cierta
orientacion, desde criterios y principios eticos, en la
cotidianidad, para el ejercicio de la praxis de liberacion,
desde las víctimas, de normas, acciones,
microestructuras, instituciones, o sistemas de eticidad, sin
deber esperar el tiempo de las revoluciones cuando estas
son «imposibles». (DUSSEL, 1998, p. 13)

88
A ética da libertação aponta caminhos para ação factível,
no agora. Aponta princípios critérios e princípios éticos, para o
exercício da práxis de libertação. Esta práxis de libertação, é o
que me interessa aqui, neste texto. Trarei para a realidade
concreta alguns princípios apontados pela Ética da libertação,
apontando caminhos neste campo da realidade concreta.

Esta tarefa, contudo, exigiu uma fundamentação anterior


à esta (meta)ética, que foi justamente uma fundamentação que
me permitiu responder às perguntas: por onde começar e como
caminhar? Ou seja, precisei de vislumbrar na concretude,
caminhos. E já um tempo depois, descobri que a filosofia deve
ser pedagógica e para isso, precisa:

...da postura do filósofo,que, por um lado, precisa


empunhar e superar a filosofia europeia (1986, p. 176),
de modo ase apropriar desta tradição filosófica,
trazendo-a e fazendo-a presente na construção de
um pensamento crítico e pertinente ao nosso continente.
Por outro lado, esse mesmo filósofolatino-americano,
para ser “futuro mestre, deve começar por ser o
discípulo atual de seuf u t u r o d i s c í p u l o . D i s s o
depende tudo” (p.194). Precisa começar a
p r á t i c a f i l o s ó f i c a propriamente dita – não só o
estudar e o conhecer filosofia, mas a produção filosófica
própria, autoral – por meio da compreensão da realidade
em que está inserido. Assim, poderá fazer o adequado
uso da tradição, poderá fazer filosofia. (PANSARELLI e
MATOS, p.41)

Esta possibilidade de fazer filosofia, me deu uma


dimensão muito diferente da que milhares de estudantes de
filosofia, ainda hoje, em meu país, têm. Pois a grande maioria

89
começa a estudar filosofia para aprender filosofia. E graduam-
se, fazem mestrado e doutorado em filosofia, aprendendo
filosofia. E em todo esse trajeto, que dura cerca de 9 anos de
estudos, nunca cogitaram a hipótese de fazer filosofia, e
ninguém, nenhum de seus professores e professoras dizem para
eles, que é possível fazer filosofia, pois a maioria deles também
não acreditam nessa possibilidade. Apenas conhecem e
reproduzem, professam filosofias. Não a fazem. A diferença
fundamental, me parece óbvia, mas sem ser muito redundante, é
que para fazer filosofia é necessário apropriar-se da história da
filosofia a partir de seu tempo e lugar e pensar sua e a partir de
sua realidade. Isso parece natural, mas existe toda uma estrutura
que nos mostra o contrário.

Mas o que é a pedagógica? O conceito é muito simples


de ser entendido. Pedagógica é a parte da filosofia que estuda as
relações assimétricas de construção de conhecimento. Ou seja, a
filosofia que estuda a relação entre mãe e filho, médico e
paciente, professor e aluno, Estado e cidadão… E por que é
importante estudar esta relação? Justamente, porque como
Dussel nos diz, na introdução da ética da libertação:

De pronto, la consensualidad de la razon discursiva, que


no podía «aplicar» su norma basica porque los
participantes afectados siempre empirica e inevitable
mente esran en asimetria, puede en cambio ahora
«aplicarse» gracias a la intersubjetividad simetrica de las
victimas en comunidad solidaria entre ellas mismas
(DUSSEL, 1998, p. 13)

Dussel narra aqui que há uma passagem da não


possibilidade do consenso porque as vítimas estavam em
condição assimétrica discursiva, para uma intersubjetividade

90
simétrica das vítimas em comunidade solidária entre elas.
Como há esta passagem? Ela se inicia por uma demarcação do
início da reflexão ética: a vítima. O ponto de partida é a vítima.
Este é um princípio, no sentido estrito, metafísico. Mas o que
ocorreu que permitiu que as vítimas saíssem de uma situação em
que não podiam, no sentido de não ter as condições de
possibilidade para, participarem da “comunidade discursiva”,
para usar um termo popperiano, para tal intersubjetividade
simétrica? Lemos em DUSSEl, 1998, p. 411:

Si Rousseau mostro en el Emilio el prototipo de


educacion burguesa revolucionaria -solipsista, de un
huerfano sin familia ni comunidad, metodicamente sin
tradicion cultural medieval o de la nobleza monarquica,
dentro del paradigma de la conciencia y bajo la
orientacion solipsista de un preceptor-, un Paulo Freire,
el anti-Rousseau del siglo xx, nos muestra en cambio una
comunidad intersubjetiva, de las víctimas de los Emilios
en el poder, que alcanza validez crítica dialogicamente,
antihegemonica, organizando la emergencia de sujetos
históricos (< movimientos sociales de los mas diversos
tipos) que luchan por el re-conocimiento de sus nuevos
derechos y por la realizacion re-sponsable de nuevas
estructuras institucionales de tipo culturales, economicas,
politicas, pulsionales, etc. Se trata, entonces, de todo el
problema del surgimiento de la «conciencia etico-critica»
(monologica y comunitaria, con un SuperYo re-sponsable
y creador) como «toma de conciencia» progresiva (la
concientiza(-ao), negativamente, acerca de lo que causa
la «negacion originaria» como momento estructural del
sistema de eticidad (sea el que fuere) que causa las
víctimas, que ahora inician ell as mismas el ejercicio de
la razon crítico-discursiva; y, positivamente, in el
discerniendo desde la imaginacion creadora (liberadora)

91
alternativas utopico-factibles (posibles) de
transformacion, sistemas futuros en los que las víctimas
puedan vivir.

Portanto, uma comunidade intersubjetiva das vítimas


alcança validade crítica dialogicamente, anti-hegemônica,
organizando a emergência dos sujeitos históricos… se trata do
problema da consciência ético-crítica... De forma mais atual,
Dussel vai abordar como ocorre na política, este processo nos
movimentos sociais, a configuração das reivindicações
particulares e as hegemônicas, etc. Esta reflexão está em sua
obra “20 Teses de Política”, qual não vamos adentrar neste
texto.

A pergunta ainda não foi respondida integralmente. As


vítimas tomaram consciência ético crítica e se organizaram em
comunidade intersubjetiva consensual. Mas como ocorreu esta
tomada de consciência, de forma dialógica? O que ocorre e
Dussel bem percebe na pedagogia do Oprimido de Freire, é que
o filósofo brasileiro diferenciou-se de todos os outros pedagogos
por uma descoberta genial: “...es imposible la educación sin que
el educando se eduque a si mismo en el proceso mismo de
liberación” (Ibid. p. 430). Aqui está a chave da passagem da
vítima oprimida...para a comunidade intersubjetiva que tomou
consciência ético-crítica. Esta passagem é o objetivo da
pedagógica dusseliana (e freireana). Por isso que Dussel diz que
ela é a passagem entre o âmbito da Erótica à Política. Esta
pedagógica vai dando as condições de possibilidade de a pessoa
sentir-se pertencente à sua comunidade e sair da abstração
metafísica que é a noção de indivíduo, na qual o modo de
produção capitalista e todas as relações de produção decorrentes
dele estão fundamentadas. Portanto, a passagem do indivíduo

92
para a concretude da comunidade é o primeiro passo concreto no
qual uma pedagógica da libertação pode trabalhar.

Em termos concretos, em qual espaço isso pode ocorrer?


Dado que geralmente a família é a principal instituição que
reproduz a ideologia da classe dominante do Estado. A escola,
enquanto educação formal é o espaço democrático de luta das
ideias, por excelência. Mas como Paulo Freire bem nos alertou,
não sejamos ingênuos. Pois a classe dominante do Estado fará
de tudo para que este espaço seja mais uma instituição
reprodutora de sua ideologia, nisso está consonante com o que
nos diz um Althusser em “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de
Estado” ou Bordieu e Passaron em “A Reprodução”. Mas é em
Paulo Freire que podemos compreender minuciosamente os
mecanismos da relação dialética opressor-oprimido,
compreensão a partir da qual, podemos vislumbrar caminhos de
libertação.

Se é a escola um espaço privilegiado para o conflito de


ideias, o ensino de Filosofia e de sociologia, tornam-se
estratégicos neste conflito.

A centralidade do Ensino de Filosofia como lugar da


filosofia

Neste sentido, partindo da realidade de dominação


cultural, sobretudo eurocêntrica, em nossas culturas latino-
americanas não há as condições de possibilidade de uma
“cultura filosófica”, ou uma cultura de busca do conhecimento.

93
Há uma reprodução e perpetuação dos valores hegemônicos da
classe social que está no poder do Estado, a burguesia.

A obrigatoriedade do ensino de filosofia e de sociologia


na escola pública é um valor fundamental para qualquer
sociedade democrática. No Brasil, por exemplo, isso é uma
grande discussão, mas nas escolas privadas de qualidade, onde
estudam a burguesia e a classe média burocrática - com este
termo me remeto à classe média que cuida dos negócios da
burguesia, que vivem do trabalho, mas do trabalho burocrático -
é quase um dogma, desde a infância as crianças têm aulas de
filosofia. Neste sentido, a filosofia passa a ser um problema
apenas para a classe trabalhadora. Então, assegurar a
obrigatoriedade do ensino de filosofia e de sociologia é uma
tática indispensável para o fazer filosófico de libertação. Mas
como isso é possível?

A necessidade da Organização dos professores de filosofia

Só é possível a conquista desse direito democrático, se


professores de filosofia (e sociologia) estiverem organizados.
Percebemos aqui, uma não separação entre pedagógica e
política. A criação de fóruns, observatórios, associações,
movimentos filosóficos... é essencial para tal feito. E para esta
efetivação, precisamos tratar duas questões pedagógicas
concretas. A primeira: professores de filosofia precisam já ter
atingido um nível mínimo de consciência intersubjetiva ético-
crítca, do qual nos fala Paulo Freire, para querer fazer da
filosofia uma causa democrática e efetivar estas organizações. A
segunda questão, não menos importante: é só no movimento

94
para isso, que adquirirão essa consciência, dado que na
formação de professores de filosofia, licenciatura, isso não é, em
geral, trabalhado.

Cuidado! Este é apenas um falso paradoxo! É


absolutamente concebível que esta relação pedagógica se dê
dessa forma. A partir da leitura de Paulo Freire e da Pedagógica
de Dussel, isso nos fica claro. Precisamos considerar o
colonialismo cultural ao qual estamos submetidos, sempre.
Portanto de forma analética – da qual trataremos em seguida –
as organizações de professores de filosofia vão dando as
condições de possibilidade para que professores possam ir
conscientizando-se em comunidades filosóficas.

Ensinar filosofia? Serviço de Libertação

Um conceito de Dussel, advindo dos estudos que faz da


cultura semita e que aqui é essencial entender é o serviço de
libertação. Este serviço, como dirá Lévinas, em “Totalidade e
Infinito”, não é um serviço econômico apenas. Não é a busca de
satisfação de uma necessidade material – no sentido amplo,
simbólico também -, como geralmente fazem os movimentos
sociais. Não é uma luta por mais democracia, por ingresso à
universidade, para preparar para o mundo do trabalho ou para a
vida, como costumam postular os documentos oficiais sobre
educação. É um servir ao Outro. Neste sentido, que Freire,
Lévinas e Dussel convergem. É um dar-se pelo desconhecido,
pelo infinito, para além da totalidade. É um pegar na mão
(pedagogo) e apontar caminhos quais não conhecemos, não
podemos ver, que serão trilhados de forma autônoma pelo

95
Outro. Não se trata de doutrinar, nem para um modelo
específico de democracia. Não é uma relação ideológica, no
sentido de partir de ideais preestabelecidos e fazer com que o
educando os apreenda, como nos alerta Adorno, em sua obra
“Educação e Emancipação”, mas é um apontar para o horizonte,
criando assim, junto ao outro, condições de possibilidades para
que ele caminhe por si. Neste sentido, não ensinamos filosofia,
construímos junto aos estudantes, as condições de possibilidades
necessárias para que ele/ela filosófe. Isso é Filosofia como
pedagógica!

Currículo oficial e a filosofia da libertação

Novamente é preciso alertar que não é tão simples. O


currículo é também, disputa de poder. O conteúdo trabalhado
faz toda a diferença. Portanto, não é só a luta pela
obrigatoriedade de filosofia em todos os níveis de educação,
sobretudo na educação básica. Mas é a luta, de forma
pedagógica de libertação, por um tipo de filosofia. Novamente,
nos vemos frente a um falso paradoxo. Se esta luta não pode ser
ideológica, no sentido de defender ideais, como dizemos agora
que precisamos defender um tipo de filosofia?

Novamente, é preciso que estejamos com os pés no chão.


Na concretude. Em nosso continente, a filosofia
institucionalizou-se, hegemonicamente, como ideologia de
dominação. A filosofia que temos na cultura burguesa é uma
ideologia burguesa, que defende valores burgueses, portanto, de
opressão às classes trabalhadoras. Mas, a filosofia já foi
diferente? Pois quando leio os “atenienses” da “filosofia

96
clássica” vejo Platão e Aristóteles defendendo modelos e valores
muito específicos de uma sociedade ideal, cada um a seu
modelo, aristocratas, escravagistas, etc.

Pois é! Falar de libertação é romper com a filosofia


enquanto ideologia de dominação. Neste sentido, que a filosofia
como pedagógica é fundamental em qualquer época. Pois, os
conteúdos trabalhados serão escolhidos a partir de necessidades,
saberes, historicidade... locais, onde são educandos que dirão o
que precisam aprender. E aqui há uma dificuldade de
compreensão recorrente, para compreender o que quer dizer que
educandos dirão o que querem aprender. Pois logo vem a
questão: mas como estão dominados, colonizados ou alienados
culturalmente, não sabem o que querem e precisam aprender.
Esta questão é, também, de fundamento. O filósofo, a filósofa,
devem estar na comum unidade, pertencer à comunidade, sofrer
junto à comunidade, para ter a sensibilidade suficiente de saber
junto à comunidade, descobrir o que precisa ser aprendido,
analeticamente. Aqui Paulo Freire nos ensina a resistência
necessária à educação bancária. É preciso negar uma educação
que se paute em conteúdos e defender uma educação que seja
fundada na relação de construção de conhecimento. Este é um
ponto fundamental da pedagogia do oprimido e portanto, da
Pedagógica de Dussel.

Desta forma, há a necessidade de um currículo oficial, ou


parâmetros curriculares, que assegurem minimamente uma
unidade identitária à educação, impedindo que localmente os
conteúdos sejam utilizados para fins específicos de instituições
(políticas, religiosas, econômicas…) e que tenham uma
abertura e possuam a autonomia necessária às unidades

97
escolares que dentro dessas normativas álteras de conteúdo,
possam ser trabalhados também conteúdos locais.

A/O Filósofo/a e a Polis

Um dos papeis do filósofo, da filósofa na polis, portanto


é garantir o que Dussel (1998, p. 121) chama de instituições
crítico-libertadoras de Paulo Freire. Aqui teríamos um universo
conceitual a explorar, mas é preciso lembrar que estamos apenas
apontando os temas que serão ou estão sendo desenvolvidos
posteriormente.

Em um seminário de filosofia na Universidade do


Atlântico e em um livro que celebrou a comemoração dos 80
anos de Enrique Dussel, trabalhei o tema: Filosofia como práxis
e serviço de libertação. Esta temática trabalhei a partir de Zea
(1952) e busquei mostrar como Zea e Dussel defendem que o
filósofo deva ser comprometido com sua época e lugar:

Por conta disso, Zea afirma Sócrates como o primeiro e


mais patente filósofo comprometido com sua época. Este
compromisso, contudo, não é algo interessado, barganhas
políticas, tampouco uma obrigação. Trata-se aqui, de um
compromisso que todo ser humano deve assumir com sua
época. É a convicção de assumir
o passado de seu lugar como seu, o presente como sua
responsabilidade pelo futuro. O compromisso “é
convicção e não cômodo contrato que se cumpre
livremente

98
segundo convenha ou não a determinados interesses. A
única liberdade que cabenesta convicção é a de atitude:
vergonha ou desvergonha, valentia ou covardia,
responsabilidade ou irresponsabilidade” (MATOS, 2015,
p.184 cita Zea, 1952, p. 11)

O compromisso que o filósofo, a filósofa, devem ter não


é com um partido, com um projeto político, com um modelo
ideal de sociedade. Mas, com a luta por libertação, que é
sempre, como Dussel nos mostra com detalhes na “Ética da
Libertação”, anti-hegemônica. Partindo do princípio de que todo
o modelo político gerará vítimas, a filosofia deve, justamente,
apontar os mecanismos de dominação e refletir sobre as
condições de possibilidade de libertação. Em “Escapar de uma
caixa?” (MATOS, 2016) mostrei como que a graduação em
filosofia no Brasil, institucionalmente, geralmente, está
constituída sob pilares colonizados, que servem como opressão
pedagógica, configurando uma caixa e obrigando que qualquer
pessoa que queira estudar ou trabalhar com a filosofia, a entrar e
ficar preso nela. É necessário, portanto, rasgar a caixa e junto às
vítimas do sistema atual, no caso, estudantes de filosofia,
devemos nos questionar sobre as possibilidades de instituições
crítico-libertadoras, que não sejam caixas, mas que apesar de a
burocracia necessária para funcionarem como instituição,
assumam para si a condição de serviço ao povo, e a tarefa de
libertação. Esta é também uma questão interessante para uma
política de libertação trabalhar. É possível que as instituições
sejam libertadoras? Estou trabalhando isso com um conceito de
comunidade institucional. Uma comunidade institucional está
organizada, regimentada para que seja antes uma comunidade e
só depois, instituição. Portanto, as instituições passam a ter uma
flexibilidade comunitária, ético-normativa que as permite,
apesar de serem instituições, criar mecanismos que visam o

99
respeito às alteridades, tendo como parâmetro ético normativo
de todas as ações o bem viver de cada pessoa e de todas as
pessoas que de alguma forma participam daquela comunidade.
Mas esse é um tema que desdobra da pedagógica e ganha
autonomia, precisa ser tratado de forma específica, em outra
oportunidade.

Sopros de esperança

No decorrer deste texto tive a intenção maior de mostrar


a importância do debate ético para uma pedagógica que esteja
atenta aos problemas do século XXI. A pedagógica adquire esta
emergência a ser considerada, sobretudo, porque a opressão da
corporalidade e das relações de construção de conhecimento,
que permitem bem viver a erótica e a política, estão
intensificando-se muito neste início de século. No Brasil, desde
as manifestações de 2013 está havendo uma sistemática e
violenta repressão às manifestações e aos movimentos sociais de
esquerda o que ocorreu das Olimpíadas de 2016 foi um Estado
de Exceção que levou presas pessoas que simplesmente
protestaram contra o governo golpista de Michel Temer. Presas,
simplesmente por segurar uma faixa ou por gritar contra um
presidente que usurpou o poder legitimamente conquistado nas
urnas, por Dilma Roussef! Instalou-se na América Latina de
forma geral um ataque frontal, por mecanismos mais diversos,

O que estou defendendo, como tarefa filosófica, é


justamente que os filósofos e filósofas de nosso continente
tomem a educação como seu principal problema e atuem por
pedagógicas – aqui apontamos apenas uma possibilidade, dentre

100
infinitas – que visam a libertação dessas opressões. Ainda sobre
a Pedagogia do Oprimido, Dussel diz:

Por ella, el educando no es solo el nino, sino igualmente


el adulto, y particularmente el oprimido, culturalmente
analfabeto, ya que la acción pedagógica se efectua dentro
del horizonte dialogico intersubjetivo comunitario atraves
de la transformación real de las estructuras que han
oprimido al educando. Se le educa en el mismo proceso
social, y gracias al hecho de emerger como «sujeto
histórico». EI proceso transformativo de las estructuras
de donde emerge el nuevo «sujeto social» es el
procedimiento central de su educación progresiva,
libertad que va efectuandose en la praxis liberadora. Por
ello, no es la sola inteligencia teórica o moral (esto se
supone, pero no es el objetivo principal), ni siquiera el
desbloqueo pulsional hacia una normal tension del orden
afectivo (a la Freud, que tambien se supone), sino algo
completamente distinto: Freire intenta la educación de la
víctima en el proceso mismo histórico, comunitario y real
por el que deja de ser victima.

Este é o processo que Paulo Freire bem soube desenhar.


Não se trata apenas de uma libertação mental, como queriam
muitos filósofos e filósofas latino-americanos do século XIX e
escolheram o positivismo para nos libertar, processo que um
Leopoldo Zea narra bem em sua obra America Latina en sus
ideas. Pois a colonização e neocolonização não são apenas
mentais. Trata-se de um processo no qual, apesar de permanente
e nunca concluído, a vítima se percebe como tal e a partir de
suas condições concretas, históricas, se vê como pertencente a
uma comunidade que passa pelas mesmas vitimizações e se põe

101
em caminho de libertação própria e de sua comunidade,
deixando por tanto, de ser vítima. Assim, por maior que sejam
as opressões, vitimizações de nosso tempo, a marcha por
libertação é possível e ajuda-nos a vislumbrar caminhos
factíveis – este conceito leva em consideração o conceito de
factibilidade que Dussel traz de Franz Hinkellamert – quais nos
tiram da condição de vítimas e nos torna protagonistas de nossa
própria história.

O Princípio Esperança

Uma questão fundamental mostrada na Ética da


Libertação de Dussel é almejar – acrescento e lutar – pela utopia
possível desde a intersubjetividade simétrica das vítimas.
Utopias possíveis que têm como referência primeira a
corporalidade expressa em muitas narrativas míticas, em várias
culturas e que foram adquirindo racionalidade e multiplicidade
hermenêutica. Esta é uma das principais contribuições da
tradição filosófica judaico-cristã.

Além disso, a questão da utopia é também fundante


ainda hoje de lutas por libertação. Quando alguns discursos
pretensos pós-modernos – seja lá o que queiram dizer com isso
– criam discursos clamando distopias, ou contra utopias,
geralmente não tem consciência do que realmente a utopia,
sobretudo se entendida como trazemos aqui, herdeira da tradição
judaica cristã, quer dizer. Ernest Bloch, tratou disso com
maestria. Mas como aqui não é a intenção desenvolver estes
temas, vou apenas citar o que um filósofo brasileiro
contemporâneo bem sintetizou:

102
Em Ernest Bloch está presente uma confiança na ação
revolucionária, cumprindo a utopia papel importante; ela
faz parte dos instrumentos necessários para a mudança da
vida quotidiana, orientada para um futuro melhor. É por
essa razão que as idéias “incongruentes”, “irrealizáveis”
causam tanto assombro às classes dominantes, que
temem que essas idéias se expandam e se concretizem.
(VIEIRA, 2010, p. 35)

Vieira nos mostra, portanto, com Bloch, que a utopia – e


a Esperança – está muito além do que entendemos no senso
comum, como ideia abstrata, impossível de ser alcançada. Muito
mais complexa, muito mais importante para os processos
revolucionários e lutas por libertação, aquilo que entendemos
por sonhos abstrato:

...cede lugar à utopia concreta, ao socialismo. Por isso,


conclui que a esperança, embora seja uma constante na
historia humana, apenas em nossa época, torna-se
concreta. Para Bloch, a utopia concreta é um meio
político-social eficaz para organizar o mundo futuro. Se,
de um lado, a utopia tem um caráter de desmistificar a
realidade, não se confundindo, ao ultrapassá-la como
consciência falsa de sua época, por outro lado, deve levar
a uma ação concreta visando transformar o hoje, segundo
o projeto do que será o amanhã, o ainda-não-ser. (Ibidem)

Por fim, o que estou defendendo nessas poucas páginas,


não é algo tão original, genial, inédito. Mas é uma visão
histórica que identifica uma necessidade e propõe um caminho
de atuação para transformação social. Ressaltar a Filosofia como
pedagógica, em nosso tempo, ajuda-nos na tarefa de repensar
nossos métodos, nossas instituições, nossas culturas, de forma
transdisciplinar, com a complexidade necessária, possibilitando

103
olhares outros, que nos animam nas lutas por libertação. Não
poderia deixar de dizer que essa pedagógica necessita de
estéticas, que possam transbordar, afetar sensivelmente a partir
dos conceitos deste exercício de relação de construção de
conhecimento, quais apenas a razão do logos mostra-se
insuficiente. Mas este é tema para uma próxima reflexão.
Importante ressaltar aqui que nessa perspectiva a Filosofia como
pedagógica deve preocupar-se também com a estética.

Referências:

DUSSEL, Enrique. La Pedagogica Latinoamericana. Ed. Nueva


America. Bogota, 1980. Disponível em:
http://www.ifil.org/dussel/html/11-2.html.

_____. Filosofía de la Liberación. Ed. Nueva America. Bogota,


1996. Disponível em: http://www.ifil.org/dussel/html/15.html).

_____. Ética de la Liberación en la Edad de la Globalización y


de la Exclusión. 2ª ed. Ed. Trotta. Madrid, 1998.

MATOS, Hugo A. Escapar de uma caixa? In: BRAMBILLA,


Beatriz Borges; PIZA, Suze (org). Subjetividade e Ética na
América Latina ou o cinismo e a potencialidade da práxis de
libertação. Nova Petrópolis: Nova Harmonia., 2016, p. 140-165.

_____. Enrique Dussel: Um filósofo comprometido! Reflexões


sobre filosofia como compromisso de libertação. In:
CARBONARI, . Paulo Cesar; COSTA, José André da;
MACHADO, Lucas. Filosofia e Libertação: Homenagem aos

104
80 anos de Enrique Dussel. Passo Fundo: IFIBE, 2015, P. 183-
195.

PANSARELLI, Daniel; MATOS, Hugo Allan. A filosofia como


pedagógica: Compreensões a partir de Enrique Dussel. In:
Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação Americana de
Filosofia e Educação. Número 14, mai-out/2010, p. 36-52.
Disponível em:
http://periodicos.unb.br/ojs248/index.php/resafe/article/view/5317/443
1

VIEIRA, Antonio R. Marxismo e Libertação: Estudos sobre


Ernest Bloch e Enrique Dussel. Nova Harmonia. São Leopoldo,
2010.

105
106
PARA UMA FILOSOFIA DA TECNOLOGIA:
as contribuições de Enrique Dussel

Lucas Barbosa da Paz19,


Profª Drª Angela Luzia Miranda20

Introdução

O projeto iluminista da modernidade, alicerçado na


confiança absoluta da razão humana, fundou-se em crenças
dentre as quais destaca-se o messianismo científico e
tecnológico. Na ciência e na tecnologia, assinalam os críticos da
Teoria Crítica (Horkheimer, Adorno, Marcuse, Habermas),
depositou-se a crença de que o homem esclarecido e iluminado
poderia sair da menoridade da razão e de todas as suas formas
de obscurantismos (sobretudo medievais). Vivendo, enfim, em
uma sociedade livre, baseada nos ideais da fraternidade, da
igualdade e da liberdade (tal como pregava a Revolução
Francesa no século XVIII) e nos ideais do progresso científico e
tecnológico, tal como pregava o positivismo do século XIX.
Assim, a sociedade dita moderna tornou-se profundamente
tecnocrática, de maneira que as grandes questões do homem de

19
Bacharel em Ciências & Tecnologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; Graduando em Sistemas de Informação pelo Instituto
Federal de Alagoas.
20
Doutora em Filosofia, Professora de Ética em Ciência e Tecnologia na
Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte; Coordenadora do Grupo de Pesquisa Phrònesis : Estudos em
Filosofia, Ciência, Tecnologia e Sociedade.

107
hoje, inevitavelmente, são também questões vinculadas à
tecnologia.

No entanto, os desastres da metade do século XX, como,


o aquecimento global, o lançamento das bombas atômicas no
Japão, as desigualdades e injustiças sociais, a divisão do mundo
entre Norte e Sul, ou ricos e pobres etc., colocaram em crise tais
crenças do projeto iluminista da modernidade, pois, mostraram-
se insuficientes para sustentar a fé no progresso. Com isso,
surgiram espaços para teorias e pensamentos mais críticos
quanto ao papel que ocupa a ciência e a tecnologia na sociedade
atual, como é o caso da proposta de Enrique Dussel da Filosofia
da Libertação.

A América Latina, em sua condição de historicamente


colonizada e dependente das nações europeias, anseia por
respostas nessa crise da modernidade. Do ponto de vista
científico e tecnológico, este continente é considerado
subdesenvolvido, em relação ao Norte.Entretanto, adverte,
Dussel, a miséria e a injustiça formam o absurdo no continente
latino-americano, que é “[...] o filho da mãe ameríndia
dominada e do pai hispânico dominador” (DUSSEL, 1986, p.
210). Seu clamor, porém, é simplesmente “Tenho fome! Não me
mates! Tenha compaixão de mim!” (DUSSEL, 1993, p. 142).

A Filosofia da Libertação surge na América Latina no


empenho de forjar um pensar filosófico no calor da realidade (e
em resposta a ela) de miséria e injustiça da América Latina.
Pensadores dessa corrente, como Dussel, um dos seus nomes
mais proeminentes, colocaram em xeque a ideia, eurocêntrica,
de modernidade e fomentaram a busca por descolonização e
libertação em vários âmbitos.

108
Porque la experiencia originaria de la filosofía de la
liberación consiste en descobrir el “hecho” masivo de la
dominación, del constituirse de una subjetividad como
“señor” de otra subjetividad, en el plano mundial (desde
el comienzo de la expansión europea en 1492: hecho
constitutivo originario de la “Modernidad”), centro-
periferia; en el plano nacional (élites-masas, burguesía
nacional-clase obrera y pueblo); en el plano erótico
(varón-mujer); en el plano pedagógico (cultura imperial,
elitaria, versus cultura periférica, popular, etc.); en el
plano religioso (el fetichismo en todos los niveles); etc.
(DUSSEL, 1993, p. 141)

Dentre os diversos planos de inserção da categoria da


libertação, sugeridas por Dussel na citação acima, a tecnologia é
pauta desse pensamento quando a ideia da libertação é inserida
no plano da poiésis, isto é, no contexto da produção material,
que diz respeito à relação homem-natureza. A dimensão que a
tecnologia ocupa hoje na sociedade e na vida, não somente dos
fins objetivos, mas também subjetivos da condição humana
(JONAS, 2006), torna inevitável e imprescindível que sua
abordagem seja feita a partir da libertação. Daí surge a
problemática crucial desta pesquisa científica: Que papel
cumpre a tecnologia nos processos de exclusão e dominação
social? E, em contraposição, pode a tecnologia exercer e
significar um processo de libertação, no mundo da produção
material ou na relação homem-natureza? Qual a relação entre
tecnologia e libertação? Seriam as tecnologias alternativas e as
tecnologias sociais movimentos nesta direção, isto é, em direção
a este processo de libertação?

109
Poiésis

A palavra poiésis (que vem do grego, e diz respeito às


relações homem-natureza) indica o ato humano que diz respeito
à natureza (DUSSEL, 1995, p. 50 e 51). Do mesmo radical de
poiésis , por exemplo, sai a palavra “poesia” do nosso idioma,
que diz respeito a uma parte mais estética dela. Da mesma
forma, porém, trabalho, produção, tecnologia estão no conjunto
de relações englobadas na poiésis . O ser humano (o Homo
sapiens) se destacou dos outros seres vivos (e dos outros
hominídeos) justamente por sua capacidade de olhar com
criatividade para a natureza e enxergá-la como uma mediação
para suprir suas próprias necessidades. A inteligência teórica foi
condicionada pela inteligência poiética; o ser humano antes de
ser Homo sapiens é Homo faber. O avanço poiético, com a
invenção da língua e outros instrumentos, permitiram ao homem
desenvolver tarefas cada vez mais complexas e tornaram
possível (e necessário) o desenvolvimento da inteligência
teórica. A poiésis, ainda, tem participação fundamental em toda
a vida humana:

El hombre, trabajando la naturaleza, comenzó a organizar un


sistema instrumental que, lentamente, por acumulación e
imbricación sucesiva, fue constituyéndose en cultura — en el
sentido alemán de Kultur o cultura material. Este sistema
material o cultural que se depositaba transformativamente en la
naturaleza, no sólo era el fruto del trabajo sino, al mismo
tiempo, el condicionante material de la vida humana en su
totalidad. (DUSSEL, 1984, p. 30)

Dussel entende que “es la instancia poético-tecnológica


la condicionante estrictamente material de la economía”
(DUSSEL, 1984, p. 12), diferente do que alguns marxistas

110
pensam (ser a economia a condicionante fundamental de todas
as outras coisas), para Dussel a poiésis é um a priori da
economia, que por sua vez é um instante concreto dela.

A filosofia da libertação tem como partes de seu discurso


filosófico a histórica, a

metafísica, a prática e a poiética (Figura 1). No discurso


poiético, encontra-se a compreensão do lugar que a América
Latina tem no cenário global da poiésis . Seu papel é
fundamental no processo de construção da dinâmica moderna,
uma supremacia dos europeus, e, portanto, da contemporânea
quanto à poiésis.

As grandes quantidades de ouro e a prata que


enriqueceram os países europeus e

tornaram possível a Revolução Industrial no século XIX vieram


da América Latina, explorada e colonizada a partir do século
XVI pelas metrópoles ibéricas (Portugal e Espanha), e, a partir
do século XIX, pelas metrópoles anglo-saxãs (Inglaterra e
Estados Unidos —neo-colonialismo). Sem a América Latina não
seria possível o capitalismo. Segundo Dussel, é neste contexto
que a Europa se tornou centro de um grande avanço poiético-
tecnológico. Porém, a América Latina:

[...] recibió el impacto de la conquista no sólo al nivel


político de dominación, económico de explotación,
ideológico de evangelización, sino también poiético-
tecnológico. Todo ello inaugurará una larga historia de
dependencia, como región dominada por un mercado
mundial capitalista al que el fruto del trabajo

111
latinoamericano se volcó desde 1492 hasta el presente.
(DUSSEL, 1984, p. 95).

Também é neste contexto, de opressão geopolítica pela


produção material e econômica, que nos faz periferia do mundo,
que Dussel propõe analisar e construir uma “filosofia poiética”
que possa contribuir para a libertação. Ele mesmo assim explica:

Todo esto producirá una inmensa acumulación de capital


en los países industriales, lo que les permitirá extender su
poderío político e ideológico sobre los países periféricos,
dependientes desde todo punto de vista. En especial, y
como veremos más adelante, dependientes en el nivel
poiético, nivel condicionante material de todos los otros
niveles. Es esta situación la que nos mueve a trabajar una
filosofíapoiética de la liberación en la periferia.
(DUSSEL, 1984, p. 52).

Tecnologia e Libertação em Dussel

Desde a poiésis, que designa a relação homem-natureza,


avistamos a techné, entendida pelos gregos como o mundo da
produção material, ou o que vai designar posteriormente os
romanos, a ars factiva, ou a arte de fazer. Portanto, a técnica
está inserida neste espaço, da relação do saber e do fazer, do
homem com o mundo. Ela pertence à poiésis. No entanto, o
saber fazer, próprio da técnica não é uma atitude meramente
instrumental, tal como hoje muitos concebem a tecnologia.

Portanto, quando falamos em tecnologia, nos


distanciamos de uma ideia neutral sobre ela. No conceito

112
hegemônico de tecnologia prevalece a ideia de que ela
compreende o mero artefato; sem valores, propósitos ou
interesses, a não ser o mero fazer. Assim, diz-se que a
tecnologia é neutra, e se é boa ou má, depende unicamente do
caráter do seu usuário e do uso que se faz dela. Aqui, porém,
interpreta-se a tecnologia como um ente que existe em função de
um “projeto”, para usar a mesma terminologia que Dussel usa
ao abordar, por exemplo, a construção e o uso do relógio como
artefato tecnológico:

Estoy en el mundo y me enfrento a entes, cosas. Si más


críticamente nos preguntamos “¿Por qué tenemos reloj?”;
ya no podemos res-ponder simplemente que porque es un
instrumento para dar la hora. Cuando pregunto por el
¿por qué? pido una causa, el fundamento. Sí, es verdad
que da la hora, pero más fundamentalmente todavía nos
ayuda un dicho que indica que “el tiempo es oro”. De tal
manera que me interesa el tiempo, y por ello no quiero
perderlo, y no quiero perder tiempo porque en el fondo el
tiempo es oro. [...] Es así como tenemos relojes
privatizadamente, cada uno en su muñeca, para ahorrar
"oro". Con esto quiero decir que en el fondo del reloj está
el proyecto de “estar-en-la-riqueza” del hombre moderno
europeo, quien ahorra el tiempo porque es oro y así se lo
exige su proyecto. (DUSSEL, 1995, p. 90 e 91).

Não pensamos, pois, na tecnologia reduzida ao seu


caráter superficial de instrumento, mas como concretização de
um projeto, que determina uma visão de mundo, fundado a
partir de um lugar e de um sujeito específico — no caso do
relógio de pulso, pelo homem moderno europeu. Neste mesmo
sentido, Dussel acrescenta, considerando a sua proposta de uma
poiésis da libertação: “hay proyectos que son capaces de poner

113
al hombre como mediación de los mismos. Esto nos va a
permitir explicar, en su momento, el ser de América latina.”
(DUSSEL, 1995, p. 93).

A análise de Dussel da tecnologia se dá a partir do


método dialético-histórico que Marx propõe. Assim, ascende da
tecnologia em abstrato para um concreto mais geral, e descende
do concreto geral para um concreto exemplificado. Quando se
fala em abstrato, fala-se do objeto de análise abstraído do seu
contexto fundante, entendido, portanto, como totalidade por si
só. O momento concreto geral, diz respeito a um olhar mais
panorâmico do objeto de análise como mera parte de seu
contexto fundante. Por fim, o momento concreto exemplificado
é a volta do foco de análise para o objeto, porém com a
profundidade da percepção de como o afeta o contexto.

Para exemplificar melhor o dito acima, em seu momento


mais abstrato, a tecnologia é mero artefato, possuindo uma certa
autonomia, ainda que relativa, pois, é condicionada por outras
estruturas também. Assim, Dussel se distancia tanto de uma
tecnologismo, que confere à tecnologia uma autonomia
absoluta, como também de um economicismo, que entende que
a tecnologia é apenas um substrato de como a economia
funciona21. Assim ele exemplifica:

Como en el caso de un cazador del bosque


(independiente, y que busca su alimento) que fungiera
como soldado de un ejército invasor en Nicaragua
(asumido en un todo que destruye un orden de justicia).
El cazador puede usar su arma y el soldado también; pero

21
Vale dizer que Marx não coadunava com esse pensamento, tal como
explica Dussel (1984, p. 12).

114
la naturaleza de su acción es esencialmente diferente. La
tecnología em cuanto tal, como tecnología, además, ni
siquiera es el cazador (todo concreto) sino el arma en
cuanto tal, o mejor, los mecanismos de una máquina para
disparar plomo a una cierta velocidad (ni "arma" en
realidad). (DUSSEL, 1984, p. 137).

Assim, a tecnologia abstraída de seu contexto, de seu


projeto fundante, mal se define além de uma ideia, como fica
visível nesse exemplo da arma. A arma do caçador, por mais
“pura” e isenta que possa parecer em relação a valores, possui
também o seu próprio projeto fundante. Uma vez mais, para
ilustrar esse raciocínio, Dussel explica o que é a tecnologia em
sentido abstrato, quando diz que é…

La tecnología en si: en un nivel tal de abstracción que


sería el nivel en el que se sitúa el tecnólogo o el
ingeniero, haciendo por ello abstracción de numerosas
determinaciones reales (ideológicas, políticas,
económicas, etc.) que hacen de la tecnología un objeto
real. Sería la consideración de la tecnología como una
esencia abstracta (DUSSEL, 1984, p. 134).

Num momento mais concreto, a tecnologia é pensada


como instrumento de trabalho, meio para a produção. A
tecnologia, dessa maneira, é condicionada pela produção, uma
“mediação para” ela. Os instrumentos de trabalho se fazem
necessários uma vez que existe uma negatividade no ser (fome,
sede, desconforto térmico), e não há, situacionalmente, como
negar a negatividade a partir dos recursos à disposição brutos na
natureza (para a fome, frutas; para a sede, um córrego de água;
etc.). Desse modo, se desperta no ser humano a intenção
poiética — a que o distingue essencialmente dos animais — pela

115
qual olhará para a natureza agora como matéria, objeto de
produção. A tecnologia surge como mediação para a
produção,como instrumento de trabalho.

A tecnologia como instrumento de trabalho objetiviza,


ou materializa, o valor de uso, utilidade — o valor que nega a
negatividade — em um bem. Esse valor, em relações
econômicas, conferirá ao produto um valor de câmbio e, assim,
podemos entender a defesa da tecnologia também como
condicionante material da economia. Num próximo passo,
afirma-se a tecnologia como capital, no modo de produção
capitalista. O capital-dinheiro no processo de produção compra
os meios de produção e o trabalhador assalariado. Assim, em
dado momento, o capital-dinheiro desaparece, muda de forma
quando compra o meio de produção (a máquina) e o trabalho
vivo, que passam a ser ambos momentos do capital. A
tecnologia, assim, passa a ser materialização do próprio capital e
trabalha para atender a demanda do capital: valorizá-lo; nela
está essa intenção como principal. O capital é contra o
trabalhador e a tecnologia age nessa direção também, tornando o
trabalhador mera mediação para o capitalismo.

A máquina torna a produção maior, menos custosa e


mais rápida, o que significa um aumento relativo da mais-valia.
Isso, entretanto, não se converte em justas vantagens para o
trabalhador, posto que o projeto do qual a máquina é mediação
não é o de promover a vida dele, mas o capital.

A máquina como capital, porém, não se limita a apenas


aumentar a mais-valia relativa (pertinente ao aumento da
produção), mas também intensifica o labor do trabalhador:

116
En efecto, plusvalor absoluto se alcanza por el trabajo
subsidiario de la mujer y los niños, por la prolongación
de la jornada laboral (en la que el antiguo mayordomo ya
no es vencido por el sueño: las máquinas en continua
vigilia sostienen su ritmo infernal), por la intensificacion
del trabajo (ya que el obrero deberá controlar a la
máquina en un ritmo siempre creciente, es posible
técnicamente para el cumplimiento mecánico de la
movilización de las herramientas respectivas). (DUSSEL,
1984, p. 163).

Ademais, a tecnologia participa em todas as fases do


ciclo do capital. É parte essencial do momento de meios de
produção, porém, em outros momentos, aparece como
condicionante, pois a tecnologia pode atuar acelerando o ciclo
do capital, o que favorece à valorização desse. Quanto mais
rápido o ciclo, mais rápido será a transformação da mais-valia
em lucro (capital-dinheiro), objetivo final do ciclo. O trem, o
avião, o satélite são apontados por Dussel como exemplos de
invenções surgidas nessa lógica de aceleração do ciclo (1984, p.
166). São tecnologias que nos beneficiam em algum sentido,
mas o benefício é apenas um efeito colateral pois, desse modo, o
efeito focal e objetivo delas é o capital.

Por fim, no contexto do mercado mundial, a tecnologia é


um meio de dominação para os países de centro, detentores de
mais tecnologia, sobre os países de periferia, que se iniciaram
tarde demais para o capitalismo (DUSSEL, 1984, p. 98). A
tecnologia garante aos países de centro mais-valia maior
relativamente aos de periferia, que sofrem no mercado
globalizado para concorrer com os produtos do centro, que
podem oferecer o mesmo produto por um preço muito menor.

117
Para compreender isso, é fundamental lançarmos mão do
próprio esquema de Dussel:

Esquema 1 — Países de centro e lucro extraordinário

1. pc + p = v M
2. pv > pc
3. pv = pc
4. pv > v M

Fonte: (DUSSEL, 1984, p. 172)

pc — preço de custo; p — plusvalor ou mais-valia; v M — valor da


mercadoria; pv — preço de venda.

Os países de centro, em seus próprios mercados, têm os


seus produtos negociados por um preço de venda (pv) igual ao
valor de mercadoria (vM), que é a soma do custo de produção
do produto com a mais-valia — o “salário” do capitalista —
(Esquema 1, situação 1). Quando os seus produtos, porém,
entram em concorrência em mercados de países periféricos,
competem com mercadorias produzidas por uma tecnologia
menos eficiente (capital fixo) e, portanto, garantem menor mais-
valia (p). Por isso, precisariam ser vendidos a valores mais altos
(pv) para terem a mesma rentabilidade (p) que as mercadorias
dos países de centro. Essas, porém, conseguem ser competitivas
mesmo com um preço de venda maior que o valor de
mercadoria (Esquema 1, situação 4), garantindo aos países de
centro um lucro extra. Isso se dá à custa, porém, de um lucro
muito baixo para os países de periferia, que precisam vender a
preços mais baixos para competir, mesmo em seus próprios
mercados nacionais, com os produtos de centro (Esquema 1,
situação 2), uma vez que produzem a um custo maior, pois não

118
tem a “tecnologia de ponta”. Assim, os países de periferia
assumem uma posição de dependência, pois não lhes é viável
concorrer com os produtos dos países de centro. A posição de
receptor de mercadorias e tecnologias, e fornecedor de matérias-
prima, é muitas vezes para os países periféricos um “mal
menor”.

Se este é o processo de como se estabelece a tecnologia


enquanto momento de opressão e dominação do ponto de vista
geopolítico, segundo Dussel, daí deve partir também a análise
para um projeto de libertação no entorno da produção material
do mundo da vida. Ou, em outros termos, neste momento do
sistema-mundo, podemos inferir que a libertação da tecnologia é
uma exigência necessária dentro da Filosofia da Libertação. É
aqui que ela surge como necessária, e é desde aqui que podemos
pensar e avistar a categoria de “tecnologia da libertação”. Pois,
trata-se de uma tecnologia não mais escrava do capital e,
portanto, não mais escravizadora do trabalhador.

La tecnología, que como capital se vuelve contra el


hombre como un "poder ciego", autónomo, brutal,
debería primero ser rescatada de la subsunción que sufre
como momento del sistema de valorización del capital,
para poder ser un instrumento del trabajo del hombre a su
servicio. El proceso de liberación es también liberación
de la tecnología para el hombre. (DUSSEL, 1984, p.
178).

Uma tecnologia liberta do capital seria a tecnologia


libertadora que se propõe: uma tecnologia a serviço do humano;
uma tecnologia que garanta a produção e permite ao humano um
trabalho não para o capital, mas um produzir como criação
poética de si mesmo, livre das amarras do capital ou do produzir

119
que gera efeitos para o capitalismo. No afã de construir a utopia
da justiça e liberdade é necessário suporte de tecnologias
(DUSSEL, 1984, p. 178) que sejam alternativas ante à máquina
do capital e que assim legitimem e condicionem uma produção e
uma economia alternativa e liberta do capital. É a essa altura que
o discurso da libertação parece se harmonizar com o movimento
de Tecnologias Apropriadas e Tecnologias Sociais.

Tecnologias Apropriadas e Tecnologias Sociais

Muitas iniciativas se deram a partir do século XX em


busca de superar essa tecnologia subsumida pelo capital, que a
partir de então chamaremos de Tecnologia Convencional (TC).
Várias delas se encontram no eixo das Tecnologias Apropriadas
(TA), movimento para o qual se aponta como precursor o
próprio Mahatma Gandhi, quando, na década de 20, mobilizou
os indianos a tearem seus próprios tecidos, o que mitigava a
necessidade de comprar tecido do Reino Unido, que dominava a
Índia naquele período. Gandhi resgatou, para isso, o uso de uma
tecnologia artesanal chamada charkha , uma roda de fiar manual
que findou por se tornar símbolo do movimento de emancipação
da Índia. A assertiva de Mahatma chega ao espírito da questão:
“produção para as massas, e não em massa” (DAGNINO;
BRANDÃO; NOVAES, 2004, p. 19).

Anos depois, na década de 70, houve a preocupação no


próprio meio acadêmico em pensar em alternativas para a TC
que fossem socialmente adequadas. Em geral essa adesão
acadêmica se deu por pesquisadores de países de centro, uma
das grandes razões de críticas ao movimento. Fora deles, houve

120
uma grande adesão também entre os acadêmicos da Índia. Na
América Latina poucos participaram das discussões, mas pode-
se destacar como mais proeminentes dos que participaram
Amílcar Herrera (1995) e Renato Dagnino (2004).

O movimento da TA defende a disseminação,


especialmente para os países pobres, de tecnologias mais
adaptadas, apropriadas, para os seus próprios contextos, como
alternativa à TC. O assunto ganhou muita pauta a partir dos anos
70 e, embora a criação de tecnologias mais adaptadas aos
contextos dos países mais periféricos tenha sido o objetivo
principal do movimento, outras preocupações entraram em
pauta, como as questões ambientais e sustentabilidade, que
emergiram como desafios para os países de centro desde aquela
década.

Podemos destacar como características buscadas para a


TA o baixo custo de produção, substituição controlada de mão-
de-obra (a fim de evitar o desemprego tecnológico),
“simplicidade de implantação e manutenção, respeito à cultura e
à capacitação locais” (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES,
2004, p. 23), “participação comunitária no processo de escolha
tecnológica, o baixo custo dos produtos ou serviços finais e do
investimento necessário para produzi-los, a pequena ou média
escala [...]” (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004, p. 22 e
23), uso de energias renováveis, etc.

Não conseguiu-se, porém, a capilarização que se


pretendia à TA para os países pobres. O movimento sofreu duras
críticas advindas, principalmente, dos defensores da TC, que
associavam à TA o estigma de retrocesso. A incompatibilidade
dos valores apreciados pela TA com os valores do emergente

121
neoliberalismo da década de 80, somada a pressupostos frágeis
do movimento fizeram com que o movimento perdesse sua
força.

No Brasil, o movimento da TS surge a partir de uma


revisita crítica, por pesquisadores brasileiros, à proposta da TA
de produzir uma tecnologia alternativa à TC. Uma das grandes
contribuições que a TS propõe é pensar na criação de
tecnologias alternativas como algo necessário para superar a TC,
porém de forma alguma suficiente sozinha. Com isso, apresenta-
se uma possibilidade de superação do insucesso do movimento
da TA, que teve êxito em produzir vasta quantidade de
tecnologias alternativas, porém não em se fazer usada onde tinha
como objetivo principal, nos países periféricos. Para isso, a TS
se fundamenta em amplo arcabouço teórico.

Do construtivismo vem a ideia de que a tecnologia,


assim como tantos outros entes, tem seu significado e formato
construído socialmente e não individualmente ou ainda
abstratamente. O modo como funciona o artefato é
inextricavelmente unido de um significado que é construído da
discussão entre interesses de distintos grupos sociais.

Da filosofia da tecnologia de Feenberg (1991; 2010a;


2010b) ou o movimento da Teoria Crítica da tecnologia, vem a
compreensão da tecnologia enquanto detentora de valores
substantivos (como eficiência e controle), porém como
humanamente controlável. A tecnologia é, desse ponto de vista,
um espaço de luta social, cujo vencedor consegue legitimar por
meio da tecnologia uma visão de mundo, um horizonte cultural.

122
Do conceito de inovação social, a superação do
paradigma oferta-demanda na produção de tecnologias, que
entenderia o usuário como mero receptor e o engenheiro como o
exclusivamente responsável por pensar nos problemas e
soluções para os quais se produziria uma tecnologia. No lugar
disso, se pensa nesse conceito uma produção onde o usuário tem
participação fundamental, em parceria com o engenheiro, no
processo de apontar os problemas e soluções para os quais
necessita de desenvolver uma tecnologia.

Dentre outras contribuições teóricas que recebe a TS,


assim, ela apresenta como solução não um resultado, mas um
processo. A ideia de replicação, característica da TC (e não
totalmente estranha à TA), dá lugar a ideia de reaplicação, uma
vez que se reconhece que cada contexto é muito particular e
pede especificações que tornam muito difícil, ou pouco exitosa,
a replicação em massa de uma mesma solução tecnológica. A
tecnologia convencional precisa ser enxergada como
conformada a valores e interesses de grupos sociais
hegemônicos, dominantes, para então produzir-se algo diferente,
conformado aos interesses e valores dos grupos não-dominantes
e especificamente contextualizados.

Libertação e Tecnologias Alternativas

O pensamento da filosofia da libertação, como


apresentado, pretende respostas para questões poiéticas que
emergem diante dos seus objetivos: emancipação do Outro, o
negado por um ego que existe como uma centralidade. Os
movimentos aqui discutidos que buscam a criação de

123
tecnologias alternativas notavelmente se aproximam desse
debate. Entre vários termos usados para se referir à TA, por
exemplo, estão: “tecnologia emancipadora”, “tecnologia
libertária”, “tecnologia liberatória” (BRANDÃO, 2001, p. 13)

O movimento da TS traz um novo fôlego a essa busca,


com uma sólida base teórica e maturidade, ao dar continuidade a
todo o processo já realizado pelos pensadores da TA, mas com
reflexão e aprendizado das experiências desse movimento.
Somado a ampla gama de ações realizadas sob o pensamento da
TA, tais como a significante experiência da emancipação da
Índia sob a liderança de Mahatma Gandhi, o movimento da TS
está numa posição apreciável e correspondente aos objetivos da
filosofia da libertação em seu discurso poiético.

Consideramos um diálogo entre os movimentos como


promissor, e a TS, especialmente, como um exemplo concreto
do que pode ser uma tecnologia da libertação, o que nos leva a
considerar como viável pensar e buscar trazer à tona do mais
concreto esse conceito. Para isso se faz necessário ainda mais
investigação do tema, e da comparação entre a filosofia da
libertação e as tecnologias alternativas, que se mostram como
um caminho futuroso para os objetivos daquela.

Considerações Finais

A poiésis tem um lugar de importância fundamental


dentro do movimento da filosofia da libertação, compondo junto
das partes histórica, metafísica e prática o discurso dessa
filosofia. A poiésis é, para Dussel, a condicionante material da

124
economia (DUSSEL, 1984, p. 12) e, por isso, é fundamental
para se pensar na libertação. A participação da América Latina
na estrutura da poiésis nas eras moderna e contemporânea se
deu, principalmente, pelo processo histórico de exploração
econômica européia. Deste processo exploratório, os europeus
obtiveram a grande acumulação de capital, passando a se
posicionar numa centralidade econômica, ideológica, política
sobre os países periféricos (DUSSEL, 1984, p. 52). Tal como
observa Dussel, a América Latina sofreu grande impacto nesse
processo, vivendo até hoje uma história de dependência a esses
países de centro (1984, p. 95).

Disso decorre que a tecnologia em Dussel não pode ser


vista desde uma concepção neutral e instrumental, meramente.
Ela é constituída de intenções, ou de “projetos” de intenções
para usar sua expressão. Há no seu pensamento o
distanciamento tanto de um tecnologismo quanto de um
economicismo. A tecnologia é instrumento de trabalho,
“mediação para” a produção pelo qual o homem nega a sua
negatividade, materializando no produto final um valor de uso,
pelo qual satisfaz as suas necessidades. Porém, o capital aliena a
tecnologia desse propósito, passando a escravizá-la sob o
projeto de valorizar o capital, colocando-a contra o trabalhador.
Por isso que a tecnologia é, em seu contexto mais concreto sob a
lógica do capital, um meio de dominação para os países de
centro, contra os de periferia.

A libertação da tecnologia se faz necessária para que


haja libertação, não somente no mundo da produção material,
mas em todas as outras instâncias da vida humana, e do mundo
da vida. A tecnologia é liberta, uma vez que passa a não ser
mais escrava do projeto do capital, mas passa ter como

125
propósito promover a vida humana. Essa mudança é o
fundamento para a proposta de uma tecnologia da libertação.
Alguns movimentos alternativos já começam a aparecer nesta
direção, como opções para superar a tecnologia serva do capital.
O movimento das Tecnologias Apropriadas (TA) denominou
essa tecnologia Tecnologia Convencional (TC) e se lançou a
desenvolver dispositivos e processos mais apropriados aos
países mais pobres. O movimento das Tecnologias Sociais (TS)
surgiu numa revisitação crítica, por pesquisadores brasileiros, às
ideias da TA. E, fundamentada numa sólida base teórica (que
inclui ideias como a filosofia da tecnologia em Feenberg, o
construtivismo e a inovação social), propõe soluções-processos
por uma tecnologia mais emancipatória.

Avaliamos a aproximação da filosofia da libertação com


a discussão sobre tecnologias alternativas pelos movimentos da
TA e, especialmente, da TS como promissora. Consideramos
essa aproximação também como necessária, uma vez que é
preciso suporte tecnológico para a construção da utopia que se
almeja na filosofia da libertação (DUSSEL, 1984, p. 178), e
esses movimentos têm se apresentado como exemplos concretos
do que pode ser uma tecnologia da libertação.

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desenvolvimento tecnológico induzido pelo CNPq. Dissertação
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126
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racionalização democrática, poder e tecnologia. Brasília:
Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América
Latina: Centro de Desenvolvimento Sustentável, 2010.

128
A COMPOSTAGEM COMO PRÁTICA DE
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Pedro Henrique de Oliveira Zanette22

Introdução

Escuta-se muito que a natureza sofre graças ao ser


humano, devido a tanto descaso, poluição e destruição. De fato
nossa espécie tem causado diversos impactos ambientais, tantos
deles difíceis de serem sanados. Tal realidade entretanto é
retrato de um período recente na história da espécie humana
notado grande avanço a partir do século XVIII junto ao aumento
da industrialização, fomentando crescimento da população
urbana, maior acesso a bens de consumo e desta forma maior
geração de resíduos.

Mais de 80% da população brasileira hoje localiza-se em


ambiente urbano, estando assim desconectada da possibilidade
de produzir alimentos, remédios e outros produtos a partir do
plantio e práticas caseiras. Assim existe maior consumo de
manufaturados e alimentos processados contendo diversos tipos
de embalagens e/ou sendo composto por materiais de baixa ou
nula degradabilidade no ambiente. Por conta disso evidencia-se
grande geração de resíduos sólidos que tornou-se grande desafio

22
Engenheiro Ambiental formado na Escola de Engenharia de São Carlos-
USP.

129
à sociedade: lidar com seu acúmulo.

É nesse cenário que em 2010 foi regulamentada a lei


12.305 denominada Política Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS), que dispõe sobre a gestão e o gerenciamento de
resíduos sólidos e também das responsabilidades dos geradores
e demais atores envolvidos. Em seu artigo 9 destaca, em relação
a gestão e gerenciamento, a ordem de prioridade na sequência
de não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento
dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente
adequada dos rejeitos.

No ano de 2014, a geração total de resíduos sólidos


urbanos (RSU) no Brasil foi de aproximadamente 78,6 milhões
de toneladas, das quais em média, cada habitante teve a
participação de 387,63 kg (ABRELPE, 2014). Essa pesquisa
também nos traz a informação de que 41% da geração total teve
destinação final inadequada. Dentre os aproximadamente 59%
demais, sua maioria foi encaminhada a aterros sanitários.

Desviar resíduos do aterro significa reduzir a produção


dos rejeitos e encontrar soluções para fechar o ciclo de vida do
máximo de resíduos recicláveis e compostáveis possível.

A solução da qual se trata este trabalho baseia-se


principalmente na observação e utilização dos processos
naturais, partindo de processos fisico-químicos feitos por
pequenos seres vivos. Esta é a compostagem, que promovendo a
decomposição dos resíduos orgânicos promove o fechamento do
ciclo da matéria orgânica proveniente de nosso consumo.

Partindo da informação que em média mais que 50% dos

130
RSU gerados são resíduos orgânicos, é fato que destiná-los a
compostagem e não ao aterro acarretariam em diversos
benefícios como aumentar a vida útil de aterros sanitários e
evitaria possíveis impactos ambientais negativos provenientes
da produção do chorume e de gases estufa.

A compostagem é um procedimento versátil e de baixo


custo, podendo ser feita em pequenas ou largas escalas, e pode
ocorrer a partir do manejo de diferentes materiais dependendo
do que se tem disponível, seja usando serragem, palha seca ou
cavacos de madeira.

Tomando como foco a pequena escala, as unidades


descentralizadas de compostagem (UDC) podem ser
desenvolvidas em escolas, centros comunitários, quintais ou até
terrenos baldios promovendo a transformação de espaços
urbanos que passam a ter um uso comum na vizinhança e caráter
pedagógico que propicia a difusão da prática, conhecimento e
fomenta a agricultura urbana e a sensibilização para a coleta
seletiva.

Deste modo, este trabalho apresenta como ações de


compostagem podem contribuir de diferentes maneiras ao
gerenciamento de resíduos sólidos e a educação ambiental.

Objetivo

Reunir informações e apresentar exemplos práticos de como a


compostagem pode gerar impactos sociais positivos.

131
Revisão Bibliográfica

Ciclos

Em nosso mundo vivemos rodeados por matéria, sejam


as pessoas, plantas, minerais, o ar e tudo isto segue em
movimento, mantendo a dinâmica da vida. A compreensão de
que toda matéria se transforma é necessária para entendermos
que nada é permanente da maneira como está. Ana Primavezi
(2009, pg. 5) nos ajuda a entender melhor quando diz que:

os micróbios (...) decompõem todos animais e homens mortos,


para que nosso planeta seja sempre pronto a receber nova vida
e não viaje pelo espaço somente com uma enorme carga de
cadáveres. Igualmente, porém, decompõem tudo que é
deficiente, doente, fraco e velho. A vida não pode degenerar,
ela tem de permanecer forte e vigorosa para continuar através
dos milênios. O solo é o alfa e omega, o início e o fim de tudo.

A ciência nos ensinou a observar para aprender com o


comportamento das coisas e em nosso mundo é possível
observar que tudo é cíclico. Desde o Sol ou a Lua, bastante
conhecidos e que determinam nosso calendário, os processos do
corpo humano como a digestão, a respiração e a menstruação.
Toda a vida está repleta de ciclos diversos que seguem
transformando as coisas. Ter clareza de que cada coisa segue seu
ciclo nos auxilia a entender o complexo funcionamento da
natureza.

Esta é prerrogativa para analisarmos a problemática dos


resíduos sólidos e de que é necessário fecharmos os ciclos das

132
diversas matérias para conseguir avançar. Dar função ao resíduo
significa torná-lo matéria prima de um processo seguinte ,
seguindo a dinâmica da vida.

Resíduos Sólidos

No Brasil, as definições a respeito dos resíduos sólidos


encontram-se na NBR 10.00423 de 2004 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)

resíduos sólidos são resíduos nos estados sólidos e semi-


sólidos, que resultam de atividades da comunidade, de origem:
industrial, doméstica, de serviços de saúde, comercial, agrícola,
de serviços e de varrição. Consideram-se também resíduos
sólidos os lodos provenientes de sistemas de tratamento de
água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de
controle de poluição, bem como determinados líquidos, cujas
particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede
pública de esgotos ou corpo d'água, ou exijam para isso
soluções técnicas e economicamente inviáveis em face à
melhor tecnologia disponível. (ABNT, 1987).

Muitos materiais com diversas origens deixam claro a


complexidade de lidar com esta questão. Os resíduos são
produtos das atividades humanas e dependendo de sua
composição ou origem devem ter destinação diferente para
evitar os demais problemas.

Em 2005, foi realizada caracterização dos resíduos


sólidos em São Carlos, município no qual este trabalho foca sua

23
A ABNT NBR 10004 foi elaborada pela Comissão de Estudo Especial
Temporária de Resíduos Sólidos

133
discussão. Em sua dissertação de mestrado, Fresca (2007)
registrou o procedimento e trouxe os resultados como podem ser
vistos na tabela 1. Também são trazidos os resultados de Gomes
(1989) obtidos anteriormente.

Tabela1:Caracterização mássica de resíduos sólidos domiciliares do


município de São Carlos, SP

Fonte: Fresca, 2007, pg.115.

Nota-se que em ambas as caracterizações, mais da


metade da massa total de resíduos é composta por matéria
orgânica. Isto comprova a importância de garantir uma
destinação adequada para esta parcela de resíduos, sendo que
esta tipificação é foco deste trabalho.

Esta importante parcela é denominada Fração Orgânica dos


Resíduos Sólidos Urbanos (FORSU), composta por resíduos provenientes
do preparo e desperdício de refeições, cascas e vegetais estragados, poda
de jardins e de vias públicas.

134
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS)

A lei 12.305/2010, a PNRS, tem como principal objetivo


eliminar formas inadequadas de destinação e disposição final de
resíduos sólidos servindo de guia para que resíduos recicláveis e
reutilizáveis sejam encaminhados para uma destinação final
ambientalmente adequada e que os rejeitos tenham uma
disposição final ambientalmente adequada.

Abreu (2013, p. 28) problematiza a situação e diz que


“grande quantidade destes resíduos deixa de ser reciclada e
compostada e a perda deste potencial de valorização dos
resíduos sólidos urbanos é um fator causador de poluição e
desperdício de matérias-primas e energia”. Esta questão reforça
o artigo 9º da lei que traz como ordem de prioridade na gestão e
gerenciamento de resíduos a não geração, redução, reutilização,
reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final
ambientalmente adequada dos rejeitos (BRASIL, 2010).

Seguindo a hierarquia estipulada no artigo 9º para se


garantir um melhor gerenciamento dos resíduos já gerados deve-
se priorizar a reutilização e a reciclagem antes da disposição
final. Estas são definidas também no artigo 3º da PNRS:

XIV - reciclagem: processo de transformação dos resíduos


sólidos que envolve a alteração de suas propriedades físicas,
físico-químicas ou biológicas, com vistas à transformação em
insumos ou novos produtos, observadas as condições e os
padrões estabelecidos pelos órgãos competentes do Sisnama e,
se couber, do SNVS e do Suasa;

XVIII - reutilização: processo de aproveitamento dos resíduos


sólidos sem sua transformação biológica, física ou físico-
química, observadas as condições e os padrões estabelecidos

135
pelos órgãos competentes do Sisnama e, se couber, do SNVS e
do Suasa;

Como demonstrado na Tabela 1 aproximadamente 80%


dos resíduos sólidos de São Carlos poderiam então ser desviados
do aterro sendo reciclados ou reutilizados.

A definição de reciclagem “permite concluir que a


parcela orgânica dos resíduos sólidos, transformada em adubo
através da compostagem, é passível de reciclagem.” (Oliveira,
2014 pg. 6 ).

Para o sucesso destes encaminhamentos se faz necessária


a correta separação das diferentes tipologias de resíduos sólidos.
Sendo assim a coleta seletiva é definida na PNRS como a coleta
de resíduos sólidos separados na fonte geradora de acordo com
sua composição e constituição e que deve ser implementada por
municípios no intuito de aplicar ações destinadas ao
atendimento do princípio da hierarquia na gestão de resíduos.
(ABRELPE, 2014 pg. 41)

Para Inácio & Miller (2009) a separação na origem da


fração orgânica para a coleta seletiva é indispensável, garante
que ela não se misture com a fração inerte (vidro, plástico,
papel) resultando em um composto de bom aspecto e boa
qualidade. Constituindo assim um modelo de tratamento
eficiente e de baixo custo.

A Compostagem

Antes mesmo da existência de nossa espécie a ciclagem


da matéria orgânica promovendo a adubação do solo já ocorria.

136
Bastou o ser humano utilizar da observação para que
compreendesse o processo natural de transformação da matéria
orgânica em húmus para que conseguisse reproduzi-lo de forma
organizada, planejada e controlada para obter adubo. (Manual
MMA, 2010)

Assim de acordo com Massukado (2008), a


compostagem pode ser definida como um processo controlado
de decomposição aeróbia e exotérmica de resíduos orgânicos
biodegradável, por meio da ação de microrganismos, com
liberação de gás carbônico e vapor de água, produzindo, ao
final, um produto estável e rico em matéria orgânica. A
compostagem pode ser feita em qualquer local, seja na zona
urbana ou rural, em cada localidade com insumos diferentes,
dependendo do que se tem em mãos.

Amontoando-se matéria orgânica de forma a garantir


algumas condições ambientais, dentre elas especialmente a
aeração, acontece a decomposição na presença de oxigênio. Isso
ocorre devido ao desenvolvimento de bactérias aeróbias, fungos
e actnomicetos (Massukado,2008). “Os componentes orgânicos
biodegradáveis passam por etapas sucessivas de transformação
(...) resultando num processo bioquímico altamente complexo.”
(PROSAB, 1999, cap. 1) De forma resumida o esquema abaixo
apresenta o processo da compostagem:

137
Figura 3: Esquema resumido do processo de compostagem.

Fonte: PROSAB, 1999.

O acúmulo de calor é indicador de que as bactérias, que


ao digerirem a matéria orgânica liberam calor no ambiente por
reações exotérmicas, então tornando aquele ambiente adequado
para a sua multiplicação.

No início há um forte crescimento dos microrganismos


mesófilos. Com a elevação gradativa da temperatura, resultante
do processo de biodegradação, a população de mesófilos
diminui e os microrganismos termófilos proliferam com mais
intensidade. A população termófila é extremamente ativa,
provocando intensa e rápida degradação da matéria orgânica e
maior elevação da temperatura, o que elimina os
microrganismos patogênicos.(PROSAB, 1999)

A manutenção deste calor, que pode chegar a faixa de


65-70ºC, indica que o processo está termofílico. Enquanto a
leira for alimentada, existe o estímulo a manutenção do calor.
Quando a temperatura está na faixa de 20 a 40ºC, indica que
predominam bactérias mesofílicas, o ecossistema da leira vai
trocando e sendo ocupado por outros decompositores que
gostam desta matéria mais digerida, e seguem o processo até
estabilizar em temperatura ambiente.

138
Ai então ocorre a fase de maturação em que a atividade
biológica é pequena, portanto necessita de menor aeração. À
temperatura ambiente existe predominância de transformações
de ordem química, polimerização de moléculas orgânicas
estáveis no processo conhecido como humificação
(PROSAB,1999), e também o aumento de artrópodes e
minhocas que contribuem no processo.

A compostagem então, consiste em amontoar resíduos orgânicos


de restaurantes, residências, provenientes do pré-preparo e do
desperdício das refeições misturando com material orgânico
seco rico em carbono, como palha seca, folhas ou serragem
(maravalha), de forma organizada e bem coberta pela matéria
seca.

Visto que pelo menos 50% dos resíduos sólidos


domiciliares consistem a fração orgânica, é de extrema
importância que a prática de compostagem seja popularizada.
Apesar do alto percentual de resíduos orgânicos, as experiências
de compostagem da fração orgânica são ainda incipientes. O
resíduo orgânico, por não ser coletado em separado, é
encaminhado para disposição final junto com os resíduos
perigosos e com aqueles que deixaram de ser coletados de
maneira seletiva. Caso a matéria orgânica fosse separada na
fonte e encaminhada para tratamento, como a compostagem,
despesas seriam evitadas pelos municípios por conta do
transporte e acondicionamento no aterro (Massukado, 2008). É
preciso o surgimento de politicas públicas e financiamento de
programas municipais. O estímulo a informação e divulgação
para fomentar a separação da matéria orgânica podendo ser
destinada a compostagem caseira, pátios de compostagem
comunitários, dentro de escolas e centros comunitários, entre

139
outros empreendimentos.

O tratamento de resíduos orgânicos através da


compostagem realiza a ciclagem de nutrientes contribuindo para
o retorno do fluxo energético e de fertilidade aos
agroecossistemas que produziram os alimentos, através do
composto orgânico (ABREU, 2013).

As contribuições são ainda maiores quando compreende-


se a esfera educacional, sendo que aquisição destes hábitos
favorece que as pessoas valorizem a matéria orgânica, aprendam
a respeito desta ciclagem e da vida relacionada a isso,
compreendam melhor sobre o solo e estimula hábitos de
alimentação mais saudáveis, inclusive fomentando a plantação
de ervas, verduras, e os demais vegetais em casa.

Sendo assim é possível listar uma diversidade de


vantagens que a implementação da compostagem traz, de acordo
com (Massukado, 2008, Oliveira, 2013, Abreu, 2013)

• redução da quantidade de resíduos que é encaminhado ao


aterro;
• redução dos impactos ambientais associados a
degradação dos resíduos orgânicos em locais
inadequados;
• prolongamento da vida útil do aterro;
• aproveitamento agrícola da matéria orgânica;
• melhoria das propriedades físicas do solo;
• reciclagem de nutrientes para o solo;
• economia na aquisição de fertilizantes minerais;
• economia na coleta e transporte dos resíduos sólidos.
• economia de tratamento de efluentes;

140
• geração de emprego e renda
• formação e educação ambiental

Materiais e Métodos

Este artigo traz elementos compilados a partir da revisão


bibliográfica de algumas pesquisas e de visitas a grupos para
conhecer experiências ocorridas ao longo da última década,
trazendo um breve histórico recente dos projetos de
compostagem que foram desenvolvidos até 2015 em São Carlos
e traz alguns exemplos que desenvolveram projetos baseados
nas ações de unidades descentralizadas de compostagem como
ferramentas que cumprem funções socioambiental.

Resultados

Histórico recente da compostagem em São Carlos.

A cidade de São Carlos-SP teve na última década


experiências interessantes na prática de compostagem o que de
fato possibilitou expandir o número de pessoas locais a terem
contato com a prática além da sensibilização para a separação de
resíduos orgânicos na fonte edo posterior usufruto do composto
orgânico.

Na horta municipal de São Carlos, localizada próxima a


UFSCar, durante o período de 2006 a 2012, ocorreu processo de
compostagem que envolveu principalmente restaurantes,

141
inclusive das universidades locais, e outros estabelecimentos. A
horta também recebia resíduos de poda da cidade, estes que
eram triturados e utilizados como matéria carbônica para
montagem das leiras de compostagem.

O composto gerado abastecia a produção de alimentos


realizada no local e também era distribuído a qualquer cidadão
que fosse buscar. Este não era um procedimento muito
controlado, porém foi responsável por aproveitar toneladas de
resíduos que deixaram de seguir ao aterro.

Em 2005, o projeto ABC da compostagem, atuou no


terreno da Escola Estadual Bento da Silva César, no bairro São
Carlos III, promovendo uma unidade descentralizada de
compostagem. Em 2006, aproveitando o pátio de
compostagem, foi proposto projeto de doutorado de Luciana
Massukado para seguir estudos relacionados a gestão e
gerenciamento dos resíduos orgânicos envolvendo também a
utilização de softwares livres para o gerenciamento municipal
dos resíduos domiciliares (MASSUKADO, 2008).

Em 2012, o Grupo de Estudos e Intervenções


Socioambientais (GEISA), por meio do projeto de extensão
“Educação Ambiental na Horta Municipal”, atuou em visitas
escolares, trabalhando a sensibilização ambiental, a agricultura
orgânica e a compostagem.

No mesmo ano o grupo também atuou com o público da


escola Bento da Silva César a partir do projeto de extensão
“Educação ambiental e recursos hídricos na micro-bacia do
córrego do Mineirinho” e segue até hoje desenvolvendo
atividades abordando também a sensibilização ambiental para

142
recursos hidricos, a horticultura e gestão de resíduos.

Foi também em 2012 que a Associação Veracidade, junto


com diversos parceiros, lançou o projeto GIRO, Gestão
Integrada de Resíduos Orgânicos, campanha permanente pela
promoção da compostagem em UDC's promovendo a utilização
de terrenos baldios como pátios de compostagem a fim de dar
função social a espaços em desuso e possibilitar também a
difusão da agricultura urbana.

Este projeto teve inicio em três localidades, sendo um a


sede da Associação, onde recebiam resíduos orgânicos da
vizinhança, e outros dois eram terrenos baldios que a Associação
Veracidade articulou com o proprietário contratos de comodato
autorizando a utilização dos terrenos sem ônus de aluguel. No
terreno localizado na Vila Prado era feita a compostagem dos
resíduos do restaurante Mamãe Natureza por associados e
viventes da Veracidade. No outro terreno localizado no bairro
Cidade Jardim foi firmada parceria junto ao Grupo de
Agroecologia chamado Vida, composto por estudantes da
UFSCar, os quais articulam junto a vizinhança a coleta de
resíduos.

O projeto GIRO teve grande atuação na divulgação da


compostagem, promovendo oficinas em diversos espaços,
distribuindo material de divulgação porta-a-porta na Vila Prado,
e possibilitando a vivência de todos os visitantes da Associação.

Na luta para que a compostagem viesse a ser construída


como política pública no município, em 2013 a Veracidade
articulou junto a Câmara dos Vereadores uma audiência pública
em que foram convidados alguns atores de projetos em outras

143
cidades que puderam trazer a problemática dos resíduos sólidos
à tona e demonstrar as vantagens de promover a coleta seletiva,
segregando na fonte os diversos resíduos, possibilitando a
reciclagem, uma compostagem de qualidade e uma enorme
redução nos gastos com transporte e disposição de resíduos
sólidos urbanos (RSU) em aterros sanitários.

Esta audiência teve como encaminhamento uma consulta


pública no site da Câmara que trazia ao público o
questionamento: “A seu ver, o Município de São Carlos deve
regulamentar a compostagem e reaproveitamento de resíduos
orgânicos (lixo doméstico) como alternativa ao descarte no
aterro sanitário?” (CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS,
2013).

Trezentas e trinta e uma pessoas participaram votando e


enviando comentários, e destas 98,79% se colocou a favor da
regulamentação. Os resultados desta consulta constando todas as
contribuições foi publicado em 1000 cópias impressas e pode
também ser encontrada no site da câmara pelo link:
http://www.camarasaocarlos.sp.gov.br/portal/index.php/2014-
02-07-16-29-13/consulta-publica .

O ano de 2013 também foi marcado pela mudança de


gestão municipal. Infelizmente em relação à gestão de resíduos
sólidos cabe dizer que São Carlos retrocedeu. Ao mesmo tempo
em que a sociedade civil se organizava para articular junto ao
poder público a partir das experiências do município firmar a
compostagem na gestão de resíduos, decisões e ações
governamentais seguiram em rumos contrários.

A horta municipal deixou de receber os RO e também

144
fechou as portas ao projeto do GEISA. Junto a este fato ocorria
também a tentativa de desarticular a COOPERVIDA,
responsável pela coleta seletiva porta-a-porta que chegou a
atingir quase 80% da cidade.

Tal situação, demonstrou um retrocesso no caminho de


implantar uma gestão integrada de resíduos pública e deixou
clara a fragilidade das associações, cooperativa e demais
iniciativas perante o poder público, quando este planeja atuar de
maneira diferente.

Desta forma, no momento em que seria possível


melhorar os serviços, fomentar e desenvolver os trabalhos
realizados, preferiu-se desconstruir o processo que levou anos
para ser construído e retroceder em relação a gestão de resíduos,
voltando a enviar toneladas de resíduos orgânicos ao aterro
sanitário.

Unidade descentralizada de compostagem (UDC)

A descentralização da compostagem consiste em criar


espaços para tratar os resíduos orgânicos o mais próximo
possível do local de sua geração. Pátios de compostagem podem
ser criados em áreas institucionais de um bairro, em escolas,
parques e até mesmo em terrenos abandonados.

“A diferença de uma UDC e da compostagem caseira é


que a primeira trata uma quantidade maior de resíduos, necessita
de área e mão de obra, e também de uma logística para a coleta e
tratamento dos resíduos.” (Massukado, 2008 pg.45)

Sendo assim, para o surgimento de uma UDC é

145
necessário criar uma estrutura escolhendo uma localidade, os
atores envolvidos e criar estratégias de sensibilização e
gerenciamento dos resíduos.

Inicialmente é necessário trabalhar a fonte de geração,


garantindo a segregação dos resíduos compostáveis. Como este
ainda não é um hábito generalizado, é preciso estabelecer uma
estratégia de comunicação com objetivo de sensibilizar os(as)
geradores(as), sejam estes equipe da escola, equipe de
restaurante ou uma vizinhança.

A definição da localidade do pátio varia dependendo da


oferta de espaços próximos a região trabalhada e também de
quem esta compostagem tem intenção de atingir. No caso de
uma escola esta pode ceder terreno para o pátio, ou pode apenas
segregar e enviar os resíduos à UDC de seu bairro. Praças,
parques e demais terrenos institucionais tem potencial de acolher
uma UDC, pois além da compostagem ter função pedagógica em
espaços públicos atraindo o interesse das pessoas, estes espaços
também poderão se beneficiar do composto gerado para seus
jardins.

O funcionamento depende de que pessoas ou instituições


estejam envolvidas e de como será garantida a obtenção de
recursos para compra de ferramentas, infraestrutura básica e
remuneração do trabalho.

Alguns possíveis atores podem ser listados, como


associações de bairro, ONG's, poder público, escolas, e a
iniciativa privada. Algumas iniciativas podem ser citadas para
exemplificar possíveis casos.

146
Como citado na sessão 5.1, O GIRO, projeto iniciado
por membros da Associação Veracidade consiste em promover a
formação de UDC's no município, com a finalidade de desviar
resíduos orgânicos do aterro e criar estratégias que tragam
aspectos educacionais ao gerenciamento de resíduos orgânicos.

O transporte dos resíduos era feito voluntariamente nas


UDC's, tendo em suas entradas os pontos de entrega voluntária
(PEV's) e também pelo recebimento dos resíduos do restaurante
Mamãe Natureza, que os levava até a associação. O manejo dos
resíduos nas leiras era feito por membros da associação,
misturando os restos de alimentos à serragem que provém de
uma serraria próxima. O composto gerado era distribuído
gratuitamente e utilizado na horta orgânica da Veracidade, onde
verduras são vendidas.

A associação recebe visitas escolares e promove


atividades de educação ambiental, cine clube, e todos que
visitam podem ter contato com o processo e aprender um pouco.
Apesar das tentativas, não houve interesse do poder público em
fomentar o programa, que segue apenas com trabalho voluntário.

Outro exemplo, bem mais conhecido no Brasil, é o


Projeto Revolução dos Baldinhos, localizado em
Florianópolis/SC. Este projeto teve surgimento em 2008 a partir
da relação do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de
Grupo (CEPAGRO) e moradores da comunidade Chico Mendes,
quando a comunidade sofria uma infestação de ratos.

Foi proposta a compostagem como alternativa para


aproveitamento dos orgânicos ao invés de serem dispostos em
sacos na rua para a coleta convencional.

147
De maneira gradativa e processual, a metodologia de gestão
dos resíduos foi sendo construída ao longo de anos de trabalho
participativo, envolvendo moradores, associações
comunitárias, instituições educacionais, profissionais de saúde
e ONG's, com apoio de parceiros públicos e privados e
agências de cooperação internacionais.(CEPAGRO, 2013 pg.
32).

Em 2009 a separação começou com 5 famílias que


receberam baldinhos para armazenar os resíduos, que eram
depositados em seguida nos PEV's, bombonas localizadas em
calçadas da comunidade. Em 3 meses o número de famílias
participantes aumentou para 30, e seguiu aumentando. Este
aumento foi resultado da sensibilização porta-a-porta feito por
agentes comunitárias responsáveis pela mobilização. A coleta
das bombonas era feita por carrinho de tração humana. A
situação dos ratos foi resolvida pelo fato de não haver mais a
disposição de restos de alimentos nas ruas.

Hoje já são mais de 200 famílias e diversas instituições


participantes, e estima-se que até 2012 a Revolução dos
Baldinhos tenha tratado mais de 450 toneladas de resíduos
orgânicos na comunidade (CEPAGRO, 2013).

Hoje a COMCAP, empresa municipal de coleta de lixo,


disponibiliza um pequeno caminhão e 2 funcionários para
auxiliar na coleta das bombonas nos 36 PEV's espalhados pelo
bairro. O pátio de compostagem encontra-se na Escola América
Dutra onde também é feito plantio de horta.

O composto é distribuído para as famílias que doam seus


resíduos orgânicos, e depois de peneirado é ensacado para
comercialização, com finalidade de remunerar os grupos de

148
trabalho do projeto.

Além de resolver a situação dos ratos a comunidade


incorporou hábitos de plantar dentro de casa e nas bordas da
estrada próxima. Mesmo sendo uma comunidade de baixa renda
composta por lotes pequenos, o desenvolvimento de hortas em
espaços reduzidos proporciona autonomia de alguns produtos
aos moradores.

Encontra-se na internet videos explicativos nos links:

Revolução dos Baldinhos no documentário "A Educação e o


Mosca Morta"

https://www.youtube.com/watch?v=kv0bhlAD9o0>

Tecnologia social – a Revoluçao dos Baldinhos

https://www.youtube.com/watch?v=XYhg_PG39j4

Conclusões

A fração orgânica dos resíduos sólidos urbanos é de


extrema importância para mudar os rumos da gestão de resíduos
no Brasil, tendo o composto como produto, que possibilita a
sequência do ciclo da matéria orgânica bem como a redução ou
eliminação do uso de insumos químicos na lavoura. A
construção de uma UDC consiste em um espaço de
aprendizagem em gestão e gerenciamento de resíduos orgânicos,
que provoca a mudança de hábitos em relação a separação de

149
resíduos na fonte.

Portanto, essas experiências são prova de que, mesmo


com pouca prática e poucos recursos, é possível tratar a fração
orgânica dos resíduos sólidos urbanos. A compostagem de fato é
um processo versátil, eficiente e de baixo custo, facilmente
replicado até na escala de uma grande comunidade. A vivência
do trabalho e as visitas a outros projetos possibilitam acúmulo
de experiências, trocas e a ampliação da prática para mais
pessoas. A prática possibilita melhor formação de educadores
trazendo elementos e proporcionando momentos que
possibilitam um aprendizado visual e sensorial. O caráter
pedagógico também atinge a todos visitantes dos projetos.

Assim, estes projetos provocam em seu entorno a


discussão a respeito do consumo e da destinação de resíduos
sólidos. Certamente são peças importantes para a transformação
das práticas das comunidades.

Referências

ABREU, M.J. Gestão comunitária de resíduos orgânicos: o


caso do Projeto Revolução dos Baldinhos (PRB), Capital Social
e Agricultura Urbana. Florianópolis, SC. Universidade Federal
de Santa Catarina, 2013.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA


E RESÍDUOS ESPECIAIS (ABRELPE). Panorama dos
resíduos sólidos no Brasil, 2014. Disponível em:
http://www.abrelpe.org.br/panorama_apresentacao.cfm . Acesso

150
em 10 set. 2015.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS,


Norma Brasileira. ABNT NBR 10004. Rio de Janeiro, RJ, 2004.

BRASIL. Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010. Política


Nacional de Resíduos Sólidos. Institui a Política Nacional de
Resíduos Sólidos; altera a Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de
1998; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 3 de
agosto de 2010.

______. Ministério do Meio Ambiente. Manual para


implantação de compostagem e de coleta seletiva no âmbito de
consórcios públicos - Brasília, 2010.

CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS. Consulta pública


nova forma de gestão de resíduos orgânicos (Lixo Domestico).
Apresentação de Resultados. São Carlos, SP. Câmara Municipal
de São Carlos, 2013. Disponível
em:<http://www.camarasaocarlos.sp.gov.br/portal/index.php/20
14-02-07-16-29-13/consulta-publica>, Acesso em 05 jun. 2015.

CENTRO DE ESTUDOS E PROMOÇÃO DA


AGRICULTURA EM GRUPO (CEPAGRO), Agricultura
Urbana, hortas e tratamento de resíduos orgânicos, Coleção
Saber na Prática agricultura Urbana, volume 3. Florianópolis,
SC, 2013.

FRÉSCA, F. R. C. (2007). Estudo da Geração dos Resíduos


Sólidos Domiciliares no Município de São Carlos, SP, a partir
da Caracterização Física. Dissertação de Mestrado. Escola de
Engenharia de São Carlos. Universidade de São Paulo. 2007.

151
GOMES, L. P. (1989). Estudo da Caracterização Física e da
Biodegradabilidade dos Resíduos Sólidos Urbanos em Aterro
Sanitário. São Carlos/SP. Dissertação de Mestrado. Escola de
Engenharia de São Carlos. Universidade de São Paulo.

INÁCIO, C. T. & MILLER, P. R. M. Compostagem: ciência e


prática para a gestão de resíduos orgânicos. Rio de Janeiro:
Embrapa Solos, 2009.

MASSUKADO, L. M. Desenvolvimento do processo de


compostagem em unidade descentralizada e proposta de
software livre para o gerenciamento municipal dos resíduos
sólidos domiciliares, 2008. 182 f. Tese de Doutorado –
Programa de Pós Graduação em Ciências da Engenharia
Ambiental) – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade
de São Paulo, São Carlos, SP.

Oliveira, R. A. V. Análise do processo de implantação de uma


Unidade Descentralizada de Compostagem no Campus II da
USP São Carlos. São Carlos: Universidade de São Paulo, 2013

PROSAB. Manual prático para a compostagem de biossólidos.


UEL - Universidade Estadual de Londrina, 91 p, 1999.
Disponível em:
<http://www.finep.gov.br/prosab/livros/Livro20Compostagem.p
df >. Acesso em 01/10/2015.

152
REDES DE COLABORAÇÃO SOLIDÁRIA:
Prolegômenos para uma Economia da Libertação

Rejane Matos24
Eduardo Oliveira25

Introdução

A filosofia da libertação latino-americana, quiçá, tem


encontrado seu melhor momento na atualidade, desde que emergiu no
final da década de 60, inícios dos 70, ainda diante de uma identidade
negativa – o não-ser da América Latina. Se desde o momento
emergente os temas eram profícuos, e teciam redes complexas de
abordagens e desenvolvimento filosófico, também é verdade que a
ética da libertação26, primeiro, depois a política da libertação27,
hegemonizaram o debate da filosofia da libertação, especialmente sob
o espectro de uma obra monumental como a de Enrique Dussel. De

24
Especialista em Ciências Sociais e Graduada em Filosofia, Pedagogia e
graduanda em Gênero e Diversidade é Educadora Social e membro do Grupo
de Pesquisa REDE-AFRICANIDADES.
25
Doutor em Educação, Mestre em Antropologia, Especialista em Cultura
Africana e Graduado em Filosofia, é sócio-fundador do IFIL – Instituto de
Filosofia Africana e sócio-fundador do IPAD – Instituto de Pesquisa da
Afrodescendência e Coordenador do Grupo de Pesquisa REDE-
AFRICANIDADES.
26
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da
exclusão. Petrópolis:
Vozes, 2000.
27
DUSSEL, Enrique. Política da Libertação. História Mundial e Crítica.
Trad. Paulo César Carbonari (Coord.). Passo Fundo: IFIBE, 2014.

153
nossa parte, entretanto, o debate em torno da cultura sempre mereceu
atenção, sem dicotomizar política e cultura, subjetividade e
objetividade, sociedade e indivíduo, estrutura e singularidade, etc.
Escapando de abordagens disciplinares: ou historicizantes – da
história das ideias na América Latina, ou filosofantes – do ponto de
vista da disciplina de Filosofia nas universidades, primamos pela
pesquisa de campo – com viés antropológico – para produzir filosofia,
recorrendo ao vasto manancial de sua história, mas valendo-se ainda
mais das experiências de comunidades tradicionais e de prática
também producentes de conhecimento, valendo-nos da
multirreferencialidade, do pensamento complexo e da
transdiciplinaridade28.

Atentos a discussões de gênero e raça no desenvolvimento da


filosofia da libertação entre nós, recortes, a bem da verdade, pouco
praticados pelos filósofos (homens e brancos) mais conhecidos do
Movimento (Dussel, Roig, Zea, Bondy, Cerruti, Sidekun, entre tantos
outros), enfatizamos o diálogo da filosofia da libertação latino-
americana com a filosofia africana do continente e na diáspora,
produzindo uma filosofia da ancestralidade29, ou uma filosofia

28
Categorias que balizam as pesquisas no DMMDC – Doutorado Multi-
istitucional e Muldisciplinar em Difusão do Conhecimento, onde o professor
Eduardo Oliveira tem orientado teses no campo da Filosofia da Libertação,
da Filosofia Africana, do Pensamento Social Brasileiro, da Educação das
Relações Etnico-raciais e de Gênero.
29
OLIVEIRA, E. Filosofia da Ancestralidade: corpo e mito na filosofia da
educação brasileira. 1. ed. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007. v. 500.
340p
OLIVEIRA, E. Ancestralidade na Encruzilhada. 1. ed. Curitiba: Editora
Gráfica Popular, 2007. v. 500. 216p.
OLIVEIRA, E. COSMOVISÃO AFRICANA NO BRASIL: elementos para
uma filosofia afrodescendente. 3. ed. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.
v. 500. 188p

154
africano-brasileira como temos preferido chamar recentemente, por
conta da intensificação do diálogo da filosofia da libertação e da
filosofia africana tendo no Brasil seu ponto equidistante.

Produto dessa guinada de preocupações que reuniu num só


conjunto a geocultura e a geopolítica amalgamadas pela categoria de
ancestralidade, combatendo o desencantamento do mundo através da
categoria encantamento, produzindo conceitos como deriva para
engendrar uma epistemologia capaz de conviver com a aventura de
negros, indígenas, mulheres em suas múltiplas diásporas, tanto na
Nuestra America quanto no continente como na diáspora africana,
estamos construindo, pouco a pouco, uma estética da libertação30.

O presente artigo, no entanto, não se debruçará sobre a ética, a


política ou a estética da libertação, mas sobre um tema inédito,
protagonizado pelo filósofo brasileiro mais proeminente da filosofia
da libertação, Euclides André Mance. Fundador e primeiro presidente
do IFIL – Instituto de Filosofia da Libertação, reuniu a maior
biblioteca temática sobre Filosofia da Libertação entre nós; não
apenas reuniu como socializou seus mais de 3 mil itens para
pesquisadores da região e do mundo, sintetizando, ele mesmo, o
pensamento latino-americano da libertação em diversos cursos,
apostilas, sites e produções bibliográficas31, inovando temas,
produzindo conceitos, desenvolvendo metodologias revolucionárias

OLIVEIRA, E. Filosofia da Ancestralidade como Filosofia Africana:


Educação e Cultura Afro-brasileira. Revista Sul-Americana de Filosofia e
Educação, v. 18, p. 28-47, 2012
30
Texto no prelo resultadoda pesquisa de pós-doutorado realizada na
Universidad Tres de Febrero, Caseros, Argentina em 2019 no campo da
filosofia africana tendo como foco o solo brasileiro e que se desdobra
para um diálogo fecundo com a filosofia andina e com a tradição
portenha.
31
Euclides A. Mance: http://euclidesmance.net/wp/index.php/biografia/

155
para dentro da tradição da filosofia da libertação. Mas será,
provavelmente, sua contribuição mui significativa para as Redes
de Colaboração Solidária sua assinatura mais original.

Com a produção conceitual acompanhada de uma práxis


intensa com/na Economia Solidária, Euclides lança as bases
filosóficas de uma economia da libertação, ainda em
construção, mas que já preenche uma lacuna histórica entre nós
filósofos(as) de Nuestra América.

O que apresentamos a seguir são os primeiros


desenvolvimentos conceituais de Mance, resultado de um
trabalho monográfico de Rejane Matos, formada como
Educadora Social de um Projeto de Formação em Redes de
Colaboração Solidária junto a EPESS32, filósofa da libertação
com ênfase em gênero e diversidade, que, no entanto,
sistematizou as principais contribuições de Euclides Mance
rumo a fundamentação filosófica das Redes de Colaboração
Solidária que, sem dúvida, constituem os prolegômenos da
Economia da Libertação que o autor desenvolve nos dias de
32
Projeto Escola Permanente de Educadores Sociais de Salvador (EPESS),
uma parceria entre Universidade Federal da Bahia - UFBA, Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia FAPESB e outras iniciativas de
fomento inclusive internacionais. A EPESS constituiu-se a partir da
experiência prática no Projeto Educadores Sociais de Salvador (PESS). A
partir de 2006 realizou ações de caráter formativo com grupos ligados aos
movimentos sociais, agentes sociais das comunidades de Salvador e região
metropolitana. Com metodologia baseada na educação popular o antigo
PESS, agora EPESS, tem estratégia central de afirmação do bem-viver de
todos e de todas e pretende contribuir para afirmação de estratégias de
desenvolvimento local através da formação humana, técnica e política.
Articula o crescimento de redes de colaboração solidária e, portanto, visa
oferecer subsídios instrumentais aos envolvidos para que possam atuar no
desenvolvimento sustentável de suas comunidades.

156
hoje. Para um segundo artigo, enfatizaremos a redação ainda
inédita da economia da libertação; para os objetivos desse
artigo, buscamos a obra pública e, de certa maneira já
consagrada, da obra desse autor cuja importância, sem dúvida,
escapa do Brasil e da Região latino-americana e
internacionaliza-se mundo afora, pois Euclides mantém um
diálogo intenso, crítico e criativo no mundo inteiro, tendo sua
obra sobre Economia Solidária e as Redes de Colaboração
Solidária traduzidas para vários idiomas33.

33
Alguns títulos: La Révolution des Réseaux. Les Editions Descartes & Cie,
Paris, 2002, 1e. ed., 334 pp; Redes de Colaboración Solidarias. Ed. UACM,
Mexico DF, 2006, 1a. ed., 524 pp.; Hambre cero y economía solidaría. El
desarrollo sustentable y la transformación estructural de Brasil.
Ed. Universidad Autónoma de la Ciudad de México (UACM), Mexico DF,
2013, 1a. ed., 390 pp.; La rivoluzione delle reti – L’economia solidale per
un’altra globalizzazione. Emi, Bologna, 2003, 1a. ed., pp. 222; Organizzare
reti solidali : strategie e strumenti per un altro sviluppo. Edizioni
dell’Università Popolare; Solidarius Italia. Roma, 2010, 1a. ed., pp. 314;
Revolución de las Redes.CO-EDITORES: EcoSol, Delegación Azcapotzalco,
Alcona, Acatl, Municipio de Ecatepec, BanMacondo, Gobierno del Estado de
Michoacán, Indesol, Uacm, Fondeso, STyFE del GDF, El Colegio de
Tlaxcala, Tianguis Tlaloc, Renac, Mexico DF, 2008, 1a. ed.,224 pp

157
A Revolução das Redes

A revolução através das redes é a transformação para uma


sociedade pós-capitalista, nela temos a potência para
desencadear outras evoluções. O centro de interesse é o pleno
desenvolvimento humano, já que seus desdobramentos
extrapolam a dimensão econômica. Avança com base na ética
operando sobre valores cotidianos e corriqueiros de
comportamento e atitude solidária e a partir da compreensão da
complexidade das relações sociais consideram os modos
possíveis de promover as liberdades públicas e privadas e tornar
abundantes os bens e serviços.

A solidariedade é o fundamento para a constituição


destas relações. É o vínculo entre os indivíduos com interesses
voltado para a responsabilidade com o outro. É a sustentação da
rede e faz com que os elementos organizativos funcionem e
resultem em êxito real.

Neste propósito, Euclides problematiza o conceito de


economia clássica e suas contradições a partir de uma análise
dos fluxos de valor. A lógica que rege o mercado, não condiz
com a satisfação da necessidade de todos, visto que opera pela
ideia de escassez. Ele demonstra os mecanismos e meandros de
constituição da rede desde a descrição da sua menor unidade, a
célula, até suas características e funcionamento em estrutura de
rede a partir dos seus fluxos que permeiam as dimensões
econômica, cultural e política.

158
Em entrevista concedida ao programa América Latina
34
Viva , o professor Mance explicita que a colaboração solidária
é a tese chave explicitada no livro A Revolução das Redes
(MANCE,1999). Na obra, o autor, apresenta minuciosa
descrição sobre a forma de organização dessa revolução, através
da potência contida entre as conexões de pessoas, grupos,
movimentos, todos em rede em torno de eixos de luta. Com esta
perspectiva aponta uma estratégia, na dimensão econômica, a
qual concomitantemente operam transformações em cadeia.
Iniciativa que supera fracassos do conjunto de organizações e
atividades solidárias quando atuam isoladamente sem respaldo
necessário para a subsistência e permanecem no isolamento,
ilhados pelo capitalismo. Assim, o autor propõe a superação
dessa deficiência, a partir de um conceito central, colaboração
solidária que atua como elemento inovador para a
sustentabilidade em rede.

A tese resultante destas apropriações conceituais deu


origem a uma posição inovadora acerca da Economia Solidária
que possui característica diferenciada, em função da concepção
de estratégia de reorganização de fluxos econômicos, criando
laços de retroalimentação de consumo e produção, com caráter
ecológico e solidário, e possibilitando a expansão de processos
democráticos, autogestionários de construção de alternativas.
Este é o ponto chave, do livro Revolução das Redes. Na medida
em que atores econômicos, sociais, políticos constroem redes
colaborativas e retroalimentam esses fluxos de organização de

MANCE, André Euclides. Entrevista concedida ao Programa América


Latina Viva em 07/06/11. UFPR TV - Curitiba/PR - Entrevistador: Prof.º
Dimas Floriani. 30m duração do vídeo.
http://ufprtv.wordpress.com/2011/06/08/america-latina-viva-070611/

159
poder, de consumo, de conhecimento, de informação, há
capacidade de gestar um processo de transformação estrutural.

Colaboração solidária é termo de origem latina. A


primeira expressão, colaboração, deriva do verbo collaborare e
significa trabalhar junto. A segunda, solidário, deriva de solidu e
significa algo forte. No dicionário ambos atribuem sentido
moral aos termos e agrega sentido de responsabilidade, de
interesse comum entre os indivíduos (MANCE, 1999:17). Para
Euclides (1999, p. 17) colaboração solidária significa: “(...) um
trabalho e consumo compartilhados cujo vínculo recíproco entre
as pessoas advém, primeiramente, de um sentido moral de
corresponsabilidade pelo bem-viver de todos e de cada um em
particular”.

O conceito de colaboração solidária está implicado em


uma outra categoria mais ampla chamada de bem-viver. Este,
por sua vez, é o exercício humano de dispor das mediações
materiais, políticas, educativas, informacionais e todas as
necessidades que garantam eticamente a liberdade para
satisfazer e realizar os desejos pessoais, respeitando, na mesma
medida, o desejo público. O comportamento ético deve pautar as
ações dos indivíduos na medida em que se colocam na rede de
colaboração, no intuito de garantir e usufruir das mediações
materiais e não-materiais. O compartilhamento destas
mediações promovem o objetivo maior da existência humana, o
bem-viver. Reflexos desses comportamentos provocam
transformações nas diversas dimensões da vida humana.

Na lógica do bem-viver concretizar a satisfação material


é o mesmo que garantir as liberdades pessoais voltadas para a
colaboração solidária. Sendo, assim Mance define:

160
A colaboração solidária é, pois, uma atitude ética que
orienta a nossa vida e uma posição política frente a
sociedade em que estamos inseridos. Eticamente trata-se
de promover o bem-viver de cada um em particular e de
todos em conjunto, e politicamente de promover
transformações na sociedade com esse mesmo fim
(MANCE, 1999:19).

O bem-viver é exatamente o oposto do capitalismo, pois


esse estimula o consumo alienante ou compulsório (MANCE,
1999, p. 26, 27) promovido pelas imagens e simulacros, o quais
são gerados com o objetivo de girar o ciclo produtivo frenético
para maior acúmulo de mais-valia. A partir desse fim capitalista,
promove a desumanização das necessidades humanas e pessoais,
cria-se outras, as quais estimulam a venda de mercadorias.

A colaboração solidária é o resultado de uma outra


prática, desenvolvida a partir de pesquisas e vivências entre as
atividades de trabalhadores excluídos. É um processo de gestão
de novas relações de organização na perspectiva da colaboração,
em tese, buscando, a satisfação das necessidades e demandas de
todos na rede. O objetivo da elaboração organizativa é a de
deslocar o eixo de interesses das sociedades do consumo para a
lógica do bem-viver. Em grande medida, é uma tarefa
audaciosa, considerando a sua constituição a partir de
mecanismos muito simples oriundos de experiências e pesquisas
ao longo da trajetória acadêmica e de militância do autor. Nesse
sentido, em lugar de individualismo, a solidariedade; em lugar
do acúmulo de bens, a distribuição de renda; em lugar da
competição, o cooperativismo. Atitudes que promovem
transformações não apenas na dimensão econômica, mas,
consequentemente, na dimensão cultural, social e política,
porque, como já sinalizado, utiliza a estratégia denominada rede

161
de colaboração solidária com potencial organizativo. Para o
autor35, o ponto chave dessa posição é o fato de que o exercício
da democracia não se verifica na atividade econômica de caráter
capitalista, porque o processo de decisão não é compartilhado de
maneira universal entre todos os atores.

O bem-viver dá sentido a outro sistema de organização


da vida em sociedade. Ele é o resultado das transformações
provocadas pelas redes de colaboração solidária que tem como
objetivo promover a liberdade pública e privada, ou seja, não
apenas o bem-viver de cada um, como também o de todos. É a
proposta do novo modelo: a) colaboração solidária; b) a
solidariedade; c) a geração de emprego; d) o desenvolvimento
ecologicamente sustentável; e) redução da jornada de trabalho e
aumento do tempo livre; f) aumento da poupança interna; g)
distribuição de riquezas; h) desenvolvimento sustentado e
geograficamente distribuído; i) livre iniciativa solidária.

Estamos diante de uma proposta de sociedade pós-


capitalista, pensada a partir das ações e iniciativas já existentes.
Ademais a elaboração de Euclides Mance parte exatamente das
experiências. A exemplo das muitas atividades de cunho
solidário existentes hoje. Como prestações de serviços e auxílios
com base no voluntariado, de caráter peculiar por não ter
financiamento governamental, mesmo prestando serviço ao bem
público. O financiamento delas é realizado por agências
financiadoras ligadas a igrejas, sindicatos e outras organizações
sociais. A ação e execução das mesmas, em algumas situações,

35
MANCE, André Euclides. Entrevista concedida ao Programa América
Latina Viva em 07/06/11. UFPR TV - Curitiba/PR - Entrevistador: Prof.º
Dimas Floriani. 30m duração do vídeo.
http://ufprtv.wordpress.com/2011/06/08/america-latina-viva-070611/

162
ficam a cargo do próprio voluntário. As iniciativas são tantas,
com ações e projetos de atividades, nessa área social, que as
várias possibilidades criaram discussões tanto ao conceito e sua
relação com o governo e o mercado. Algumas delas devido à
abrangência são conhecidas como Terceiro Setor, Setor sem
Fins Lucrativos e Setor Público Não-Estatal. Importa salientar
que nem todas as Organizações não-governamentais que
praticam ações solidárias são contrárias ao modelo capitalista.

Atua isoladamente a atividade de cunho social e de


atendimento das necessidades pessoais, com ou sem
preocupações solidárias, considerando o fato de que a
articulação destas provocariam um impacto muito maior no
atendimento das necessidades e de suporte materiais a quem
precisa. A importância da rede faz sentido como estratégia
organizativa justamente nos movimentos populares. Embora o
termo seja aplicado com vários sentidos, nesta perspectiva, o
fato de compreender o seu significado de modelo organizativo
implica em não confundi-lo com tipos de mediação que a
possibilita. Euclides compreende que as redes de organizações
sociais para existirem, não dependem necessariamente de
infovias informatizadas, elas constituem apenas recursos que as
potencializam (MANCE, 1999, p.24).

O conceito de redes de colaboração solidária foi pensado


a partir da problematização filosófica do tema Economia
Solidária, e esta tem como finalidade a solução de uma melhor
articulação dos elementos operantes e capacidade de
sustentabilidade. Por aplicar-se aos complexos fenômenos
sociais, as redes não poderiam ter outra característica diferente,
porém a sua ideia é bastante simples. Consiste na articulação de
trocas de produtos entre unidades fortalecidas reciprocamente,

163
multiplicando-se em outras unidades e permitindo-se expandir
em um equilíbrio sustentável. Imaginar ou visualizar uma rede
tecida por uma aranha, por exemplo, permitiria compreender a
configuração elementar formada pela conexão das unidades que
seriam os nós ou nódulos desta rede. Os fios que os conectam
seriam os canais, por onde esses nódulos se comunicariam. A
analogia serve apenas para entender a canalização dos fluxos
responsáveis pela distribuição e redistribuição de materiais,
valores, informações e as relações de produção e consumo
garantido entre os integrantes da rede. A configuração efetiva é
de ordem muito mais complexa, pois existem várias redes de
aranha perpassando umas às outras, sem estarem fundidas, mas
interligadas intrinsecamente (MANCE, 2002:45). A analogia
fidedigna entre redes de colaboração solidária é dada pela
geometria nas figuras fractais. (MANCE, 2002, p.65).

A rede representa a organização estratégica para o


desenvolvimento da economia solidária centrada na
colaboração. Os chamados nodos ou células são fundamentais,
pois estruturam os mecanismos de produção e consumo que
oferece existência e sustentabilidade a própria rede. Esta
corresponde à articulação do coletivo popular, promovendo
serviços e bens de consumo a partir e dentro dela regida por
princípios.

Ao partir imediatamente da dimensão econômica de


produção e consumo entre as células que a compõem, ao refletir
acerca da rede de colaboração solidária, remete-nos aos
princípios de funcionamento em meio a complexidade. Um
deles é chamado de autopoiético, em função da característica de
sistema aberto de auto-reprodução da rede com competência de
autogestão e auto organização, ou seja, tem ligação com

164
diversos grupos sociais diferentes, em um intercâmbio entre eles
e ainda garante o fortalecimento dos mesmos, bem como sua
ampliação. Isto mediante outros dois princípios: intensividade e
de extensividade. O primeiro significa a capacidade da rede de
aglutinar cada vez mais membros no local onde a unidade ou
célula estiver, ampliando o surgimento de outras unidades que
articuladas podem conectar-se à rede em geral. O segundo,
também colabora com o surgimento de outras unidades. O
segundo princípio, a saber, a extensividade, significa a expansão
propriamente dita para outras regiões e territórios.

Nessa medida, os princípios da diversidade,


integralidade e realimentação, promovem o crescimento fecundo
da rede. Assim, define diversidade como a competência de
integrar as diversas ações e movimentos na esfera pública não-
estatal, na prática da colaboração solidária, articulando recursos
e projetos em prol do fortalecimento de cada nó através do fluxo
constante com os demais. A integralidade significa, neste
processo de reunião de diferentes, o compartilhamento dos
próprios interesses a defender, neste caso, reforçados no respeito
e luta pelo interesse do outro. E, por fim, o princípio da
realimentação promove o círculo virtuoso. Este consiste na
multiplicação das ações de cada nódulo considerando a
diversidade dos objetos de atuação. Em cada célula, quanto mais
diversos forem os objetos das ações, mais o círculo se fortalece
dentro dessa diversidade própria na rede. Então, temos:

O objetivo da colaboração solidária – é garantir a todas


as pessoas as melhores condições materiais, políticas,
educativas e informacionais para o exercício de sua
liberdade, promovendo assim o bem-viver de todos e de
cada um. Não se trata apenas de uma proposta econômica
para gerar empregos e distribuir renda. Mais do que isso,

165
trata-se de uma compreensão filosófica da existência
humana segundo a qual o exercício da liberdade privada
só é legítimo quando deseja a liberdade pública, quando
deseja que cada outro possa viver eticamente a sua
singularidade dispondo das mediações que lhe sejam
necessárias para realizar – nas melhores condições
possíveis – a sua humanidade, exercendo a sua própria
liberdade. Igualmente, sob essa mesma compreensão, a
liberdade pública somente é exercida de modo ético
quando promove a ética realização da liberdade privada.
(MANCE, 1999, p.179).

Segundo o autor, somente o avanço nas discussões e nas


práticas alternativas, possibilita proporcionar a identificação de
elemento articulador capaz de elevar a proposta de economia
solidária para além da mera geração de renda. Neste propósito,
agrega outra condição a ideia de rede de colaboração solidária.
O consumo é compreendido, nesse entendimento, como a
novidade organizativa da rede. É em função dele que toda a
articulação de produção se organiza. Esta só tem finalidade se
for para o consumo. Portanto, não há produção sem a real
demanda de consumo nas células pertencentes à rede.

Enquanto o sistema capitalista tem característica de uma


produção sem demanda real, como a criação do consumo
alienante através das semioses desenvolvidas pelas mídias, a
qual aproveitam-se da falta de senso crítico dos consumidores e
ausência de repertório para decidir a necessidade de comprar ou
não. Diferentemente, o consumo na rede de colaboração
solidária, busca o consumo como mediação do bem-viver.

166
Também distinto, como explica Mance36, do consumo
compulsório. Neste, o consumidor, por falta de recursos, realiza
a satisfação das suas necessidades através de escolhas que
defendem o preço e quantidade do produto, sem critérios de
qualidade ou atenção para os impactos ambientais provocados
pela produção das mercadorias.

O consumo como mediação do bem-viver tem o objetivo


de conservar o bem estar das pessoas no coletivo, preservar a
saúde e o ecossistema, para isto, depende de uma conduta de
seleção responsável do que é consumido. Isto é, cada pessoa
precisa compreender acerca dos ciclos produtivos e do impacto
que estes provocam no ecossistema e na sociedade em geral. A
compreensão do consumo como a última etapa do processo
produtivo e as nossas escolhas de consumo individual ou
coletivo, produz impacto na manutenção e geração de postos de
trabalho, bem como no ecossistema. Deste modo, a
disponibilização para reciclagem colabora com o combate à
poluição.

O consumo solidário se opõe ao consumo capitalista, às


vezes reduzido a imagem midiática do produto (marca) e
retóricas de qualidade. No consumo solidário o objetivo é
consumir para garantir o trabalho digno de quem produz, bem
como a preservação do meio ambiente, a prática do preço justo e
dinamizar os mecanismos de manutenção e ampliação das
liberdades públicas e privadas. No Brasil e no mundo a prática
do consumo solidário já ocorre em diversos níveis. Geralmente

36
Mance, Euclides André. Economia Solidária e Educação. Entrevistadora:
Rejane Matos. Entrevista gravada em 12.09.2012. - 14:15 até 15:40 –
Salvador/Bahia – Brasil.

167
são grupos de pessoas desempregadas e organizadas, que
executam algum tipo de atividade produtiva como fabricação de
pães, massas, produtos de limpeza, roupas, móveis, brinquedos,
doces, salgados, bordados, artesanatos e muitos outros produtos.
Grande parte dessa produção é consumida por pessoas que tem
consciência que essas mercadorias foram produzidas sem
exploração do trabalhador e do meio ambiente, cientes, portanto,
da origem dos produtos e do valor ético a eles agregados,
mesmo que não tenham a “excelência” dos produtos do
mercado, ou terem preços maiores que a do mercado capitalista,
consomem os produtos em vista do seu ciclo produtivo baseado
na colaboração solidária.

Mance demonstra que as experiências do consumo


solidário dão suportes para sua promoção e difusão.
Fundamenta-se no argumento da consciência solidária para que
os excluídos, os pobres e todas as pessoas que tem essa
consciência, compreendam nas suas escolhas de consumo, ainda
que indiretamente, o poder de gerar a distribuição de renda, o
desenvolvimento ecologicamente sustentável, a geração de
empregos, o combate à exploração, a sustentabilidade das
unidades produtivas e sua integração em redes, favorecendo o
seu fortalecimento e multiplicação com a incorporação de mais
trabalhadores ao processo laboral. O aumento da demanda de
consumo garantiu a diversidade e qualidade da produção.

A proposta de redes de colaboração solidária depende do


consumo praticado na forma solidária. A rede articula as
estruturas de produção e consumo, no entanto, a forma de
consumo adequado para sustentabilidade da rede depende do

168
caráter solidário – um dos tipos de consumo final37. O consumo
solidário consiste na prática comum a todos nós, mas o objetivo
é garantir o bem-viver não só do consumidor, mas também do
produtor. Isto é, a compra coletiva é alternativa de baixo custo,
enquanto que o pequeno produtor vende em grande quantidade
com condições de manter o empreendimento.

Mance oferece o diferencial político fundamental para a


organização coletiva, esta acrescida da novidade organizativa, o
próprio consumo em vista de sua influência no nosso dia-a-dia.
Devemos entendê-lo aqui a partir do caráter da responsabilidade
no consumo e da consideração de articulação existente entre
produção e o consumo, pois consumir com responsabilidade é
considerar as implicações existentes neste mecanismo,
atendendo necessariamente as reais demandas existentes que
geram a mediação do bem-viver:

Praticar o consumo como mediação do bem-viver requer


o refinamento das sensibilidades e sentidos humanos,
bem como o desenvolvimento e critérios avaliativos a
partir dos quais selecionam-se os objetos, dentro das
possibilidades de consumo que cada um tenha, que
venham a contribuir, da melhor maneira, com a
singularização de cada pessoa, com o bem-estar social e
com a preservação dos ecossistemas. Assim, para que se
possa generalizar socialmente o ‘consumo como
mediação do bem-viver’ necessário superar tanto as
formas de consumo compulsório quanto as formas de
consumo alienante (MANCE, 1999, p.28).

37
Jornal Mundo Jovem. Entrevista na edição 320, setembro de 2001.
http://www.pucrs.br/mj/entrevista-09-2001.php. Acesso em 17.06.12.

169
O instigante é verificar justamente os fenômenos do
desemprego e exclusão, como os responsáveis pela
multiplicação das unidades produtivas mantidas graças ao
consumo solidário. Estes fenômenos são resultado do processo
gradual de mudanças nas relações de produção capitalista, a
partir do desenvolvimento das forças produtivas potencializadas
pelas inovações científicas e tecnológicas. Enquanto, por um
lado, o capitalismo reduz o número de trabalhadores
assalariados na produção crescente de mercadorias com custos
baixos. Inversamente, os excluídos investem nos processos de
gestão de novas relações de produção, centrada na colaboração
solidária, com objetivo de satisfazer as próprias necessidades. A
solução para ampliação das práticas e o combate ao isolamento
que enfraquece a iniciativa, exatamente da organização em
direção a integração, tem na rede cujo movimento conecte as
cadeias produtivas de consumo e produção, multiplicando novas
células. Esse mecanismo pode viabilizar e efetivar um
movimento de geração de riqueza em função da inclusão de
trabalhadores antes excluídos do processo produtivo, ou seja,
segurar o consumo da produção em rede.

As propostas emancipatórias de Mance, geradas a partir


da história dos oprimidos, sinalizam uma revolução que pode
atingir grandes proporções em nossos tempos. Como já
aconteceu, outras vezes, na história da humanidade, a exemplo,
da passagem do feudalismo para o capitalismo. Neste contexto,
ele afirma que as transformações nas relações sociais de
produção desencadearam, concomitantemente, outra revolução
na dimensão cultural e política. A revolução cultural subverteu
noções vigentes no campo das ciências, dos conceitos
filosóficos, artísticos, religiosos e políticos, porque instituiu
novas configurações de poder através da representação do

170
Estado que ao legislar, julgar e executar impõe novas ordens de
exploração econômica sobre o conjunto da sociedade.

A nova fase, da globalização capitalista, desdobrada a


partir dos anos 70 tem como característica uma revolução
tecnológica que proporciona um rápido desenvolvimento
produtivo, em função das novas descobertas científicas.
Agregando aos produtos qualidade, quantidade, menos tempo de
trabalho e de esforço humano. Segundo Mance, estas promovem
alterações graduais nas relações sociais de produção, motivadas
pelas iniciativas dos excluídos em criar novas relações
produtivas, em que o trabalho assalariado vai sendo suprimido.
As iniciativas estão no campo da economia denominada
informal. Enquanto algumas reproduzem o modelo de
exploração ao ponto de se manterem na ilegalidade, outras
subvertem as relações de produção capitalista e se expandem em
redes. O capital desvaloriza o trabalhador de produção de bens
tangíveis imediatos, em função da velocidade de produção
atribuída pela aplicação tecnológica. O desenvolvimento
científico é convertido na mais importante fonte de riqueza. Os
preços das mercadorias caem e a produção fundada no valor de
troca se desestrutura. A situação favorece a criação de
alternativas, ou seja, o capital elimina progressivamente a
relação capital-trabalho assalariado, ao excluir trabalhadores e
potencializar o desenvolvimento das forças produtivas.

Tratemos de situações distintas. A primeira diz respeito a


dissolução do próprio sistema, pois ao deslocar a medida de
riqueza para as inovações científicas e o conhecimento nesta
área, aumentam o potencial de produção, reduz em contrapartida
o potencial de consumo e gera o desequilíbrio do mercado
quando perde a referência de valor, pois “ninguém sabe quanto

171
custa o conhecimento’” (MANCE, 1999, p.36). Nessa medida
que as bolsas de valores têm quedas absurdas a cada novo
lançamento de produtos das empresas como a Microsoft ou
Netscape.

A criação das bases para expansão e desenvolvimento


das redes de colaboração solidária, como único modo de gerar
riqueza, é outra situação. Para isso, segundo Mance (1999)
depende da autonomia de cada excluído ou pessoa
comprometida na construção de uma sociedade pós-capitalista
dispostos a praticar o consumo solidário. Somente o
fortalecimento da rede pode promover a consolidação de novas
relações de produção pós-capitalista centrada na colaboração
solidária.

Na expansão da rede de colaboração solidária autônoma


há também demanda de apropriação de tecnologia, desde que
compatível com o desenvolvimento ecológico sustentável, no
intuito de atingir a qualificação dos produtos. Em consequência
desta apropriação podemos enumerar algumas situações.
Primeiro, a redução da jornada de trabalho que pode estimular
outros trabalhadores, na inserção da área de pesquisa científica,
tecnológica e com a ampliação da produção, busca reverter o
excedente para reinvestimento. Segundo, a multiplicação das
células pela incorporação de trabalhadores excluídos. Terceiro,
o aumento do poder de consumo na rede se traduz na
distribuição de riquezas considerando que não há relação de
patrão e empregado ou salários. Todavia, o avanço produtivo
alcançado sob essa lógica de colaboração não poderá resultar em
saturação nas áreas de produção, pois o consumo é em razão do
bem-viver, conforme demanda preexistente.

172
Euclides (1999) salienta que as tecnologias não
determinam a viabilidade ou inviabilidade no processo de
expansão da rede. A condição necessária para o surgimento e
sua expansão, são duas: o consumo e a produção solidária.
Ainda, reconhece o fator potencial da colaboração solidária
quando se refere a livre circulação de informações e
conhecimento. Destaca o caráter semelhante do projeto software
livre38 que é a colaboração solidária, permitindo o
compartilhamento desta tecnologia sem ônus pelo uso e
viabilizando a apropriação por outras populações dos benefícios
deste. Mance39 lembra que o software livre é um eixo de luta
como é a economia solidária e destaca a importância da
utilização deste no desenvolvimento de atividades inclusive
pedagógicas, sem descartar que nem toda e qualquer
organização ou iniciativa que utiliza software livre busca em
suas ações práticas de alargamento das liberdades. Contudo,
entendemos que constitui um grande aliado nos propósitos de
internacionalização. Deste modelo inclusive, para os processos
formativos nos ambientes virtuais.

Em grande parte, cremos que o uso de tecnologia livre na


formação em economia solidária, confere sustentabilidade ao
modelo organizativo, considerando a tarefa de preparação
técnica e política dos componentes da rede, a fim de assegurar a
administração democrática e tecnicamente eficiente do conjunto

38
Maiores informações sobre o software livre podem ser obtidas em
www.fsf.org.
39
Mance, Euclides André. Economia Solidária e Educação. Entrevistadora:
Rejane Matos. Entrevista gravada em 12.09.2012. - 14:15 até 15:40 –
Salvador/Bahia – Brasil.

173
de reinvestimentos que na opinião do autor é o maior desafio
(Mance, 1999, p.130).

A concepção apresentada indica que a consolidação da


transformação em curso siga o caminho em direção ao novo
modelo de sociedade, pós-capitalista, centrado em razão do
bem-viver e regido pelo consumo solidário. É muito mais que
uma alternativa econômica ao capitalismo, mas a construção de
outro modelo de sociedade. A economia solidária é a
radicalização da democracia, pois desde o dia-a-dia, das
contradições do capitalismo, nasce e se desenvolve dentro de
outras contradições inerentes a nós mesmos e a nossas
subjetividades.

Se até aqui primamos, sobretudo, pela análise do livro


Revolução das Redes de Euclides Mance, lembrando sempre
que nossa interpretação vem balizada pela participação na
EPESS – Escola Permanente de Educadores Sociais de Salvador
que, como fruto do curso de formação, dinamizou iniciativas de
empreendimentos solidários como a Rede-Moinho. Cremos ter
mostrado, ao apresentar a dimensão revolucionária das Redes de
Colaboração Solidária, que ela embarca a economia solidária e
se diferencia, mas também inclui, as Feiras de Troca, o
Cooperativismo, as Incubadoras, etc. Nosso intento, agora, é
focar nos fundamentos filosóficos da Rede. Aliás esta é uma
idiossincrasia do trabalho de Mance: não apenas descreve o que
são e como funciona a Economia Solidária, além de, ele mesmo,
ser uma ativista da causa, seja um dos raros intelectuais que a
conceitualiza e faz mediações filosóficas demonstrando seu
potencial enquanto um novo modelo de sociedade, desta feita,
pautada na equidade, na ética que garante as liberdades públicas
e privadas, na preservação do meio ambiente, nas operações

174
econômicas que não visam a exploração do trabalhador e do
meio-ambiente, mas à sustentabilidade, à inclusão social, à
libertação!

Fundamentos Filosóficos das Redes de Colaboração


Solidária

Este trabalho apresenta reflexões sobre aspectos


fundamentais do projeto de redes colaborativas solidárias. O
conjunto da obra em análise é um diálogo fecundo com a
Filosofia da Libertação com desdobramentos das questões
econômicas e foco na práxis social da qual é oriundo e para a
qual é dedicada esta reflexão. Isto é, as práticas concretas de
solidariedade são conteúdos investigativos desta análise
filosófica revestida de conhecimentos dos vários campos
científicos para apontar alternativa viável à problemática da
práxis econômica. A ótica filosófica apurada viabiliza reflexões
a partir de categorias estabelecidas com abertura para
compreender a complexidade que permeia a realidade e suas
relações. A realização da análise acerca desta construção
intelectual significa comprometimento com o tema, conceitual e
pragmaticamente.

Para nossa melhor compreensão, é necessário atentar


para a importância dos estudos desenvolvidos e orientados pela
Filosofia da Libertação e sua influência na elaboração da
concepção de redes de colaboração solidária defendida pelo
autor.

175
No século XX, a efervescência na América Latina sobre
temáticas relacionadas à libertação reflete os movimentos da
corrente filosófica em questão. Segundo Mance (2009, p.20) “a
filosofia da libertação, como corrente filosófica específica,
elabora categorias, métodos e linguagens orientadas à reflexão
crítica e realimentação das práxis de libertação, emerge no final
dos anos 60 e início dos anos 70, com diferentes abordagens
paradigmáticas40.” que ressoam no Brasil. A filosofia da
libertação submete à reflexão toda crítica sobre a opressão do
homem na perspectiva da América Latina. O professor esclarece
que:

Com o desenvolvimento do capitalismo nacional,


apresentado pelas elites como sinônimo de
desenvolvimento do país, emerge a contradição entre o
projeto de o Brasil tornar-se uma próspera nação e o fato
de que sua modernização ia gerando uma nova classe de
despossuídos e explorados – que, em frequentes
mobilizações sociais, questionava a organização
econômica, política e social do país. No âmbito dos
movimentos sociais, o surgimento de uma incipiente
classe operária, na transição entre os séculos XIX e XX,
com a substituição do trabalho escravo pelo trabalho
assalariado, coloca em cena – com a chegada de
trabalhadores imigrantes – um novo conjunto de ideias e
práticas de resistência e luta organizada de anarquistas,
anarco-sindicalistas e, posteriormente, de comunistas,
posicionando-se diferentemente em relação ao papel do

40
MANCE, Euclides André. El pensamiento filosófico brasileño. Publicado
em: Dussel, Enrique, Eduardo Mendieta y Carmen Bohórquez (editores). El
pensamiento filosófico latinoamericano, del Caribe y "latino" (1300-2000).
Historia, corrientes, temas y filósofos. México, CREFAL / Siglo XXI
Editores, 2009, p. 495-517, p.20.

176
Estado e à superação da exploração do trabalho pelo
capital. Soma-se a esse caldo de culturas, as lutas
anteriores de quilombolas, comunidades indígenas e as
revoluções do século XIX, fomentando um horizonte
utópico de libertação popular (Mance, 2009, p.1).

As reflexões partem da práxis, a fim de produzir uma


teoria que dialogicamente permita compreender os movimentos
e contingências a ela inerentes. Sem a pretensão de garantir um
método único e absoluto para interpretar a realidade, estabelece
um processo de interlocução dialógica a partir da realidade
concreta da própria práxis da libertação. Oferece condição para
corrigir, melhorar a teoria e a prática, ampliando o objetivo ético
último que é a liberdade. Mance diz que “não há dificuldade em
aceitar que seja necessário produzir novas categorias e conceitos
para pensar problemas recolocados de uma nova maneira (2000,
p.58)”. São as críticas às categorias, conceitos, métodos e
estratégias teóricas da tradição filosófica ocidental que
sustentaram o enfrentamento dos problemas.

É na filosofia da libertação que o nosso autor encontra a


fundamentação e procedimentos para interpretação da práxis e,
desde aí argumenta a viabilidade para as redes de colaboração
solidária que nos interessa neste trabalho. Parte-se das
apropriações conceituais e definição dos pilares teóricos e
filosóficos fundamentais do sistema organizativo de redes de
colaboração solidária e seus laços de retroalimentação entre
produção e consumo dos fluxos econômicos da sociedade. Para
tanto, é preciso compreender a importância de princípios e
categorias que constituem o cerne filosófico da elaboração em
análise.

177
O primeiro princípio sobre o qual nos debruçaremos é
fundamental para o conjunto da obra e encontra sua origem no
pensamento de Emmanuel Lévinas, o qual formula a
compreensão sobre a alteridade atribuindo-lhe o sentido de
existência no Desejo do Outro numa relação de proximidade
denominada de face-a-face. Lévinas concebe o Desejo sob duas
vertentes para a compreensão da alteridade. Um que diz respeito
à forma de relacionar-se com as coisas, com a necessidade de
satisfazer-se na fruição do desejo em gozo inconcluso que
incorpora as necessidades incessantemente. Sobre a outra:

Trata-se do Desejo que nos move em direção às outras


pessoas em uma relação de mútuo respeito, de escuta,
atenção, acolhimento, ternura, bondade, amor, desejando
que a outra pessoa seja livre, seja ela mesma em sua
singularidade, em sua distinção – relação esta que pode
ser caracterizada em seu conjunto como proximidade
(MANCE, 2002, p. 154).

Mance (2002) ao diferenciar necessidades naturais,


culturais e desejos que se concluem na fruição de elementos e
situações de nosso mundo nos permite perceber que o Desejo
em Lévinas – grafado com D maiúsculo – deve nos remeter a
uma aproximação das pessoas, em movimento de abertura e
acolhimento da existência dos outros desejados em sua liberdade
eticamente exercida.

Euclides, a partir de Lévinas, afirma que frente ao


movimento de aniquilação da alteridade, reduzida a um conceito
nos limites do horizonte ontológico de uma totalidade, é preciso
afirmar a proximidade, movida por um desejo do invisível,
como o centro do momento ético da vivência de cada pessoa.
Entretanto, a categoria da proximidade como responsabilidade

178
pelo outro não tem garantia de retorno e, deste modo, a
exterioridade fenomenológica escapa ao olhar. Seu sentido é
mistério, por isso, todo pensamento sobre o outro não o captura
na lógica do Mesmo, restando sua palavra para revelar-se e sair
da clausura imposta pelo entendimento (cfe. Mance, 1994).
Segundo ele, a responsabilidade ética permite superar a
impessoalidade, o insignificativo do ser, avançando na
constituição da condição humana e sua subjetividade que em
vez de ser para a morte, é para o Outro.

A alteridade elucida que o Outro é impossível de ser


integrado totalmente em qualquer tentativa de conceito racional.
“O rosto emerge no mundo indicando a infinitude do outro, o
mistério que não consigo abarcar. Revela os limites dos meus
conceitos e me exige uma abertura ética, uma outra razão, uma
outra história, uma outra liberdade.” (Mance, 2002, p.155).

As palavras de Euclides Mance (2002, p.162-165) sobre


a proximidade revelam a necessidade do outro, de ser cuidado e
encontrar amparo a partir do qual o tempo que passa ganha
sentido. É na proximidade que o compartilhamento é festa no
Desejo da diferença do outro, pois nunca somos justos o
suficiente na diferença que nos une, é a relação ética afirmada
em cada pessoa com o ético compromisso de liberdade que não
se resume no acesso às mediações. Assim, o face-a-face, a
relação do eu e do outro, dá-se no sentido de compartilhar na
esperança de ser amparado para a vida toda. É o lugar de onde
emerge a responsabilidade pelo outro, sem recíproca, onde o
respeito por sua diferença é uma atitude ‘des-intere-ssada’. É a
plena dádiva entre o eu e o outro. Início do processo solidário de
libertação no reconhecimento da dádiva traduzido no Desejo de

179
libertação do outro e reconhecimento de sua própria
responsabilidade de colaborar para si e por todos.

Mance (2002), parafraseando Paulo Freire, afirma que os


homens se libertam em comunhão, isto é, o processo solidário
de libertação precisa da reciprocidade da dádiva para a
comunhão entre as pessoas e de sua própria libertação.
Conforme o professor afirma em entrevista41, ela é condição
para a realização humana e reorganização das sociedades em
vistas da promoção da liberdade. O que é um risco, pois não há
garantia de superação das incertezas sobre a alteridade no devir
da práxis social, em seus processos de subjetivação diante do
inusitado. Há uma esperança na reciprocidade da dádiva entre o
eu e o outro, de reconhecimento sem o qual não existe doação
de um pelo outro; é a constituição da práxis de libertação. É
preciso considerar as diversas contingências da realidade, no
entanto, toda a ciência é baseada somente em princípios como a
dedução, indução e identidade, que não dão conta de interpretar
tal diversidade. Para a compreensão dos fatos que brotam do
social, repleta de circunstâncias, emergências inusitadas,
socorre-nos a compreensão da teoria da complexidade gestada
com base na citada matriz filosófica de libertação que tem
potência interpretativa e possibilita a inteligibilidade da
realidade em permanente devir permeada de subjetividades
diversas.

O devir subjetivo sofre condicionamento através da


cultura de dois modos: ampliando o exercício da liberdade e
41
MANCE, André Euclides. Entrevista concedida ao Programa
América Latina Viva em 07/06/11. UFPR TV - Curitiba/PR -
Entrevistador: Prof.º Dimas Floriani. 30m duração do vídeo.
http://ufprtv.wordpress.com/2011/06/08/america-latina-viva-070611/

180
aprimorando a capacidade individual de transformar-se em
síntese mais complexa ou estratificando-o em determinadas
territorialidades. Deste modo, diminui os movimentos possíveis
que ampliam o espaço de subjetivação (Mance, 2002, p.161).

A modelização cultural utiliza mecanismos cada vez


mais sofisticados para gerar fluxos semióticos de manutenção
capitalista. Organizações sociais geram regimes de signos que
medeiam sua compreensão de mundo e sua intervenção sobre
ele (Mance, 2002:160). A subjetividade é uma produção social,
perpassadas por fluxos de outros conjuntos, de semioses que nos
modelizam e interferem em nossa condição humana. Há apenas
liberdade relativa e situada para resistir aos fluxos que nos
produzem. Porém, Mance sustenta que nossa consistência
humana é a prerrogativa para a liberdade. A subjetividade é
fruto da consistência e esta é fator mobilizador para a busca de
liberdade. Ela nos permite reagir às semioses simbólicas e
modelizar singularmente nossa cognição (2002:160).

Para compreender os processos de subjetivação trazemos


para a roda de diálogo os estudos realizados por Félix Guattari e
Gilles Deleuze, sobre estes fenômenos complexos. Ambos
definem o ser humano em um conjunto de matérias e funções
articuladas, pelo que eles chamam de máquina abstrata peculiar
que opera transversalmente distinguindo-se umas das outras.
Afirmação que contribui para Mance concluir, a partir da
filosofia da diferença, que a subjetividade humana não é apenas
um conjunto de matérias e funções articuladas pelas máquinas
abstratas, mas supõe substâncias e formas engendradas por
semioses que agenciam devires, engajamentos imaginários ou
efetivos, territorializando condutas, formalizando expressões e
corpos. (2002:85).

181
Precisamos perceber, ao refletir sobre a questão da
revolução das redes, que a subjetivação está no alvo das
semioses hegemônicas com objetivo de reproduzir padrões de
manutenção das estruturas capitalistas. É importante entender o
capitalismo não só como um sistema econômico, mas como um
sistema modelizante semiótico, que aplica signos determinados
e interpretantes sociais no agenciamento do indivíduo submetido
ao exercício do micro e macro poderes. Contudo, não podemos
esquecer que o processo de subjetivação quando não está
conectado aos processos sociais de agenciamento, podem
estabelecer o exercício de liberdade na subversão de semioses
hegemônicas, apresentando linhas de fuga, formando
agenciamentos de subversão para compreender como eles
operam frente aos fluxos semióticos e materiais de reprodução
do capitalismo (MANCE, 2002, p.87).

A partir destes argumentos percebemos que processos na


contramão dos modelos hegemônicos pontuados acima, são
dimensões de transformação revolucionária com aberturas
indicativas de como a alternativa de redes solidárias são
factíveis. Félix Guattari faz distinção entre molecular e molar.
Os termos são uma espécie de singularização com horizonte
ético no desejo do outro em sua diferença. (MANCE, 2002,
p.87,88). A revolução molecular significa reação organizada,
como por exemplo, os movimentos feministas, indígenas,
negros, homossexuais e software livre ou da economia solidária,
entre vários outros. Estes desencadeiam coletivos maiores em
eixos de luta que reúne os indivíduos no exercício de sua
liberdade no enfrentamento em prol de causas comuns ou eixos
de luta. A economia solidária como um desses eixos requer
assimilação nos coletivos que significam exercer singularidades
e diferenças para assumir padrões de comportamento,

182
linguagens ou utopias que fazem parte deste coletivo por
estarmos agenciados com padrões sociais e comportamentos
estabelecidos. Como diz Mance (2002:89) nossa subjetividade é
agenciada a inúmeros devires, sendo perpassada por fluxos
materiais e semióticos através dos quais exercemos nosso poder,
nossa liberdade.

Neste ponto, a revolução das redes ganha características


de revolução molar que se configuram nos agenciamentos
moleculares de transformação estrutural. Isto é, a expansão
molecular, pela conexão em laços de realimentação com outras
células, acontece em vista dos movimentos próprios da rede.
Entre eles a extensividade e intensividade que reproduzem
células no cadenciamento molar graças à subjetivação, ou seja,
escolha livre por afetar-se e assimilar-se em iniciativa solidária.
Assim, as células agenciam devires não apenas de consumo
solidário, mas também de práticas de subversão dos códigos
econômicos, políticos e culturais. Isto porque as redes
alimentam a subjetivação promovendo a diversidade e
integralidade que engendram processos criativos. Nestes
procedimentos há condição de romper com opressões e
insatisfações geradas nas velhas utopias, que em memento de
instabilidade podem ser subvertidas a partir de utopias ou
aspirações da vontade individual que num movimento de
sucessão abre espaço para outras realidades. (MANCE, 2002,
p.128,129).

Podemos assim, esclarecer ainda mais a ideia de


revolução requerida por Mance (2002, p.130) na estrutura das
redes. Compreender revolução é fluxo de desejo e de vontade
em período incessante de progressão, denominando-os de topias.
Elas são fonte de bem-estar ou precariedade em uma sociedade,

183
pois estão relacionadas com toda a convivência humana e as
condicionam, possuindo relativa estabilidade (MANCE, 2002
p.128-129). Ou seja, a transformação revolucionária é
movimento sucessivo próprio da práxis de libertação revezando-
se entre topias e utopias. Por sua vez, cada “utopia é composta
por dois elementos: o primeiro de reação contra a topia
originária; o segundo de recordação de similares utopias
anteriores” (MANCE, 2002 p.129). As utopias são as próprias
inspirações da vontade individual, mas com características de
coletivo quando agenciadas em movimentos molares. Portanto,
Mance (2002) deixa claro que concorda em alguns aspectos com
Landauer ao afirmar que a revolução deve ter como horizonte
toda a convivência humana, considerando projetos utópicos no
sentido de manter a constante mudança. E com o conceito de
processo revolucionário, mediante um movimento complexo
que propõe transformações nas interações particulares, nas
circunstâncias específicas e cotidianas das estruturas, e
consequentemente, alteram a macroorganização social e política.
(2002:131)

A respeito da revolução das redes, diz Euclides:

O conceito de revolução de redes conserva o caráter


utópico de colaboração solidária – seguindo a
terminologia de Karl Mannheim – reside no fato de que
elas podem ser implementadas, isto é, podem ser
realizadas. Contudo, não sendo as redes modelos
concebidos por meras deduções formais, as utopias da
colaboração solidária são históricas e se modificam
constantemente, em razão das próprias contingências
humanas, aprimorando-se no anseio por ampliar o
exercício humano de liberdade. Elas, portanto, são
cotidianamente corrigidas e transformadas pela práxis

184
solidária e coletiva de todas as pessoas e organizações
que aderem à estratégia global de colaboração em redes e
que democraticamente buscam implementá-la. (MANCE,
2002, p.132)

Mediante os argumentos desenvolvidos, se entende como


práxis revolucionária democrática, sendo um terreno fértil para
florescer a sociedade solidária presente no horizonte da
revolução das redes. Entendendo que em função das suas
características revolucionárias tem como resultado as utopias
coletivas sucessivas, composta de diversas tendências sociais em
face de dissonâncias decorrentes da diversidade que lhe é
própria. Afinal, a rede fomenta a diversidade e nela tem
sustentabilidade. Ambiente propício para a democracia capaz de
conter utopias coletivas resultantes da construção dialógica ora
em consenso, ora em dissenso. Com isso, mantém-se o caráter
de movimento em sucessiva mudança, atendendo o sentido de
desejo do outro em sua liberdade e em sua diferença eticamente
realizável. Por tanto, a utopia de que se trata numa práxis
democrática é a possibilidade de concretização dos desejos e
anseios de realização das liberdades públicas e privadas. Como
exemplo, temos o momento atual em que a insatisfação com as
contradições capitalistas favorecem a busca de alternativas,
saídas para a opressão e exploração. Por isso, não seria utópico
usufruir realmente do tempo livre que todo o aparato
tecnológico possibilita hoje desfrutar se participássemos de
outra lógica de organização do trabalho. O próprio Marx
detectava no frenético movimento de acumulação do capital a
dissolução do capitalismo. Ora, a produtividade e o avanço
tecnológico, em tese, possibilitam a produção do tempo livre.
No entanto, o capitalismo está concentrado apenas na ampliação

185
e concentração de capitais, sem se ocupar com o bem-viver dos
trabalhadores. Mance explica:

Sob o argumento de Marx, tempo do não-trabalho, que


também existiu em modos de produção anteriores, esteve
entretanto reservado a pequenas parcelas sociais.
Todavia, a alta produtividade alcançada no capitalismo
por ele ter subsumido o desenvolvimento científico e
tecnológico fez com que se amplie o tempo de não-
trabalho para toda a sociedade. Entretanto, como o
capital permanece concentrado, grande parte da
sociedade fica privada de converter o tempo livre,
diríamos nós, em tempo de bem-viver. (2002, p.100)

Em contrapartida, temos a proposta das redes de


colaboração solidária. Lembremos que ela é estruturada sobre
outro princípio de leitura de mundo que Deseja o Outro na sua
diferença, de modo que seja eticamente exercida. E tem o
entendimento de outro paradigma – entendido como um
arcabouço geral de conjunto de teorias conforme sentido
empregado por Thomas Kuhn (MANCE, 2002:101) isto é, o
paradigma da abundância, utilizado para organizar os fluxos
das redes: “significar, pois, dispor das mediações requeridas em
níveis maiores do que o estritamente necessário, mas sem
extrapolar os parâmetros do máximo adequável, evitando-se
qualquer excesso” (MANCE, 2002:122). As redes de
colaboração solidária revolucionam quando propõem a
multiplicação da abundância e autonomia produtiva visando
ampliação de produção de valores que garantam o gozo do
tempo livre. O compartilhamento dos valores materiais
produzidos sobre as bases tecnológicas existentes garantem a
auto-sustentação e expansão da rede. Isto porque a economia
solidária na lógica de rede solidária atende as necessidades das

186
famílias de desempregados. Ela oferece práticas de
financiamento, produção, comércio e consumo solidários, que
conectados em rede sob os padrões de compartilhamentos e
solidariedades garantam as liberdades públicas e privadas e
ampliam o tempo livre de maneira geral para todos. Além de
exigir menor troca de valor, pois os preços são ajustados
democraticamente pelo valor de reposição da rede e mais que
isso, os valores atribuídos são considerados solidariamente
observando outros elementos para além dos custos de produção,
respeitando princípios de justiça na promoção do bem-viver dos
produtores e consumidores. A afirmação da solidariedade requer
a satisfação de desejos e necessidades. Justificando o princípio,
requer menos valores de troca. Não há lei da oferta e procura,
pois a demanda de consumo é o que determina a produção.

As redes de colaboração solidária são regidas pelo


paradigma da abundância que significa dizer, quanto mais
distribuição de riqueza, mais riqueza para todos. (MANCE,
2002 p.120). No capitalismo esta prática é impensada. Todo
tempo livre é entendido como menor lucratividade organizado
sob a lógica da escassez. A lógica das redes de colaboração
busca o equilíbrio dinâmico e a satisfação das necessidades
sociais. É assim que ampliam a produção de valores de uso e
garante o bem-viver do conjunto das sociedades. O objetivo é
ampliar a abundância, subvertendo a lógica dos mercados.

No entanto, sob a lógica do capital o paradigma da


escassez impõe a necessidade de não realização de todas as
necessidades. O indivíduo priva-se da necessidade em função da
raridade do produto desejado. Ele é privado da condição de
obter o que precisa. Na perspectiva da complexidade isto é
insustentável. Mance (2002) realiza análise acerca das teorias

187
econômicas e destaca a inconsistência delas. A ideia é que os
recursos não estão disponíveis a ponto de satisfazer toda a
demanda gerada. O valor das coisas está na relação entre
demanda e procura. Na leitura de Mance, a riqueza social é
constituída por recursos apropriados por alguns que os
disponibilizam para os outros (MANCE, 2002:105). O conjunto
das coisas, tornadas raras como propriedade de alguns, são
submetidas à permuta, troca de valores. O requisito para obter a
satisfação de sua demanda é o poder de troca que cada um tem
para obter o recurso desejado.

Mance expõe a inconsistência do paradigma da escassez


e realiza crítica à “aproximação assintótica da realidade
econômica do modelo ideal como uma ilusão transcendental”
(2002, p.111). Enquanto o sistema neoliberal estabelece modelo
ideal para as contingências inerentes à realidade da proposta da
economia solidária - operando a partir da teoria da
complexidade, prevê abertura para as mesmas com condições de
conviver nestas na incessante busca por adequação dos desejos,
utopias. Isto é, o neoliberalismo realiza a tentativa, sob a lógica
da escassez, de aproximação assintótica do seu modelo ideal da
realidade econômica. Não atinge os objetivos, visto que
promove desequilíbrio geral e não garante o bem-viver de todos.

O bem-viver é categoria filosófica fundamental para a


argumentação do trabalho apresentado. Compreendida como
instrumento balizador das formas de exercer a liberdade, ela
resulta das apropriações conceituais da teoria da complexidade.
O objetivo último desta categoria, a qual justifica a organização
de redes, é garantir a liberdade de satisfazer as necessidades
próprias e de outrens.

188
Porém, a realização do bem-viver requer mais que
simples satisfação das liberdades públicas e privadas. A
dimensão ética desejando as liberdades públicas e privadas
afirmam um sentido de transcendência ao já realizado.
(MANCE, 2002, p.166).

Assim, o 'bem-viver' fundamenta a proposta de redes de


colaboração solidária. Enquanto categoria de análise é
formulada com base em autores como Lévinas, Félix Guattari,
Dussel, Roig e outras referências nas elaborações acerca da
Ética, presente na discussão da matriz filosófica da filosofia da
libertação.

A questão central do bem-viver é a solidariedade. As


condições materiais, políticas, informativas, educativas e a
condição ética, são conteúdos submetidos à ótica da categoria
filosófica de caráter libertador. Instrumento de análise instituído
com objetivo único de garantir a realização da liberdade, esta
deveria ser assegurada de maneira mais justa e solidária
possível, considerando que ninguém é cerceado totalmente ou
goza absolutamente de liberdade.

Para o exercício da liberdade é necessário garantir quatro


condições básicas. As condições materiais, pois sem os meios
materiais que satisfazem as necessidades básicas não há
liberdade possível. As condições políticas, isto é, a
possibilidade de exercer o poder de maneira responsável e
solidária. Além das informação/formação e, sobretudo, a
condição ética propriamente dita, aquela que afirma o
imperativo da manutenção e expansão das liberdades públicas e
privadas. Já entendemos que a liberdade é eticamente exercida
quando promove a liberdade do outro. E se deve fazer o possível

189
para que cada pessoa tenha assegurada as condições materiais,
políticas, educativas/informativas para realizar a sua liberdade.
Então, o bem-viver é um modo de realização da liberdade em
solidariedade, e que busca assegurar da melhor maneira possível
todas essas condições para a expansão das liberdades públicas e
privadas.

O bem-viver deve permitir fazer a crítica da realidade


concreta e dar a medida em que é efetivado ou negado e em que
condições materiais políticas, informativas, educativas são
asseguradas ou não às pessoas. O bem-viver não deve ser
compreendido como um horizonte utópico da realização da
liberdade. Do contrário, perdemos o mais importante dessa
categoria que permite escapar do debate do Karl-Otto Apell, por
meio da fundamentação transcendental da liberdade e a de
Enrique Dussel, com a posição metafísica que ele defende, não
colocando mais a vida como princípio material, mas colocando
o bem-viver, ou seja, um modo de realização da vida numa
esfera de solidariedade humana que promove o máximo possível
à ampliação das liberdades públicas e privadas.

Dentro dessa perspectiva se configurou a questão da


economia popular. Ou seja, a questão é constituída das formas
de economias populares reelaboradas de maneira crítica, de
maneira solidária e estratégica, para que essas práticas possam
contribuir na construção de sociedades pós-capitalistas.
Sociedades que efetivamente superem as estruturas de
exploração do trabalho, de expropriação do consumo, de
dominação política e de dominação cultural. Um ponto chave
dessa posição é o fato de que o exercício da democracia, não se
verifica na atividade econômica de caráter capitalista, pois o
processo de decisão não é compartilhado de maneira universal

190
entre todos os atores. Os detentores do capital têm o poder de
decisão, quem não possui o capital não decide, apenas obedece.
Há uma relação de subalternidade do trabalho frente ao capital.
Entretanto, através da prática da autogestão e do exercício
solidário desses trabalhadores em seu empreendimento para com
as comunidades onde eles estão situados, se pode pensar em
procedimento democrático. Por exemplo, pensando as cadeias
produtivas, quem são seus fornecedores de matéria-prima, os
impactos ecológicos da produção e do consumo, ou seja, uma
visão sistêmica e integral do que seria essa realização dessas
liberdades. Para tanto, são necessários mecanismos que evitem a
subsunção de procedimentos democráticos em formas
totalitárias de exercício de poder42. Nessa medida, pode citar a
prática do consumo solidário, acrescida a organização de rede de
colaboração solidária.

Consumir é inerente ao ser vivo, temos para tanto os


fluxos materiais naturais ou fruto do trabalho para satisfazer-
nos. Contudo, no sistema vigente sem a troca não há
possibilidade de satisfazer-se. Não há liberdade para prática do
consumo. Este pode variar conforme a condição de cada sujeito:
o consumo pode ser alienado; ou compulsório; visando o bem-
viver ou ainda o consumo solidário.

Não há vida sem consumo. Sob a ótica do bem-viver,


de acordo com Mance, pode-se dizer que consumo solidário é
caracterizado por um tipo de consumo final e produtivo. Isto é,

Veja-se livro eletrônico: Globalização, subjetividade e totalitarismo –


Elementos para um estudo de caso: o governo Fernando Henrique Cardoso.
Curitiba, 1998. http://www.solidarius.com.br/mance
/biblioteca/gst/05.htm.

191
com condição de sustentar o bem-viver de consumidores e
produtores. Assim, integrar os ecossistemas ambiental, social e
subjetivo conforme propusera Félix Guattari em "As Três
Ecologias". A ideia de consumir produtos e serviços de
empresas capitalistas que exploram os trabalhadores e
prejudicam o meio ambiente é também nossa responsabilidade
pelos danos à humanidade; consumir produtos e serviços de
empreendimentos econômicos solidários é contribui para o
desenvolvimento de uma economia pós-capitalista, centrada no
bem-viver do conjunto das pessoas.

As redes de colaboração solidária são a forma inovadora


de prover mediações balizadas pelo critério do bem-viver. A
realização de qualquer exercício de liberdade requer condições
educativas, condições políticas e materiais, além de condições
informativas que garantem a realização histórica de cada um em
proximidade. Condição ética fundamental para a consistência
humana em liberdade. Afinal, a liberdade de cada um, consiste
na realização de liberdade do outro. (165, 2002).

Últimas Considerações

Nos Congressos Brasileiros de Filosofia da Libertação


tem desfilado os temas inaugurais da Filosofia da Libertação
como também os temas atuais. A partir de Salvador, os
Congressos passaram a acontecer concomitantemente com os
Encontros Internacional de Filosofia Africana, colocando em
diálogo essas duas macro-correntes do pensamento
contemporâneo, em estreito diálogo com o Pensamento Social
Brasileiro e em intercâmbio com outros movimentos

192
organizados do pensamento como são a decolonialidade, a
interculturalidade, o afrocentrismo, o pensamento da
subalternidade, dos estudos culturais, do feminismo negro, do
mulherismo, do orientalismo, do hibridismo, da criolização, do
corredor das ideias... Enfim, temos sido um mosaico das
principais discussões filosóficas no eixo Sul-Sul e, quiçá, no
mundo.

Podemos dizer, em segurança, que ao longo dos anos,


que a filosofia da libertação já se configura como um sistema
aberto de filosofia, tendo sua ética, sua política, sua filosofia da
linguagem, sua filosofia cultural, sua pedagógica, sua estética da
libertação e que, em bom tempo, tendo também sua economia da
libertação, cujo presente artigo teve a modesta pretensão de
apresentar seus prolegômenos, a partir da Economia Solidária,
ou melhor, para ser justos com a formulação de Euclides Mance
e seu alcance: com as Redes de Colaboração Solidária, que não
é mera projeção filosófica de filósofos de gabinete, mas uma
realidade que se espalha no mundo inteiro, fortalecendo a
perspectiva da construção de outras bases para o fazer
econômico baseado na liberdade de cada um e de todos!

Referências

CARBONARI, Paulo César. Veja-se Resenha do livro de


Euclides A. Mance sobre A Revolução das Redes. Revista
Libertação – Liberación – Instituto de Filosofia da Libertação.
Curitiba, Paraná, Brasil, nº1, 187 p 179-182, 2000.

LECHAT, N. M. P. As raízes históricas da economia solidária e


seu aparecimento no Brasil. Palestra proferida na UNICAMP
por ocasião do II Seminário de incubadoras tecnológicas de

193
cooperativas populares dia 20/03/2002. Publicação no sítio:
http://turbulence.org.uk/turbulence-1/solidarity-economics/
Acesso em: 20 ago. 2011.

MANCE, Euclides André. A Revolução das Redes Constelação


Solidarius - A colaboração solidária como uma alternativa pós-
capitalista à globalização atual. VOZES, 1999- 220 páginas.

______. A Revolução das Redes - A Colaboração Solidária


como uma Alternativa Pós-Capitalista à Globalização
Atual. CEPAT – Informa Centro de Pesquisa e Apoio aos
Trabalhadores, Curitiba, PR. Ano 4, N. 46, p.10-19, dezembro
de 1998.
http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/rede.htm

______. Como Organizar Redes Solidarias – Rio de Janeiro


IFiL, Fase, DP&A Editora, 2002 - 391 páginas.

______. Constelação Solidarius: as fendas do capitalismo e sua


superação sistêmica - Passo Fundo: Instituto Superior de
Filosofia Berthier, 2008.

______. Redes de Colaboração Solidária - Construindo uma


nova sociedade. IFiL,Curitiba, março de 2000.
http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/redes1.htm.

______. Artigo: Eixos de Luta e a Central de Movimentos


Populares. CMP - Curitiba, PR. Disponível em:
http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/eixos.htm

______. El pensamiento filosófico brasileño. Publicado em:


Dussel, Enrique, Eduardo Mendieta y Carmen Bohórquez

194
(editores). El pensamiento filosófico latinoamericano, del
Caribe y "latino" (1300-2000). Historia, corrientes, temas y
filósofos. México, CREFAL / Siglo XXI Editores, 2009, p. 495-
517.

______. Viver para consumir ou consumir para viver?


Entrevistador: Jornal Mundo Jovem. Entrevista na edição 320,
setembro de 2001. Porto Alegre, RS. Disponível:
http://www.pucrs.br/mj/entrevista-09-2001.php. Acesso em 17
jun. 2012.

______. Emmanuel Lévinas e a Alteridade. Revista


Filosofia 7(8):23-30 abr 94. Curitiba, PUC-Pr.Disponível em:
http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/
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______. Fome Zero e economia solidária: o desenvolvimento


sustentável e a transformação estrutural do Brasil. IFiL, Instituto
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fomezero.pdf.

______. (Org.) Movimento Popular e Subjetividade - A


Revolução do Cotidiano. Coleção Cadernos de Textos, N.10.
CEFURIA, Curitiba, 1991. p. 3-19

______. Redes de Colaboração Solidária & Tecnologia da


Informação. IFiL. Dezembro, 2000.
http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/tecnologia.htm

______. Redes de Economia Solidária. Entrevistador: Prof.º


Dimas Floriani. América Latina Viva – Associada UFPR.

195
Programa de entrevistas da Casa Latino Americana em parceria
com a TV da Universidade Federal do Paraná. Entrevista de
07/06/2011. Duração: 29M18S.
http://ufprtv.wordpress.com/2011/06/08/america-latina-viva-
070611/

______. Uma Introdução Conceitual às Filosofias de Libertação.


Revista Libertação – Liberación – Instituto de Filosofia da
Libertação. Curitiba, Paraná, Brasil, nº1, 187 p 25 -80, 2000.
Disponível:
http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/umaint.htm

NUNES, Débora. Incubação de empreendimentos de economia


solidária: uma aplicação da pedagogia da participação. São
Paulo: Annablume, 2009,350p.

SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo:


Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

Tygel. Daniel, Eu vejo a Economia Solidária como uma escola


na construção de uma outra sociedade. Entrevista concedida ao
Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FEBS em 15 de
novembro de 2011. Acesso: 12.12.2012. Disponível em:
http://www.fbes.org.br/index.php?option=com_content&task=vi
ew&id=6569&Itemid=62

196
VIOLAS E CONGADAS:
aprender para a vida

Vívian Parreira da Silva43


Aida Victória Garcia Montrone44

Introdução

O presente artigo apresenta a experiência de uma


inserção45 realizada junto ao grupo de violeiros da cidade de São
Carlos denominado Rancho do Abacateiro. O texto busca
dialogar também com a pesquisa de mestrado concluída no ano
de 2011. Esta pesquisa teve como objetivo compreender os
processos educativos decorrentes na Prática Social da Congada,
manifestação cultural de matriz africana. Este diálogo é
proposto com vistas a articular estas duas experiências de
pesquisa em educação realizadas junto a Práticas Sociais que

43
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos na Linha de Pesquisa Práticas Sociais e
Processos Educativos.
44
Professora Associada da Universidade Federal de São Carlos no
Departamento de Metodologia de Ensino
45
.Compreendemos inserção como a participação em um grupo, com o
objetivo de compreender como os processos de educar e educar-se acontecem
dentro do coletivo, e ainda estabelecer um diálogo tendo como premissa a
produção de conhecimento de maneira coletiva e dialógica. Esta participação
é feita por meio de um acordo prévio entre as pesquisadoras e os (as)
integrantes deste grupo.

197
ensinam por meio de Processos Educativos relacionados a
memória, oralidade, ancestralidade e corporeidade.

O tema central abordado foram os processos educativos


decorrentes de diferentes vivências em duas Práticas Sociais,
percebendo os modos de educar e educar-se nas relações que se
estabelecem em diferentes comunidades de trabalho sabendo
que os processos de educar e se educar acontecem não somente
no ambiente escolar, nos educamos em práticas distintas no
nosso cotidiano.

Para avançarmos neste caminho é importante que


compreendamos o que são Práticas Sociais, como elas se
constituem e quais podem ser seus papéis na valorização das
diversas maneiras de aprender e ensinar, ou seja dos Processos
Educativos gerados por elas.

Práticas Sociais decorrem de e geram interações


entre os indivíduos e entre eles e os ambientes
natural, social e cultural em que vivem.
Desenvolvem-se no interior de grupos, de
instituições, com o propósito de produzir bens,
transmitir valores, significados, ensinar a viver e a
controlar o viver; enfim, manter a sobrevivência
material e simbólica das sociedades humanas.
(OLIVEIRA et al 2014, p. 33).

Considerando que as práticas sociais são capazes de


repassar conhecimentos, valores, tradições, propor e executar
transformações na estrutura social, garantir direitos sociais e
culturais, é perceptível que a linha de pesquisa Práticas Sociais e
Processos Educativos, preza pela formação de pesquisadores e

198
pesquisadoras enquanto sujeitos que trabalham juntos e por isso
se humanizam e se afirmam enquanto cidadãos e cidadãs. Neste
aspecto vale a pena enfatizar a diversidade dos temas de
pesquisa envolvidos nesta linha , todos estes temas investigados
a partir dos Processos Educativos envolvidos em Práticas
Sociais, nos apontam caminhos para reconhecermos a
importância dos processos de educar e educar-se também fora
do espaço escolar, e como estes Processos Educativos podem
nos auxiliar em nossas práticas educativas dentro da escola.

Acreditamos que em todas as práticas sociais existem


processos educativos, enfatizando a ideia de que nos educamos
sempre em nossas relações cotidianas. De acordo com Paulo
Freire, pensador e educador importante para pensarmos a
educação no Brasil, “ninguém educa ninguém, ninguém se
educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados
pelo mundo” (FREIRE, 2005, p. 78).

Estas reflexões permitem compreender, dentro das


Práticas Sociais onde nos inserimos, que devemos estar
dispostas às experiências que vivenciaremos ali, permitindo e
buscando a formação do vínculo, sem perdermos de vista que o
nosso saber acadêmico não é o melhor tampouco o único saber
que deve ser valorizado, devemos considerar e respeitar o saber
de experiência feito dos sujeitos colaboradores de nossa
pesquisa aprendendo e interagindo de forma a experenciar a
convivência e as relações que são estabelecidas. Nestas
pesquisas nossa intenção não é nos “desenraizar” nem a nós nem
ao outro mas permitir que haja troca, nos propondo ao diálogo
respeitoso, em busca de termos o outro, ou os outros como

199
critério,46 para que possamos nos propor a compreender as
diferenças a partir de uma perspectiva solidária.

Deste modo ao escolher este caminho de estudo e


pesquisa precisamos, nós pesquisadores e pesquisadoras,
enquanto seres em formação e seres de transformação tomarmos
consciência da realidade em que vivemos. Esta conscientização,
vai ao encontro do que propõe Fiori, ao dizer sobre tomarmos
parte de nossa história, tomarmos ela em nossas mãos,
protagonizá-la para que assim possamos nos libertar (FIORI,
1986). A conscientização para a qual Fiori nos chama a atenção
está relacionada com a práxis que nos coloca em relação com o
outro e esta práxis deve ser o espaço gerador do conhecimento
da realidade onde nos fazemos continuamente, e por meio desta
conscientização-educação com a qual devemos estar
comprometidas, buscamos a plenitude da condição humana, ou
como aponta FREIRE (2008) a nossa condição de ser mais.

A partir desta perspectiva, é preciso nos percebermos


enquanto participantes ativas e críticas na construção contínua
dos processos que constroem a nossa realidade, formam nossa
vida e nosso mundo. Para isso podemos e devemos lutar para as
transformações, nos reconhecendo enquanto sujeitos capazes de
transformar a realidade, visto que somos seres condicionados
por uma realidade opressora, mas não seres determinados por
esta (FREIRE, 2005).

46
Esta expressão é retirada de um artigo da Professora Stella Araújo,
pesquisadora colaboradora da Linha de Práticas Sociais e Processos
Educativos. O artigo se intitula: Exterioridade: o outro como critério
ARAÚJO – OLIVEIRA 2014. p. 47 in: OLIVEIRA et al 2014.

200
Em relação a nossa reflexão crítica sobre a realidade na
qual estamos inseridas e o conhecimento sobre as nossas
diversas culturas, Dussel nos ajuda a compreender alguns
detalhes das tramas que envolvem nossos dramas históricos
quando aponta reflexões acerca das referências que temos e que
nos são dadas e mostradas, sobre o mundo em que vivemos. De
acordo com o autor muitas delas nada têm ou pouco tem a ver
com nossa forma de vida.

Sobre a cultura popular e mestiça, latino-americana,


pesa o juízo que o colonizador faz dos colonizados:
decide que a preguiça é constitutiva da essência do
colonizado [...]. [Mas] o colonizador acrescenta,
para não se entregar à solicitude, que o colonizado é
um ignorante perverso, de maus instintos, ladrão e
um pouco sádico, legitima ao mesmo tempo sua
polícia e sua justa severidade. (DUSSEL, 1982 p.
163).

Ainda em acordo DUSSEL (1982), o desconhecimento e


a desvalorização da cultura popular é a negação de nossa própria
história e tradição, e ainda cultiva a alienação daqueles que
constituem uma elite minoritária, que tem acesso às instituições
educacionais – o que o autor identifica como cultura ilustrada - e
provavelmente irá reproduzir os mesmos mecanismos de
alienação e dominação em relação ao povo.

Portanto, é importante que nos perguntemos onde


estamos inseridas e como se dão as relações hierárquicas de
dominação e como são justificadas, para que possamos ter um
pensamento crítico acerca da realidade e assim possamos
questioná-la sem nos tornarmos meros “depositários” ou

201
“vasilhas” para os valores e visões de mundo que nos são
impostos.

Então, faz-se necessário que nos recriemos também neste


processo com a sabedoria que temos, com aprendizados que
trocamos, que voltemos à tradição e reconheçamos nela nossas
histórias, nossos antepassados e possamos sempre saber que
somos seres de transformação em transformação.

Deste modo percebemos que as realidades populares são


ignoradas em todos os seus aspectos, portanto, é imprescindível
que estejamos dispostas a nos conhecermos e reconhecermos
enquanto latinos americanos pertencentes a culturas diversas e
não piores como os colonizadores nos impuseram e nos impõem
até hoje.

O Rancho do Abacateiro e o Terno de congado Marinheiro


de São Benedito: violas e tambores nos contam nossas
histórias.

“ser doutor é fácil, o difícil é ser caipira...” 47

O Rancho do Abacateiro é constituído por um grupo de


violeiros48 que há cerca de vinte e cinco anos tem esta prática na

47
Trecho da música Capiau de Tião do Carro e José Caetano Erba.
48
Os participantes dos encontros no Rancho do Abacateiro, tocadores de
viola, se denominam violeiros. Rosa Nepomuceno estudiosa da música
caipira faz uma consideração sobre os violeiros dizendo que: “Sua arte é o

202
cidade de São Carlos. O grupo se reúne aos domingos por volta
das dezoito horas na casa de Sr. Caçador49 que fica no bairro
Vila São José bem perto da praça Ayrton Senna. Hoje os
encontros acontecem na garagem da casa onde existe uma placa
com os dizeres: Rancho do abacateiro : silêncio na hora do
poema e cantoria. Nesta placa de madeira também existe o
desenho de um pé de abacate relembrando os tempos quando
existia de fato dois pés de abacate no quintal da antiga casa onde
morava o irmão de Caçador. Cerca de doze violeiros se
encontram aos domingos para cantarem e tocarem viola50.

Os primeiros cantos, na viola, foram os da


catequese. Misturando melodias portuguesas às dos
índios, crenças cristãs às danças pagãs surgiram
ritmos e gêneros como o cururu e o cateretê. Ao som
da viola se aqueceu o caldeirão de raças e culturas,

resultado da grande mistura da cultura negra dos escravos que vieram para
trabalhar nas minas de ouro com a dos portugueses, dos tropeiros do sul e
caboclos da terra. Batuques, congadas e folias de reis, do divino, de São
Miguel, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e de um tanto de santos,
além estimadíssimo São Gonçalo, protetor dos violeiros, ainda são
freqüentes.” (NEPOMUCENO, 1999 p.31). Para saber mais consultar:
Música Caipira, da roça ao rodeio. Nepomuceno, Rosa 1999.
49
Os nomes com os quais vou me referir aos violeiros colaboradores da
pesquisa são os nomes adotados por eles nas duplas sertanejas como por
exemplo: Pirangueiro e Caçador etc. Esta forma de apresentação foi
combinada anteriormente com os violeiros. E adotaremos “poeta” para falar
sobre o poeta que também participa do Rancho do Abacateiro declamando
poesias nos encontros dominicais.
50
Instrumento de cordas análogo ao violão na forma, e à guitarra no som, com
dez ou doze cordas dispostas duas a duas. Segundo Nepomuceno: “esculpida
num toco de pau, com dez cordas de tripa e toscos cravelhais, deu forma às
melodias e cadência às poesias que aos poucos definiram o perfil musical do
povo da terra. (ibid p.55).

203
cantaram portugueses e tupis e foram embaladas as
crianças mamelucas. (NEPOMUCENO, 1999).

O grupo que se reúne aos domingos no Rancho do


Abacateiro para as cantorias é aberto, não existe uma regra para
entrar e participar ou mesmo para apreciar então, todos os
domingos se juntam pessoas apreciadoras das cantorias para ver
e ouvir os violeiros e a poesia que é declamada pelo Poeta
participante do grupo.

Aos domingos no Rancho do Abacateiro encontramos


cantorias, poesias, acordes de viola, violão, violeiros, o público
formado por jovens e velhos e a calorosa recepção por parte de
todos que ali se juntam.

A origem do grupo se deu segundo Sr. Caçador, violeiro


coordenador do grupo, quando sua família que morava no meio
rural se mudou para a cidade. Seu pai tocava viola e seu irmão
mais velho também e ele “gostava mesmo era de caçar” dai o
apelido para a formação da dupla com o irmão mais velho. Sr.
Caçador também, além da prática da caça, tocava viola junto
com seu pai que foi quem o ensinou. Com o passar do tempo e a
convivência na cidade Sr, Caçador, seu pai e seu irmão foram
conhecendo outros violeiros na cidade e a prática de se juntarem
nas tardes de domingo para cantar foi se tornando presente em
suas vidas. Todos os domingos no fim da tarde se juntavam em
frente a casa do irmão de Caçador, que morava bem perto da
casa onde hoje acontecem os encontros, e quando o sol ficava
muito forte iam para debaixo dos pés de abacate que tinha no
quintal da casa.

204
O irmão de Caçador construiu no fundo do quintal
próximo aos pés de abacate um “ranchinho” de madeira e lona
para guardar as ferramentas de trabalho. Segundo Caçador nos
domingos em que se encontravam para tocar e cantar por acaso
chovia todos os violeiros e participantes do grupo corriam para
debaixo do rancho onde ficavam as ferramentas. De acordo com
Caçador: “a gente ficava com dó de entrar lá dentro da casa e
sujar por que era daqueles pisos vermelhos e a gente tava com
os pés cheios de terra, então a gente corria lá pro “ranchinho” e
ficava lá tocando ai por isso é que ficou: Rancho do
Abacateiro.”.

Passaram-se os anos e o irmão de Caçador faleceu,


venderam a casa e os pés de abacate foram cortados e o
“ranchinho” desmanchado. Caçador então decidiu continuar os
encontros na garagem de sua casa onde até hoje acontecem os
encontros do Rancho do Abacateiro. Segundo Caçador, depois
de conversarmos sobre a importância da existência desta prática
na cidade, ele disse que decidiu continuar os encontros em sua
casa por que “a gente gosta e não deixa morrer, são poucos que
seguram a tradição” 51.

A congada é uma manifestação que resiste, transforma e


ensina. Essa festa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e
a São Benedito é uma mistura de sentidos, cores, sons, homens,
mulheres, crianças, devoção, dança, convivências,

51
Trecho Roda de conversa Rancho do Abacateiro. Todas as rodas de
conversa realizadas em ambos os grupos foram transcritas assim como as
observações registradas em diário de campo, todo este procedimento se
enquadrou nas exigências do Comitê de Ética da UFSCar. Os termos de
consentimento livre e esclarecido se encontram em poder da pesquisadora e
dos colaboradores e colaboradoras.

205
cumplicidades, lutas, afirmações, ocupação de espaços,
contestações, tensões, construções e desconstruções; enfim, tudo
isso costurado pela fé. Essa prática social pode ser entendida
como um ritual que transfigura o papel da vida cotidiana. A
festa é um momento em que homens, mulheres, jovens, velhos e
crianças passam por um processo de reafirmação de identidades,
no qual as(os) congadeiras(os52) demonstram prazer, alegria e
satisfação, ao evidenciarem sua tradição e sua fé por meio dos
corpos dançantes, das músicas, dos enfeites, das coreografias, de
reis e rainhas nos cortejos da congada. (SILVA, 2011).

O Terno Marinheiro de São Benedito é um dos ternos


que compõem uma grandiosa festa da Congada realizada em
uma cidade do interior de Minas Gerais. O grupo conta com
cerca de duzentos e cinquenta participantes, e além dos
compromissos do grupo durante a festa da congada que ocorre
todos os anos no segundo domingo de outubro, durante o ano o
grupo participa de atividades como apresentações culturais em
outras cidades, visitas a outros ternos de congada da cidade e
região, torneios de futebol, novenas e algumas festividades com
o objetivo de levantarem renda para o grupo arcar com as
despesas da festa.

Foi possível conhecer brevemente os grupos com os


quais as pesquisas puderam ser realizadas, sendo que as
tradições apesar de originariamente serem de diferentes matrizes
pensando nas heranças culturais envolvidas, a europeia e a
africana, comungam de visões de mundo que se complementam
e dialogam com suas peculiares e similaridades.
52
Se referem aos participantes da congada, eles e elas se pronunciaram
favoravelmente a presença dos seus nomes verdadeiros na escrita da
dissertação de mestrado e em trabalhos frutos da pesquisa.

206
Procedimentos metodológicos e os caminhos apontados no
aprender junto.

Realizamos a inserção no grupo Rancho do Abacateiro a


fim de compreendermos os processos educativos decorrentes
naquela prática. Com o mesmo objetivo, foi realizada a pesquisa
junto ao Marinheiro de São Benedito.

Para realização da pesquisa junto ao Rancho do


Abacateiro, foram realizadas algumas inserções onde
conversamos com o “líder” do grupo bem como com os outros
participantes do encontro, estas conversas se deram no momento
da cantoria a também em momentos fora do horário e do dia do
encontro. Todas as idas ao encontro de domingo foram
registradas em um diário de campo onde foram registradas as
impressões acerca desta prática social.

A aproximação com o grupo se deu de maneira amistosa.


Sr. Jairo, violeiro da cidade que também faz parte do Rancho do
Abacateiro informou da existência do grupo, fez a “ponte” entre
eu, Caçador e o grupo de violeiros. Depois de um contato
telefônico conversei com Sr. Jairo e Sr Caçador pedindo
permissão para visitar o grupo, depois desta conversa
combinamos uma visita para conversarmos melhor e eu poder
explicar os objetivos da pesquisa.

No domingo marcado nos encontramos na praça Ayrton


Senna me apresentei ao grupo disse sobre a pesquisa e eles
concordaram em participar e me deram as boas vindas. Me
contaram histórias sobre algumas duplas da cidade, e logo foi se
formando a roda para a cantoria.

207
A realização da pesquisa com o Terno de Congado
Marinheiro de São Benedito foi possível pela aproximação já
existente entre eu e alguns participantes do Terno. Apresentei a
proposta da pesquisa primeiramente ao capitão José Pedro e à
coordenadora do Terno, Selma. Fizemos, então, uma conversa, e
expliquei sobre o estudo, seus objetivos e como pretendia
realizar as rodas de conversa e o acompanhamento do Terno
para a coleta de dados. Perguntei a eles se poderiam dar a
permissão para que eu realizasse a pesquisa e se era de interesse
do grupo me receber como pesquisadora. Selma, juntamente
com o capitão José Pedro, mostraram-se favoráveis à proposta,
sugeriram alguns congadeiros e algumas congadeiras e ficaram
de consultar outras pessoas do terno para a colaboração e
participação na pesquisa.

Em ambos os grupos foram realizadas rodas de conversa,


participação nos momentos de encontro dos grupos e
observações registradas em diário de campo. As metodologias
de pesquisa seguiram as mesmas inspirações: pesquisa
qualitativa e como estratégia de investigação a pesquisa
participante. Em ambos os casos a pesquisa participante se faz
pertinente, já que este método:

viabiliza a participação da comunidade, por meio da


interação entre pesquisadora e colaboradoras(es) na
análise da realidade na qual essa comunidade
pesquisada está inserida (...) Isso só é possível por
meio do diálogo e do respeito presentes no processo
da pesquisa participante. Portanto, é uma atividade
de pesquisa educativa voltada para a ação, na qual
todas as pessoas envolvidas trabalham, aprendem e

208
ensinam com base nas trocas que acontecem durante
o processo de pesquisa. (SILVA, 2011.p. 103).

Em relação a inserção no Rancho do Abacateiro, o tempo


de convívio foi menor, mas isto não descaracteriza nem diminui
o valor dos Processos Educativos vivenciados e observados por
mim na relação com o grupo. O diálogo foi o fio condutor destas
duas aproximações, e mesmo com o fim dos estudos a relação
de amizade se fortaleceu e continua nos tempos de hoje.

Uma pedagogia de criação solidária de saberes


sociais em que a palavra-chave não é o próprio
“conhecimento”, mas é, antes dele, o “diálogo”. O
diálogo de e entre ideias e experiências de pesquisas
participantes que estende a um diálogo entre grupos
e povos, para quem a busca do conhecimento de si e
de sua realidade é parte do desafio de sonhar a
possibilidade de virmos a transformar aos poucos o
mundo do mercado em que vivemos em direção ao
mundo da vida (BRANDÃO, 2006, p. 38).

Violas e tambores

Conversando com os violeiros sobre o meu papel na


inserção pude contar um pouco do meu envolvimento com a
cultura popular em particular pelas danças brasileiras e pelos
instrumentos de percussão que toco. Na congada a relação de
proximidade já era mais sólida, como apontei anteriormente,
devido a encontros em diferentes espaços para realização de
trabalhos como apresentações culturais, festas dentre outros.

209
Então fui costurando entre congadeiros e violeiros as
experiências de vida que me constituem e atentamente ouvi
tantas histórias, causos e rimas improvisadas que me ensinaram
muito, desde os métodos e técnicas de como afinar uma viola até
as rimas e histórias dos tempos de outrora, tempos que nem Sr
Caçador nem capitão José Pedro sabiam que as universidades
públicas são espaços abertos onde qualquer pessoa pode
desfrutar.

Em um determinado encontro com os violeiros, um dos


participantes do grupo cantou uma música que me chamou a
atenção, em um trecho a música dizia que “ser doutor é fácil o
difícil é ser caipira”. Fiquei refletindo sobre a música e anotei no
diário, e perguntei para um participante que música era aquela.
Ele me respondeu que se chamava Capiau.

Posteriormente em conversa com a Professora


Petronilha, em orientação para os caminhos da inserção, ela me
chamou a atenção para aspectos da memória e da preservação da
cultura imaterial relacionados à prática social do Rancho do
Abacateiro e disse também que esta música poderia ser um
recado e me orientou a perguntar o que é ser caipira para os
participantes desta prática.

Posteriormente em uma longa e prazerosa conversa com


Caçador na Praça Ayrton Senna, a Praça Ayrton Senna, onde se
localiza a casa de Caçador, o Rancho do Abacateiro, é cheia de
árvores e bancos, lugar bem propício para um descanso e um
passeio no fim da tarde. Caçador me contou que a maioria das
árvores existentes lá foram plantadas por ele, seu irmão e
amigos. Foi com a prosa sobre as árvores que Sr. Caçador
começou a me ensinar sobre o próprio andamento que este

210
trabalho propõe: a valorização e o reconhecimento do saber de
experiência presentes na cultura popular.

A prosa foi seguindo e novamente eu disse a ele sobre a


pesquisa, o espaço do qual eu parti para realizar este estudo ele
me disse: “é eu já trabalhei lá na universidade no restaurante
universitário, eu gostava de lá um povo educado trata a gente
muito bem”53. Depois desta fala nossa prosa seguiu para o
caminho da educação, a importância de estudar... “na minha
época os pais não tinham o poder de educar os filhos, por
exemplo eu aprendi tocar viola de ouvir meu pai tocar, hoje não,
hoje tem escola que ensina a tocar.” Perguntei a ele então sobre
a música Capiau e em seguida sobre o que era ser caipira.
Depois disso Caçador me deu uma aula sobre as diferenças dos
saberes e o respeito que devemos ter pelo conhecimento do
outro.

Caçador começou assim: “caipira entende do mato,


caipira é pessoa simples, sem malícia, ser doutor o povo ensina
agora ser caipira ninguém ensina. Ninguém quer voltar no
tempo. Cada um é doutor na sua área, o caipira respeita o outro
é simples, escuta... Por exemplo você é doutora na sua área e eu
sou na minha.”54

José Pedro, traz algumas considerações parecidas com


Caçador quando diz: “Para mim o Marinheiro é uma escola que
ensina e ensina muito, sem colocar lá no quadro negro, mas
ensina de experiência, de vida, é uma escola. Hoje, eu considero
o Marinheiro como uma faculdade, e é mesmo. Eu, da minha
vida, dos quinze anos que eu estou aqui, e eu estou com 44 anos,
53
Trecho conversa com Sr. Caçador .
54
Conversa com Caçador Violeiro

211
minha vida profissional, minha vida conjugal, família, eu digo
que eu aprendo e aprendi muito”.55

Em ambas as falas, é possível perceber no convívio com


os violeiros do abacateiro e com os congadeiros e congadeiras,
que ensinamos e aprendemos sempre, e que os saberes escolares
não são os únicos e prontos conhecimentos que nos ajudam na
vida, na relação com os outros.

Outra questão interessante que merece ser apontada é a


relação dos saberes com a experiência, com a prática, com o
fazer. Como disse Sr Caçador, aprendeu a tocar viola ouvindo
seu pai tocar. Em outra conversa com José Pedro, ele conta uma
passagem de Dona Gessy, mãe de Selma, a coordenadora do
Terno. “A mãe Gessy, todo mundo considera ela muito mais do
que uma mãe, ela era aquela pessoa que sentava aqui e falava:
“Vem aqui, meu filho”. Dava conselho pra um, pra outro,
contava a história do Terno, como que era. Ela era uma grande
compositora, ela não escrevia, mas fazia música. ” 56

Neste sentido é possível compreender, como apontado


anteriormente que os Processos Educativos vão além das
técnicas que podem demonstrar domínio de saberes no universo
escolar como é o caso de ler e escrever. Aqui podemos ver que,
apesar de não terem aulas, apesar de não saberem escrever,
tocam viola, fazem música, repassam conhecimentos. Estes
conhecimentos são repassados e são vivenciados por meio da
experiência.

55
Conversa com Capitão José Pedro Congadeiro
56
Conversa com Capitão José Pedro Congadeiro

212
O saber de experiência é único, bem como a experiência
também é única e singular, e esse saber de experiência deve ser
respeitado, considerado e reconhecido, já que nos propomos a
construir um conhecimento em que não seguimos as nomeações
dos grandes marcos, e sim buscamos construir nossa história e
nos reconhecermos como protagonistas dessa construção.

O acontecimento é comum, mas a experiência é para


cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível
de ser repetida. O saber da experiência é um saber que
não pode separar-se do indivíduo concreto em quem
encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora
de nós, mas somente tem sentido no modo como
configura uma personalidade, um caráter, uma
sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana
singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética
(um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por
isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-
se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode
aprender da experiência de outro, a menos que essa
experiência seja de algum modo revivida e tornada
própria. (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 27)

Assim, os violeiros e os congadeiros e congadeiras nos


mostram diferentes maneiras de ensinar e aprender dentro destas
Práticas Sociais distintas mas que detém conhecimentos,
tradições e valores em comum. Podemos dizer isso a partir do
momento em que falas dos componentes dos dois grupos se
mostram férteis no sentido de nos apontarem pistas que nos
mostram caminhos parecidos. Em ambos os casos não existe um
caminho pronto e acabado, é como a viola, a cada momento que
vai ser tocada precisa de ser afinada, assim como os tambores
das congadas a cada festa precisam ser refeitos, preparados.

213
Como aponta Larrosa Bondía (2002) os acontecimentos podem
ser comuns mas as experiências em cada uma das práticas são
diferentes, mas ainda assim, nesta diferença reconhecemos
aspectos comuns das maneiras de aprender e ensinar em grupos
de cultura popular.

Os Processos Educativos compartilhados e suas


contribuições

Foi possível observar diferentes processos educativos


decorrentes das Práticas Sociais aqui apresentadas. As relações
estabelecidas entre as pessoas são de solidariedade, respeito e
comprometimento. As pessoas se expõem, trocam saberes,
tocam, conversam, ensinam aprendem também por meio do
convívio em grupo pautados, neste caso, no saber popular nas
poesias, cantorias,danças, toques de tambores e histórias de
vida.

Com todas as prosas em todos os dias de encontro que


estive presente no Rancho do Abacateiro e no Marinheiro de
São Benedito, pude aprender e refletir sobre como os Processos
Educativos destas Práticas Sociais acontecem e se relacionam
com o grupo. Em diálogo com Freire quando discorre sobre os
saberes dos educandos e educandas, podemos dizer também
sobre os Processos Educativos presentes nestes dois grupos que:

O respeito a esses saberes se insere no horizonte maior


em que eles se geram- o horizonte do contexto cultural,
que não pode ser entendido fora de seu corte de classe,
até mesmo em sociedades de tal forma complexa em que
a caracterização daquele corte é menos facilmente
apreensível. O respeito, então, ao saber popular implica
necessariamente o respeito ao contexto cultural. A

214
localidade dos educandos é o ponto de partida para o
conhecimento que eles vão criando do mundo. Seu
mundo, em última análise é a primeira e inevitável face
do mundo mesmo. (FREIRE, 2008. p. 78).

Deste modo, nos dois grupos estão presentes processos


educativos que se relacionam com a técnica de tocar e cantar,
com a importância em se manterem vivos os grupos, com a
preservação da memória nas relações intergeracionais, com as
poesias , com as relações que se estabelecem entre os mais
experientes e os menos experientes. Portanto os processos
educativos existentes contribuem também para o
reconhecimento da cultura popular e para a formação das
pessoas que ali estão, valorizando a memória e a história de vida
das pessoas que participam destas Práticas Sociais. “A memória
tece lembranças assentadas na afetividade de acontecimentos
miúdos ou grandiosos, e no impacto e eloqüência que
impuseram a observadores participantes que nestes
acontecimentos se engajaram integralmente”. (GONÇALVES
FILHO, 1998 P. 98).

Todas essas maneiras de se educar dentro dos dois


grupos trazem características do viver em comunidade, em que a
colaboração e o respeito se fazem presentes. A oralidade, a
dança, a poesia são elementos que permeiam as falas das
colaboradoras e dos colaboradores deste estudo e nos mostram
as visões de mundo que constituem o universo da cultura
popular.

Em diferentes Práticas Sociais promove-se a formação


para a vida na sociedade por meio de Processos Educativos que
ali ocorrem, assim tem sido em todas as sociedades em

215
diferentes momentos da história humana. (OLIVEIRA et all
2014).

Pude perceber o quanto as práticas da cultura popular


podem nos ajudar na transformação das nossas práticas
pedagógicas no ambiente escolar. Na cultura popular estão
presentes a valorização do saber de experiência, o respeito ao
tempo de aprendizagem, o erro não como uma forma de
desprezou ou “chacota” mas sim como uma forma de aprender e
ensinar coletivamente mostrando diferentes maneiras de se
adquirir e transmitir conhecimento. Sobre estas reflexões
gostaria de salientar ainda a importância de buscarmos
compreender a pedagogia da cultura popular como visão de
mundo e como maneira de compreendê-lo e transformá-lo.

Considerações Finais

“Sertão- se diz-, o senhor querendo procurar, nunca não


encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o
sertão vem”

João Guimarães Rosa

Ao fim deste trabalho posso afirmar que em diferentes


práticas sociais são construídas muitas formas de ensinar e
aprender. As pessoas se educam no convívio com as outras
cotidianamente. Dessa forma, os processos educativos
compartilhados no presente artigo podem nos auxiliar a refletir

216
sobre os processos de ensino e aprendizagem estabelecidos na
escola e fora dela.

Acredito também que a pesquisa proposta contribui para


nossa formação enquanto pesquisadores e pesquisadoras
comprometidos com o saber crítico e dialógico. Assim,
compreendo que os processos educativos compartilhados nas
práticas sociais contribuem no processo de significação do
mundo para aqueles e aquelas que delas participam. Por isso,
devemos buscar sempre a cidadania como plenitude humana,
lutando por meio da pesquisa em educação, para a construção de
relações sociais mais justas para todos e todas.

Por caminhos diferentes, é possível chegarmos ao


mesmo rio. Tanto no Terno de Congado Marinheiro de São
Benedito quanto no Rancho do Abacateiro, aprendi que: “O
mestre reserva segredos, mas não nega explicação”
(PASTINHA apud ABIB, 2004, p. 62 apud MEIRA, 2007, p.
120).

Este artigo busca contribuir com a pesquisa em educação


na medida em que valoriza e apresenta diferentes maneiras de
aprender e ensinar em dois grupos distintos na perspectiva do
diálogo e do saber de experiência de homens e mulheres que
resistem, educam, ensinam e aprendem tocando, cantando e
convivendo em comunidade.

217
Referências

DUSSEL, Enrique D. A pedagógica latino-americana (a


Antropológica II). In: DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da
libertação latino americana III: erótica e pedagógica. São
Paulo: Loyola; Piracicaba: UNIMEP, 1982.

FIORI, Ernani Maria (1986) Conscientização e educação.


Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. 11(1). jan/jun.
1986. p.3-10.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2008. 12ª ed.

______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.


43ª ed.

LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de


experiência. Revista Brasileira de Educação, jan./fev./mar./abr. 2002.

MEIRA, Renata Bittencourt. Baila Bonito Baiadô: educação, dança e


culturas populares em Uberlândia, Minas Gerais. Tese (Doutorado
em Educação) – Unicamp, Campinas, SP, 2007.

NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira Da Roca ao Rodeio. São


Paulo, Ed 34, 1999.

SILVA. Vivian Parreira da. Do Chocalho ao Bastão: processos


educativos do Terno de Congado Marinheiro de São Benedito –
Uberlândia – MG. Dissertação de mestrado. UFSCar. 149Fls.

218
OLIVEIRA el all. Processos Educativos em Práticas Sociais. São
Carlos. EdUFSCar. 2014.

219
220
FILOSOFIA AFRICANA

221
222
FILOSOFIA AFRICANA TECIDA PELOS SABERES
ANCESTRAIS FEMININOS:
poéticas de encantamento.

Adilbênia Freire Machado57

Da mulher emana a força mágica da criação.


Ela é abrigo no período de gestação.
É alimento no princípio de todas as vidas.
Ela é prazer, calor, conforto de todos os seres humanos na
superfície da terra.

(Paulina Chiziane)

Falar da Filosofia Africana desde a filosofia africano-


brasileira tecida pelos saberes ancestrais femininos demanda
antes de tudo movimento, uma escuta sensível que também é
palavra dita, falada, sentida, portanto, aqui, “o lugar de mero
ouvinte é desautorizado. Nesta literatura / cultura, a palavra que
é dita reivindica o corpo presente. O que quer dizer ação”

57
Doutoranda em Educação Brasileira (UFC), Mestra em Educação (UFBA),
Bacharela e Licenciada em Filosofia (UECE). Faz parte dos grupos de
pesquisa GRIÔ: Culturas Populares, Ancestralidade Africana e Educação
(UFBA), NACE (Núcleo das Africanidades Cearense – UFC) e Rede
Africanidades (UFBA). Assento na Cadeira 39 da Academia Afro-Cearense
de Letras (AAFROCEL). E-mail: adilmachado@yahoo.com.br

223
(WERNECK, 2016, p. 14, prefácio EVARISTO, 2016), desse
modo, convido meus diversos eus em encontros / encantos
diversos e vossos diversos eus com seus / nossos encontros /
encantos diversos a com-partilhar desse texto / fala / escrita...
pois, assim, é possível “fazer existir outro mundo” (idem),
outros mundos, mundos encantados. Diálogos, escrevivências...
modos de ser / viver e lutar contra o racismo, o sexismo... pois,
nada nasce imune às nossas experiências, às nossas vivências
(EVARISTO, 2017), aos nossos sentidos!

Escrevo, então, desde uma perspectiva de que este


diálogo, esta teia é tecida, delineada por um nós, pois
compreendo “que o conhecimento não se constrói no cogito
individual (...), mas sim do diálogo com os outros, mesmo que
aparentemente estejamos a cogitar sozinhos no nosso canto”
(CASTIANO, 2010, p. 44). Escritas que acontecem desde
diálogos com textos lidos / ouvidos, pois a filosofia só é
possível quando a reflexão parte das relações entre pessoas,
ainda que ao final a escrita seja feita por uma única pessoa ela
nunca é uma escrita / fala individual. É desde a reflexão crítica
promovida pelos encontros entre os seres que o conhecimento
acontece, que o saber aparece. Saberes oriundos de nossas
experiências, de nossas inquietudes. A filosofia, como nos diz
Aline Matos (2014, p. 105), reside “sobre um solo reflexivo, que
nos coloca em um constante estado de inquietude diante do que
nos é apresentado, propiciando um confronto conosco mesmo/a
e o Outro, na tentativa de realização plena do humano”. Assim,
“a filosofia não pode se furtar de colocar a si mesma no centro
de suas reflexões, confrontando sua produção de conhecimento,
seu currículo e ensino” (Idem), partindo dessa concepção
colocamos a filosofia em xeque e, assim, colocamos o
colonialismo, o machismo, o sexismo, a negação do Outro, a

224
negação da humanidade do Outro que tanto são no ser/fazer de
nossos velhos novos tempos.

Uma das características da chamada era moderna, como


nos diz a nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí (2004, p. 01), “é a
expansão da Europa e o estabelecimento de hegemonia cultural
euro-americana em todo o mundo. Em nenhum lugar isso é mais
profundo que na produção de conhecimento sobre
comportamento humano, história, sociedades e culturas”, isso
resulta que seus “interesses, preocupações, predileções,
neuroses, preconceitos, instituições sociais, categorias sociais”
(Idem) acabem por dominar a escrita de nossa história, isso
implica em um grande problema que é a “racialização do
conhecimento” (Idem), onde a Europa coloca-se como única
fonte de conhecimento, de cultura, de humaninidade, assim os
europeus (homens brancos) são os únicos capazes de conhecer,
de aprender, colocando o resto do mundo à margem, negando,
inclusive, a capacidade dos povos africanos de adquirir tal
conhecimento (MACHADO, 2011, 2012, 2014). Negando a
própria humanidade de outros povos, especialmente, os
africanos, justificando, assim, a colonização que muitos povos
do continente foram submetidos. Sabemos que o “racismo não é
a falta de informação sobre a/o “Outra/o” – como acredita o
senso comum –, mas sim a projeção branca de informações
indesejável na/o “Outra/o”. (KILOMBA, 2019, p. 117). O
racismo não é estático, ele se molda aos tempos:

Enquanto formas antigas de racismo apelavam para


“raças biológicas”, e para a ideia de “superioridade”
versus “inferioridade” – e a exclusão daquelas/es que
eram “inferiores” –, as novas formas de racismo
raramente fazem referência à “inferioridade racial”. Em
vez disso, falam “diferença cultural” ou de “religiões” e

225
suas incompatibilidades com a cultura nacional. O
racismo, portanto, mudou seu vocabulário. Nos movemos
do conceito de “biologia” para o conceito de “cultura”, e
da ideia de “hierarquia” para a ideia de “diferença”. (Ibid,
p. 112).

Portanto, é fundante que arduamente, cotidianamente,


lutemos para mudarmos essas perspectivas, essa falácia, daí que
“este contexto global para a produção de conhecimento deve ser
levado em conta em nossa busca para compreender as realidades
africanas e de fato a condição humana” (OYĚWÙMÍ, 2004, p.
01), digo que não apenas as realidades africanas, mas também
da sua diáspora e da América Latina, assim como dos povos
indígenas. É necessário, também, mudarmos a perspectiva de
que foram os homens que construíram essa história, pois “o
privilégio do gênero masculino como uma parte essencial do
ethos europeu está consagrado na cultura da modernidade”
(idem). Desse modo, “o uso do masculino genérico para
designar humanidade reduz automaticamente a existência de
mulheres à não existência” (KILOMBA, 2019, p. 108).
Entretanto, nós mulheres também somos força, potência, voz e
ação dentro de todos os processos de construção do
conhecimento, de saberes... Sem a mulher não há vida! Assim,
não apenas a estrutura do conhecimento deve ser mudada, mas
também o modo como tal estrutura é escrita, o vocabulário da
escrita.

Portanto, compreendo ser fundante pensar / criar / fazer


filosofia desde outros lugares de fala, desde existências
coletivas, culturas locais, desde vozes negadas, como as vozes
femininas, numa perspectiva de mudança da estrutura dos
conhecimentos vigentes, dos saberes... Mudanças de
paradigmas, inclusive do próprio modo de se fazer / pensar /

226
criar a filosofia, pois para a cosmoconcepção africana “falar,
dançar, cantar e realizar obras culturais artísticas e intelectuais
singulares marcam a diferença negra em luta pela igualdade:
abram alas para a busca do bem viver! O que vale mesmo é o
intenso sentimento amoroso do existir. No singular e plural”.
(CARNEIRO, 2006, p. 41). Filosofar de corpo presente, focando
a humanidade infinita de todas e todos, sem verdades absolutas,
universais, impositivas, implica-se na compreensão de que as
experiências são universais por ser desde um lugar, experiência
de um povo...

Desse modo, quero falar da filosofia africana delineada


por uma filosofia africano-brasileira, posto esse ser meu solo. A
filosofia africano-brasileira é nosso próprio modo de produzir,
encantar mundos, é nosso diálogo encantado perpassado pela
nossa relação ancestral com África, sem cópias ou pensamentos
distantes de nosso modo de ser / estar no mundo, com reflexões
críticas desde nossas experiências em nosso solo (MACHADO;
OLIVEIRA, 2016). Portanto, intento falar desde essa filosofia
africano-brasileira medida por vozes de mulheres negras. Pois,
falar desde essas vozes é compreender que

Estamos nesse país desde o século XVI. Já é hora de dar


visibilidade à nossa voz. A nossos feitos. Nossos
pensamentos, nossas histórias, trazem a marca do
passado. Trazem um tanto de África – a África idílica
que sonhamos antes da chegada da dor que a invasão
europeia desencadeou. A África de histórias e feitos
milenares que vieram conosco para as Américas. Outras
Áfricas criamos e atualizamos nesta parte do mundo. Em
nosso fazer cotidiano, criamos e recriamos esta África de
nome Brasil. Unificada outra vez no encontro das
mulheres. (WERNECK, 2006, p. 09).

227
Falar de filosofia africana desde o Brasil é compreender
a afroancestralidade que nos perpassa, pois ela é um modo de
ser, de estar no mundo... de tecer a nós mesmas/os e quem está a
nossa volta, pois tudo fala, tudo nos transmite conhecimento,
assim, permitir que a ancestralidade nos guie é aprender com o
cotidiano, com o que está a nossa volta. Com o passado tão forte
em nosso presente, permitindo um futuro.

Essa ancestralidade permite nos compreendermos e essa


compreensão de nós mesmas/os leva à compreensão de nosso
lugar de origem, do lugar de celebração da ancestralidade e isso
renova as vidas de velhos e de novos (VANDA MACHADO,
2013). Essa compreensão é perpassada pela escuta, escuta
daqueles que vieram antes, pois “escuta-se muito para
compreender e aprender a dialogar” (Ibid, p. 60). Essa escuta
delineada pelo silêncio é potência do mesmo. É silêncio para
aprender, para ouvir a si e às demais pessoas que nos ensinam.
Enquanto pesquisadoras, filósofas, é fundante o silêncio como
“portal da tradição oral: é preciso olhar e escutar o silêncio antes
da escrita. É a escrita da fala dos sentidos” (Ibid, p. 20). Não é o
silêncio oriundo da não permissão da fala, como o que foi
imposto pelos “detentores do conhecimento”, o imposto pela
colonização. Esse silêncio é escuta do corpo, um corpo inteiro,
pois

O pensamento africano não separa, não hierarquiza.


Corpo, membro, memória, tradição, sentidos, imaginário,
símbolos, signos, espiritualidade e as vivências
cotidianas, tudo faz parte de uma tradição na sua
multidimensionalidade que não se presta a explicação
reduzida, a categoria que fragmentam sentidos
(MACHADO, 2013, p. 52).

228
A ancestralidade nos ensina que “tudo está no presente.
Todo ensinamento pela história está no presente para ser
entregue em forma de vivências” (Ibid, p. 66), ou seja, todo
ensinamento é processo formativo. Isso implica que a
ancestralidade se atualiza continuamente na própria vivência, na
experiência, na formação pessoal que se faz no coletivo.

Os saberes ancestrais são delineados pelo(s) coletivo(s).


A vida desde a cosmo-percepção africana é delineada pelo
coletivo, onde “o ato de educar passa pela experiência de
preparar a construção de outra geração e a construção de cada
um em particular” (MACHADO, 2013, p. 22). Um viver
coletivo onde a comunidade na qual estamos inseridas(os) é o
lugar que alimenta nossa existência, ela, a comunidade, é “o
espírito, a luz-guia [...], é onde as pessoas se reúnem para
realizar um objetivo específico, para ajudar os outros a
realizarem seu propósito e para cuidar uma das outras” (SOMÉ,
2007, p. 35), é onde “as pessoas vão compartilhar seus dons e
recebem as dádivas dos outros (Idem). Fonte de força, alimento
do espírito, das nossas energias, “...enquanto nos preparamos
para a nossa reexistência negra, somos confortados pelo pulsar
do coração da mãe comunidade”, como nos ensina Vanda
Machado (p.115).

Somos energias criativas e é fundante potencializarmos


nossas energias, harmonizando-as. Pois, como nos diz a
burquinense Sobonfu Somé (2003, p. 48):

ser mulher não significa que a pessoa não tem nada a ver
com a energia masculina. Da mesma forma, ser homem
não quer dizer que a pessoa não tem nada a ver com o
feminino. Vaginas e pênis não são as únicas coisas que
definem nossa natureza sexual. Nossa vida é influenciada

229
pela presença, dentro de nós, das energias masculina e
feminina. É importante que essas energias estejam em
harmonia dentro de nós.

A nigeriana Chimamanda Adichie em seu discurso


“Sejamos todos feministas” (2014, p. 42), diz que “meninos e
meninas são inegavelmente diferentes em termos biológicos,
mas a socialização exagera essas diferenças”, assim ela
pergunta: “e se criássemos nossas crianças ressaltando seus
talentos, e não seu gênero? E se focássemos em seus interesses,
sem considerar gênero?” (Ibid, p. 44). Ou seja, focarmos em um
mundo mais justo para nós, focando nossa humanidade, nossas
energias, garantindo nosso bem-viver, todos os nossos direitos,
igualmente. Focarmos em ensinar as meninas a não anularem
sua personalidade, ensinarmos os meninos a expressarem sua
sensibilidade, sem nos preocuparmos com estereótipos
masculinos e femininos, ditados por uma sociedade que
desumaniza, uma sociedade homofóbica, misógina, machista,
sexista, que não foca nas capacidades das pessoas. Se assim
fizéssemos possibilitaríamos um mundo mais justo, mais
humano (Idem). É fundante conhecermos / dialogar com
histórias diversas, pois somos diversidade... Hoje mais do que
nunca é fundante ouvirmos as histórias que por tanto tempo
foram silenciadas, ouvirmos nós mulheres... ouvir o feminino
que há em cada uma/um de nós.

Ter o mundo perpassado pelo feminino é possibilitar


outro(s) mundo(s), mais justo delineado por uma poética do
bem-viver. Mundo(s) oriundo(s) do viver bem, viver respeitando
a subjetividade de cada um/a, valorizando-as, construindo com,
ouvindo, sentindo, aprendendo-com, dançando, cantando,
valorização infinita da humanidade de cada um/a de nós, pois

230
“falar, dançar, cantar e realizar obras culturais, artísticas e
intelectuais singulares marcam a diferença negra em luta pela
igualdade [...]. O que vale mesmo é o intenso sentimento
amoroso do existir” (CARNEIRO, 2006, p. 41). Poesia como
potência do existir, do bem-viver!

É sabido que a força das mulheres africanas e da


diáspora perpassa o tempo e o espaço, é uma força presente no
cotidiano, no nosso modo de falar, dançar, cantar, ouvir, fazer,
em nosso paladar, nas religiões de matriz africana, no nosso
modo de acolher, ser. Nesse sentido a moçambicana Paulina
Chiziane (2016, p. 08) compara a mulher à terra, pois a terra “é
o centro da vida. Da mulher emana a força mágica da criação.
Ele é abrigo no período da gestação. É alimento no princípio de
todas as vidas. Ela é prazer, calor, conforto de todos os seres
humanos na superfície da terra”. É aquela que usa suas lágrimas
para lavar o caminho a ser trilhado, usa suas lágrimas para seu
fortalecimento, sofre, engana-se, adoece, mas luta
continuamente para potencializar sua / nossa existência, pois
somos plural, somos o útero do mundo: insubmissas lágrimas de
mulheres (Conceição Evaristo).

In-conclusões em constru-ação

Refletir / criar / pensar a filosofia africano-brasileira


desde o olhar feminino é construir desde a ética do cuidado, pois
as experiências das mulheres negras em nosso solo “enraizaram
o ensinamento da ética do cuidado” (CARNEIRO, 2006, p. 35),
onde

o reconhecimento da alteridade é ensinamento. Mas,


o corpo também manipula e é manipulado,

231
explorado, hostilizado por outro. A rebeldia
individual é uma forma corporal feminina de buscar
liberdade, sempre afirmando a positividade da luta e
do sentido da existência (Idem).

É importante frisar que entendemos nossa diversidade,


pois “não somos todas iguais, nem somos completamente
diferentes. Contrariando as vozes que o racismo e o machismo
propagam, afirmamos aqui nossa Humanidade. Nossas
similitudes portanto”. (WERNECK, 2006, p. 09). Assim,
falamos desde vozes e experiências plurais que tem o ser
feminino como fundante... Mulheres encantadas e lutadoras,
mulheres que cuidam, que sabem que cuidado não é submissão,
portanto, são vozes encantadas que buscam potencializar o bem-
viver, criar mundos, outros mundos, onde a ampliação e
afirmação da liberdade, da ancestralidade são preponderantes.

É importante compreendermos que o feminino está em


tudo, em todos os lugares, é a possibilidade de criar, de nascer, é
escuta, sensibilidade, motor da existência, inclusive, do próprio
mundo, é resistência! O feminino é a energia do encantamento,
pois é quem permite o existir, com ética, amorosidade, cuidado,
numa relação contínua com o Outro, é o que dá vida, permite a
vida, dá sentido, assim, é a ancestralidade perpassando e criando
sentidos. Implicação, resistência, re-existência...

Mãe Stella de Oxóssi nos diz que “o arbítrio, a escolha é


de cada ser humano. Por isso é preciso a atenção para o
equilíbrio, a harmonia e a paz” (PETROVICH; MACHADO,
2004, p. 82). É necessário a implicação com a humanidade, pois

232
uma pessoa comprometida é aquela que é útil, pois
cumpre a função que lhe foi destinada, e por isto
pode seguir em frente, distinguindo-se da massa
uniforme; uma pessoa comprometida é especial, pois
já encontrou sua especificidade, tornando-se, assim,
imortal. É considerado imortal todo aquele que fez
ou faz de sua vida uma obra a ser lida, a ser
internalizada. (STELLA DE OXÓSSI, 2013).

Reinventar nosso modo de ser / pensar / sentir é


implicar-se com a construção de um mundo melhor onde
sejamos valorizadas/os em nossas singularidades para que assim
possamos somar no coletivo. Encontrar outras narrativas, outras
falas, é preponderante, especialmente quando são falas negadas,
silenciadas. Ouvir, ler, sentir essas vozes é realizar uma reflexão
epistemológica intensa, profunda, um diálogo entre saberes
diversos, científicos e não-científicos, numa interação entre
culturas diversas, experiências outras que perpassam nossa
própria experiência. Conhecimento e cultura, experiências,
sensibilidades e epistemologias em comunhão... É fundante
compreender que a construção epistemológica se dá desde um
local, uma cultura, não é um pensamento global para o local, é
do local para o global, pois “o mundo e a comunidade somos
nós. Para compreender o mundo é preciso compreender a nós
mesmos e nossas vivências individuais e coletivas”
(MACHADO, 2013, p. 49). Pensar / criar / tecer a filosofia
africana desde os saberes ancestrais femininos é implicar-se em
uma relação intima com nossa humanidade, valorizando-nos e
nos reconhecendo como potência para a vida e assim reconhecer
a potência que existe em cada ser humano, reconhecer e
contribuir para que esse Outro também reconheça a potência que

233
há em si e no Outro... Somos como uma teia de aranha, estamos
todas interligadas!

Que nossas buscas potencializem o feminino que há em


nós, potencializando as estéticas de sentidos do encantamento,
da implicação com mundos melhores, com o bem viver... Que a
afroancestralidade e o encantamento re-inventem nosso modo de
ser / pensar / sentir / agir, modo de implicar-se com a construção
de um mundo melhor onde sejamos valorizadas/os em nossas
singularidades para que assim possamos somar no coletivo,
demarcando conhecimentos afrorreferenciados.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feminista.


Tradução de Cristina Baum, Companhia das Letras, São Paulo,
2014.

CARNEIRO, Fernanda. Nossos Passos Vêm de Longe. In:


WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa; WHITE, Evelyn C
(Orgs). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos
vem de longe. 2. Ed. – Rio de Janeiro: Pallas / Criola, 2006.

CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher... por uma nova visão do


mundo. 2.ed. Belo Horizonte: Nandyala, 2016.

EVARISTO, Conceição. Destaque – Entrevista. Revista


Conexão Literatura, Junho / 2017, Nº 24. Disponível em:
http://www.fabricadeebooks.com.br/conexao_literatura24.pdf

234
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação – episódios de
racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1. Ed. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019.

MACHADO, Adilbênia Freire. Ancestralidade e Encantamento:


filosofia africana mediando a história e cultura africana e afro-
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da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2014.

MACHADO, Adilbênia Freire. Filosofia Africana para


Descolonizar Olhares: Perspectivas para o Ensino das Relações
Étnico-Raciais. # Tear: Revista de Educação, Ciência e
Tecnologia, Canoas, v.3, n.1, 2014. Acesso em 24 de junho de
2014a.

MACHADO, Adilbênia Freire. Filosofia Africana e Currículo:


Aproximações. Revista Sul-Americana de Filosofia e
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MACHADO, Adilbênia Freire. Linguagem e Identidade


Africana e Afrobrasileira. Fólio – Revista de Letras, Vitória da
Conquista, Vol.3, N.2, 2011. Disponível em:
http://periodicos.uesb.br/index.php/folio/article/viewFile/619/77
2

MACHADO, Adilbênia Freire; MATOS, Patrícia Pereira.


Ancestralidade africana – um mundo de ser, estar e cuidar: uma
aprendiz e uma iniciada. In: SILVEIRA, Ronie Alexandro Teles
da; LOPES, Marcos Carvalho (orgs.). A religiosidade brasileira
e a filosofia. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016.

235
MACHADO, Adilbênia Freire; OLIVEIRA, Eduardo David.
Filosofia Africana-Brasileira: ancestralidade desregrada,
mundos encantados. In: NUNES, Cícera; CUNHA JR.
Henrique. ANAIS: VII Artefatos da Cultura Negra –
Cosmovisão Africana e Afrobrasilidades: Cultura, Religiosidade
e Educação. Urca – Crato, 2016.

MACHADO, Vanda. Pele da Cor da Noite. Salvador:


EDUFBA, 2013.

MATOS, Aline. A exclusão intelectual do pensamento negro.


Pólemos, Brasília, vol. 3, n. 5, julho 2014. Disponível em:
http://periodicos.unb.br/index.php/polemos/article/viewFile/9722/8257

OLIVEIRA, Eduardo D. Filosofia da ancestralidade: corpo e


mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora
Gráfica Popular, 2007.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os


fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio
das epistemologias africanas. Tradução para uso didático de:
OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The
Eyrocentric Foundations of Feminist Concepts and the challenge
of African Epistemologies. African Gender Scholarship:
Concepts, Methodologies and Paradigms. CORDESRIA Gender
Series. Volume 1, Dakar, CORDESRIA, 2004, p. 1-8 por
Juliana Araújo Lopes.

OXÓSSI, Mãe Stella de. Discurso de posse de Mãe Stella de


Oxóssi na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia.
Fonte: blog Maria Preta. Disponível em

236
http://correionago.ning.com/profiles/blog/show?id=4512587%3
ABlogPost%3A363471&xgs=1&xg_source=msg_share_post.

PETROVICH, Carlos; MACHADO, Vanda. Irê Ayó: mitos


afro-brasileiros. Salvador: EDUFBA, 2004.

RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. De Boca Perfumada a Ouvidos


Dóceis e Limpos: Ancestralidades Africanas, Tradição Oral e
Cultura Brasileira. Itinerários, Araraquara, Nº 13, 1998.

WHITE, Evelyn C. Apresentação. In: O Livro da Saúde das


Mulheres Negras: nossos passos vêm de longe. WERNECK,
Jurema; MENDONÇA, Maisa; WHITE, Evelyn C (Orgs).
Tradução de Maísa Mendonça, Marilena Agostini e Maria
Cecília MacDowell dos Santos. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Pallas
/ Criola, 2006.

237
APÊNDICE

Oxum na organização do Mundo58

Era uma vez, no princípio do mundo, Olodumaré mandou todos


os orixás para organizarem a terra. Os homens faziam reuniões e
mais reuniões. Somente os homens, as mulheres não eram
convidadas. Aliás as mulheres foram proibidas de participar da
organização do mundo.

Deste modo nos dias e horas marcadas, os homens deixavam em


casa as suas mulheres e saiam para tomar as providências
indicadas por Olodumaré.

As mulheres não gostaram de ficar de lado. Contrariadas foram


conversar com Oxum.

Oxum era conhecida como uma Iyalodé.

Iyalodé é um título da pessoa mais importante entre as mulheres


do lugar.

Na verdade parece que os homens tinham esquecido do poder de


Oxum sobre a água doce. E sem a água doce, com certeza, a vida
na terra seria impossível.

Oxum já estava aborrecida com esta desconsideração dos


homens.

58
Carlos Petrovich e Vanda Machado, 2004.

238
Afinal ela não poderia de forma alguma ficar longe das
deliberações para o crescimento das coisas da terra. Ela sabia de
tudo que estava acontecendo.

Era preciso compreender que todos são importantes para a


construção do mundo.

Procurado por suas companheiras, conversavam durante muito


tempo e por fim a Iyalodé comunicou:

- De hoje em diante, vamos mostrar o nosso protesto para os


homens.

Vamos chamar atenção, porque somos todos responsáveis pela


construção do mundo.

Enquanto não formos consideradas, vamos parar o mundo!

- Parar o mundo? O que significa isto? Perguntaram as mulheres


curiosas.

- De hoje em diante, falou Oxum, até que os homens venham


conversar conosco, estamos todas impedidas de parir. Também
as árvores não vão mais dar frutos,

nem as plantas vão florescer, nem crescer. Isto foi dito e isto
aconteceu.

Aquela foi uma reunião muito forte. A decisão foi acatada por
todas as mulheres.

239
E os resultados foram imediatos. Os planos que os homens
faziam, começaram a se perder sem nenhum efeito.
Desesperados, os homens se dirigiram a Olodumaré e
explicaram como as coisas iam mal sobre a terra. As decisões
tomadas nas assembleias não davam certo de forma nenhuma.
Olodumaré ficou surpreso com as más notícias.

Depois de meditar por alguns instantes perguntou:

- Vocês estão fazendo tudo como eu mandei? Oxum está


participando destas reuniões?

Os homens responderam: - Veja senhor, estamos fazendo tudo


“direitinho” como o senhor mandou. Agora, este negócio de
mulher participando de nossas reuniões... Isto ai, a gente não fez
assim não.

Coisa de homem, tem que ser separado de coisa de mulher.


Olodumaré falou forte:

- Não é possível. Oxum é o orixá da fecundidade. É quem faz


desenvolver tudo que é criado.

Sem Oxum o que é criado não tem como progredir.

Por exemplo, vocês já viram alguma coisa plantada crescer sem


água doce?

Os homens voltaram correndo para a terra e cuidaram logo de


corrigir aquela grande falha.

240
Quando chegaram à casa de Oxum, ela já esperava na porta,
fazendo jeito de quem não sabia o que estava acontecendo. Aí os
homens foram chegando e dizendo:- Agô nilê! (Com licença).

- Omo nilê ni ka agô (filho da casa não pode licença).

Deste jeito ela os convidou a entrar em sua casa. Conversaram


muito para convencer a Oxum.

Eles pediam que ela participasse imediatamente dos seus


trabalhos de organização da terra. Depois que ela se fez bem de
rogada, aceitou o convite.

Não tardou e tudo mudou como por encanto. Oxum derramou-


se em água pelo mundo.

A terra molhada reviveu. As mulheres voltaram a parir. Tudo


floresceu e os planos dos homens conseguiram felizes
resultados. Daí por diante, cada vez que terminavam uma
assembleia, homens e mulheres cantavam e dançavam com
muita alegria, comemorando o reencontro e suas possíveis
realizações: Araketu ê Faraimará.

241
242
ÁFRICA O LA POSIBILIDAD DE UNA ANTROPOLOGÍA
FILOSÓFICO-ECONÓMICA DE LA LIBERACIÓN

Carlos Francisco Bauer59


UNILA-ILAESP-PTI

Mi canto, mi canto se hace grito


Porque el canto me ha quedado
pequeño en la garganta (…) Vengo a gritar,
vengo a gritar aquello que otros callan,
de amor y besos abundan los cantores,
yo traigo el grito herido de mi pueblo,
no es culpa mía si no traigo flores.

(Canción Popular, “Por qué grito” Horacio Guarany)

59
Profesor de historia y filosofía a cargo de las disciplinas de Filosofía
Latinoamericana, Introducción a la Problemática de la Filosofía
Latinoamericana, Filosofía de la Economía, Introducción al Pensamiento
Científico, Ética y Ciencia, Seminario de Filosofía Latinoamericana,
Filosofía de los Pueblos Indígena, en la Universidad Federal de Integración
Latinoamericana. carlos.bauer@unila.edu.br,
carlosfrancisco120@yahoo.com.ar

243
La comunidad doméstica, la renta de trabajo y el salario directo
e indirecto en África. Reflexionando a Marx, Meillasoux y
Levinas para una antropología filosófico-económica de la
liberación.

La comunidad doméstica agrícola por sus capacidades de


producción y reproducción representa una forma de organización
social integral que persiste desde el neolítico y que aún sustenta, por
dominación, una importante parte de la reproducción de la fuerza de
trabajo necesaria para el desarrollo capitalista. La comunidad es un
principio filosófico, antropológico, ético, político, económico,
ecológico, estético, que anteponemos al ego dominus occidental,
capitalista, anti-ecológico, etc. La comunidad domestica es la célula
básica de un modo de producción constituido por un conjunto de
comunidades organizadas entre ellas para la producción económica
y social y para la reproducción de la relación de producción
específicamente doméstica. Este conjunto estando exento de la
influencia mercantil puede ser considerado como una sociedad que
reposa sobre relaciones conjuntas de producción y de reproducción
que al nivel de las fuerzas productivas a las que corresponden
constituyen lo que se llama el modo de producción doméstica.
Durante el período inicial de la expansión imperialista el M. de P.
D60 sufrió una gran des-estructuración. Poblaciones enteras fueron
expulsadas y a veces parcial o totalmente exterminadas para dejar
lugar a las granjas de los colonos o las compañías concesionarias.
Junto al aprovisionamiento del mercado de trabajo por medio del
éxodo rural y la destrucción del campesinado y la liquidación de las
relaciones de producción doméstica, existe otra forma más

60
Modo de Producción Doméstico.

244
perfeccionada de acumulación primitiva que luego de la Segunda
Guerra Mundial favoreció al capitalismo europeo y africano y esta
es la que se realiza a través de las migraciones de trabajo temporario
y giratorias, por la preservación y la explotación de la economía
agrícola doméstica. Luego de todos los vejámenes y obliteraciones
producidos por la política colonial, el capitalismo descubre que el
M. de P. D. puede ser mejor explotado a mediano plazo por medio
de su preservación y no de su destrucción. Sus dos pilares son la
explotación colectiva y la producción de plustrabajo produciéndolo
como equivalente a la duración del tiempo libre. La movilidad de
las migraciones está limitada a actividades que no sean de estación,
pero igualmente para que la renta de trabajo sea extraída al máximo
es necesario que el trabajador permanezca próximo a sus graneros y
a sus esposas, quienes le preparan el alimento cotidiano. El éxodo
rural y las migraciones temporarias son las dos formas en la que se
realiza la transferencia de fuerza de trabajo desde el sector no
capitalista hacia la economía capitalista. Los efectos de dichas
migraciones son extremos. El excedente de esta mano de obra fue
abandonado a la miseria, muerte, caridad, y a nuevas migraciones
en donde los desarraigados sin hogar ni patria esperaran recuperar
sus condiciones de vida campesinas. Pero aun estos movimientos
migratorios son el motor de las expansiones capitalistas que Marx
llamó acumulación Originaria.

Así nos dice el texto de Meillassoux “durante todo el inicio de la


expansión imperialista, el modo de producción doméstico corrió la
misma suerte que el feudalismo y la esclavitud. Poblaciones íntegras
fueron expulsadas, y a veces parcial o totalmente exterminadas, para
dejar lugar a las granjas de los colonos o a las compañías
concesionarias”61. Un punto a observar sobre el análisis de
61
Meillassoux, C.: Mujeres, graneros y capitales. Siglo XXI, México 1977,
p. 156.

245
Meillassoux, es que la conservación o devolución de ciertas
comunidades a su modo de producción doméstico en África en
1950, tal vez se deba a cierta lección que aprendió el imperio luego
de la magnitud de la destrucción primera acaecida en América, y
que fue un motivo del debilitamiento del imperio español y
portugués. De lo que no cabe duda es que el capitalismo es un modo
de explotación y extracción de riqueza y para ello combina
exterminio, de-culturación, re-culturación, readaptación, imposición
y domesticación que podemos denominar de manera integral como
proceso permanente de aculturación.

Marx establece con claridad al comienzo del parágrafo II del


capítulo 47 del Libro III que:

Si se considera la renta del suelo en su forma más simple, la


de la renta en trabajo62 -en el cual el productor directo labora
durante una parte de la semana con instrumentos de trabajo
que le pertenecen de hecho o jurídicamente (arado, bestias de
labor, etc.), atendiendo al suelo que le pertenece de hecho, y
los restantes días de la semana en la propiedad del señor, para
éste y en forma gratuita- la cuestión aún está aquí totalmente
clara, ya que en este caso renta y plusvalor son idénticos. La
renta, y no la ganancia, es la forma en la que se expresa aquí
el plustrabajo impago63.

62
En el manuscrito Marx utiliza las palabras inglesas labour rent y que
Engels traduce por Arbeitsrente.
63
Marx, K.: El Capital. Crítica de la Economía Política. Libro Tercero,
Sección Sexta. Editorial Siglo XXI, 9º Edición, México, 1980, pp. 1004-
1005. Y en otra edición en castellano dice: “la renta de trabajo es la forma
más simple de la del suelo; el productor directo cultiva, durante una parte de
la semana, la tierra que le pertenece en los hechos, con instrumentos (arado,
ganado, etc.) que son su propiedad de hecho y de derecho. Los otros días

246
Partiendo de estas premisas, veamos pues de que se trata el caso
que analiza Meillassoux directamente aplicado al África. El punto
de partida aquí es la política colonial que organiza y succiona las
capacidades productivas de la economía doméstica. De esta manera
se aprovechaba aún más la producción de la economía doméstica en
vez de exterminarla. La táctica es cuasi-perfecta, ahora el
exterminio es sutil, debido a que la comunidad doméstica de esta
manera es desquiciada dentro de un servilismo capitalista impuesto.
Claramente es un mecanismo neocolonial para decirlo con K.
Nkrumah.

Para este caso específico la explotación de la comunidad


doméstica se basa en dos propiedades, por un lado, la organización
productiva colectiva ya que su explotación es más aprovechable que
la de un individual a la que aún hay que brindarle una estructura
sofisticada de control y opresión, cosa que aún es mucho más
onerosa. Y en segundo término la de producir plustrabajo. Este
modo de explotación de una filosofía política colonial que considera
la riqueza como único valor organizado por un ego eurocéntrico
adquiere la siguiente forma orgánica. El trabajo vivo (Lebendige
Arbeit) y su consecutiva fuerza de trabajo es el producto social de la
comunidad, entonces, explotar a uno de sus miembros mientras éste
no está separado significa, en algún sentido, explotar no a éste sólo
individuo, sino al conjunto de la célula a la que pertenece. De esta
manera la comunidad doméstica produce plustrabajo que equivale a
la duración del tiempo libre, esto es, a la diferencia existente entre el
tiempo de trabajo necesario para la producción de las subsistencias,

trabaja gratis, en las tierras del terrateniente. Resuelta evidente en este caso
que la renta y la plusvalía son idénticas. El sobretrabajo no pagado se traduce
en la renta, y no en la ganancia”, en Marx, K.: El Capital. Tomo III. Editorial
Cartago, Buenos Aires 1973, p. 774.

247
los medios de producción de esas subsistencias y la duración total
del consumo del producto.

Esto es poner en funcionamiento una gran máquina energética


de explotación de la fuerza comunal local, desde la proximidad,
podemos decir utilizando un término levinaciano. Claro que esta
proximidad no tiene el sentido que le da Levinas que es el
encontrarse en el cara-a-cara sin mediación, sino que es una
proximidad capitalista que es una aproximación para la explotación
plenamente mediada por la lógica del capital o la tasa decreciente.
La proximidad del cara-a-cara es encubierto de esta manera por la
lógica de este monstruo que ya había nacido en América chorreando
sangre: el capital. La proximidad es, epistemológica y
económicamente, subsumida por el sistema del capital. De allí que
aunque se conserve la maqueta de la comunidad doméstica, esta es
profundamente afectada en su esencia vital productiva, esto es, ya
deja de ser una comunidad para sí, para pasa a ser una comunidad
servil para otro, que en este caso es el capitalista. De ahí que el
mecanismo es sumamente complejo y cruel, debido a que es
prácticamente invisible, como sostenía Marx para el trabajo
asalariado, pero de cadenas aun más fuerte que la que ataban a
Prometeo a la roca. Evidentemente eran más fuertes y complejas
debido a que liberarse, romper esas cadenas en esta comunidad
doméstica equivalía a rompe una relación de producción con el co-
habitante integrante de la comunidad con el que se puede estar hasta
erótica y estéticamente relacionado. De ahí que podemos re-emplear
las mismas palabras de Meillassoux “la salvación no está en la
resistencia sino en la sumisión inmediata a los raptores”64.

64
Meillassoux, C.: op. cit., p. 49.

248
En el caso feudal, o aristocrático que explota a la comunidad
doméstica el plustrabajo llega como una renta en trabajo siendo
este una entrega de tiempo gratuita de trabajo. Esto es “plustrabajo
impago para el “propietario” de las condiciones de producción, que
coinciden aquí con el suelo y que, en la medida en que se
diferencien de él, sólo cuentan como accesorios del mismo”65. De lo
expresado por Marx podemos deducir que la renta de trabajo tiene
un aspecto en la que el trabajador elabora tiempo de producción
para producir el sustento propio, y por lo tanto se ve obligado a
elaborar otro tiempo de producción en el que realiza actividades
productivas para un tercero no excluido, sino que se autoincluye
como hegemónico, y ese trabajo no posee retribución. De esa
manera se impone un horizonte de sentido que todo lo transforma
así como el tiempo transforma en piedra el hueso orgánico
manteniendo su figura pero perdiendo su forma. Con una diferencia,
el proceso del tiempo es natural, el proceso capitalista es cultural-
criminal.

Entonces para que la renta sea succionada en un extremo


superlativo, dice Meillassoux, es necesario “que el trabajador
permanezca próximo a sus graneros y a sus esposas, quienes le
preparan el alimento cotidiano”66. Por lo tanto el capitalismo
encuentra un medio de extraer la renta de trabajo sin que su
intervención destruya la economía de auto-subsistencia y las
relaciones de producción domésticas que permiten la producción de
dicha renta. El método de proximidad subsumida que propongo, le
reditúa al capital un alto rendimiento, pero esto al precio de mediar

65
Marx, K.: op. cit., p. 1005. Y en la otra edición en castellano dice: “es
sobretrabajo no pagado por el “propietario” de los medios de producción, que
aquí se confunden con la tierra, o si se distinguen de ella, son apenas sus
accesorios”, Marx, K: op. cit., p. 774.
66
Meillassoux, C.: op. cit., p. 158. (El subrayado es mío).

249
invisiblemente a la cultura doméstica en las redes del capitalismo.
La relación hermano/a-hermano/a comienza a distanciarse debido a
que está mediada, y así hasta las relaciones afectivas se trasforman
en lazos o cadenas invisibles manipuladas por el sistema burgués de
dominio sobre la comunidad doméstica.

Haciendo un recuento de las tres variantes de la extracción de la


renta de trabajo por parte del capitalista: a) el trabajador es
empleado en el sector capitalista durante la estación muerta y se
alimenta de sus reservas domésticas durante ese período. El
empleador extrae de él la renta de trabajo en una forma de
explotación similar a la corvea en donde el capitalista sustituye al
señor feudal. b) el trabajador es empleado en el sector capitalista
durante la estación muerta siendo alejado de su lugar de origen y no
puede alimentarse con las reservas domésticas. La renta debe ser
extirpada del valor de las subsistencias entregadas por el empleador
al trabajador, a través de la duración de su empleo, a fin de
reconstituir la fuerza de trabajo inmediata. Esta situación es menos
desfavorable para el trabajador, ya que le permite ahorrar del
producto domestico el volumen de su consumo. c) el trabajador es
empleado en el sector capitalista durante un período mayor a la
estación muerta. Se agrega a la subsistencia necesaria para la
reconstitución de su fuerza de trabajo durante el tiempo del empleo,
la remuneración equivalente a la falta de producción que resulta de
su ausencia durante el período productivo. De esta manera se realiza
una transferencia proporcional de la explotación de trabajo al sector
capitalista incluyendo la edad del migrante y la duración del empleo
en el sector capitalista.

Entre el caso a y b aparece una variante mayor. En a el


trabajador forzado no recibe ningún pago y el empleador se
beneficia rotundamente

250
de una renta de trabajo, y en b recibe un salario, pero su beneficio
no aparece como una renta gratuita, sino como una plusvalía
constituida por la diferencia de valor entre el precio de las
subsistencias consumidas del trabajador en el tiempo del empleo
pagadas por el salario horario, y el valor de las mercancías
producidas por el trabajador durante el mismo tiempo. De esta
manera el intercambio desigual, que es base del desarrollo
capitalista como proceso de desarrollo desigual y combinado, va
aparejado de una baja remuneración del trabajo pero sin que se
detecte racional ni afectivamente si una es causa o consecuencia de
la otra.

De esta manera la renta subsiste debido a que la suma pagada


por el empleador sólo cubre la reconstitución inmediata de la fuerza
de trabajo. A propósito dice Marx: “con respecto a la renta en
trabajo -la forma más simple y primitiva de la renta- se comprende
con nitidez lo siguiente: la renta es aquí la forma originaria del
plusvalor y coincide con él”67. Y más adelante leemos “la renta
consiste directamente en la apropiación, por parte del terrateniente,
de este gasto excedentario en materia de fuerza de trabajo, pues el
productor directo no le abona otra renta que ésa. Aquí, donde no
sólo son idénticos el plusvalor y la renta…”68. Y en el capítulo XVI
del Libro I:

67
Marx, K: op. cit., p. 1007. Y en la otra edición en castellano “en lo que
concierne a la más simple y primitiva de las formas de renta, la renta en
trabajo, resulta claro que es aquí la forma más primitiva de la plusvalía, y que
coincide con ella”, Marx, K.: op. cit., p.776.
68
Op. cit., 1008. Y en la otra edición en castellano dice: “la renta es la
apropiación directa, por el propietario, de esa inversión excedente de fuerza
de trabajo, pues el productor inmediato no le paga otra renta. Como la
plusvalía y la renta son aquí idénticas (…)”. p. 776.

251
Todo plusvalor, cualquiera que sea la figura particular -
ganancia, interés, renta, etc.- en que posteriormente cristalice, es
con arreglo a su sustancia la concreción material de tiempo de
trabajo impago. El misterio de la autovalorización del capital se
resuelve en el hecho de que éste puede disponer de una cantidad
determinada de trabajo ajeno impago”69.

Hasta acá, cuando el trabajador comprometido en la agricultura


de auto-subsistencia y en un trabajo remunerado del sector
capitalista produce a la vez una renta en trabajo y una plusvalía. La
primera como dijimos procede de una transferencia gratuita de una
fuerza de trabajo producida en la economía doméstica hacia el
sector de producción capitalista. La otra de la explotación de la
fuerza de trabajo con base en el trabajo vivo del productor
comprada por el capitalista.

Entonces la distinción clave que introduciría Meillassoux


analizando el hecho africano a diferencia de lo que sostuvimos con
Marx, es que pese a este modo particular de extraer la renta, que en
apariencia no se distingue de la extracción de plusvalía, los
elementos de la renta de trabajo están siempre presentes, ya que en
un período que supera la duración de su empleo, el trabajador divide
su fuerza de trabajo entre su propia producción y la producción de
una mercancía para su empleador.

69
Op. cit., Libro Primero, Sección Quinta, p. 649. Y en la otra edición en
castellano Capítulo XVIII de la quinta sección, dice: “toda plusvalía, sea cual
fuere su forma particular –ganancia, interés, renta, etc.– es en sustancia la
materialización de un trabajo no pagado. Todo el secreto de la facultad
prolífica del capital reside en el sencillo hecho de que dispone de cierta suma
de trabajo ajeno que no paga”, Marx, K. op. cit. Tomo I, p. 508.

252
De esta distinción Meillassoux deduce una consecuencia política
y social importante, esta es la siguiente: “la renta no se realiza de
igual manera que la plusvalía”70, esto es que no entran en juego las
mismas instituciones, porque la extracción de la renta en trabajo
exige la puesta en movimiento del mecanismo complejo y
específico de las migraciones temporarias, como el
establecimiento de un doble mercado de trabajo, así como también
el sostenimiento de una ideología discriminatoria adecuada a los
fines del capital y el capitalista.

Meillassoux llama la atención respecto de este problema. Esto se


debe a que la explotación capitalista plantea la producción y
reproducción de la fuerza de trabajo llevada a cabo en el marco de
una institución específica y distinta de la empresa capitalista, como
es la familia como institución donde dominan relaciones de
producción doméstica, dependencia personal, y agrego, eróticas,
estéticas y no contractual. Esta situación le plantea a la filosofía de
la economía y al materialismo histórico-dialéctico problemas
teóricos y prácticos que parecen no haber llamado la atención lo
suficientemente a los estudiosos.

Este es un tema que exige ser reexaminado. La hipótesis de


Meillassoux es tratar de demostrar que la teoría de Marx expuesta
en El Capital se aplica en la hipótesis de un capitalismo integral que
debe ser adaptada para poder explicar la explotación del trabajo en
el marco del imperialismo. El marxismo, la filosofía de la economía
de Meillassoux no es de fórmula, sino que es coherente con Marx,
cuando este se oponía a ver formulado una filosofía de la historia
aplicable a todo tiempo y lugar, promoviendo en cambio el estudio

70
Meillassoux, C.: op. cit., p. 164.

253
de los diferentes procesos históricos71. La función de un estudio
histórico-filosófico-antropológico crítico aquí es fundamental para
realizar el estudio de las particularidades de una cultura en su
territorio y de esa manera poder realizar una contextualización
adecuada de las categorías críticas de El Capital.

Ahora bien esta mercancía esencial al funcionamiento de la


economía capitalista como es la fuerza de trabajo, al mismo tiempo
que es el agente social imprescindible para la conformación de las
relaciones de producción capitalistas, el trabajador libre, escapa a
las normas de la producción capitalista aun cuando son producidos
en la órbita y bajo la dominación capitalista.

Esta contradicción es superada por la burguesía mediante la


distinción entre salario directo e indirecto. El salario directo es
pagado directamente por el empleador al asalariado. Cubre el
sustento del trabajador aunque no suficientemente. La falta de
suficiencia es parte del mecanismo de dominio. De todos modos
asegura la reconstitución de la fuerza de trabajo para la subsiguiente
explotación y sobre explotación.

En cambio el salario indirecto, por el contrario, no es pagado al


trabajador en el marco de la relación contractual que liga al
empleador con el asalariado, sino que es distribuido por un
organismo socializado. Representa total o parcialmente según la
rama de los salarios considerados, la fracción del producto social
necesario considerado, la fracción del producto social necesario
para el mantenimiento y la reproducción de la fuerza de trabajo en

71
En América Latina un trabajo similar es el que llevó a cabo Carlos Sempat
Assadourian analizando “La producción de la mercancía dinero en la
formación del mercado interno colonial”, o en el Sistema de economía
colonial (1982).

254
escala nacional. Dicha fracción no se calcula sobre el tiempo de
trabajo, sino estrictamente de acuerdo al costo de mantenimiento y
de reproducción de cada trabajador considerado individualmente y
en función precisa de su situación familiar, del número de hijos, de
partos o enfermedad. Entonces, es mediante el pago del salario
indirecto y no solo por la compra de la fuerza de trabajo inmediata
como se realiza la reproducción de la fuerza de trabajo y como es
pagada teóricamente en su costo.

El África de entreguerras y aquella profunda y milenaria


esperanza de ser libres

El período entre guerras es importante para África y el mundo.


Está muy ligado a la reestructuración del poder que en la actualidad
se está viviendo a nivel planetario, ya sea por lo que de esa
estructura permanece, o sea por lo que de ella está cambiando hacia
una nueva forma. Este período que va de 1919 a 1935 señala la
encrucijada de la estructuración del sistema colonialista en África.
Será el estudio del sistema colonial el que nos permite comprender
las transformaciones corrosivas que han sufrido las organizaciones
comunitarias del África.

Concomitante a este proceso surgen los movimientos de


liberación (MLN), así como sus ideologías y formas de luchas como
una intensa búsqueda para recuperar las soberanías perdidas. La
conformación de los MNM72 implican en su misma medida los
procesos dialécticos de aculturación y de contra-aculturación.
Dentro de estas respuestas contraculturales surgen el

72
Movimientos Nacionalistas Modernos.

255
Panafricanismo y la Negritud como corrientes ideológicas que si
bien tienen su génesis fuera de África, a la postre se convirtieron en
movimientos políticos y culturales en el interior del continente,
fortaleciendo la lucha por la liberación, la autonomía y la
autovaloración africanas. La crisis de 1930 marcó los estrechos
límites de la dominación colonial a la vez que su punto más álgido.
Pero antes de pasar a dichos temas comentaré sintéticamente a que
nos referimos cuando hablamos de situación colonial (colonial
situation).

Balandier en su texto73 sostiene que los MNM, que se


multiplicaron después de la 2º Guerra Mundial, han planteado la
necesidad de una sociología que dé cuenta del estudio de estos
pueblos en función de la situación colonial (Balandier, 1973: 17) y
su liberación de tal condición. También podemos agregar que en
dicho contexto y con alguna variante de años han surgido la
economía, la literatura, la teología, la psicología y la filosofía de la
liberación etc., y en el presente y como continuación de aquel
proceso, la Ética y la Política de la liberación como soporte teórico-
espiritual que acompaña a los movimientos. “De esta manera se
comienza a vislumbrar que este es el único punto de vista que
posibilita un análisis adecuado de su actual condición” (Balandier,
1973: 17).

Una situación colonial surge como consecuencia de la conquista


y se desarrolla a partir de la relación de dos seres sociales a través
del cual entran en disputa dos civilizaciones (Balandier, 1973: 18).

73
Véase “I. La sociología de la dependencia”, en Balandier, G.: Teoría de la
descolonización. Las dinámicas sociales. Editorial Tiempo Contemporáneo, Bs.
As. 1973.

256
Ahora Sartre en su texto74 nos recuerda que el colonialismo es un
sistema preciso con toda la carga hegeliana que posee el término.

Cuando hablamos de sistema colonial hay que entendernos: no se


trata de un mecanismo abstracto. El sistema existe y funciona; el
círculo infernal del colonialismo es una realidad. Pero esta realidad
se encarna en un millón de colonos, hijos y nietos de colonos, que
han sido formados por el colonialismo, y que piensan, hablan y
actúan de acuerdo a los principios mismos del sistema colonial
(Sartre, 1968: 33).

Ahora esta situación que es colonial y sistemática y tiene sus


fases, las mismas son de “conquista, amansamiento, administración
y valorización, y al término del ciclo, de encaminamiento hacia la
autonomía” (Balandier, 1973: 18). La primera etapa del dominio
colonial está signada por la presión material, esto es, control de la
tierra, modificación de la población de los países sometidos, y
economía ligada a las de las metrópolis. Así como la presión
política y administrativa con el control de las autoridades locales o
instalación de autoridades de reemplazo, control de la justicia,
oposición a las iniciativas políticas autóctonas, inclusive en el caso
en que estas se expresan en forma discreta, y la presión ideológica
tentativas de despojo religioso tendientes a permitir la
evangelización de misioneros con cristianismo deformado al decir
de K. Nkrumah, acción directa de la enseñanza importada,
transmisión de modelos culturales en función del prestigio que les
aporta el grupo dominante.

Sartre agrega que se comprenderá la actitud colonialista si se


reflexiona acerca de la suerte reservada a las oficinas agrícolas para
74
Véase “El colonialismo es un sistema”, en Sastre, J. P.: Colonialismo y
Neocolonialismo. Situation V. Editorial Losada, Bs. As. 1968.

257
la instrucción técnica del campesinado musulmán. Esta institución
creada en el papel y en parís, no tenía otro objeto que elevar
ligeramente la productividad del felá: lo suficiente para impedirle
morir de hambre (Sartre, 1968: 32). Desde aquí descubrimos otra
presión más que se suman a las mencionadas y es la presión del
papel. El eurocentrismo, a modo como el arquitecto plasma en un
plano la obra, descubre la importancia de planificar su pensamiento
colonial en los papeles y aplicarlo a la realidad con una intensidad
sistemática.

“En una primera etapa lo más habitual es que los colonizados


experimenten la situación colonial como una empresa de
desposeimiento material y espiritual (…) estos diversos modos de
presión fueron implantados por la sociedad colonialista a expensas
de la sociedad colonizada” (Balandier, 1973: 18).

La sociedad colonizada puede ser considerada como una


sociedad globalmente alienada, pero la toma de conciencia crítica
no puede llevarse fuera, sino dentro de este contexto. En este
proceso la conciencia pasa de una situación de sufrimiento colonial
a una etapa de abismo transitivo en donde visualiza que lo que debe
modificar es la estructura completa de la sociedad en la que vive ya
que ha sido puesta pies arriba por el dominio colonial. Aquí
podemos afirmar con Balandier que “la resistencia a la situación
colonial, primeramente, es de orden psicológico y cultural y el
carácter extranjero de la cultura dominada posibilita el
establecimiento de una pantalla protectora de la sociedad
colonizada” (Balandier, 1973: 19). Por ello, coherente con lo que
aquí dice, va a plantear que, “la liberación es primeramente
liberación en el plano de la imaginación” (Balandier, 1973: 26).

258
Dentro de este contexto es que surgen los movimientos de
contra-aculturación. Este término es creado por los antropólogos, y
Balandier se permite sospechar de este término por un instante.
Sostiene que es ambiguo porque de hecho no realiza una regresión
simple, sino que está cargado de un sentido que no siempre poseen
los viejos valores e instituciones: con frecuencia plantea un
reagrupamiento frente al grupo dominante y organiza la oposición
contra este en tanto ejerza una dominación extranjera,
adjudicándoles, muchas veces, un mote de fanatismo xenófobo
señalada por la prensa o administraciones extranjeras. Lo cierto es
que esta ambivalencia de retorno al pasado, con la asimilación de
los valores democráticos caracteriza a todas las reacciones actuales
frente a las situaciones coloniales y paracoloniales dice Balandier
(1973: 24).

Lo cierto también que el paracolonialismo no es algo


homogéneo. Aquí tanto J. Ki-Zerbo como J. P. Sartre coinciden. Ki-
Zerbo en su texto75 sostiene que el profesor Thomas Hodgkin ha
puesto de manifiesto el relieve de las contradicciones internas del
colonialismo, tanto en su aspecto teórico como en el práctico. Esto
se expresaba entre el principio de la indirect rule que utilizaba a las
jefaturas locales y la necesidad de elaborar los planes tomando en
consideración a las clases medias africanas destribalizadas, así
como de otra importante contradicción existente entre, por ejemplo,
el principio francés de la igualdad sin restricciones por motivo de
raza, y la necesidad de conservar la identidad de Francia y su poder
de dirección. Por último, señala Ki-Zerbo, y a este respecto, que no

75
Véase “7. Las contradicciones internas del colonialismo”, en Ki-Zerbo, J.:
Historia del África Negra. 2. Del Siglo XIX a la época actual. Editorial Alianza
Universidad, Madrid 1985, pp. 712-713.

259
hay que olvidar que los países colonizadores no presentaban un
frente común y homogéneo en este campo, por que en los primeros
años de colonialismo siempre hubo algún europeo que se opuso a
las obliteraciones y explotaciones coloniales y a la colonización
misma.

Esto está en sintonía con lo acontecido en la colonización


americana en la disputa J. G. de Sepúlveda frente a B. de las Casas
o Casaus. B. de las Casas asume un discurso opositor al de la guerra
justa que fundamentaba Sepúlveda, que no era más que la guerra de
conquista. B. de las Casas logra vencer teóricamente a Sepúlveda en
España y frente al Rey logrando al menos impedir la publicación de
las obras de Sepúlveda. A este respecto podemos repasar obras
como las de T. Todorov, E. Dussel, C. S. Assadourian.

Retomando la idea de Sartre, de la institución creada en papel y


en Paris bajo método sistemático, esto no implica ni conlleva
necesariamente la homogeneidad de tal paracolonialismo. Para que
la mano de obra fuese abundante era necesario que el felá
continuase produciendo poco y a precios muy altos, y sostiene
Sartre que los neocolonialistas de la metrópoli no se daban cuenta
que esta disparidad y la emergencia del hambre de esta disparidad
atacaban directamente al sistema. Así como la instrucción al obrero
agrícola, lo torna más exigente y libre. La educación es un
instrumento de liberación. “El gobierno, cuando es de derecha, lo
sabe tan bien que se niega a instruir, en Francia, a nuestros propios
campesinos. ¡De todos modos no es para difundir el conocimiento
técnico entre los indígenas!” (Sartre, 1968: 32).

Es desde este contexto de extrema explotación, pobreza y


hambre, y filtrándose por todas estas contradicciones que el África
negra comienza a renacer, a despertar de su obliteración, a retomar,

260
a recomenzar su historia, y a gestar su independencia desde las
ideologías y movimientos que al decir de los antropólogos son
contraculturales o al decir de Ki-Zerbo son anticoloniales. Aquí
podemos señalar lo que le indicamos a L. Hurbon para el caso
haitiano, es desde el espíritu de libertad que renace la lucha
anticolonial y desde donde se curarán “todos” los demás males.

Desde aquí podemos trabajar y avanzar con el texto de Coquery


y Moniot76. La reacción ideológica política no queda resumida
solamente en una afirmación política abierta. Entenderemos aquí
por ideología, lo que similarmente en la corriente de Historia de la
Ideas latinoamericanas, en la versión de A. A. Roig se ha trabajado,
no se trata de ideas abstractas y apartadas al mejor estilo
neoplatónico a lo Alcibíades, sino incrustadas en la sociedad que las
hace y ve parir. A este respecto Coquery-Moniot entienden por
ideología, aplicado al caso africano que nos ocupa, conjuntos
relacionados de ideas, de representaciones, de creencias y de
interpretaciones que afectan a la estructura y a la organización de la
sociedad, a su identidad y a su supervivencia. También cumplen una
función didáctica -explicar, organizar, comentar el orden
establecido, la situación vivida…- una función justificadora -
legitimar este orden o su subversión-, una función programática -
proponer el respeto y el mantenimiento de este orden, la espera o la
preparación de otro o su sustitución imaginaria… (Coquery-Moniot,
1985: 228).

La larga marcha hacia la independencia del África negra es en el


sentir de Ki-Zerbo uno de los fenómenos políticos más
espectaculares de la segunda mitad del Siglo XX. Dicho
movimiento empezó en el África Occidental británica y se extendió
76
Véase Coquery-Vidrovitch, C.; Moniot, H.: África Negra. De 1800 a
nuestros días. Editorial Labor, Barcelona 1985.

261
a las colonias francesas, al África belga y a los territorios
portugueses en el sur de África. Algo señalamos de sus efectos en
las corrientes filosóficas que surgieron aquí, además de solo
mencionar el efecto que también ejerció en el surgimiento de los
Movimientos Nacionalistas latinoamericanos. Son cuantiosos los
acontecimientos que jalonaron este proceso en el África y que aún
siguen vivos, y nos advierte Ki-Zerbo, que “faltan numerosos
documentos en el archivo del historiador para que lo expuesto aquí
pueda ser algo más que una cronología comentada” (Ki-Zerbo,
1985: 736).

Al hablar de las ideologías y movimientos que conforman la


personalidad africana de este período no podemos dejar de
referirnos a la mixtura o miscegenación que significan el
panafricanismo, la negritud y el kimbangismo.

*Devenido el año 1900 se manifiesta en reuniones e


instituciones una corriente panafricanista madura preponderante en
el contexto americano, ya que en 1897 se fundó una African
Association, que se convirtió en la Pan-African Association en la
Conferencia panafricana de Londres en 1900. Los negros de las
Indias Occidentales y de EE.UU. predominaron, pero los africanos
tampoco estaban ausentes. Es posible señalar a Mohamed Ali Duse,
de padre egipcio y madre sudanesa que frecuentó Inglaterra y los
EEUU, que publicó en 1911 In the land of the Pharaohs como una
historia reciente y anticolonialista de su país. Así como en 1912 a
1920 y ayudado por la burguesía negra de África una obra destinada
únicamente a los pueblos negros, The African times and Orient
review. Todo esto como antecedente al primer Congreso
panafricano de 1919 organizado en Paris.

262
El panafricanismo es un movimiento ideológico, político,
filosófico y cultural que promueve la unidad del continente africano.
Y este primer congreso fue organizado por Du Bois, Garvey y
llevada al campo político y cultural propio del África por africanos
nacidos en el África, como es el seguidor del jamaicano Garvey, el
Dr. K. Nkrumah. El origen del término se le atribuye a Du Bois o
Henry Sylvester Williams. Este movimiento constituye de la
conjunción de tres factores, el esclavismo occidental y la
explotación de las personas negras en América y África, así como la
carrera colonialista de Europa en África, otro factor es la presencia
en EE.UU., de emigrados y estudiantes procedentes de las Antillas,
como un área con una larga tradición de movimientos de liberación
esclavos, y en tercer lugar se destaca la actividad y producción
intelectual de pensadores como Du Bois, Garvey. El mismo Du
Bois crea en 1908 la National Association for the Advancement of
Coloured People luchando contra el particularismo de los negros
americanos. Garvey galvanizo las masas negras creando por primera
vez un sentimiento de solidaridad ligado a la conciencia mesiánica
de su origen, de que por ejemplo lo negro es bello. El haitiano Price
Mars dio al movimiento sus bases literarias publicando en 1928 un
ensayo etnográfico revolucionario Ainsi parla l’oncle. Fue
inspirador de Aimé Cesaire y de Senghor que lanzaron la noción de
negritud en 1933-35. A partir de 1947 por el grupo Présence
africane quien difundió esta ideología publicando varias obras de
síntesis y combate orientadas a encarnar el alma africana en La
philosophie bantoue de P. Placide Tempels en 1948 y Nations
negres et cultures de Cheikh Anta Diop en 1955. Esto es continuado
por el gran filósofo africano Eboussi Boulaga en su filosofía
contradiscursiva cuando declara en La crise du Muntu 1977 que el
Je pense, donc je suis; es la causa del crimen contra el Je danse,
donc je vie.

263
Luego vienen el 2º, 3º y 4º congreso panafricano, pero al parecer
estancando y adormeciendo la efervescencia de lo que había surgido
con antelación en el primer congreso. Pero será en el período que va
de 1945 a 1955 que surge en el 45 el 5º congreso panafricanista
celebrado en Manchester tras la 2º Guerra Mundial y que
reconfigura nuevamente al panafricanismo. Esto será de la mano
política y anticolonialista del antillano George Padmore consejero
del Dr. K. Nkrumah (Pan-Africanism or Communism) que lo define
como “la aspiración de realizar el gobierno por africanos para los
africanos, respetando a las minorías raciales y religiosas que deseen
vivir en África con la mayoría negra” (véase Coquery-Moniot,
1985: 289). El n’krumahísmo posee aspectos negativos pero no es el
caso tratarlos aquí para la dimensión de este escrito.

*El hombre “negro” yugulado por el colonialismo debe


recuperar su dignidad y autenticidad. A través de este proceso el
nacionalismo africano a falta de base social va tomando formas
culturales como es en este caso la negritud. Esta surge de la
conjunción entre África y América y para el caso lo conforma la
colonia francesa de Martinica siendo un grupo de intelectuales que
en París crearía el movimiento de afirmación de valores de las
culturas negras en los inicios del Siglo XX. Se trata de la negritude
como versión francófona del espíritu negro. Sus iniciadores León
Damas, Aimé Cesaire y Leopold Sédar Senghor. Pero sobre todo
desde Senghor la afirmación política del movimiento alcanzará una
afirmación convincentemente africana para el momento. Luego
Senghor será el primer presidente del Senegal independiente pero a
poco andar mostró que su efervescencia política moderada no dejará
lugares para revoluciones. Este exponente mostrará al final que su
carácter intelectual defendía los intereses de Francia. Podemos decir
que el eurocentrismo psíquico-profundo comandaba los preceptos
de Senghor en este caso. Es un típico caso que el título de la obra de

264
F. Fanon retrata Piel negra, máscara Blanca. La negritude sería
más influyente que el Panafricanismo para el caso de las
comunidades africanas de Latinoamérica.

La negritude se manifiesta primeramente en el plano literario


como una reacción a cualquier valor impuesto, como una de las
tareas de los escritores negros para poder doblegar la lengua
francesa a los deseos y voluntad de su inspiración. El movimiento
expresó, según F. Fanon, una forma transitoria de la combatividad,
pero reveló también, como señalamos en el caso del poeta-
presidente Senghor, la contradicción vivida por esta élite aculturada,
y con más precisión eurocentrizada. Los negros de África del Sur
rechazaron enérgicamente la negritud porque esta les parecía una
variante del racismo, y lo hicieron en nombre de un desarrollo
separado (apartheid), debido a que la negritud generaba una
subordinación económica a la antigua metrópoli. Los neocolonos lo
aceptan a condición de que permanezcan fuera de la esfera
occidental negándoles el acceso al mundo moderno. La
reivindicación de los africanos del sur es por el contrario la
indivisibilidad universal de la cultura.

* Los movimientos religiosos sincretistas son de fuerte


influencia en el África. Junto a la supervivencia de las religiones
tradicionales, a los progresos del Islam, a la permanencia del
cristianismo de Etiopía y a las cristiandades de origen misionero, el
cuadro religioso del África Negra de los Siglos XIX y XX presenta
una notable proliferación de movimientos nuevos. Este fenómeno
ha reavivado la discusión entre sujeción y libertad, entre lo
tradicional y lo moderno, entre lo profundo y lo moderno instituido,
y todo esto dentro del marco de la situación colonial. El África
meridional es un primer dominio de elección. Desde principios del
Siglo XX surgen a causa de las guerras y desposesiones de los

265
neocolonos, profetismos de la resistencia o la desesperación entre
los xhosa donde ya se encuentran elementos sincréticos como la
espera de redención. Se crean como hecho relevante las iglesias
separatistas. Ordenan ministros negros y editan la Biblia en lenguas
indígenas. Crean de este modo una élite nueva y un modo de
reflexión, expresión y organización. A partir de 1904 aumentan las
iglesias sionistas que han prosperado y persistido hasta nuestros
días. Estas iglesias nacieron de un profeta a quien sus cualidades
personales y su predicación aseguraron el éxito; fundó una ciudad
santa y fijó su comunidad.

Otra región de elección de innovaciones religiosas es el África


central (Congo y regiones colindantes). Durante el Siglo XIX se dan
movimientos sincretistas de resistencia al extranjero y de
renovación social. Y en el Siglo XX, dos corrientes llaman la
atención como es el caso del Kimbangismo y el kitawala. En 1921
en el país Bakongo Belga Simón Kimbangu formado por las
misiones protestantes predica el Evangelio y cura a los enfermos
después de haber tenido una revelación. Su fama llega a las dos
orillas del Congo, y se le conoce como el Mesías, como el Cristo
Negro y su aldea se convierte en la Nueva Jerusalén. Aunque es
detenido y deportado igualmente logra nacer una religión en un
período de aguda crisis de la sociedad Bakongo que ha conocido
desde temprano las influencias cristianas. Luego otros profetas
continúan esta obra iniciada. El kimbangismo propone a un pueblo
aplastado por la destrucción y sujeción psicológica, en vez del
miedo, la acción y la esperanza de redención, en lugar de la
pasividad y el desasosiego, el resurgimiento social y la creación de
un nuevo marco social, un lugar y un lenguaje para esperar su
protesta, recuperación de la iniciativa y cristalización de una toma
de conciencia, para una reacción global. Es una creación que
enfrenta una Iglesia negra con las iglesias de importación. Con todo,

266
el kimbangismo es la expresión de una reafirmación cultural
Bakongo que hace madurar también una ideología nacionalista.

Para concluir el Kitawala es la expresión de una transformación


también propiamente africana del Watch Tower. Luego del
complejo proceso en Rhodesia y en Niasalandia, penetra en
Katanga en 1925. El kitawala desde allí se extiende a gran parte del
Congo belga. Así es un movimiento clandestino sólidamente
organizado, se hace notar sobre todo por las revueltas que anima.
Une un milenarismo importado y un profetismo bantú y prospera en
los círculos ciudadanos y mineros de trabajadores en Katanga y en
las zonas rurales, donde su sensibilidad y aptitud le hacen apto para
rechazar las miserias contemporáneas.

Amor Omnia Vincit (El amor todo lo vence)

Referências

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sociales. Editorial Tiempo Contemporáneo, Bs. As. 1973.

Coquery-Vidrovitch, C.; Moniot, H.: África Negra. De 1800 a


nuestros días. Editorial Labor, Barcelona 1985.

Dussel, E.: 1492: El encubrimiento del otro. Hacia el origen del mito
de la modernidad. Editorial Plural, La Paz Bolivia 1994,
Conferencias de Frankfurt.

267
Dussel, E.: Ética de la Liberación en la Edad de la Globalización y
de la Exclusión. Editorial Trotta, 1998.

Fanon, Frantz: Los condenados de la tierra. Editorial Fondo de


Cultura Económica, México 1963.

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actual. Editorial Alianza Universidad, Madrid 1985.

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1977.

Levinas, E.: De otro modo que ser o más allá de la esencia.


Ediciones Sígueme. 1987.

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1973.

Marx, K.: El Capital. Tomo III. Editorial Cartago, Buenos Aires


1973.

Nkrumah, K.: Neocolonialismo: La última etapa del


imperialismo. Editorial S. XXI. 1966.

Meillassoux, C.: Mujeres, graneros y capitales. Siglo XXI,


México 1977.

Sartre, J. P.: Colonialismo y Neocolonialismo. Situation V. Editorial


Losada, Bs. As. 1968.

Todorov, Tzvetan.: La conquista de América, la cuestión del otro.


México, Siglo XXI, 1987.

268
LA PRESENCIA NEGRO AFRICANA EN
NUESTRA IDENTIDAD

Dina V. Picotti C.
UNGS - Univ.Nac.de Gral.Sarmiento, Argentina

El historiador y antropólogo senegalés Cheikh Anta


Diop afirmó en 1955 en su tesis doctoral aparecida en Nations
nègres et culture77 que el antiguo Egipto había sido una cultura
negra y que habría sido además la cuna de la civilización
occidental y de la filosofía, fruto de los viajes a esta tierra que
llevaron a cabo pensadores como Tales de Mileto, Aristóteles,
Pitágoras o Platón, que se formaron en Heliópolis, Hermópolis,
Menfis o Tebas, los centros del saber egipcios; incluso, habría
base para hablar de un origen de la filosofía en Etiopía.

Este planteo enfrenta la visión colonialista de una mente


prelógica en el negro, mientras los hechos constatan que los
negro-africanos han elaborado sistemas de pensamientos
complejos y dignos de ser escuchados, tenidos en cuenta y
estudiados, al igual que la creencia de que no existe actividad
pensante fuera del tipo o método occidental de filosofar.

77
Cheikh Anta Diop, Nations nègres et culture, Présence africaine, Paris,
2000

269
El filósofo camerunés Eboussi-Boulaga78 llega a sostener
en este sentido la no pertinencia de la búsqueda y el discurso
acerca del origen de la filosofía, en tanto ésta no se iniciaría
nunca sino más bien siempre re-comenzaría, como actividad

78
La crise du Muntu, Authenticité africaine et philosophie, Présence
africaine, Paris, 1977 et 1997. L'Affaire de la philosophie africaine. Au-delà
des querelles, Karthala-éditions terroirs, Paris-Yaoundé, 2011.

270
inherente a todo ser humano, la de reflexionar sobre la
existencia humana y la realidad en general en busca de
respuestas, que se ha dado en cualquier confín del planeta tierra,
también en África. La no conservación o transmisión mediante
la escritura de las obras de los pensadores africanos del pasado,
contribuye a que nos sean desconocidos, lo cual no significa que
no hayan existido, tal y como afirma Joseph I. Omoregbe79, ya
que hay fragmentos que nos han llegado en forma de proverbios,
mitos, leyendas, cuentos y, especialmente, religión. Para una
mente occidental muchas de las prácticas culturales africanas se
tornan ajenas e incomprensibles, pero la tradición oral o las
creencias en sistemas de sabiduría como la adivinación ifa
yoruba o la reflexión en torno a diversas cosmovisiones propias,
por poner algunos ejemplos, deberían tornarse la puerta de
ingreso a otras maneras de pensar que pueden iluminar nuestros
caminos.

79
Joseph I. Omoregbe, “African philosophy: yesterday and today”, in
P. O. Bodunrin (ed.), Philosophy in Africa: Trends and Perspectives.
University of Ife Press. pp. 1 (1985)

271
Puerta dogón.

Frente a la tendencia eurocéntrica de no ver en lo


africano nada que mereciera la pena de tenerse en cuenta, nos
encontramos con el universo metafísico Dogón, con la
filosofía Akan o las cosmogonías Yoruba o Igbo, entre muchas
otras. Pero no será hasta la publicación en 1945 de la obra La
Philosophie Bantoue80 del belga Placide Tempels cuando se
inicien los estudios contemporáneos alrededor de los sistemas
filosóficos africanos.

Al modo de reflexión filosofica de Tempels basado en la lengua,


mitos, leyendas, creencias y estructuras sociales, en este caso del
pueblo Bantú, se le llamó a veces peyorativamente etnofilosofía
y se constituyó en una de las tendencias en la filosofía africana,
junto a otras más pragmáticas que buscan resultados en el
80
R. P. Placide Tempels , La philosophie bantoue, 1944-45 Éditions de
l’Évidence, 2009.

272
ámbito político o social, como las de Kwame Nkruma y su
concienticismo81, Julius Nyerere y su socialismo africano82
“Ujamaa” o Kayoya y su humanismo83 o aquellas que
reflexionan sobre la identidad propia como Leopold Senghor
para su movimiento de la Negritud84..

La obra de Tempels planteó muchas discusiones


posteriores, algunas de las cuales llegan hasta hoy. Entre ellas,
afloró la cuestión de la “filosofía implícita”. Es decir, si las
condiciones lingüísticas y culturales de una filosofía pueden ser
explicadas por los conceptos filosóficos de una cultura diferente.
¿Son los conceptos occidentales medios necesarios y adecuados
para explicar este pensamiento implícito? Lo cual conduce a la
pregunta mayor de si existe una filosofía africana o una filosofía
en África.

81
Kwame Nkrumah, primer presidente de Gana, Consciencism: Philosophy
and Ideology for De-Colonisation (1970)
82
Julius Nyerere, primer presidente de Tanganica, Freedom and Socialism
(Uhuru na Ujama): A Selection from Writings & Speeches, 1965–1967,
Oxford University Press, 1968
83
M. Kayoya, de Burundi,sacerdote, poeta y filósofo, autor de iniciativas
pedagógicas, caído en medio del genocidio de los hutu, Sur les traces de mon
père. Jeunesse du Burundi à la dècouverte de valeurs, Presses
Lavigerie, Bujumbura, 1968. M.
Kayoya, Entre deux mondes: sur la route du développement, Presses
avigerie, Bujumbura, 1970.
84
Leopold Sedhar Senghor, primer presidente de Senegal, político y poeta.

273
Julius Nyerere

En la actualidad, algunos filósofos africanos


contemporáneos como el ghanés Kwasi Wiredu eluden el
folclorismo, tal y como se recoge en Pensamiento africano,
Editorial Bellaterra85 para destacar cómo “los antropólogos han
centrado su atención en nuestras cosmovisiones populares y las
han elevado al estatus de filosofía continental. En otros lugares
del mundo, mejor situados, si queremos conocer la filosofía de
un pueblo determinado, no nos dirigimos a campesinos,

85
. Kwasi Wiredou, ganés, Dr. en filosofía por la Univ. de Oxford, 1987
enseña en la Universidad del Sur de Florida en Tampa. Su interés principal
gira alrededor de la filosofía africana poscolonial, epistemología, filosofía de
la lógica, metafísica y filosofía de la mente. Souleymane Bachir Diagne
Actualmente radica en los Estados Unidos y sus reflexiones recientes
abordan el diálogo, especialmente intercultural, y la diversidad cultural,
enseña en la Universidad de Duke.

274
ancianos o sacerdotes fetichistas, sino que acudiremos a
pensadores concretos, en persona, si es posible, y en letra
impresa (…) A mi modo de entender, como ya he insinuado
antes, el pensamiento tradicional africano debiera en primer
lugar compararse tan sólo con el pensamiento popular
occidental”.

Ferrán Iniesta en su libro El pensamiento tradicional


africano 86los libros de la Catarata, 2010, incide en que “El
pensamiento africano, aquel que es genuina e históricamente
definible como africano, es tradicional: el pensamiento moderno
en África – incluida la filosofía occidental – es importado y de
escasa implantación o africanización. Por este motivo los que en
su día fueron pomposamente denominados en las universidades
como “jóvenes filósofos africanos” (Hountondji, Towa), hoy ya
poco tienen de jóvenes – el tiempo es implacable –y nada han
aportado al conocimiento de las sociedades africanas,
justamente porque sabían más de Aristóteles y Marx que de
Trimegisto y Ogotemmeli. No hay que engañarse con discursos
igualitarios bienintencionados, el pensamiento africano es
específico de África por más que forme parte del pensamiento
vivo y cambiante de nuestra especie.”

86
Ferrán Iniesta, Profesor Titular de Historia de África a la Univ. de
Barcelona (1989-). Ha enseñado en las Universidades de Dakar (Senegal
1979-1980) y Antananarivo (Madagascar).

275
Souleymane Bachir Diagne

Junto a nombres que son reconocidos como pensadores:


Camara Laye, Ndebi Biya, Amadou Hampaté Bâ, Diagne…, o
filósofos como Souleymane Bachir Diagne, Emmanuel
Chukwudi Eze, Paulin Hountondji, Kwame Gyekye o cualquiera
de los mencionados, entre otros, el keniata Henry Odera
Oruka87 describió cuatro tendencias en la filosofía africana
moderna: etnofilosofía, filosofía de la sagacidad, filosofía de las
ideologías nacionalistas y la filosofía profesional, a las que más
tarde añadió la filosofía literaria o artística, dentro de la cual
entraban nombres como Wole Soyinka, Chinua Achebe, Ngugi
wa Thiong´o, Okot p’Bitek o Taban Lo Li, a los que

87
Odera Oruka,“Sagacidad filosófica y filosofía intercultural”, Estudios
africanos, P.Mosima, Camerún.

276
consideramos intelectuales. Frente a ellas, el camerunés Jean-
Godefroy Bidima identificaba más de una veintena de corrientes
en el seno de la filosofía africana moderna.

Sin duda, el pensamiento africano existe a pesar de que


lo desconozcamos o lo ignoremos. De hecho, son pocos los
investigadores occidentales que se interesan por esta filosofía, a
pesar de su importancia. Pero, tampoco en el continente africano
parece que tenga un peso demasiado importante la “filosofía”
como tal, a pesar de la cada vez más abundante aparición de
escritos de esta índole, sí en cambio las enseñanzas y la
sabiduría del pensamiento tradicional. Kwasi Wiredu incide
sobre la necesidad de superar el hablar sobre filosofía africana y
su existencia para pasar a elaborarla, lo que enlaza con la
cuestión de si en el momento actual la reflexión filosófica tiene
el lugar que se merece y es pertinente que ocupe en el continente
africano siempre que sea propia, independiente y genuina.

277
Eugenio Nkogo Ondó, Catedrático de Filosofía de Guinea Ecuatorial

El libro Síntesis sistemática de la Filosofía Africana,


Ediciones Carena, 2002, del ecuatoguineano Nkogo Ondó hace
patente, tal y como señala Donato Ndongo en el prólogo, “que
una de las causas del empobrecimiento económico y social de
África es la previa depauperación de las mentes africanas, a las
que se ha condenado exclusivamente a tratar de sobrevivir. Sin
sus filósofos y pensadores, sin sus intelectuales, sin sus
mantenedores y transformadores de sus culturas primigenias,
África se debate hoy en la agonía, cuando en realidad no es sino
el continente de la vida y de la esperanza. Si queremos que
progrese, África debe recuperar, en primer lugar, su dignidad. Y
esa dignificación pasa, necesariamente, por la recuperación de
sus culturas, por la revitalización de su ser interior.”

278
En un mundo globalizado, en el que el capitalismo, la
carencia de valores y el individualismo más inmisericorde
campan a sus anchas, forzoso es volver la vista hacia otras
visiones y otros modos de pensarnos, encontrar otros modos de
organizar la convivencia, otras maneras de lograr la igualdad,
otras vías para sentirse en armonía con la naturaleza. Viendo lo
fácil que les resulta, desde la periferia africana no se puede sino
desear que continúen en esa profundización de su ser más íntimo
y nos sigan descubriendo nuevas formas de vivir más acordes
con el ser humano. Sabiendo, como nos recuerda Ferrán
Iniesta, que en las culturas de sabiduría africanas siempre
seremos bienvenidos, no nos queda más que indagar en su
pensamiento y que África nos acoja.

Creo que ante estos planteos cabe precisar qué sentido le


damos a la palabra ‘filosofía’: ésta surge en el ámbito griego en
el s. V a.C. para denominar un modo de pensar que
distinguiéndose del mítico pretendía interrogar a las cosas y
determinarlas, definirlas, a través de categorías; este modo
objetivador de pensar se extiende y globaliza con esta identidad
aunque a través de diferenciaciones internas hasta hoy. El pensar
de otras culturas no es inferior ni superior, representa otras
experiencias y modos de pensar la realidad, irreemplazables y
significativos para la humanidad, de modo que cabe asumir a
todos ellos, como coconstituyentes de nuestra historia, a través
de un diálogo reuniente.

En este sentido, el pensamiento negroafricano, no la


filosofía en el sentido riguroso mencionado del término, que
tiene lugar en África, a pesar de su diversidad interna,
manifiesta rasgos propios que lo caracterizan y distinguen de
otros modos de pensar. Vino a América, con el mismo proceso

279
de esclavitud y también a través de migraciones no forzadas,
operando como otro valioso protagonista del pensamiento
latinoamericano, con mayor intensidad en algunas regiones que
en otras.

Rasgos lógicos del aporte africano a nuestra identidad


histórico-cultural88

En esta época, signada por un proceso creciente de


globalización conducido por la extensión planetaria de la
civilización tecnocientífica, pareciera tener poco sentido
ocuparse de otras culturas, envueltas por ella, sobre todo de las
más marginadas como las negras, y de su protagonismo en la
constitución de nuestra identidad, cuando nuestros países más
bien tienden a ingresar en el así llamado primer mundo, actor
principal de tal proceso. Sin embargo, la conciencia posmoderna
registra el acabamiento del pensar metafísico y, en sus vertientes
más positivas, el orientarse hacia una concepción eventual de ser
y configurativa de verdad; los estados se ven conmovidos por el
resurgimiento de las nacionalidades; la informatización de las
sociedades ha puesto en vigencia, junto a un efecto
homogeneizador también una diversidad de paradigmas, estilos
y centro históricos, como una especie de contradictoria
compensación a la soledad estéril de un pretendido juego
unívoco y dominador de pensar y lenguaje. Es que por más que
se haya impuesto el proceso abstractivo moderno a través de los
logros tecno-científicos y de una determinada organización
88
De la Ponencia en el II Congreso Internacional de Filosofía Intercultural
“En camino hacia la filosofía Intercultural”, Univ. de San Leopoldo, Brasil,
6-11.4.1997.

280
política y económica, no se pueden acallar los verdaderos
sujetos históricos, los pueblos y sus diferentes culturas o formas
de vida, que constituyen la historia concreta de la humanidad, y
que vuelven a tener fuerte significancia como reserva existencial
y posibles caminos para el enfrentamiento de los graves
problemas comunes del mundo actual. Si además consideramos
a nuestro continente, lo que lo distingue es precisamente la
convivencia de culturas diferentes, que a pesar de su historia
conflictiva representa la situación esperanzada de una
confluencia de núcleos creadores, que habrá que saber desplegar
en vistas a la propia emergencia civilizatoria.

Entre ellos el africano, llegado sobre todo a través del


proceso de esclavitud, tiene un peso y significancia aún no
asumidos en todo su alcance. Si bien se han ido multiplicando,
diferenciando y afinando los estudios especializados acerca de
su presencia en América en las diversas áreas regionales y
culturales, creemos que apenas se ha apuntado a una reflexión
acerca de lo que ella significa en la configuración de nuestro
modo de ser, es decir, de comprensión y articulación de la
realidad. Por ello nuestro intento se centrará, sobre la base de lo
ofrecido por tales investigaciones y de la propia experiencia, en
discernir los rasgos lógicos de tal aporte, que permiten
comprenderlo y valorarlo en sus diferentes aspectos.

Toda cultura se va constituyendo como articulación de


una determinada experiencia de vida, que se traduce en un
logos, es decir, en un modo de pensar y lenguaje. La
configuración de éstos fue protagonizada por los diferentes
pueblos que han convivido y continúan haciéndolo en América
y que a pesar de marginaciones y destrucciones se influyeron
entre sí. Con respecto al aporte africano, por menos que se

281
observe o quiera reconocer, se descubren rasgos innegables que
marcaron su impronta aún en zonas que tuvieron menos
afluencia de esclavos como en el Río de la Plata, o donde se cree
que perduraron menos. Nos referimos a rasgos que
consideramos tan propios de la identidad negro-africana como
inconfundibles a través de su presencia en el mundo y, para
nuestro caso, en América Latina. Se trata principalmente de su
sentido de la palabra, del ritmo y de su concepción religadora de
la realidad, sin dejar de tener en cuenta su participación, como
factor intrínseco, en todos los ámbitos: poblacional,
sociopolítico, económico, militar, etc.

En esta tarea de discernimiento y valoración cabe una


particular reflexión en torno al método. Si todo método puede
ser válido y aprovechable en tanto se perfile como un posible
camino de acceso y comprensión, creemos también, a partir de
la larga y dolorosa experiencia latinoamericana de
desconocimiento de sus propios modos y valores, sea por parte
del conquistador y colonizador, como por la de los modelos que
se asumen o imponen, que es necesario proceder en una relación
de sujeto a sujeto con aquello que pretendemos conocer,
dejándose informar y transformar, escuchando su palabra para
dialogar con ella, sin pretender someterla a o valorarla desde
modelo alguno. Obra de apropiación que es posible gracias a la
apertura infinita del espíritu humano.

La palabra

La existencia de una cantidad importante de negro-


africanos y sus descendientes en la población americana, debió

282
reflejarse no sólo en sus rasgos físicos sino también culturales.
Uno de los aspectos básicos para encarar una cultura es siempre
el lenguaje, no sólo por la existencia de vocablos de
determinado origen y composición, sino sobre todo por el modo
de articularse, que indica el espíritu y la articulación misma de
aquélla. Como se ha mencionado, todo pueblo y cultura se va
constituyendo en la configuración de una determinada
experiencia de la realidad, que se traduce en un logos, es decir,
en un modo de pensar y lenguaje; la conformación de éstos en
América fue protagonizada por los diversos pueblos que
conviven en el continente y que a pesar de marginaciones y
destrucciones se influyeron entre sí. Si bien se ha dicho que el
esclavo africano no logró cimarronear ciertos aspectos de la vida
americana, como la lengua de sus amos, salvo el caso de los
dialectos criollos, sin embargo es innegable su gran influencia
sobre el español y el portugués, y en el Caribe sobre el francés,
el inglés y el holandés, no sólo por el aporte de un porcentaje no
despreciable de vocablos y modismos, sino también de
estructuras más básicas, como por ej. la forma de nominar y el
sentido mismo de la palabra. De allí que los especialistas se
orienten con mayor preferencia hacia ellas que a verificar
relaciones más superficiales, tales como la conservación de
vocablos.

Con respecto a éstos los lingüistas89los han ido


registrando en número considerable y por su procedencia de las

89
Ya en 1924 Fernando Ortiz en su Glosario de afronegrismos, La Habana,
presentaba 1200 vocablos africanos en el español de Cuba. En 1938 N. de
Senna ofrece listados y estudios en Africanos do Brasil. Una contribución
semejante ha sido la de A.Nazario, El elemento afronegroide en el español de
Puerto Rico, San Juan, 1961, y otras publicaciones. En el ámbito de dominio
holandés son conocidos los trabajos de M.J. y F.S.Herkovits y de J.

283
diversas lenguas africanas de origen90, así como en su
recreación, consecuente con el proceso de asimilación y

Voorhoeve. En la región andina F.Romero, El negro en el Perú y su


transculturación lingüística, M.Batres, Lima, 1987, ha explorado
ampliamente la temática. En el área rioplatense N. Ortiz Oderigo e I. Pereda
Valdés ofrecieron sendos vocabularios y observaciones lingüísticas. Los
trabajos se han ido multiplicando y especializando a lo largo del continente.
90
J.Greensberg –una de las principales autoridades en la clasificación de las
lenguas africanas y que ha alcanzado aceptación general, a pesar de algunas
críticas que ha ido incorporando; tarea dificultosa, dada la gran complejidad
lingüística del continente, la mayor registrada –ha agrupado, en su última
versión, las lenguas habladas en África en cinco familias independientes,
aplicando según un método genético el concepto de familia, que reúne
diferentes lenguas derivadas de un proto-lenguaje o lenguaje ancestral: a
saber, 1.la familia afroasiática –lenguas habladas en el norte de África,
algunas áreas en torno al lago Chad y el Cuerno-, 2.lenguas Khoisan –
habladas por lo cazadores y recolectores en partes del Áfroca oriental y en el
sur-, 3.la subfamilia del Niger-Congo (perteneciente a la familia Congo-
Kordofanian) -numerosas lenguas habladas en el África occidental, oriental y
central y gran parte del sur fuera de la zona Khoisan-, 4,la familia Nilo-
Sahariana –en áreas aisladas en torno al valle del Nilo y la región del lago
Chad-, 5.familia austronesia (llamada así porque la mayoría de los hablantes
habitan en el sudeste asiático) –sólo en la isla de Madagascar-. Sobre la base
de esta clasificación, las lenguas habladas en las áreas de donde provinieron
los afroamericanos, pertenecen a la familia Niger-Congo: los Igbo, Yoruba,
Nupe, Fon, Akan, Kni y Kpelle pertenecen al subgrupo Kwa del Niger-
Kongo, con los Bantu como grupo dominante. Si bien estas lenguas y
D.Dalby, “Mapa lingüisticogrupos étnicos no hausa en el oeste, el ‘pidgin’ en
la costa occidental en calidad de proceso de creolización del inglés,
portugués y francés, ante las demandas del tráfico con Europa, y de modo
semejante el ‘swahili’ en la costa oriental. Además la mayoría de los pueblos
africanos, tanto en el período pre-colonial como después, hablan dos o más
lenguas afines. D. Olderogge, “Migraciones y diferenciaciones étnicas y
lingüísticas”; J.H.Greenberg, “Clasificación de las lenguas de África” y
D.Dalby, “Mapa lingüístico de África”, en Historia general de África,
Tecnos, Unesco, Madrid, 1982, t.I, cap. 11 y 12 respectivamente. O.Edet

284
acomodación a lo nuevo. A pesar de que los esclavos, al ser
arrancados de sus tierras y comunidades y traídos a América en
muy joven edad perdieran en gran parte las lenguas y culturas de
sus antepasados, sin embargo, según toda clase de testimonios,
sobre todo literarios, mantuvieron su esencia reorganizando
creadoramente el material lingüístico, al sustituir unos vocablos
por otros y producir imágenes, como lo hacían en sus lenguas
originarias. Porque para los africanos el lenguaje no es, como
normalmente para los europeos, la concepción de mundo de un
pueblo, por la que éste se presenta como unidad cultural, sino
que nommo -voz bantú-, la palabra, precediendo a la imagen, no
es idea, imagen portadora de sentido, sino sólo la expresión
fonética de un objeto; no tiene valor cultural por sí misma, sino
que se la otorga el hablante cuando crea una palabra-semen
formando una imagen91. Lo que constituye una lengua no es un
tesoro de vocablos, sino el modo –kuntu- de utilizarlos, que es
fuerza independiente, categoría fundamental del pensamiento
negro-africano en general92. De esta suerte, han podido surgir en
el mundo afroamericano lenguas mixtas como el ‘créole’ en
Haití –dicciones de origen francés y aún español con términos
de procedencia fon, lengua de los ewes de Dahomay-; en

Uya, Historia de la esclavitud negra en las Américas y el Caribe, Claridad,


Buenos Aires, 1989, p. 73-75.
91
Tal como lo subraya el especialista alemán J.Jahn, Las culturas de la
negritud, Guadarrama, Madrid, 1970, cap. V.
92
A.Kagame, La philosophie bantú-rwandaise de l’être, Bruselas, 1956,
señaló, comparando con las categorías de la metafísica occidental, los rasgos
fundamentales comunes al modo de pensar negroafricano general, a pesar de
su variedad interna, a partir de las lenguas bantúes. Un trabajo anterior en
este respecto es el de P.Tempels, La philosophie bantoue, Présence africaine,
Paris, 1949. J.M. Van Parys, Une aproche simple de la philosophie africaine,
E.Loyola, presenta una apreciación comparativa de los diferentes planteos en
este sentido.

285
Surinam el ‘taki-taki’ –síncresis de voces portuguesas,
holandesas y británicas, regidas por una sintaxis más
propiamente africana, con palabras de esta última procedencia-
y el ‘Saramacca-tongo’ o ‘deepi-tahki’, con expresiones casi
exclusivamente africanas, sobre todo de origen fon; el
‘papiamento’ –elementos procedentes del holandés, danés,
portugués, castellano y francés con otros procedentes de lenguas
africanas-, que domina en la isla de Curasao en el Caribe; en los
Estados Unidos de N.A. además del ‘créole’ afro-francés,
diferente del haitiano y que todavía se habla en la Luisiana,
surgió el ‘gullah’ en las islas homónimas frente a los estados de
Giorgia y Carolina del sur, además de la influencia general que
aportaron los negro-africanos sobre el inglés, mal llamadas
dialectos, es decir, variaciones o degeneraciones del español
francés, inglés, holandés, porque su vocabulario procede
preferentemente de palabras europeas y en parte africanas, pero
la sintaxis sigue las reglas de la gramática africana; si se
advierte, como expresa

J.Jahn, que la esencia de una lengua no reside en el


vocabulario sino en la estructura gramatical, entonces habrá que
considerarlas lenguas ‘neo-africanas’ y no indogermánicas
recientes. En Brasil también la influencia ha sido notoria, no
sólo por el número de términos aportados al portugués, sino por
su influencia en la sintaxis y en la entonación, así como en la
nasalización que se observa en la voz brasileña. En Cuba, ya el
africanista Fernando Ortiz había señalado la gran influencia de
los negros en el castellano en los aspectos lexicográfico,
sintáctico y fonético. De modo semejante en Perú Fernando
Romero, entre otros especialistas, ha hecho un detallado estudio
de las influencias fonéticas, gramaticales y sintácticas en la zona
costera de lenguas africanas, sobre todo pertenecientes al área

286
congo-angoleña, dejando abierta la posibilidad de que también
se hayan desarrollado hablas locales, como el créole constatado
por Germán de Granda en la zona colombiana de San Basilio de
Palenque, refugio colonial de negros cimarrones93.

En el español hablado en Argentina se ha registrado un


porcentaje apreciable devocablos, expresiones y modos de
hablar de origen africano. N. Ortiz Oderigo94pudo reunir más de
500 dicciones procedentes de diversas lenguas africanas, sobre
todo del poderoso tronco bantú y del congolés, que se
incorporaron al castellano de nuestro país y aún de otros
americanos95. Numerosos ejemplos muestran cómo una
considerable presencia del negro en nuestra vida desde su
llegada en época colonial ha quedado marcada, y no podía ser
menos, en el lenguaje a través de términos que conservan de su
procedencia, a veces todo el sentido originario, otras, en la
mayoría de los casos, un aspecto del mismo, o bien sobre una
base originaria recrean su sentido para indicar una realidad en la
que el africano convive pero en otro contexto y junto con otros
factores, como el caso del ‘tango’, en otras, por fin, pasan a
formar parte de la vida cotidiana como modelos referenciales,
tal la expresión ‘fulo de rabia’. Al afirmar que los africanos
conservaron en América la esencia de sus lenguas, nos referimos

93
R.Allsopp. “La influencia africana sobre el Caribe”, en M.Moreno
Fraginals, África en América latina, Unesco/Siglo XXI, México, 1977.
94
N.Ortiz Oderigo, Aspectos de la cultura africana en el Río de la Plata,
Plus Ultra, Buenos Aires, 1974, III. I.Pereda Valdés, Vocabulario de
palabras de origen africano en el habla rioplatense, Unesco/Siglo XXI,
México, 1977.
95
Tal trabajo, del legado inédito transferido por su heredera Alicia Dujovne
Ortiz a la Biblioteca de la Universidad Nacional Tres de Febrero, fue
publicado por ésta: Diccionario de africanismos en el castellano del Río de
la Plata, Eduntref, Buenos Aires, 1a.ed. 2007.

287
sobre todo a la presencia de su sentido de la palabra, que por
otra parte se acercaba más al que las culturas indígenas le
otorgaban. Creemos que tal sentido es una de las razones
profundas de la incidencia afro en nuestra identidad, así como
de su repercusión en el mundo, según lo manifiestan testimonios
literarios y artísticos en general.
La palabra reviste para el africano importancia y rol
fundamentales. Todo movimiento natural, toda obra humana, se
sustenta en su fuerza procreadora, que es nommo, fuerza vital
que libera las energías cuajadas de los minerales, induce
actividad en los vegetales y animales, conduce las cosas a un
sentido. La palabra del muntu –ser inteligente, humano vivo o
muerto, o divinidades- es, de este modo, fuerza activante que
impulsa y mantiene en su desarrollo todo movimiento. No basta,
por ej. el mero trabajo manual de sembrar y recoger, que es
considerado sólo parte de la actividad humana, sino que es
preciso además la influencia del entendimiento activo mediante
la palabra, unidad de fluidez corporal y espiritual que penetra,
vivifica y activa; es así como también el recién nacido llega a
ser un muntu, persona, cuando su padre o el hechicero
pronuncian su nombre, gracias al que el principio espiritual -
megara- se introduce en lo biológico –buzima-96. Todo cuanto
acontece, feliz o desgraciado, se debe a la palabra. En el
principio, ésta estaba en lo divino, como para el relato bíblico,
pero a diferencia de éste no permanece de tal modo en Dios que
el hombre sea sólo su testigo o anunciador; se hace carne no
sólo en Cristo sino por doquier en cada muntu, procreando y
desplegando incansablemente, aún a los dioses. Por la palabra
todo muntu es señor de las cosas y éstas son según la palabra del

96
Se trata de categorías de la ontología bantú, básicas en todo el pensamiento
negro-africano, a pesar de diferencias culturales internas, y por ende
lingüísticas. J.Jahn, op.cit.

288
muntu más fuerte. Sin la palabra las fuerzas se entumecerían;
existe lo que existe por el nombre, que es conjuro, acto creador.
Todo pensamiento, al ser pronunciado se hace realidad y lo que
no se puede concebir no existe. La palabra activa el curso de las
cosas, las transforma y se transforma el hombre al pronunciarla;
por ello, toda palabra es de acción, comprometida, ninguna es
inofensiva. Su fuerza se observa, por ej. en las prácticas
curativas: el paciente nunca espera un efecto sólo del
medicamento, que no es eficaz por sí mismo sino en conexión
con la palabra, fuerza vital; cuanto más poderosa es esta última
en el hechicero, tanto más aquélla y más eficaz el placebo, así
como puede operar negativamente cuando el brujo en lugar de
ponerla al servicio de la comunidad la utiliza de modo egoísta y
maligno. De allí también la conciencia de responsabilidad en el
uso de la palabra. Por estas cualidades que le son propias, la
palabra transforma al mundo. Cuando en el siglo XX poetas
africanos comenzaron a hablar en lenguas europeas, en el modo
y con la fuerza de la palabra africana, se comenzó a escuchar, y
ello no dependió de un momento histórico propicio, más que la
circunstancia de que poetas negros pudieran expresarse y
hacerse inteligibles, sino que reposa en su antiquísima tradición,
ahora también vertida en otras lenguas, que persistió
dondequiera la poesía africana operara su influjo. Según ella, la
palabra poética ejerce su fuerza sobre las cosas, su hechizo –en
el sentido eficiente más propio que posee el hechicero entre los
africanos-, en su puesto de mando sobre el mundo, poniendo las
cosas al llamarlas en su gran contexto, como palabra-semen que
las engendra. Lo así gestado queda al cuidado del hombre y le
sirve en relación fraternal, pues muntu-hombre, kintu-naturaleza,
cosas, material de cambio, hantu-espacio y tiempo- y kuntu-
fuerza modal están en tanto ntu-fuerza, estrechamente
emparentados; también le ordena, de allí que el imperativo sea

289
la forma de tiempo fundamental: ordena al futuro cómo ha de
ser, y cuando esa visión del futuro se sitúa en el pasado, manda
irrevocablemente, como si la orden ya se hubiera cumplido;
donde hay un presente no describe, narra, sino que conjura.
Algo acontece cuando el poeta lo profiere y él mismo, como
fuerza entre fuerzas, en ello se transforma. Nommo-la palabra-
es humedad, fluidez, semen, sangre.

Un fluir singular es la risa. En la poesía neoafricana


aparece frecuentemente en la figura de un río que rompe
cadenas, libera, en tanto fuerza libre especial, que a menudo
permitió al esclavo superar sus vicisitudes

un río nace en la altura y rueda hacia los valles; en su


curso arrastra oro y plata, barro y vidrio. Continuamente
está cambiando, nunca se cansa, siempre está revelando
su alma: Un río es la eterna risa de los negros en el
oscuro rostro de la selva virgen97.

En esta consideraciones acerca del sentido africano


convocador de la palabra, que tanto peso tiene en nuestra
identidad y que recupera dimensiones originarias de la misma en
una época de instrumentación y manipulación del lenguaje a la
vez que de grandes posibilidades, cabe también hacer referencia
a su relación con la escritura y sus modalidades. La importancia
de ésta para la conservación y despliegue de una cultura ha sido
discutida: épocas de grandes avances como el neolítico no la
tuvieron, por lo que Lévi Strauss le negaba relación directa. Si
se tiene en cuenta su otro rol más trascendente, de
comunicación, entendiéndose por escritura signos pintados,
incisos, raspados o impresos para comunicarse, se puede incluir

97
De la novela Juyungo, del afroecuatoriano Adalberto Ortiz.

290
el lenguaje de los tambores, más adecuado al tipo tónico de las
lenguas africanas que una escritura alfabética, que requiere un
complejo sistema de acentos, consonantes y otras marcas para
indicar no sólo las tonalidades sino también los matices.

El lenguaje del tambor no es una especie de alfabeto


Morse, como a veces se ha creído por ignorar la concepción
africana, sino encarnación directa y natural de la palabra,
comprensible para los iniciados, dirigida a los oídos y no a los
ojos como la escritura alfabética, reclamando una lógica
correspondiente de la escucha en lugar de la contemplación
sensible inteligible greco-occidental, que habría que tener muy
en cuenta cuando se habla de la inteligibilidad entre nosotros,
porque se acerca más a la tradición indígena y la refuerza. No
atesora sólo ritmo y melodía como la escritura europea en
versos, sino además el conjunto melódico-rítmico de las
palabras. Con sus fórmula rítmicas llama a los orishas en la
santería cubana, convoca a los loas en el vudú haitiano, imparte
órdenes terminantes a los ñáñigos en Cuba, y gracias a él allí se
conservan aún restos de lenguas africanas, perviven con fuerza
en las llamadas afrouruguayas. En África el tamborillero no fue
un simple intermediario de noticias, sino el intérprete del legado
de los antepasados, por lo que podía articular la épica, la lírica,
los himnos, etc. y actuar oficialmente como historiador.

El intento de los misioneros de hacer callar a los


tambores ‘paganos’ se dirigió especialmente a él, destruyendo
de este modo las fuentes más fidedignas. Hoy, en la medida en
que se impuso la instrucción escolar europea, el lenguaje de los
tambores está prácticamente extinguido; los jóvenes africanos
suelen ya no comprenderlo, aunque su presencia latente se

291
manifieste, por ej., como relata J.Jahn98, cuando los niños de
Camerún llaman a la pizarra de clase, con instintiva conciencia
de lo que ella significa, esa pared negra donde se habla con los
muertos. A pesar de ellos, los tambores están todavía presentes
en América, porque han venido a formar parte de nuestro
lenguaje, con la fuerza que le imprimieran sus importadores
africanos. Cual elocuente escritura conservaron, recrearon y
continúan convocando; acompañaron las gestas patrias, fueron
pregoneros oficiales y transmiten hoy un particular sentido a las
manifestaciones populares, justamente por haber constituido el
lenguaje de los esclavos y por extensión de los ciudadanos sin o
con escasa voz.

El sentido africano mencionado de la palabra y su modo


de articulación tienen también una presencia ‘literaria’ oral y
escrita muy significativa entre nosotros. Si la literatura oral es
siempre importante por cuanto precede y acompaña a la escrita
guardando la plenitud del fenómeno literario, de su vitalidad, de
la concretez de la creación y recreación comunitarias, en nuestro
continente ha operado además como salvaguarda y continuidad
de la vida de sus pueblos, en la complejidad, singularidad y
mestizaje de sus diversos componentes, ante la pretensión
unilateral de estilos o concepciones que se imponen y
discriminan según los avatares de la historia vigente. Lo
africano, que trae consigo una vasta y significativa literatura
oral, se recrea en América, inspirándose en sus propias
tradiciones, en las nuevas circunstancias que le toca asumir y en
la historia que debe compartir. Cuentos, fábulas, dichos, poesía,
refranes, humor, mitos, se expanden con mucha fuerza y pasan a
integrar el folklore general con su rica imaginación, sus

98
J. Jahn, op. cit., p. 222.

292
fulgurantes metáforas e imágenes y otros caracteres típicos. El
arte payadoresco, que también pasó a la literatura escrita, tuvo
como protagonista fundamental, al africano y sus descendientes
y pervive sobre todo a través de ellos hasta nuestros días como
expresión vivida, dotada de muchas posibilidades estéticas y
testimoniales, sobre la base de la agudeza y rapidez mental;
nutrido en el canto contrapuntístico africano, de amplia y
variada tradición, no sólo se manifiesta vocalmente sino también
en diálogos musicales, como los duelos de tambores, los cutting
contest del jazz, las llamadas de los tambores afro-uruguayos y
las contiendas danzantes. Otra voz que se puede incluir en la
literatura oral es la de los pregones, que de modo pintoresco y
expresivo, acompañó a casi todos los aspectos de las vida, en
calidad de testimonio tan inadvertido como elocuente,
transmitiéndose de generación en generación, recogiendo el
habla coloquial y sus giros más sabrosos, sobre la base de
melodías breves y fragmentarias; aunque tienden a desaparecer
al compás de la transformación tecnológica de las sociedades,
guardan por lo menos una existencia marginal, como uno de los
ejemplos de resistencia popular.

En la literatura afroamericana escrita, el poeta y crítico


barbadense E.K.Brathwaite99distingue para el Caribe cuatro
especies, que se pueden extender a todo el Continente, a saber:
una literatura retórica, cuando el escritor, no conociendo
profundamente lo africano, lo invoca sin activar realmente su
presencia, si bien su preocupación lo conducirá a una
africanización posterior del estilo; una literatura de
supervivencia africana, que trata conscientemente a ésta, pero
sin intentar una interpretación o reconexión con la tradición
99
E.K.Brathwaite, “Presencia africana en la literatura del Caribe”, en
M.Fraginals, op.cit.

293
africana, insertándose más en la tradición popular de cuentos,
canciones, proverbios, letanías del Hounfort, donde se celebran
los cultos del Vodun ; de este modo se hallan ya presentes
numerosos elementos africanos como el ritmo, fragmentos
fonéticos de lenguas ancestrales, contenidos metafísicos, aunque
persista la dicotomía en la forma de escribir y en la misma
actitud ante la cultura africana como tal. Un tercer estadio
estaría representado por la literatura de expresión africana, es
decir, que asume el material popular en la misma forma literaria:
se advierte la fuerza y el progreso de las imágenes, la presencia
de ritmos a veces esenciales en la expresión, la importancia de la
palabra-conjuro, la improvisación rítmica y temática tan cara a
la tradición africana como en algunos poemas de N.Guillén,
A.Césaire, L.Damas, J.Ali o el propio Brathwite, en los cánticos
y coros y en las tonadas de trabajo, transformando a veces la
forma-sentido de la palabra. Por último, la literatura de
reconexión inyentaría relacionarse con la cultura madre africana,
reconociendo su presencia viva, creativa en nuestra sociedad,
como parte de ella. Una particular mención para nuestro
propósito merece el fenómeno de la poesía negra, que se
produce en Cuba en torno a los años treinta, asumiendo voces,
ritmos, temas y recursos en general de lenguaje negro y mulato,
extendiéndose luego a las Antillas y a toda América y
difundiendo a la par el modo y la valoración de una cultura de
origen africano que ya formaba parte nuestra, reconocida o no.
Las matrices de este movimiento fueron los cantos religiosos y
los cantos de Cabildo, ligados a la percusión de instrumentos, a
lo que habría que agregar los cantos de comparsa y los cantos
para matar culebras, en los que los ritmos son dominantes y las
voces pretextos para el ritmo de baile. Este movimiento poético
afroamericano, el más fuerte conocido en lengua española, sigue
existiendo como corriente viva en la poética latinoamericana por

294
sus valores intrínsecos, que se puede ver concentrados en el
sentido y forma de la palabra africana.

El ritmo

Como lo afirma el poeta senegalés L.S.Senghor100, el


ritmo es para el africano la arquitectura del ser, la dinámica
interior que le da forma, la pura expresión de la energía vital, el
shoc que produce la vibración o fuerza que sensiblemente nos
toma en nuestras raíces y se expresa materialmente a través de
líneas, colores, superficies y formas en la arquitectura, escultura
o pintura, a través de acentos en la poesía y en la música, de
movimientos en la danza; es el modo y forma de la palabra, que
la hace activa, eficaz, hasta el punto de afirmarse que la palabra
rítmica divina creó el mundo: por ello, primaría el arte poético
africano sobre el plástico, como arte puro, y en el poema el
metro sería rítmico.

Más importante aún que el ritmo de las palabras es el de


los instrumentos de percusión. El sonido de los tambores es
lenguaje, nommo, y preferencial: es la palabra de los
antepasados, quienes hablan a través de ellos, fijando los ritmos
fundamentales. Entre el ritmo de la palabra y el de los tambores
existe una especie de contrapunto. Todo un sistema rítmico
refleja el pensamiento africano, que ausculta, responde a la
lógica compleja de los seres: la rítmica polimétrica de percusión,
cuando suenan al mismo tiempo varios metros fundamentales de
diverso tipo –por ej. un tambor en compás de 4/4, seguido por
otro de ¾ y luego por un tercero de 2/2, con la misma duración a
pesar de las diferentes entradas- repitiéndose regularmente la
100
L.S.Senghor, “Der Geist der negro-afrikanischer Kultur”, en J.Jahn,
Schwarze Ballade, Düsseldorf, 1957.

295
misma serie de líneas divisorias de compás, o poli-rítmica
cuando un único metro fundamental se acentúa de distinto modo
y se sincopa –las líneas divisorias de compás son verticalmente
paralelas, como en la música europea, pero combinándose entre
sí varias versiones rítmicas de un mismo metro. Ambas formas
componen la rítmica en cruz, o sea, que los grandes acentos de
las formas utilizadas no coinciden, sino que se apoyan unos
sobre otros en cruz. Con tal entrecruce el africano obtiene una
serie arrebatadora de acentos, formas extáticas de movimiento,
por ej. en el vudú algo así como la palabra de los loas101, según
la cual el danzante encarna un loa determinado: los tambores
‘dicen’ la palabra hechicera que nombra a un determinado
danzante para posesión de un loa concreto. La presencia de estas
formas rítmicas, específicamente africanas, indica también la
extensión de su influencia musical. En las Antillas se mantienen
aún poliritmia y polimetría en el ámbito afroamericano, mientras
que en los Estados Unidos de N.A. queda sólo la poliritmia
como elemento vétero africano y sigue siendo determinante aún
en el estilo swing del jazz.

En la poesía, enmarcada en la polimetría o en la


poliritmia, el ritmo obra como una arquitectura, una fórmula
matemática, basada en una unidad en la multiplicidad. De modo
análogo a los tambores, forma ritmos secundarios de lenguaje,
dice Senghor102, que descansan en aliteraciones, paranomasias y
anáforas, en repeticiones de fonemas y sonidos que fortalecen el
efecto de la totalidad; por eso resulta incompleta la mera lectura
si no va acompañada al menos por un instrumento de percusión.

101
J.Jahn, Muntu: Las culturas de la negritud, op.cit. II y IV.
102
L.S.Senghor, Der Geist…, op.cit.

296
También la prosa es impulsada por el ritmo. Para el
africano no se diferencia fundamentalmente de la poesía, que es
sólo una prosa más fuerte y regularmente rítmica; la misma frase
puede convertirse en poesía si se acentúa el ritmo y con ello se
expresa la tensión del ser. Antiguamente toda narración contenía
un fuerte ritmo y por lo tanto era poesía; tal como nos ha
llegado, en su forma más profana de fábula, estaba siempre
acompasada, aunque lo fuera débilmente, y poseía la tensión
dramática que surge de la repetición de un detalle, un gesto, una
melodía, un g rupo de palabras que se convierte en leit motiv,
aunque apareciendo siempre un nuevo elemento, una variación
en la repetición, que subraya el desarrollo dramático. De este
modo, la prosa no rehúye recurrir a palabras y figuras verbales
descriptivas que se basen en la repetición de fonemas.

Toda obra artística, todo gesto africano está


compenetrado de un ritmo que significa algo, que resalta el
significado, como otro componente del kuntu, modo. Las partes
están rítmicamente articuladas y referidas unas a otras. El todo
recibe su significación del nombramiento y viene expresado por
signos que el ritmo se encarga de disponer e intensificar en su
capacidad expresiva.

La concepción religadora de la realidade

La vitalidad innovadora, la gran fuerza creativa que los


esclavos africanos mostraron en América, a través de una amplia
distribución y división de pueblos, es el producto final de siglos
de transformación, en los que no fueron meros sujetos sino
agentes activos. Las creencias afroamericanas constituyen un

297
sistema de valores y percepciones subyacentes, que toma
determinadas formas, de acuerdo con las condiciones peculiares
de cada lugar, como sucede con otros aspectos de su cultura, y
que sobre todo detentan un profundo sentido religador, que
permitió preservar un ethos a lo largo de dramáticas luchas y de
presiones de poderes hegemónicos.

En el sistema de interrelaciones dinámicas en el que se


dan las culturas africanas, la religión constituye el mayor
exponente, que impregna y marca todas las actividades, aún las
más profanas, puesto que caracteriza la concepción africana de
la realidad. Por ello, en la diáspora fue el factor fundamental que
permitió el reagrupamiento de los africanos y sus descendientes,
la transmisión de valores esenciales, dentro de un proceso de
continua adaptación, fagocitación de elementos foráneos y
reinterpretación103.A su vez, a través de la más variada gama de
manifestaciones, generalmente desconocidas o malinterpretadas
por el blanco debido a su extrañeza y su carácter iniciático, han
influido la sociedad global americana, permeando sobre rodo la
religiosidad popular, aún más con actitudes que con elementos
precisos.

El vudú haitiano y la santería cubana, así como algunos


ritos en Brasil y en el Río de la Plata constituyen exponentes
notorios de esta situación e importancia de la religión
afroamericana. A pesar de su diversidad, hay rasgos
fundamentales que mancomunan los ritos y manifiestan un
sentir y un tipo de inteligibilidad religadores.

103
Como también lo subrayan J.E. y D.M. dos Santos, “Religión y cultura
negra”, en M.Moreno Fraginals, África en América Latina, Siglo XXI,
México, 1977.

298
El culto no se dirige al ente supremo, dios creador, por
considerárselo inefable, distante, sino a las más diversas
manifestaciones de la divinidad, fuerzas de la naturaleza o
antepasados, númenes llamados orishás entre los yorubas,
vodús entre los ewes, osoms entre los fanti-shantis, okices o
inkkissis entre los angoleños y congoleños, con sus diferentes
características, insignias, cantos, danzas e instrumentos
musicales. Se suceden libaciones y ofrendas de animales, ritmos
musicales, canto y danzas hasta que los iniciados son poseídos o
‘cabalgados’ por un loa o espíritu. La danza parece al profano
un proceso descontrolado, sin embargo, cada danzante,
cabalgado por un loa diferente, sigue con espontaneidad el
movimiento que le corresponde; los tambores indican los ritmos,
llamando sucesivamente a cada loa por el suyo y guiados a su
vez por las carracas sacras de los sacerdotes, quienes señalan a
los tamborileros el toque oportuno, como directores de una
ópera sagrada con su batuta, la orquesta –los tamborileros-, el
coro de iniciados y los solistas –los danzantes-, sin desorden
alguno. Todo posible desborde es detenido por un toque de
despedida.

Se ha de advertir aquí la importancia de esta música de


base polimétrica. Mientras en la conciencia europea, el ritmo es
captado más bien por el oído, en los africanos lo es por el
movimiento; en su técnica de off beat nos encontramos ante un
éxtasis en el sentido estricto de la palabra, pues su esencia reside
en romper unos compases tranquilos y estáticos, marcados por el
ritmo y el metro, por la superposición de contrapuntos extáticos,
originando tensiones entre acentos estáticos y extáticos, cosa
que sucede en todos los modos africanos de combinaciones
rítmicas, debiéndose ver tal vez allí su finalidad y sentido de
prvocar un éxtasis continuado. En las iglesias negras

299
norteamericanas se observan formas más atenuadas por
influencia cristiana. Ante el orden mencionado, es evidente que
no puede tratarse de sugestión masiva ni de paranoia en los
danzantes, como lo afirman ciertas malinterpretaciones, sino del
seguimiento de normas profundamente arraigadas en la cultura y
que escapan a la comprensión de los profanos; ellas conducen a
expresar su excitación en una catarsis, en una acción rítmica que
abarca sonido y movimiento, manteniendo sin embargo la
conexión con el mundo; las potencias físicas y espirituales
intactas, incluso parecen elevarse, tal vez superando o
equilibrando conflictos psíquicos y operando una armonización
interior, pues el danzante aparece luego extraordinariamente
fresco; se trata entonces de una acción bienhechora y no dañina,
lo esperado por el creyente de todo aquél que tome parte activa
en el culto, considerándose anormal el no haber sido poseído por
el dios. Es así comprensible que estos actos de culto, que
condensaban el imaginario africano y sus formas más propias de
lenguaje –la palabra, el ritmo, el canto, la danza- fueran el
religante por excelencia de pueblos tan castigados y sometidos a
toda clase de desestructuración y aculturamientos. El secreto de
la vida y el sentido del culto y de las ofrendas es para los
africanos establecer una relación constructiva entre todas las
fuerzas que componen la realidad , en el cruce del eje humano y
del divino, tal como significa para ellos la cruz; puesto que el
mundo no se presenta como un conflicto entre mal y bien, luz y
tinieblas, sino que toda fuerza, incluso la divina, alberga
posibilidades constructivas o destructivas.

Tal como observa A.l Kagame104en el pensamiento


bantú, y ello es extensivo al pensamiento negroafricano en

104
A.Kagame, La philosophie bantú-rwandaise de l’être, op. Cit.

300
general, todo lo existente, sea él muntu –ente inteligente-, kintu
–cosa-, hantu –lugar y tiempo-, kuntu –modalidad-, es percibido
no como sustancia sino como fuerza –ntu-, operando sin
interrupción y relacionada con las demás. El mundo aparece
entonces como continuo nacimiento y lo divino como primero
creador y procreador. Los mismos difuntos son fuerzas
espirituales, que pueden influir en sus descendientes vivos
vigorizándolos, mientras ellos son a su vez vigorizados a través
de las ofrendas de éstos, cumpliéndose la ley de interacción
entre las fuerzas vitales del universo. De tal modo que cuando es
alterada debe ser restablecida; por ej. cuando alguien,
intencionalmente o no debilita el bienestar de otro, se siente
obligado a recuperarlo, y no sólo en los daños materiales como
suelen establecerlo las jurisprudencias, sino en su propia
vitalidad. Ello ha producido, como señala Senghor, una cultura
armónica, que además permite acomodarse a situaciones nuevas
y asimilar al diferente como una nueva fuerza.

Una lógica vital, de alteridad y comunión, que se expresa


en el genio africano vigoroso, sensible, capaz de asumir
dimensione originarias, olvidadas, que hoy pueden reubicarnos.

301
302
A CONCEPÇÃO DE RAÇA E A RAZÃO NEGRA EM
ACHILLES MBEMBE.

Eliseu Amaro de Melo Pessanha

Introdução

Os problemas originados a partir do racismo antinegro


causam uma série de dificuldades a essa população não apenas
no continente africano, haja visto que negros e negras em todas
as partes do mundo enfrentam os dissabores sociais,
epistemológicos e psicológicos por conta da cor de suas peles.
Esse fenômeno não emerge na história ocidental de maneira
natural, ao contrário que alguns possam imaginar o racismo é
resultado de uma combinação de estratégias que foram forjadas
a partir de uma lógica de exclusão do Outro. A filosofia, assim
como outras formas de conhecimento, também contribuiu para o
êxito desse processo, por isso faz-se necessário que iniciativas
decoloniais comecem a conquistar espaços acadêmicos inclusive
nos departamentos de filosofia, onde tradicionalmente o
pensamento hegemônico eurocêntrico costuma ser pouco
contestado, que é o que esse ensaio se propõem a analisar.

O filósofo e cientista político camaronês, Achilles


Mbembe (1957 - ) faz uma genealogia desse racismo analisando
o conceito de raça, e o de negro, para construir a argumentação
de um subalterno, o “negro do mundo”, que não
necessariamente é um sujeito de pele preta. Essa construção

303
apresentada na genealogia de Mbembe se processa em
concomitância com a expansão do capitalismo e suas fases, que
iniciam com o colonialismo e se estende até o seu estágio atual;
a globalização, e em seu desenvolvimento, torna o homem um
objeto; um processo que vai do homem-metal ao homem-
moeda. Nesse percalço o racismo funciona como eixo
estruturante da sociedade contemporânea. A invenção da raça,
uma “construção fantasista” determina o espaço social em que
deve permanecer o negro, determina também a epistemologia
que o define, e como consequência delibera uma contra-
epistemologia; a razão negra, que vai agenciar um sujeito capaz
de propor uma ontologia diferente da ontologia ocidental, ou
seja, uma que compreenda a alteridade como sujeito e não como
objeto. Mbembe constrói uma crítica à essa razão negra por
entender que ela persiste em algumas concepções semelhantes a
interpretação europeia a respeito da África e dos problemas
africano, esse mesma interpretação que a razão negra se propôs
a criticar.

Ao final o ensaio apresenta a proposta de Mbembe para a


humanidade subalternizada.

A raça.

O conceito de raça tradicionalmente era utilizado para


classificar as diferenças em animais, segundo Mbembe a raça
começa a ser utilizado com humanos quando os europeus
decidem se diferenciar dos demais grupos humanos, assim raça
começa a identificar as “humanidades não europeias”
(MBEMBE, 2014, p.39). Nessa divisão da humanidade em raças

304
a razão ocidental determina quais são inferiores e quais são as
superiores, no caso a raça branca europeia. Mas essa questão dos
diferentes tons de pele começa a ter uma “dimensão
fantasmagórica” com o advento do capitalismo, segundo
Mbembe era necessário negar a humanidade do outro para que
então se construísse uma justificativa de transformar o Outro em
um mero objeto, “o alterocídio, isto é, constituindo o Outro não
como semelhante a si mesmo, mas como objecto
intrinsecamente ameaçador”. (James Balwin apud. Mbembe,
2014, p.26) Mbembe vai discorrer sobre o conceito de raça a
identificando como “ uma construção fantasista”, uma “projeção
ideológica”, dessa forma pode-se entender que a raça é uma
construção conceitual, assim como o negro.

No que se refere a construção do conceito de raça a


filosofia ocidental contribuiu com a fundamentação ontológica
do racismo epistêmico, formando assim uma tríade que envolve
as áreas do conhecimento e cultura sendo elas; a teológica, a
filosófica e a científica, todas elas serviram aos interesses de
uma política que tinha como objetivo expandir a colonização e
capitalismo. David Hume, (1711-1776), filósofo escocês
argumenta em Essay: Moral, Political and Literary , no ensaio
Of National Characters, que os negros são inferiores aos
brancos por não possuírem qualquer sinal de criatividade para
as artes, as ciências etc. Immanuel Kant (1724-1804) constrói a
sua noção de superioridade da raça branca em ao menos quatro
de suas obras; Das diferentes raças humanas; Determinação do
conceito de raça humana, Antropologia do ponto de vista
pragmático e Observações sobre o sentimento do belo e do
sublime. Kant reforça a noção de superioridade da raça branca
europeia como Hume: “ os negros da África não possuem, por
natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”.

305
Dando continuidade à construção ontológica do racismo
epistêmico George W. Hegel (1770-1831) em Filosofia da
História, “...negro representa, como já foi dito, o homem
natural, selvagem e indomável (...). Entre os negros, os
sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais
exato, inexistentes”.

Percebe-se a partir das citações a cima que a raça é


utilizada como conceito que separa o negro da humanidade e o
inferioriza igualando a condição de bestas. Mas o que de fato
aprofunda a problemática das diferenças raciais? Pode-se
entender que o racismo é fruto da modernidade? Para o cientista
social e pesquisador cubano Carlos Moore (1942 - ) o racismo
como problema social não tem a sua origem com o colonialismo
e a expansão do capitalismo na idade moderna ocidental, Moore
argumenta que “... na Antiguidade o racismo sempre foi uma
realidade social e cultural pautada exclusivamente no fenótipo,
antes de ser um fenômeno político e econômico pautado na
biologia.” (Moore, 2007, p. 22) E esse fenômeno para qual
Moore aponta, Achilles Mbembe argumenta que essa forma
moderna de racismo foi pautada pelo desenvolvimento da
capitalismo. Mbembe não crê que o racismo começa a existir na
modernidade, mas que justamente com esse advento é que essa
“fantasmagoria” transcende de uma mera implicação para com a
cor da pele à um sistema de dominação política que determina o
lugar subalternização com base na cor da pele. A raça é essa
fronteira que determina como fator biológico a existência de
diferentes grupos humanos, e a cor da pele define essa
territorialidade da pele.

306
Particularmente o <Pequeno Branco>, foi ao alimentar e
cultivar a diferenças que o separam do Negro que se
sentiu humano. O sujeito racista reconhece, em si
mesmo, a humanidade não naquilo que o faz a mesma
coisa que os outros, mas naquilo que o distingue deles. A
lógica da raça no mundo moderno é transversal à
estrutural social e econômica, interfere com movimentos
da mesma ordem e passa por constantes metamorfoses.
(MBEMBE, 2014, p.73)

Na mesma linha de raciocínio de Moore, Michel


Foucault (1926-1984), filósofo francês, desenvolve o conceito
de Biopoder na sua obra, Em defesa da sociedade, resultado de
um curso ministrado no Collège de France em 1976, onde
argumenta que como consequência do contratualismo, quando a
sociedade transfere ao soberano, no caso o Estado, a autoridade
de decidir sobre a vida e a morte dos membros da sociedade “...é
para poder viver que constituem um soberano” (FOUCAULT,
2005, p.287). Segundo Foucault o velho direito de soberania
operava na lógica de “fazer morrer ou de deixar viver”, com o
advento do contrato social essa lógica se altera e cabe ao
soberano “fazer viver e deixar morrer”. Foucault começa a
questionar na sua obra:

não é a vida que é fundadora do direito do soberano? E


não pode o soberano reclamar efetivamente de seus
súditos o direito de exercer sobe eles o poder de vida e de
morte, ou seja o poder de mata-los? Não deve a vida ficar
fora do contrato, na medida em que ela é que foi o
motivo primordial, inicial e fundamental do contrato?
Tudo isso é uma discussão de filosofía política que se
pode deixar de lado, mas que mostra bem como o
problema da vida começa a problematizar-se no campo
do pensamento político. (FOUCAULT, 2005, p. 288)

307
Foucault vai dizer que a partir do fim do século XVIII
essa “tecnologia de poder”, que é uma outra etapa da técnica
disciplinar, pois nessa tecnologia os corpos “ devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos”
(FOUCAULT, 2005, p. 289), essa é a biopolítica. O biopoder
determina quem pode viver e quem pode morrer usando o
critério biológico da raça, há raças superiores e raças inferiores,
e esse é um critério eugenista. E qual raça seria essa, condenada
a morte? Com os conceitos de raça e negro acho que posso
construir uma resposta para essa indagação.

Capitalismo e Colonialismo.

“O nascimento da questão da raça – e portanto do Negro


– está ligado à história do capitalismo.” (MBEMBE, 2014, p.
299), Mbembe compreende a história do capitalismo como um
dos instauradores da modernidade e que se estabelece e se
fortalece a sua expansão explorando a mão de obra de corpos
africanos que saíram da África como mercadoria para produzir
riquezas na Europa e no Novo Mundo, por isso foi cruzando o
Atlântico que essa acumulação produziu um lucro jamais
alcançado antes na comercialização de seres humanos como
escravos. Esses africanos e africanas foram transformados em
homem-mineral, homem-metal, e homem-moeda. A
transformação do africano em coisa ultrapassa a noção de
utilizar o Outro como um objeto, como um meio para se
alcançar alguma finalidade; “matéria energética” (MBEMBE,
2014, p.141), mesmo que a escravidão tenha sido usada por
quase todas as civilizações que já existiram, ela como meio de
produção econômica nunca havia alcançado uma quantidade de

308
pessoas, um aparato burocrático e um lucro tão grande quanto
foi durante o período de colonização do continente americano e
também do africano.

Mas a escravidão logrou esse êxito lutuoso porque foi


executada sob a égide do colonialismo, o colonialismo
conseguiu subjugar o negro, o africano de forma que se
naturalizasse o seu estado de não-humanidade. Quando Hegel
afirma que “ a principal característica dos negros é que sua
consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer
objetividade fixo, como Deus, como leis (...) Neles, nada evoca
a ideia do caráter humano” (HEGEL, 1999, p.83-86) isso
contribui para o que Mbembe vai chamar de “diferença de
qualidade entre as raças” (MBEMBE, 2014, p.114). Essa
ideologia, do projeto imperialista do nacional-colonialismo
francês começa a funcionar no século XIX como uma prática
pedagógica que é disseminada pela cultura de massas
principalmente por instituições culturais. Essa pedagogia
colonial convence o povo francês, que na crença da
superioridade da raça branca, o faz acreditar que o colonialismo
é uma maneira de ajudar no desenvolvimento “humano”,
intelectual, moral etc do negro.

Essa aparente benesse vinda do homem europeu é um


artificio retórico com o objetivo de inflar no povo um
sentimento de superioridade intelectual e principalmente moral,
qual cidadão de bem não se sentiria honrado em contribuir com
o seu país com a finalidade de estancar a idiotia dos negros, uma
raça inferior? A qualidade da raça além de tornar popular o
racismo entre a massa da população ainda tinha uma ação
pedagógica eugenista pois difundia a manutenção dessa
qualidade combatendo a miscigenação. Como Mbembe diz que

309
na consciência racista, a aparência ser a verdadeira realidade das
coisas (MBEMBE, 2014, p.194), essa benesse citado a cima não
passa de mera aparência, o uso sistemático da violência, em
variadas formas, é o que prevalece na empresa colonial.

Mbembe argumenta que o discurso negro é pautado por


três acontecimentos históricos; a colonização, a escravatura e o
apartheid (MBEMBE, 2014, p. 139), o autor ainda faz um
desdobramento desses acontecimentos que ele chama de
significados canónicos desse discurso; a separação de si mesmo,
a desapropriação e a degradação. Na separação de si mesmo o
negro se torna estranho do seu próprio eu, como se uma amnésia
desconfigurasse a sua própria identidade, como se fosse nada
mais do que um corpo a ser utilizado ao bel-prazer do
colonizador, do senhor. O processo de desapropriação retira do
negro tudo, ele não é dono nem do seu corpo, nem da sua
família, é retirado da sua terra e enviado a outros mundos, outras
geografias, sem portar absolutamente nada, Mbembe vai chamar
de “empobrecimento ontológico”. E por último, a degradação
tira-lhe a honra, o orgulho, o brio, relegado a toda forma de
humilhação e desprezo. Todo esse mecanismo perverso deixa o
negro a mercê da morte, quando não de algo pior.

Mbembe nomeia de “primeiro capitalismo” o período da


expansão marítima europeia, quando tráfico negreiro intensifica
a diáspora africana o que também intensifica a diáspora de
outros povos para a ocupação, principalmente dos continentes
americano e africano. Esse primeiro capitalismo para lograr
êxito utiliza-se da mão de obra escrava, daquele que foi
designado o negro; “a cripta viva do capitalismo” (MBEMBE,
2014, p.19), para auferir lucro ao europeu nas terras do Novo
Mundo. Esse processo de acumulação de riqueza é

310
“combustível” que vai fomentar o desejo de vários povos
europeus de terem suas próprias colônias seja na América, seja
na África.

O negro e a razão negra.

Afinal, o que é o negro? Uma fantasmagoria,


diria Mbembe. Uma construção fantasista, assim como a ideia
de raça. Tentar compreender o negro à luz do ser e da aparência
é problematizar o “momento gregário do pensamento ocidental”.
Esse momento, que Mbembe aponta como momento culminante
a obra Razão na História, de Hegel, um momento em que
ímpeto imperialista denomina a humanidade não europeia como
inferior, e utiliza a ideia da raça para estender a essa
humanidade negra um entendimento de animalidade, de não
humanidade, não racional, um estado de degradação ontológica
do homem.

Num plano fenomenológico; “um jazigo (...) uma ganga


de disparates e de alucinações”, no âmbito jurídico; “uma não
pessoa”, como categoria histórica; “o negro não existe”, na
esfera econômica; “ a cripta do capitalismo”, “ ...uma
engrenagem essencial de um processo de acumulação à escala
mundial” (MBEMBE, 2014, p.90). De todas as demonstrações
sobre a concepção de negro que Mbembe apresenta é a sempre a
concepção do ocidente. Mas o que pensa o africano a respeito de
si mesmo? Antes do contato com o europeu como o africano
concebia a sua própria identidade?

311
O alterocídio transformou o negro em uma categoria da
raça tão inferiorizada, subalternizada, descaracterizada de toda e
qualquer assimilação com a humanidade, que o negro se tornou
aquilo que ninguém quer se identificar, o negro é o “não-ser” do
mundo, o “não-eu”. Adjetivar o africano com toda a sorte de
características pejorativas suscitou um discurso negro que
aborda a escravidão, a colonização e o apartheid, e um dos
significados canónicos desse discurso, a separação de si mesmo
compõem um dos eixos fundamentais da construção de um
discurso sobre a identidade negra. Esse discurso vai reivindicar
uma humanidade negra. Ora, mas será que somente a
racionalidade branca europeia conceituava o negro, o africano?
O que os pensadores e pensadoras negros e negras construíram
durante esse período que Mbembe chama de “momento gregário
do pensamento ocidental”? Que tipo de discurso eles
proferiram?

Ao discorrer sobre a razão negra Mbembe apresenta uma


contra-epistemologia, um “conjunto de vozes, discursos,
saberes” que se fazem a voz das pessoas negras e de todas as
suas vivências, historicidades e produção cultural. Uma voz que
desde a Antiguidade mais do que evocar propaga a sua criação
epistêmica em todas as áreas do conhecimento. Essa criação
epistêmica feita por pessoas negras, pessoas africanas é
disseminada por narrativas por gerações que ciente do legado de
seus antepassados não se permitem a negligenciar os seus
ancestrais. Mais do que discurso Mbembe entende a razão negra
como um conjunto de práticas que consiste em “inventar,
contar, repetir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais com
o objetivo de fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça”
(MBEMBE, 2014, p. 58). Ao evocar o conceito de texto o autor
apresenta duas formas de texto, a primeira ele chama de

312
consciência ocidental do Negro, que pretende dá resposta a
indagação a respeito de “Quem é o Negro?”. A segunda forma
de texto Mbembe pergunta “Quem sou eu?” , e a essa segunda
forma ele chama de a consciência negra do Negro.

“Quem é o Negro?”, “Quem sou eu?”, consciência


ocidental e consciência negra, há aí duas perspectiva que
pretendem tentar uma resposta, ou apontar para uma, que seja
legítima da comunidade negra, “ uma comunidade cujas
manchas de sangue são visíveis em toda a modernidade”
(MBEMBE, 2014, p. 60). A questão “Quem é?” remete a uma
exterioridade, não é uma indagação feito pelo próprio “eu”, é
um julgamento de identidade. Para Mbembe interessa mais a
segunda interrogação, pois se trata de uma declaração de
identidade, em que “o Negro diz de si mesmo que é aquilo que
não foi apreendido” (MBEMBE, 2014, p. 59). É a partir dessa
declaração de identidade que Mbembe propõe a instauração de
um arquivo, “indispensável para restituir ao Negro à sua
história”. Entre a consciência ocidental do Negro e a consciência
negra do Negro, o autor destaca a segunda por promover uma
participação responsável no mundo, “uma participação plena e
inteira na história empírica da liberdade” (MBEMBE, 2014, p.
61). É imprescindível à consciência negra uma percepção
histórica, uma participação política e cultural assim como um
posicionamento combativo ao colonialismo, à segregação e uma
libertação “das hierarquias raciais”.

O texto, a consciência negra, propõem de forma


incontestável combater a estratégia de separação de si mesmo
que foi imposta ao Negro pelo colonizador. Ao problematizar a
identidade e resgatar a história do Negro em que ele próprio é o
dono da sua narrativa e definidor de si mesmo fornece a ele ou

313
ela as bases ontológicas para o resgate, a construção e a
divulgação de uma epistemologia autônoma, que seja
fundamentada a partir da sua própria visão de mundo,
constituindo seus valores, seus métodos, sua estética,
produzindo dessa maneira um conhecimento que naturalmente
vai se somar ao conjunto de vozes e narrativas da razão negra,
ensurdecendo o silenciamento imposto, fortalecendo a
reivindicação da raça.

( o apelo à raça)

A humanidade negra.

Todos os signos que foram usados para designar,


adjetivar, identificar, classsificar o Negro podem agora ser
reutilizados para identificar uma parte da humanidade que se
encontra em situação de subalternos, o que Mbembe chama de
“homem-coisa, homem-máquina, homem-código, homem-
fluxo” (MBEMBE, 2014, p. 15). Essa transformação segue a
mais um desdobramento do capitalismo. O autor identifica três
momentos; o momento de colonização, tráfico negreiro,
escravização dos africano, no segundo momento; as revoltas
abolicionistas, a luta pelos direitos civis, o processo de
independência dos Estados africanos, até o fim do apartheid, e
por fim a globalização e o neoliberalismo. Todos esses
momentos são marcados pela determinação da raça e do lugar
em que o Negro deve ocupar, o lugar de exploração, humilhação
e morte.

314
Essa “humanidade subalternizada” ocupará esse lúgubre
espaço no mundo independe da sua raça, ou cor da pele. A
globalização opera no sentido de conseguir explorar o máximo
desse novo homem, desse “sujeito neuroeconómico”
(MBEMBE, 2014, p. 15). Utilizando de mecanismos como
“práticas de zoneamento”, dívidas estruturantes, “imperialismo
da desorganização”, essa terceira fase do capitalismo produz
subalternos e os subalternos produzem para o capitalismo, se
esforçam para consumir pois dessa forma mantém o status que
determinam a nossa época:

Se, ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo


capital, hoje, a tragédia da multidão é não poder já ser
explorada de todo, é ser objecto de humilhação numa
humanidade supérflua, entregue ao abandono, que já nem
é útil ao funcionamento do capital (...) é um individuo
aprisionado no seu desejo. A sua felicidade depende
quase inteiramente da capacidade de reconstruir
publicamente a sua vida íntima e de oferece-la num
mercado como um produto de troca (MBEMBE, 2014,
p. 14/15)

Considerações finais.

Achilles Mbembe consegue elaborar uma análise


cuidadosa sobre a questão da raça e do capitalismo. Passando
por momentos históricos e os seus respectivos conceitos o autor
desenvolve a concepção de razão negra, “um conjunto de vozes
e narrativas” que problematizam questões caras aos negros e à
África. Por mais que possa parecer uma constatação simples ou
até óbvia, não é comum encontrar essas evidências fora do

315
cânone do discurso negro, Mbembe destaca como e por que
essa exclusão fez parte de uma epistemologia ocidental que se
fortifica principalmente a partir da modernidade.

Ao abordar o problema do devir negro, a humanidade


subalternizada, subalternizada pelas metamorfoses do
capitalismo o autor discorre sobre fenômenos atuais,
demasiadamente contemporâneos e com uma refinada crítica ao
neoliberalismo. Mas o que é possível dizer sobre as angustias do
nosso tempo? Poderão os negros de outras raças (humanidade
subalternizada) reivindicar uma raça, ou uma classe? Como
seria uma instauração da consciência negra da humanidade
subalternizada? A factualidade de uma humanidade subalterna,
tornar-se o negro do mundo ainda demora, mas não tarda.
Talvez ela ecloda quando a eugenética conseguir instaurar uma
nova concepção de humanidade aos poderosos. Então caberá aos
subalternos a pergunta, “quem sou eu?” “Eu sou humano?”

A eugenia falhou em tentar eliminar os “resíduos


humanos”, mas é bastante provável que a partir de um
“melhoramento” genético ela consiga construir uma humanidade
supra-humana, somente para os “escolhidos” pelo capitalismo,
sem esterilização em massa, sem holocausto, sem confinamento.
Essa nova eugenia, a eugenética, utilizara o critério capitalista,
dessa forma quem tiver condições de pagar ascenderá a essa
supra humanidade. Então, o critério de raça não será mais a cor
da pele, o fenótipo, mas o genótipo melhorado.

316
Referências

FOUCAULT, Michel. 1962-1984. Em defesa da sociedade:


curso no College de France (1975-1976) Michel Foucault:
tradução Maria Ermantia Galvão. São Paulo: Martins Fontes.
1999. - Coleção Tópicos.

HEGEL, Georg W. Filosofia da História. Tradução Maria


Rodrigues, Hans Harden. Brasília: UnB, 1999.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução: Marta


Lança. Revisão: L. Baptista Coelho. Lisboa: Antígona. 2014.

MOORE, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases


epistemológicas para entender o racismo. – Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2007.

317
318
RODOLFO KUSCH E LÉLIA GONZALEZ NA
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO:
América profunda, amefricanidade e a perspectiva feminista
de lélia

Ineildes Calheiro105
Eduardo David Oliveira106

Introdução

O componente curricular intitulado “Filosofia


Contemporânea: a perspectiva latino-americana e africana”
propiciou a discussão sobre a filosofia andina e filosofia da
libertação, fundamentada no autor Rodolfo Kusch a partir de
algumas de suas obras, a saber: “O esbozo de una antropologia
filosófica americana”; “Negação do pensamento popular”,
“Geocultura do Pensamento americano” e “cultura e
libertação”.

Discutimos abordagens dessas obras a fim de conhecer o


pensamento do autor e suas influências, na sequência foram
introduzidos autores que analisaram o pensamento do
supracitado, discutindo a filosofia andina como alteridade, bem

105
Bolsista financiada pela CAPES. Doutoranda do Programa Multi-
Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento - DMMDC;
Ma. em Crítica Cultural. Licenciada em Educação Física. Membro do Grupo
de Pesquisa Rede de Africanidades. E-mail: ildafrica@yahoo.com.br.
106
Professor adjunto da FACED/UFBA, Antropólogo e filósofo.

319
como reflexões sobre práticas e discursos descolonizadores,
pensando a identidade como marcador de limites de fronteiras.
Nesse processo o pensamento de Silvia Riviera Cusicanqui foi-
nos apresentada por Ana Julia Buitos (argentina de Lapaz), em
dois momentos: nos dias 07 e 14 de março (2017), em forma de
curso e aula expositiva.

E a partir dessa discussão relacionamos com o


pensamento de Lélia Gonzalez. O autor andino, Rodolfo Kusch
e a autora negra, Lélia Gonzalez, militante e feminista, são
relacionados aqui para pensar a descolonização do pensamento e
as epistemologias do Sul, e mediante congresso de filosofia da
libertação apresentamos uma abordagem relacionando o
pensamento destes autores voltados para a perspectiva da
descolonização do pensamento sob as vertentes: da américa
profunda / América ladina, sendo relacionada a perspectiva
feminista de Lélia.

Na metodologia o método foi expositivo-debatido,


mediado pelo docente Eduardo Oliveira, denominado aqui
carinhosamente de DUDA, e incluiu-se palestra e debate com
convidados, mediado pelo docente em questão.

Pontos para pensar a filosofia da libertação

Na aula em questão expôs-se que a filosofia da libertação


é um movimento originado da teoria da independência.
Anteriormente surgiu a teologia da libertação, a pedagogia
libertadora (representada por Paulo Freire) e a antropologia da
libertação e, é desses vários movimentos que surge o paradigma

320
da libertação. Conforme nossa análise, a filosofia da libertação é
um movimento que começa nos anos 60.

A importância de conhecer o pensamento de Kusch é


afim de abordar a cultura andina como a cultura do “ser”, e de
outro lado, se aproxima da cultura africana, porém Duda (o
docente) entende uma grave lacuna o fato do o autor não incluir
a discussão sobre a questão de raça e negritude, no entanto,
destaca, é importante esse diálogo para pensar a imposição de
uma cultura eurocêntrica, que nos violenta, destacando e
visibilizando a cultura andina desvalorizada, e nesse caso, como
uma epistemologia alternativa.

Interpretamos que as Epistemologias do Sul tem sua


origem nos movimentos e comunidades, e surgem
desencadeados pelos movimentos da libertação. Em seguida
surge o pensamento subalterno e a decolonialidade. Nesse
sentido, começamos essa discussão destacando o significado da
América Latina, cuja relação aparece no contexto da ciência
com a ideia de pobreza, atraso, opressão.

Abordando a Ditadura na América Latina desencadeada


nos anos 1960, como desencadeadora da força e organização dos
movimentos sociais, movimentos negros e movimentos
feministas na América-Latina, considerando as várias mudanças
em diversos territórios, como o multiculturalismo, os estudos
culturais, a virada linguística ganhando força nos anos 60 (Stuart
Hall, 2003) e no Brasil, nos anos 80 (Elisa Cevasco, 2008 ).

321
Cuba como modelo de resistência e a questão de gênero
como lacuna na liderança de Fidel

Apesar da exceção a Cuba no processo da Ditadura,


frisamos que na história deste país houve uma forte e histórica
ditadura vencida nos fim dos anos 50, quando começa nos
demais países da América-latina. Sobre a tomada do poder em
Cuba (Fidel Castro, 2015)107, em 1959 um grupo de jovens
revolucionários apoiado por amplas camadas de camponeses e
trabalhadores da cidade derrubou a ditadura de Fulgêncio
Batista e instaurou uma república independente. Um grupo de
militantes desencadeia um processo de luta desde os anos 50
contra a Ditatura instaurada, sendo os militantes derrotados e
presos, junto a eles encontra-se Fidel Castro, é quando passe-se
a conhecer a capacidade de formulação discursiva deste jovem
advogado (ibidem, p.7-8).

“Somente em 1961, após a vitória do povo cubano ante a


invasão imperialistas estadunidense no episódio que ficou
conhecido como ‘Baía dos porcos’ é que se assumiria o caráter
da revolução cubana”. (Ibidem, p. 07). Desta forma, vemos
Cuba como um espelho para a luta dos demais países que
viveram este processo. A revolução cubana, que resultou no
socialismo, teria influenciado na revolução dos demais países da
América Latina?

E as mulheres neste processo cubano? Uma vez que, não


houve menção ás mulheres como participantes da vitória
cubana, no longo discurso de Fidel (nos idos de 1968), e, sendo
107
Do Discurso de Fidel Castro, no ano de 1968, em comemoração ao fato
histórico conhecido como “15º aniversário do Assalto ao quartel Moncada”.
FIDEL CASTRO (2015).

322
as mulheres fortemente afetadas nessa guerra, bem como em
todas as outroas, bem como foram partícipes em vários outros
territórios, torna-se relevante escavar este acontecimento a fim
de fomentar a influência das mulheres.

Conforme estudos, o feminismo apresentou-se nas


ditaduras de vários territórios, tanto em termos de combate,
quanto de avanço de gênero, porém, a história segue
invisibilizada. Uma abordagem correlacionando gênero e
Ditatura no Brasil alerta-nos para perceber o interior da
categoria mulher. Vejamos:

Lélia González (Barbosa, 2015)108 assinala, por


intermédio da ditadura no Brasil, que as norte-americanas
vieram para exercer a função de enfermaria hospitalar, e
também vieram como membros do exercito dos EUA. A autora
revela a submissão das mulheres brasileiras e o racismo
mediante o processo da ditadura por essas “outras” mulheres
ocidentais, destacando, inclusive, o comando feminino no
exército. E, por outro lado, observa-se também que estas
mulheres norte-americanas já estavam inserindo-se nos
trabalhos considerados fora de casa, remunerados e, mais que
isso, denominados papéis dos homens, quando, ao trata-se do
exército militar, embora que, em funções tidas como femininas -
de cuidado. Essa questão induz a pensar a articulação do
feminismo negro no Brasil e a crítica intragênero, mediante o
movimento de descolonização/libertação encabeçado por Lélia
Gonzalez, pela via do MNU-Movimento negro unificado e que
ganha força nos anos 90.
108
Do projeto Memória Lélia González, intitulado “Lélia González: o
feminismo negro no palco da historia”, onde conta-se a vida e obra da autora
homenageada.

323
Geocultura do pensamento: Rodolfo Kusch e a perspectiva
andina

Filósofo de formação clássica e antropólogo, Kusch


realizou pesquisas de campo com os índios Guaranis (Aimará),
na Bolívia. Nasceu na Argentina, filho de alemão com
argentina. Desde 1945 foi atuante na filosofia literária. Kusch
pensa a colonização no contexto indígena e tem o pensamento
andino na perspectiva da cultura do ser, e entende que o que
sustenta a cultura do ser é a América profunda, porque a
América sustenta o que a nega num movimento de passividade.
O pensamento andino, especificamente de Kusch, dá conotação
e compreensão sobre a hierarquização e ocidentalismos na
questão geopolítica e cultural.

Cultura é o termo que origina a força desse processo,


com as diversas perspectivas culturais tornando-se o fator
central tanto das discussões de Kusch quanto dos Estudos
culturais. Notam-se em ambas as perspectivas a defesa de uma
cultura no plural, dando destaque aos sujeitos subalternos.
Embora Kusch enfatize o simbólico em conexão com a
natureza/espiritualidade.

Retomando a sequência discursiva da aula, o supracitado


faz o discurso da hibridização desde os anos 50, quando
proliferava o discurso da pureza; elabora uma discussão sobre a
cultura do ser e do estar (nos termos de uma cultura passageira);
cria o método da negação – a negação da cultura popular (a
cultura do ser) em prol da cultura do estar, porém, discordando
desse processo, propõe nem estar, nem ser, para ele, estamos
diante de uma cultura do “estar sendo”, ou seja, está sendo
assim. Significa, no entanto, que tende a transcender. Citado

324
por Kusch, para Pool Ricoeur o pensar se instala desde o ser – o
principio da hermenêutica. Só se pode produzir sentido a partir
de um horizonte.

A Fagocitação é discutida pelo autor para fazer crítica à


aculturação como fator criativo. Quando Kusch traz o termo
“fagocitação” para o debate, por significar a interpretação do
que é o outro continuamente em defesa de uma existência em
fins de estabelecer uma dada cultura, em nossa interpretação se
trata da cultura alheia significando um nada em defesa da
cultura ocidental.

Cultura - um conceito ampliado na ótica kuschiana

Nos Estudos Culturais, para Raimond Willims a cultura é


pensada como modo de vida, desvinculando-se da cultura como
posse de um grupo seletivo, começando a desaparecer e a dar
lugar à preponderância do uso antropológico. “O outro sentido
de cultura designando as artes [...] a literatura, se inflete com a
predominância da crítica sobre a criação [...]”. (CEVASCO,
2008, p11).

Edward Thompson foi membro influente da New Left,


um dos movimentos intelectuais mais fecundos da história
cultural inglesa do século XX unindo-se aos representantes mais
notáveis da tradição de cultura e sociedade posterior aos anos
50, marcando o olhar sobre a cultura do ponto de vista da classe
trabalhadora (CEVASCO, 2008, p.20-21). Desta forma, “nesse
novo momento, a Cultura, com maiúscula, é substituída por
culturas no plural”. (Ibidem, p.24).

325
Na perspectiva de Kusch, cultura é atitude, é pensada
como ação, é mais do que simbólico, pensada em um conjunto
de movimentos: semiótica, atitude, movimento, ação, baluarte,
esta última interpretada neste grupo do estudo como força, mas
também, como grande recipiente que cabe muita coisa. Sendo
um baluarte de signos que produz um sentido de existência de
uma pessoa. Cultura para Kusch é, m suma, um movimento
contínuo, é diferenciação, é interculturalidade.

O autor insere o conceito de aculturação para explicar a


cultura nos termos ocidentais, como o processo de transportar
uma cultura para a outra, ou seja, a imposição da cultura
eurocêntrica no mundo americano e o não reconhecimento pelas
culturas das Américas e dos países orientais. Diante disso, teria
Kusch influenciado os autores pós-estruturalistas e pós-
colonias? Teria essa questão relacionada á termos de poder-
saber? Todavia trata-se de um autor da América latina e de um
pensamento andino.

Rodolfo Kusch não limitou o seu entendimento de


cultura, vasto e amplo, porém, sem sair da relação com a
interconexão de vida, de espiritualidade, em processo com a
natureza, produzindo sentido frente ao que está ao nosso redor.
É a paisagem que faz com que um grupo seja capaz de produzir,
havendo uma conexão entre pensamento e ecologia; natureza e
habitação, ação da significação desses espaços, onde cultura é
reciprocidade, é sempre coletivo, e, sendo a ação do
pensamento. Este é também um pensamento andino, conforme
Duda infere.

Sobre o conceito de “reciprocidade”, Duda se reporta a


Milton Santos, autor que aborda o conceito. Milton Santos

326
deslocou tal conceito para o pensamento pós-colonial. Portanto,
segue o desconhecimento de Kusch na temática, apesar de
haver, recentemente um resgate por parte de um grupo de
apreciadores.

Todavia, a meu ver, para a compreensão de cultura na


perspectiva kuchiana recorre-se a espiritualidade, podendo-se
resumir cultura num processo de conexão entre humano, terra e
divindade. E, Duda observa que é na ideia de signos que Clifor
Geertz toma e aprofunda esse sentido de cultura, causando uma
virada cultural. E, convenhamos (destaco) que Geertz teve a seu
favor o choque de movimentos, de viradas, de efervescência, ele
desenvolve sua a ideia de cultura como signo mediante a força
do movimento Pós-moderno, com a virada linguística.

Sigo observando, porém, que Geertz estaciona-se nas


noções de signos, fortalecendo esta concepção, mas não adentra
a ideia da conexão, entre ser, terra e espiritualidade a qual se
desemboca na visão de complementaridade na filosofia da
libertação. Para Duda, Guattari quem aprofunda o conceito de
movimento contínuo, no qual Kusch é anterior, além disso,
cultura também é apresentada pelo último autor como atitude da
interculturalidade e diferenciação, portanto, estamos diante de
um autor do conflito. O termo terá sido apropriado e
aprofundado por vários autores posteriores, como, Katherine
Warshi, Nestor Cancline109, Raul Bittencourt.

109
Aqui contribuí com este autor como um dos que não cita Kusch nas
questões da interculturalidade pelas leituras que tenho feito de seus estudos.
Analisei a obra “Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da
interculturalidade” (CANCLINI, 2007).

327
Razão poética de kusch

Todo pensamento brota do solo. “todo pensamento surge


da gravitação [...] Um pensamento sistemático, universal [...] e
isto, simplesmente porque, o universal é formado nesse nível do
que se constitui um modelo real”. (tradução nossa).

Na última parte da aula ocorreu a continuidade do


pensamento de Kusch, e quantificamos mais de vinte
concepções de cultura. Adentramos á obra “Geocultura do
pensamento americano”, cuja discussão foi complementada com
o autor Roberto Esposto, no artigo intitulado: “Uma razão
poética geoculturalmente situado”, publicado na obra “Arte,
estética, literatura e teatro em Kusch”, contudo, uma aula mais
voltada para a dimensão estética.

A função mais poética do autor analisado é a dança, o


teatro, a literatura etc. Assim, mostra-se um autor eclético em
sua aplicação, sendo feito leituras de algumas partes do citado
artigo que conduz para esta compreensão. Para pensar o lugar
que tem hoje o autor comparando o seu tempo e a expressão do
tipo de vida geoculturalmente situado.

A escrita na função da razão poética é uma leitura nova


sobre Kusch e que vai na contramão do que poderia se chamar
de Discurso tecnocrático, tecno-científico – que está para
explicar o sentido da realidade, ou melhor, epistemologia
cientifico-técnica ou logica-positivista, cuja pedra angular é o
capitalismo.

Roberto Esposto, argentino que vive na Austrália há 30


anos, trabalha com o pensamento de Kusch, tem formação na

328
área de literatura. Conforme este autor o ato de criar de kusch é
o que se deseja focar. A capacidade do escritor no âmbito
imaginativo, da criação do estilo literário para dizer o que
deseja, sem cair nos vícios de linguagem.

Esposto expressa que “será abordado um aspecto pouco


considerado na obra de Kusch, que é a chamada “razão poética”,
este é um pensamento que está intimamente ligado a criação
cultural, da arte e da literatura, que aporta uma epistemologia ou
conhecimento particular, do qual se pode apreciar uma profunda
sabedoria em torno da existência humana e sua relação com a
natureza e cosmos”. Ele vai discorrer seu texto considerando
também a musica, abordando letras de duas canções musicais.

Influenciado por Martim Heidegger, Kusch se apropria


de autores clássicos para trazer o seu pensamento na via
contrária: aborda estudos de Marx Waber, Durkheim, Marx, e
descreve que o não racional leva em conta o emocional e o
intuitivo. Entretanto, o pensamento de Kusch é pura intuição –
não é racional. Para o mesmo o escritor escreve para encontrar
uma estratégia para viver, para quem, viver é uma gravitação, e
então, o autor está mais acerca da sabedoria do que do
conhecimento. Conforme afirma, a razão poética é redentora
naquilo que eu não sou.

Kusch contribui para pensar o contexto de convivência, o


ser-sendo e estar-estando no mundo; a ideia de
complementariedade para se combater o que nos separa, o que
nos divide, as dicotomias, os binarismos, e, de forma contrária
entendendo que tudo está conectado, para, contudo, pensar
natureza e divindade como equivalentes, indissociáveis.

329
Resumindo as abordagens kuchiana, o autor é de
pensamento multidisciplinar e transcendental, cujo autor navega
por várias áreas do conhecimento, é clássico, porque o
pensamento de seu tempo, datado de 1945 são temas da
atualidade, e pensa a partir do racional. Em suma, Kusch pode
ser pensado como clássico porque transcende a sua época.

Lélia e a perspectiva da amefricanidade: por um feminismo


profundo e “amáfrico”

Lélia González

Filósofa, antropóloga, feminista e ativista negra, do


movimento negro unificado – MNU, criado no fim dos anos 70,
e do feminismo negro brasileiro, criado nos anos 80 pelas
divergências, pelo sexismo e pelo machismo também
constituído nos homens militantes negros (Cardoso, 2102),
realizou várias ações sociais, culturais, politicas, raciais e de
gênero, como a “política de tradução de teorias” para
desenvolver um pensamento globalizado e transnacional (Ratts;
Rios, 2010 apud Cardoso, 2012, p. 115).

De pensamento americano, a Amefricanidade é o termo


cunhado por Lélia González (Cardoso, 2012) tem sentido amplo
e refere-se aos territórios América Latina e África em termos
políticos, históricos e culturais, logo, geopolítico-
epistemológico-cultural, quando a autora o utiliza para
confrontar os modelos e discursos hegemônicos estabelecidos
pelo ocidentalismo retirando o valor de América Latina e África.

330
Améfrica parte da sua crítica á América-latina, se
apropriando do termo américa-ladina como confronto. Portanto,
a autora, filósofa, se inclina na filosofia da libertação e estudos
africanos.

Pela linha de pensamento voltado para a descolonização,


correlacionamos o pensamento da autora com a filosofia andina,
em diálogo com a discussão da aula em questão e pelo seu
“objetivo político e teórico de elaborar ‘epistemologias e
alianças políticas feministas, antirracistas e pós-colonias/pós-
ocidentais’”(Claudia Cardoso, 2012), uma vez que discutimos
uma formação tendo como foco o entendimento de cultura nos
termos trancendentais a partir do geoculturalismo no
pensamento de Rodolpho Kusch, e entendemos esse debate no
pensamento da Lélia, descolonizadora, pós e decolonial.

A autora Lélia Gonzalez nos ajuda a pensar a questão do


feminismo e da raça, em termos de América Latina e África.
Apesar das denúncias de caráter racial e de gênero nos estudos
da autora, a sua força também se dá no chamado “política de
tradução de teorias” como parte de suas realizações, conforme
observa-se as explicações dada por intelectuais que analisaram
obras da autora. Vejamos o significado:

A tradução de teorias é uma metáfora para descrever


como o deslocamento das ideias está profundamente
imerso em questões mais amplas de globalização [...]
pode-se entendê-la, também, como uma simbologia de
transgressão das imposições/regras da colonialidade do
poder [...] (ALVAREZ, 2009, apud CARDOSO, 2012,
p. 115).

331
Metáfora, transgressão, não adesão as normas
linguísticas, é nesse sentido que buscamos comparar, de certa
forma, esta autora com Kusch. Para pensar uma epistemologia
nossa, a partir desse lugar, ligando a questão da tradução das
teorias, tendo essa força da produção de dentro indo para além.
Ousadamente criticar autores cânones hegemônicos - aqui falo
da perspectiva de gênero e dos feminismos, observando a Lélia
indo de encontro com Kusch, no sentido de ousar, de criar
conceitos, termos, problematizar, desconstruir, resignificar.

Como descolonizar o pensamento?

Ponderando sobre pensamentos subalternos: de negros,


mulheres negras, território latino-americano, movimentos e
autores des-autorizados como estes que aqui destacamos. Se
considerarmos a crítica de Gayatri Spivak (2012) quando
questiona: “pode o subalterno falar?”. A fala, o gesto, é corpo?
Fala e discurso são dois extremos? (Derrida e Rolnik, 2010). Por
subalterno entendemos os sujeitos excluídos e sem o direito de
fala/voz, sem legitimação, descorporificado, invisibilizado para
ser pessoa, sujeito de direito de ser.

Discutindo a filosofia andina como alteridade, a


influência do feminismo e a subalternidade, o estudo de Josef
Estermann (2008) relaciona a filosofia andina com as
características (construídas) femininas, discutindo a importância
um projeto feminista no combate ao androcentrismo na filosofia,
além de abordá-la teologicamente nos tratos e na crítica do
contexto da religião.

332
A filosofia andina do pensamento de Kusch que ver a
cultura como ser, sentir, sentido, complementaridade,
continuidade, desloca a América profunda estereotipada de
“América” pela via do tal “descobrimento” ´para a perspectiva
da riqueza, do valor (Estermann, 2008), mas ela também é
pensada em conexão com a África em seu sentido, unindo
América á África deslocada de fronteira, de desvalorização, e
vestida de saberes, de criatividade e criação, de sentimento - a
razão do sentimento e da unidade – AMAFRICA. Nesse
sentido, América profunda e/ou amefricanos são sujeitos
subalternos.

A fim de buscar caminhos-resposta-solução, sugerimos


refletir sobre duas principais questões da perspectiva Pós-
colonial:

1) análise da categoria do gênero110; e 2) a categoria


poder.111 Assim, refletindo sobre a hierarquização territorial – o
Norte Global, para pensar sobre, quem pode falar?

Na imbricação de gênero e poder no trato com a crítica á


ciência, o feminismo que chega as nossas mãos, isto é, o
conhecimento, as produções, as teorias que chegam na América
Latina não é o feminismo da perspectiva Africana, oriental, mas,
a francesa, eurocêntrica. Considerando o critério de exclusão de
publicização de produções, para Nascimento (2009, p. 8,9 )
apud Ana Claudia Sandoval; Luiz Carlos Santos (2014, p.5),

110
Ver María Lugones ( 2008). “Colonialid y género”.
111
Ver Anibal Quijano (2005). “Colonialidade do poder: eurocentrismo e
América Latina”.

333
Muitas vezes, as filosofias “africanas”, “asiáticas”,
“latino-americanas” aparecem como tópicos
complementares, de importância menor, quando não
exóticos [...] mostrando que essas filosofias precisam
ainda ser desenvolvidas para alcançarem o status do
pensamento euro-norte-americano.

Desta forma, como descolonizar o pensamento


historicamente colonizado?

Pensado em como acessar epistemologias não ocidentais,


Sandoval; Santos (2014, p. 16) expressam que o conhecimento,
e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer
filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer
filosofia. É um caminho para pensar.

Aqui é possível refletir na América profunda criativa,


autônoma, rica, vasta, ampla - essa vida profunda, essa forma de
ser. Para Kuschi a filosofia é um pesar quando a América
profunda do americano tem a densidade das coisas. Trata-se do
peso da existência. Com o conceito de AMEFRICANIDADE,
de Lélia, o qual se dá nos termos de caráter racial e de gênero
abordando racismo e sexismo, seriam estes fenômenos
vinculado ao PESAR da América profunda, afetada pela
colonialidade de poder?

334
Quadro comparativo - os conceitos presentes nos autores: Lélia e
Kusch

Conceitos Autor/a Significado

Aculturação Kusch Perda da cultura própria e


apropriação da cultura outra.
transportar uma cultura (a
ocidental) em detrimento de todas
as outras
Diferenciação Kusch A ideia da diferença ligado a
identidade
Complementariedade Kusch Tudo se complementa na cultura/
é interdependente.
Estética Kusch A filosofia da arte
Amefricanidade Lélia União. O que une América e
África/ nem exatamente afro-
americanos, nem afro-brasileiros
– AMEFRICANO, uma cultura
brasileira de matriz africana.
Pretoguês Lélia Africanização do português
Libertação Ambos Liberta-se com o corpo, da prisão
da razaõ do não-ser
Interculturalidade Ambos Entre tudo / e entre os territórios
desvalorizados
Desconstrução Ambos Desconstruir a lógica
canônica/científica
Decolonialidade Ambos termo que surge nos anos 90.
Fonte: Quadro elaborado pelos autores/as

335
Considerações

Neste estudo analisamos algumas contribuições de


Rodolfo Kusch, as quais possibilitaram auxílio para uma
abordagem sobre a descolonização do pensamento concernente
ao contexto da América, ampliando as compreensões para um
diálogo com as epistemologias do Sul com o intuito de pensar a
amefricanidade.

Observando alguns conceitos criados por Kusch em sua


época (anos 1940) e, notando sua atualidade, percebe-se como a
colonialidade do poder e do saber retiram ou não permitem a
voz do sujeito latino americano, portanto, subalterno. Por outro
lado, nota-se a atitude de resistência à colonialidade pela via
literária-conceitual desses autores e que permuta formas de ser
ao desembocar na descolonização do pensamento.

A colonialidade do poder e do saber retiram ou não


permitem a voz do sujeito subalterno e no contexto da
decolonialidade e descolonização, há um resgate das obras de
Kusch, com um grupo de autores que buscam descolonizar o
pensamento com a Epistemologia do Sul.

O pensamento de Kusch brota da terra, cuja aproximação


da realidade se dá pelo uso da imaginação, e da arte para
filosofar descando-se duas grandes categorias: o mero estar e o
ser alguém, visto nos termos humano transcendental, quando
entende a cultura desta forma, e da arte em seu viver. Cusch é
arte. A filosofia da arte.

Lélia Gonzalez o pensamento da união e deslocamento,


desconstrução, a política de tradução de teorias, a partir de suas

336
influências no conhecimento que une América e África, e a
partir da linguagem a autora desenvolve a categoria político-
cultural de “AMEFRICANIDADE’.

O pensamento de Lélia brota da pele, do corpo, da


experiência para agir, do racismo, do sexismo, da cor, da
relação, do terrritório, do afeto, do amor. Lélia é ação. A
filosofia da ação.

Referências

BARBOSA, Paulo Corrêa. Lélia Gonzalez: o feminismo negro


no palco da história. Brasília: Abrevídeo, 2015.

CARDOSO, Cláudia Pons. Outras falas: Feminismos na


perspectiva de mulheres negras brasileiras. 2012, Salvador.
383f. Tese (Doutorado em Estudos de Gênero, Mulher e
Feminismo – PPGNEIM). Universidade Federal da Bahia,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2005.

CASTRO, Fidel. A grande tarefa da Revolução consiste em


formar o homem novo. SÃO PAULO: EXPRESSÃO
POPULAR, 2015.

CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais.


São Paulo SP: Boitempo Editorial, 2008.

ESTERMANN, Josef. Si el Sur fuera el Norte. Chakanas


interculturales entre Andes y Occidente. La Paz: ISEAT, 2008.

337
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de
amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93,
1988b, jan./jun, p. 69-82.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica:


cartografias do desejo. Petrópolis, Rio de Janeiro: 10 Ed. Editora
Vozes, 2010.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais.


Org. Liv Sovik. Trad. Adelaine La Guardia Resende (et al). Belo
Horizonte: editora UFMG; Brasília: representação da UNESCO
no Brasil, 2003.

KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una antropología filosófica


americana. Rosario: Fund. Ross, 2012 [1978].

______. (1999). América Profunda. Buenos Aires: Biblos.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá


– Colombia, n.09, p. 73-101, julio-diciembre, 2008.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e


America Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2005. Disponível em:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-
sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Acesso em: 16/07/2015.

SANDOVAL, Ana Claudia Rozo; SANTOS, Luís Carlos.


Estudos decoloniais e filosofia africana: por uma perspectiva
outra no ensino da filosofia. Revista Página de filosofia, v. 6, n.
2, p. 1-18, jul./dez. 2014.

338
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno falar? Belo
Horizonte: UFMG, 2012.

Agradecimentos:
Á CAPES pela bolsa a doutoranda.
Ao grupo de pesquisa Rede Africanidades/UFBA.

339
340
A AUSÊNCIA IMPOSTA A BEATRIZ NASCIMENTO NA
CONSTRUÇÃO E UTILIZAÇÃO DO CONCEITO DE
QUILOMBO

Leonor Franco de Araújo112


Eduardo David de Oliveira113

NASCIMENTO

Há prisão na liberdade.
Chama-se solidão que os demais nos criam.
O corpo sólido no espaço,
quente ou frio ao redor.
Sou o meu próprio nó... !

Beatriz Nascimento (17.02.1990) 114

112
Doutoranda do Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em
Difusão do Conhecimento (DMMDC). Professora do Departamento de
História da UFES. Líder do Grupo de Pesquisa Educação para as Relações
Etnico-raciais, Territorialidades e Novas Mídias. Membro do Grupo de
Pesquisa Rede Africanidades.
113
Professor Adjunto da FACED-UFBA; Professor Permanente do
Doutorado Multi-institucional e Multisciplinar em Difusão do Conhecimento
– Salvador. Coordenador do Grupo de Pesquisa Rede Africanidades.
114
NASCIMENTO, Beatriz. Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e
ensaios de Beatriz Nascimento. Organizado por Alex Ratts e Bethânia
Gomes. Salvador: Editora Ogum’s Toque Negros. 2015.

341
Esse artigo é uma história de amor ancestral com duas
(múltiplas) mulheres anti-racistas e plenas de energia e justiça,
Beatriz Nascimento e Raquel Gerber. É também resultado de um
minicurso que partilhei com pessoas maravilhosas durante o V
CBFL (Congresso Brasileiro de Filosofia da Libertação) e II
EIFA (Encontro Internacional de Filosofia Africana), que
aconteceram concomitantemente em 2017 no Quilombo
Tenondé/Valença /Bahia. Também é “filho” do filme Orì de
Raquel Gerber e da leitura de dois livros fundamentais para se
desvelar Beatriz Nascimento, Eu Sou Atlântica de Alex Ratts e
Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz
Nascimento com organização de Alex Ratts e Bethânia Gomes,
devidamente citados nas referências.

Como militante do Movimento Nego desde 1990 já tinha


ouvido falar de Beatriz Nascimento, mais não tinha dialogo com
suas obras, escritos e pensamento. A militância muitas vezes,
por seu caráter dinâmico e urgente, não nos proporciona ampliar
e aprofundar o conhecimento sobre nós mesmos. Essa é uma
observação que muito me preocupa na atualidade, visto que a
formação política em nossas entidades não tem acompanhado a
“correria” da vida atual. Muitos quadros qualificados também
foram alocados nas gestões federal e estaduais, e nossa
militância e suas entidades estão com sérias dificuldades
econômicas e de articulação devido à política de direita
instalada nesse país. Assim muitos de nossas e nossos que
formularam a pauta negra brasileira continuam na invisibilidade.

Voltando a historia de amor, em 2007 assumi a


Coordenação de Diversidade na Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade (SECAD) do Ministério
da Educação em Brasília/DF. A citada coordenação gestava

342
politicas educacionais para negros e negras, educação das
relações étnico-raciais, e comunidades tradicionais como
quilombos, terreiros e ciganos. A temática quilombola já fazia
parte de minha vida desde os anos 80 como estudante de
História, como projeto de pesquisa desde 1992, como
publicação a partir de 1995 e como livro em 1999.115

Ainda em 2017 recebi um telefonema de Raquel Geber


solicitando um dialogo sobre o filme Ori. A intenção da mesma
era propagar o filme, sem custos, para as escolas brasileiras para
que profissionais da educação e educandos pudessem tomar
conhecimento das temáticas nele tratadas. Beatriz Nascimento
(com nome e sobrenome como nos ensinou Sueli Carneiro) faz a
narração e participação principal do filme.

Seu trabalho mais conhecido e de maior


circulação trata-se da autoria e narração dos
textos do filme Ori (1989), dirigido pela
socióloga e cineasta Raquel Gerber. Essa
película documenta os movimentos negros
brasileiros entre 1977 e 1988, passando pela
relação entre Brasil e África, tendo o
quilombo como ideia central.[...].(RATTS,
2006, p.28)

Nossa relação amorosa estava estabelecida. Raquel


Geber me desvelou Beatriz Nascimento, mas tenho certeza que
foi Beatriz que a levou até mim.

115
OSÓRIO, Carla; ARAUJO, L. F.;BRAVIN, Adriana. Negros do Espírito
Santo. 1. ed. São Paulo: Escrituras, 1999.

343
Forma meses de negociação com uma dura estrutura
burocrática do MEC, mais nosso empenho e completa certeza de
que o filme seria uma riquíssima ferramenta para a
implementação da Lei 10639/2003 fez com que avançássemos.
Em 2008, através da parceria com a Secretaria de Educação
Básica (SEB) do MEC, conseguimos enviar o filme na cesta de
todas as escolas brasileiras que tinha o projeto da TV Escola.
Beatriz Nascimento e Raquel Geber estavam definitivamente em
minha existência.

Vi e revi o filme Ori diversas vezes nesse tempo,


pensava nas conexões entre a temática quilombola e as
construções teóricas e de vida de Beatriz Nascimento, mas o
ritmo insano do trabalho em Brasília não permitia minhas
vontades de aprofundamento na pesquisa sobre os escritos de
Beatriz Nascimento .

Beatriz Nascimento é uma das pesquisadoras negras que


mais se dedicou ao tema (quilombos) e por mais tempo,
abrindo vários aspectos (toponímia, memória, relação
África - Brasil, territorialidade e espaço) e exercitando a
confecção de diversos “produtos” de seu trabalho
(entrevistas, artigos, poemas, filme). Por quase vinte
anos, entre 1976 e 1994, ela esteve às voltas com essa
temática (RATTS, 2006, p.53).

Quando fui para a SEPPIR (Secretaria Especial de


Políticas de Promoção da Igualdade Racial/ PR) em 2011, sob a
orientação encantada e amorosa de Luiza Bairros, assumi o
Programa Brasil Quilombola. Minha conexão com as
comunidades quilombolas se aprofundou e alargou ainda mais,
minha militância se estendeu da cidade para as áreas rurais
legitimamente ocupadas por essa população lutadora e resiliente.

344
Nos documentos e escritos produzidos pelos diversos órgãos
governamentais, inclusive a Fundação Cultural Palmares, sobre
o conceito de quilombo, que embasava a política pública, nem
uma referencia a Beatriz Nascimento. Na bibliografia nacional
consagrada sobre o tema nem uma citação.

No campo da pesquisa acerca de quilombos, seja na


história ou na antropologia, disciplinas onde se
concentram especialistas no tema, ocorre processo
semelhante, porém de forma mais intrincada. Os(as)
estudiosos(as) do quilombo que alcançaram “renome”
não citam nenhum artigo de Beatriz Nascimento. Vale
destacar que Lélia Gonzalez, pessoa importante para o
tema em foco, estava atenta à principal pesquisa de sua
contemporânea de estudos e mobilizações.(RATTS,
2006, p.31)116

A recusa da sociedade racista brasileira em reconhecer o


papel fundante da mulher negra na conformação de nossa
cidadania e cultura se estende cruelmente a vida acadêmica.
Todas as situações que tentam impedir a entrada de negros e
negras no ensino superior se multiplicam com a mulher negra.
Ela além de ter que vencer o machismo, o racismo, as questões
geracionais e de gênero, é questionada na sua competência e
qualidade acadêmica. Ocupar esse lugar na academia é árduo e
na maioria das vezes solitário, já que em muitos casos nem seus
pares lhe fazem companhia.

116
Quando aborda o tema dos quilombos Lélia Gonzalez cita e comenta a
pesquisa de Beatriz Nascimento nesse campo (A mulher negra na sociedade
brasileira, 1982, p. 90.)

345
Podemos considerar que a invisibilidade da mulher negra
no espaço acadêmico também se consolida porque o seu
outro (homem branco, mulher branca ou homem negro)
não a vê nesse ambiente e nem mesmo trilhando esse
itinerário intelectual. Qual o tempo que as mulheres
negras têm para ler? A que leituras que se dedicam? E
perguntamos enfim: quantas possuem condições para
adentrar na universidade? Destas, quantas se tornam
pesquisadoras, professoras e intelectuais? Uma mulher
negra que se torna pesquisadora e elabora um
pensamento próprio nos parâmetros acadêmicos,
inspirada da vida extramuros da universidade como o
fazia Beatriz Nascimento, rompe com esse processo de
invisibilidade no espaço acadêmico. Uma mulher negra
pesquisadora jamais é imperceptível no campus, mas
talvez o seja nesse campo enquanto autora. (RATTS,
2006, p.29)

Beatriz Nascimento foi uma estudiosa, pesquisadora e


autora aplicada. Entre 1968 e 1971, cursou História na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, e foi estagiária em
Pesquisa no Arquivo Nacional, com orientação do historiador
José Honório Rodrigues. Tornou-se professora de História da
rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Em 1978 iniciou seu
curso de especialização (pós-graduação latu sensu) em História
na Universidade Federal Fluminense, concluindo em 1981, com
a pesquisa Sistemas Alternativos Organizados pelos Negros: dos
Quilombos às Favelas. Com financiamento parcial da Fundação
Ford e da Casa Leopold Senghor do Senegal, e por força de
restrições desses financiamento e da própria extensão do tema,
Beatriz reduziu hipóteses e se concentrou na viagem a Angola
(onde se situavam os quilombos africanos) e no trabalho de
campo em áreas identificadas como “antigos quilombos”,
especialmente em Minas Gerais. O objetivo principal do

346
trabalho era “estabelecer a possível continuidade dos quilombos
com favelas em determinadas cidades brasileiras, a exemplo do
Rio de Janeiro.” (NASCIMENTO, 1982, p. 259). Vejamos suas
hipóteses iniciais, dado a importância inovadora e
transformadora que impunha ao conceito vigente de quilombo.

1) O que ficou conhecido na historiografia como


quilombos são movimentos sociais arcaicos de reação ao
sistema escravista, cuja particularidade foi a de iniciar
sistema sociais variados, em bases comunitárias.

2) A variedade dos sistemas sociais englobados no


conceito único de quilombo se deu em função das
diferenças institucionais entre esses sistemas.

3) O maior ou menor êxito na organização dos sistemas


sociais conhecidos como quilombos deu-se em função do
fortalecimento do sistema social dominante e sua
evolução através do tempo.

4) As áreas territoriais onde se localizaram “quilombos”


no passado supõe (sic) uma continuidade física e
espacial, preservando e/ou atraindo populações negras no
século XX.

5) Certas instituições características de movimentos


sociais arcaicos são encontradas nestes territórios acima
citados, fazendo supor uma linha de continuidade entre
os sistemas sociais organizados pelos negros quilombolas
e os assentamentos sociais nas favelas urbanas, assim
como nas áreas de economia rural decadente com
incidência de população negra e segmentos populacionais
de baixa poder aquisitivo pertencentes a outras etnias.
(RATTS,2006, p.51).

347
O trabalho citado foi feito dentro do maior rigor
metodológico e cientifico como exigido pelo seu orientador José
Honório Rodrigues. Beatriz Nascimento estabeleceu hipóteses
que reinauguravam o conceito; traçou metodologia investigativa
que floresceu em diferentes formas acadêmicas de métodos e
técnicas explorando documentação primária, bibliografia
nacional e estrangeira, o que resultou num significativo acervo
de fichamentos e escritos; realizou pesquisa de campo
(etnopesquisa) aqui (Minas Gerais e Rio de Janeiro
principalmente) e na África (Angola e Nigéria), fazendo
entrevistas e observação participativa e produzindo também um
acervo fotográfico.

A primeira etapa do trabalho foi dirigida ao levantamento


das áreas que possuíam nomes de ex-quilombos na
relação de municípios, povoados e localidades do IBGE,
assim como das áreas de ex-quilombos conhecidas
através de bibliografia e das fontes de documentação
primária dos arquivos Nacional e Público de Minas
Gerais. Nesta etapa, visitamos também três destas
localidades, em Minas, num primeiro contato com seus
habitantes. Escolhemos, então, um caso para estudo,
embora não tenhamos perdido de vista a comparação
entre os três ex-quilombos.

Na segunda etapa, dedicamos a pesquisa ao estudo de


campo através dos procedimentos da metodologia da
história oral, da etnografia e da observação participante.
O quilombo de Carmo da Mata foi o nosso campo de
estudo, e as condições dos negros que ali ainda vivem.

Resolvemos assim, em função do desenvolvimento da


pesquisa. Este quilombo, dos três estudados, era o que
possuía razoável quantidade de afro-brasileiros (pretos e

348
mestiços). Por outro lado, seu reconhecimento deu- se
sem o auxílio de documentação primária ou secundária.
(NASCIMENTO, 1982, p. 259-260).

Todo esse cuidado e dedicação acadêmica e cientifica


tornava Beatriz Nascimento uma pesquisadora exemplar. Nem
o renomado nome de seu orientador foi capaz de corroborar no
reconhecimento dessa mulher, negra, retirante, cientista,
militante e atuante comunitariamente nas causas que a afetavam,
principalmente voltadas para os negros e mulheres negras.

Portadora de um discurso que reverberava para dentro da


academia e dos movimentos negros e embora atingindo
tal patamar de elaboração e visibilidade, Beatriz
Nascimento, a exemplo de outros(as) que cumpriam o
mesmo trânsito, como vimos, não foi considerada uma
autora “acadêmica”. Conforme assinalado anteriormente,
uma das questões que identificamos nessa pesquisa é o
“esquecimento” do(a) autor(a) negro(a) na academia
brasileira, notoriamente nas Ciências Sociais.(RATTS,
2006, p.30)

Sua argumentação acadêmica na justificativa do projeto


inaugura uma nova formulação para pensar os territórios
quilombolas como organizações vivas, contemporâneas e que
possuíram e possuem diversidade e especificidades de acordo
com suas trajetórias e condições historicamente forjadas. Beatriz
Nascimento refutava a visão clássica da historiografia brasileira
que tinha o quilombo de Palmares como única referencia,
combatia a pobreza e o reducionismo acadêmico dos estudos
clássicos historiográficos sobre os espaços de resistência negros
durante e após a abolição.

349
No Brasil, quilombo veio com essas características. Aqui
também foi chamado de estabelecimento territorial. Mas,
de um modo geral, só temos documentos falando do
tempo da guerra que é descrita por documentos
portugueses ou repressores brasileiros, não nos dando
conta da verdadeira amplitude desse sistema que
acompanhou todos os séculos escravistas em nosso país.
Comparando a documentação da história de Angola e da
conquista portuguesa na Bacia do Congo, com as fontes
que temos, percebe-se essa tradição bantu no que foram
os 0quilombos brasileiros (notada- mente Palmares). (...)
O modelo de Palmares vai ser repetido no Quilombo
Grande e no Tijuco – Minas Gerais – cujos chefes de
mesmas características de liderança (sic) a Zumbi eram
Ambrósio e Isidoro.(...) Mas a maior parte dos outros
quilombos diferem, conforme a região econômica que
controlam, tendo outro tipo de administração.
Dependendo do seu tamanho e importância eles foram
mais, ou menos, atacados pelas forças governamentais e
por senhores de escravos. (1981).

No seu artigo “O conceito de quilombo e a resistência


cultural negra” (1985) Beatriz Nascimento explicita sua ideia de
quilombo como significado de instrumento ideológico contra as
formas de opressão, a partir do final do século XIX, “Sua
mística vai alimentar o sonho de liberdade de milhares de
escravos das plantações em São Paulo, mais das vezes através
da retórica abolicionista. Esta passagem de instituição em si para
símbolo de resistência mais uma vez redefine o quilombo.” (p.
46)

A ideia mítica dos quilombos como espaços garantidores


da liberdade e das raízes africanas torna esses territórios áreas de
resistência e ocupação populacional preta no início do século

350
XX, assim como mote de estudos acadêmicos que buscam
revelar a nacionalidade republicana.

Mas justamente por ter sido durante três séculos


concretamente uma instituição livre, paralela ao
sistema dominante, sua mística vai alimentar os
anseios de liberdade da consciência nacional. Assim
é que na trilha da Semana de 22, a edição da coleção
Brasiliana da Editora Nacional publica três títulos
sobre o quilombo, de autores como Nina Rodrigues,
Ernesto Enne, e Edison Carneiro. Não deixando de
citar Artur Ramos e Guerreiro Ramos, além, da
versão romanceada um pouco anterior de Felício
dos Santos.

Este momento de definição da nacionalidade faz


com que a produção intelectual se debruce sobre
este fenômeno buscando seus aspectos positivos
como reforço de uma identidade histórica brasileira.
Mas não só nela, em outras manifestações artísticas
o quilombo é relembrado como desejo de uma
utopia. A maior ou menor familiaridade com as
teorias da resistência popular marcam esta
produção, que é inclusive demonstrada em letras de
samba. Muitas vezes referidas em instituições
escolares. É comum até 1964 a narrativa da história
oficial ser encontrada nos livros escolares. De todo
modo, até os anos 70, o quilombo adquire este papel
ideológico fornecendo material para a ficção
participativa como o caso da peça teatral Arena
Contra Zumbi, buscando o reforço da nacionalidade
brasileira através do filão da resistência popular às
for- mas de opressão, confundido num bom sentido
o território palmarino com a esperança de um
Brasil mais justo onde houvesse liberdade, união e

351
igualdade.(NASCIMENTO,1985,p.47).

Na minha análise é que Beatriz Nascimento elabora o


conceito de quilombo urbano quando reflete sobre a
continuidade dos espaços de resistência negra nas favelas,
escolas de samba, terreiros, entre outros. A autora resignifica o
conceito clássico a partir das suas vivências nos espaços rurais e
urbanos, e também de seus estudos acadêmicos, inclusive das
análises comparativas entre Brasil e África. É impressionante
que tenhamos bebido de sua fonte, tenhamos feitos longos
seminários dialogando sobre o conceito de quilombo na
contemporaneidade, produzido documentos governamentais
para justificar a política quilombola e suas novas formas de (re)
existir, e não fizemos jus a sua produção inovadora, estruturante,
inaugurando uma nova estética e ética para o conceito de
quilombo.

Quilombo é uma história. Essa palavra tem


uma história. Também tem uma tipologia de
acordo com a região e de acordo com a época,
o tempo. Sua relação com o seu território.

É importante ver que, hoje, o quilombo traz


pra gente não mais o território geográfico, mas
o território a nível (sic) duma simbologia. Nós
somos homens. Nós temos direitos ao
território, à terra. Várias e várias e várias partes
da minha história contam que eu tenho o
direito ao espaço que ocupo na nação. E é isso
que Palmares vem revelando nesse momento.
Eu tenho a direito ao espaço que ocupo dentro
desse sistema, dentro dessa nação, dentro desse
nicho geográfico, dessa serra de Pernambuco.

352
A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu
quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu
estou, eu sou. (NASCIMENTO,1989).

Referências

GERBER, Raquel. O Mito da Civilização Atlântica: Glauber


Rocha, cinema, política e estética do inconsciente. Petrópolis,
Vozes, 1982.

NASCIMENTO, Beatriz. Kilombo e memória comunitária – um


estudo de caso. Estudos Afro-Asiáticos 6-7, pp. 259-265, 1982.

_________ O conceito de quilombo e a resistência cultural


negra. Afrodiáspora Nos. 6-7, pp. 41-49.1985.

_________. Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e


ensaios de Beatriz Nascimento. Organizado por Alex Ratts e
Bethânia Gomes. Salvador: Editora Ogum’s Toque Negros.
2015.

_________Sistemas sociais alternativos organizados pelos


negros: dos quilombos às favelas. Relatório narrativo final
(mimeo). 1981 in RATTS, Alex. Eu sou Atlântica - sobre a
trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial. 2006.

_________ Textos e narração de Ori. Transcrição (mimeo).


1989. In RATTS, Alex. Eu sou Atlântica. - sobre a trajetória
de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial.

353
2006.

RATTS, Alex. Eu sou Atlântica - sobre a trajetória de vida


de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial. 2006.

354
ESTÉTICA DA LIBERTAÇÃO:
deriva, travessia e outros itinerários

Luís Carlos Ferreira117


Eduardo Oliveira118

Introdução

Neste texto, “Estética da libertação: deriva, travessia e


outros itinerários”, debateremos o diálogo da perspectiva das
filosofias negro-africana com a abordagem estética da
libertação. No percurso do discurso estaremos discutindo as
categorias: deriva, travessia e arquipélago. Estes conceitos
atravessam as produções filosóficas de autores como Jean-
Godefroy Bidima (travessia), Édouard Glissant (arquipélago) e
deriva. A provocação estabelecida no texto tem como objetivo
problematizar a filosofia negro-africana e da libertação a partir
de uma discussão desde a estética, tendo o engajamento político,
pela escolha do campo de estudo, e fim ético, pois tem como
fundamento, o enfrentamento do racismo, o qual corrói as bases

117
Doutor em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia-
UFBA. lcarlosfsantos@gmail.com. Membro da REDE-AFRICANIDADES.
118
Doutor em Educação, Mestre em Antropologia, Especialista em Cultura
Africana e Graduado em Filosofia, é sócio-fundador do IFIL – Instituto de
Filosofia Africana e sócio-fundador do IPAD – Instituto de Pesquisa da
Afrodescendência e Coordenador do Grupo de Pesquisa REDE-
AFRICANIDADES.

355
epistemológicas do pensamento filosófico africano no Brasil.
Temos como intenção trazer para o debate a perspectiva estética
da libertação como leitmotiv da ampliação das liberdades. A
grande marca que alia as filosofias negro-africana é o lugar em
destaque da disputa do conceito de vida. Portanto, a luta por
uma vida descolonizada é o percurso estético da libertação por
excelência.

Na aventura de conhecer sobre a discussão da estética


produzida e problematizada desde a filosofia negro africana
chegamos no conceito de Travessia produzido pelo filósofo
Jean-Godefroy Bidima trabalhado nos livros: L’art négro-
africain, La Philosophie Négro-Africaine e no artigo Da
travessia: contar experiências, partilhar o sentido. E um outro
conceito que chegamos a qual partilhamos nessa oficina é do
arquipélago a partir dos aportes filopóeticos do martinicano
Édouard Glissant, para adentrarmos na deriva glissantiana
dialogaremos com a Filosofia da Relação, Poética da Relação e
Pensamento do Tremor.

O pensamento negro-africano tem em seu itinerário


algumas construções conceituais de muita relevância, tais como
Negritude, que perpassa várias áreas, inclusive a da filosofia, o
conceito de entofilosofia presente na filosofia negro africana e
mais recentemente os conceitos: como travessia e arquipélago.

Travessia

O filósofo Jean-Godefroy Bidima, no livro La


philosophie négro-africaine defende uma abordagem filosófica
em que combina o plural em sua unidade. O livro apresenta um
esquema de cinco capítulos: História e Controvérsia, Relação

356
com as filosofias ocidentais, Campos, métodos e temáticas,
Evolução crítica e perspectivas e histórias. Bidima apresenta o
conceito da Travessia em diálogo com o capítulo três, “Campos,
métodos e temáticas”, no tópico dois- “A estética: do completo
ao vácuo”.

Bidima no tópico, A estética: do completo ao vácuo


presente no livro La philosophie négro-africaine, levanta a
questão que na avaliação da arte negra-africana tem instaurado a
redução do entendimento de compreensão deste campo herdado
da etnologia colonial e dos movimentos africano da Negritude.

Na perspectiva da etnologia, a arte africana, no século


vinte, é apresentada como uma arte que manteve próximo da
natureza, na inocência adâmica e protegidos pelos espíritos. Em
resumo a arte funcionou como retrato da “alma africana”. E a
arte em conformidade com a etnologia estaria muito próxima da
religiosidade da arte da alma africana. Segundo Bidima “as
relações esta arte com a oralidade, os mitos e costumes são
sinais visíveis de religiosidade das culturas africanas”.
(BIDIMA, 1995 p. 59)

A política empreendida pelos etnólogos foi destinada a


estabelecer a possível conversão ao cristianismo. Os padres
missionários e etnólogos foram os responsáveis pelos materiais
ricos e importantes que presidiram a criação e a recepção das
artes a qual está sendo chamada de arte dos etnólogos. Segundo
Bidima, “o estudo das razões da criação e das modalidades da
recepção destas artes foram concebidas a partir da perspectiva
de etnólogos e missionários da descoberta e ‘funcionamento da
alma negra’ ”. (BIDIMA, 1995, p. 59). A orientação dos
etnólogos em ler a arte em ligação a alma influenciou as

357
variadas apresentações da arte africana em museus nos dias de
hoje, pois quando se refere de tradição da arte africana é
assumida a relação com passado e das religiões tradicionais.

Bidima traz a reflexão em torno da reivindicação de


negritude que também ler a técnica da arte numa visão
ocidentocentrica. De acordo com Bidima “esta leitura da arte
africana, que parte do etnólogo alemão Leo Frobenius através
de L. S. Senghor” e segue “até os pintores africanos atuais como
Ahyi (Togo)”, é uma possiblidade de resposta colonial para o
questionamento do próprio colonialismo. O que tem em comum
entre os etnólogos europeus e os africanos é que estes
salientaram a sua diferença e originalidade da sua arte. Neste
aspecto, como os exploradores europeus, os africanos
permanecem na tradição e reflexão do sagrado nas artes, ao
fazê-lo, sua leitura diviniza o passado para evitar este que pode
abrir para possibilidades futuras.

O entendimento que governam a maioria das


conferências, livros e seminários sobre arte africana concentra-
se de modo ostensivo sobre o passado, ou seja, a compreensão
das tradições africanas imutáveis e boas, a sacralidade incurável
das artes africanas e exibição sem exame de um passado anti-
colonial. Bidima compreende que essa leitura até certo ponto,
levou à banalização da arte negra e assim tornou-se uma
mercadoria que vende bem. Porque a arte africana está agora no
lado do mercado, pois algumas fantasias cresceram entre artistas
africanos que já não produzem uma arte africana expressando as
aspirações do africano, mas uma arte definida pelos gostos de
turistas ocidentais.

358
Bidima traça a discussão em torno da arte africana desde
os etnólogos e do movimento da negritude, não com o intuito de
apresentar a relevância da tradição africana para se vangloriar na
frente de uma modernidade mal assumida, mas para estabelecer
um modo de expressão e a existência de arte africana na
categoria da travessia. A chave de leitura que o continente
africano acaba sendo codificado é do dualismo: tradição versus
modernidade, escrita versus oralidade e mito versus razão. A
compreensão possível atualmente para dialogar com a filosofia
negro africana é do "entre". Como os ocupantes do famoso “A
jangada da Medusa” do pintor Medusa Théodore Géricault,
segundo Bidima “a África sobrevive na possibilidade do
naufrágio e do resgate.” (BIDIMA, 1995, p.61).

Entretanto, a perspectiva adotada por Bidima sobre arte


africana é o oposto da tradição colonial, o qual só importa a
visão do passado e uma outra perspectiva muito adotada pelo
messianismo africano e pentecostais americano em África do
futuro, todavia Bidima aposta no movimento da travessia. Mas o
que “é arte africana no entendimento da travessia? E como a
travessia pode ser arte?”, questiona Bidima.

No movimento da travessia se pretende mover-se das


tradições africanas (lê-se o passado) para a tradução destas
tradições, o objetivo não é estudar arte africana das sociedades
africanas (tradicionais e contemporâneos), mas chamar a
atenção para o que foi reprimido na (re) apresentação destas
artes. Ou seja, “o que é a arte de sociedades tradicionais
africanas marginalizados?” Qual a expressão artística dos
exilados, de maneira "perversa" e outros marginalizados?
Bidima defende que uma leitura cruzada da arte africana sugere
uma leitura da sociedade Africana atravessada.

359
Bidima questiona, por exemplo, a "arte das margens"
esquecida do discurso tradicional, qual é o papel do corpo, da
sexualidade e da loucura? Nas produções destas artes. Segue
com Bidima “Quais são as influências externas que esta arte
deve incorporar em sua travessia em direção a um futuro que
não é uma corrida desenfreada? Qual é a relação entre a arte e a
utopia Africana?” (BIDIMA, 1995, p.62).

Bidima se afasta da perspectiva dos etnólogos da arte por


conta do perigo de ler este conteúdo com base em um passado
reverenciado por um determinismo mecanicista. O que persiste
no movimento da travessia é o entre, a incerteza do
inacabamento como a leitura da arte africana. O objetivo de
Bidima no livro “LA Philosophie Négro-Africain” não é
especificar o que é arte Africana, mas de determinar uma
abordagem estética que combina o discurso arte e do discurso da
arte em África. O objetivo seria construir uma estética da
dissonância, Bidima não pretende questionar sobre a
racionalidade estética em África, mas enfatizar a luta entre dois
paradigmas que suportam qualquer avaliação estética da arte
Africana: o completo (harmonia, posição) e vácuo (disposição
transitória). O primeiro, que seria o paradigma do completo
(harmonia e da posição) foi usado para justificar o
substancialismo e o etnocentrismo. O substancialismo tem como
perspectiva uma interpretação da escultura, da pintura e da
música africana, ou seja, a arte africana como espiritual,
naturalista, seja emocional ou espontânea. É o "em si"(o
espírito, a natureza ou a emoção) que é um invariante
explicativo de todas as artes.

No etnocentrismo das artes africanas possuem as forças


ativas e os que actuam (energia), este conceito é central para a

360
ontologia da etnofilosofia. Como já dito anteriormente, as artes
na perspectiva da etnofilosofia, informam qualitativamente a
visão de mundo da comunidade tradicional ou nacional, porque
expressam diretamente o espírito das pessoas. Isto é o que
reflete o dinamismo e energia das performances artísticas.
Através deste ponto de vista, o conceito de força é entendido
como produtor da obra de arte. Neste entendimento do
paradigma completo (harmonia), a arte expressa a verdade de
uma comunidade, sua moral, sua conformidade e unidade.

Todavia, o paradigma do vácuo ao contrário implica a


desubstancialização das categorias estéticas. Esta estética do
vácuo introduz a noção do desvio na relação entre a obra de arte
e a comunidade. O vazio diz não a reconciliação, transgride e
nega as posições movendo o obscurecimento do antigo e do
sagrado. Neste movimento existe a incompletude da obra de
arte, é uma perspectiva em aberto e refere-se a arte africana na
noção de horizonte.

Na estética do vácuo, a obra de arte envolve uma


dimensão factiva. A estética do vácuo está atravessada pelo
desenvolvimento constante, de modo que a arte africana não tem
outra função que transitória, isto é, a partir de um movimento
opera um deslocamento. Esta estética decodifica o
indeterminado e não o sedimentado, favorece limiares e, acima
de todos os resíduos que a arte oficial africana (re) presenta
ainda. Portanto, nesta estética, o (não) sentido está sempre em
trânsito e, submetido à corrosão do tempo, não se localiza em
qualquer espaço.

Na estética negro africana como travessia Bidima


problematiza que nas margens, os excluídos elaboram

361
desenvolvimento de estratégias e de transbordamento. O que foi
esquecido na apresentação das artes Africanas, é a arte marginal
destas sociedades. A maioria das publicações sobre arte
Africana estão preocupados apenas a com arte Africana oficial.
A impossibilidade de considerar as margens de arte africana
vem do fato que foi longo tempo habituado a combinar a obra de
arte, atividade artística e o estatuto do artista a partir de, e
através e para lugares atribuíveis e um pensamento de "não-
lugares".

Com a arte das margens, tem a perspectiva de afastar-se


do Ser estático e seguir em encontro ao ainda-não, da
imediatidade para possibilidade e da identificação ao horizonte.
O horizonte é sempre à vista, mas fora de alcance, a arte das
margens inaugura uma epistemologia, onde o heterogêneo é
considerado. Bidima aponta que a sexualidade e loucura são
duas regiões através do qual precisam ser exploradas no campo
da arte. Bidima defende que o olhar deve ser educado para uma
estética que fala da diferença e da controvérsia.

A arte da travessia, ou uma filosofia negro-africana


como travessia, não concorda com o problema da origem, o qual
tem apoiado o entendimento sobre a arte Africana, por exemplo.
A problemática de origem deriva de uma metafisica de
identidade. A origem supõe um ponto de partida, um começo
absoluto para entendimento de tudo que existe.

Tratar das artes africanas em termos de origem, de


africanidade, foi solidária a uma concepção de um tempo,
necessário para os seus sujeitos mas que é preciso dialogar com
a órbita do tempo de agora. Neste aspecto, a origem supõe um
estado, enquanto que com a arte da travessia, seria um processo

362
que não tem origem. A origem supõe um ponto de partida, mas
também é a chegada, a encruzilhada e a transição de algo.

Um outro aspecto defendido pelo movimento da


travessia é a rejeição de uma abordagem essencialista /
substancialista. Ele não sabe responder este questionamento,
“Como o sujeito criador da arte africana produz agenciamentos
dentro de sua comunidade? Como ele, em oposição com suas
ideias, traçam as linhas de fugas?” Tanto a origem quanto o
essencialismo buscam como ponto final a reconciliação, pois
atuam no discurso de que existe um movimento tendo como
destino final a reconciliação, em busca de uma causa em si.
Todavia, a travessia da arte e a arte da travessia rejeitam o falso
movimento transitório principal para um ponto final que seria
reconciliação.

A arte da travessia quer uma falha sempre aberta,


porque também se recusa ao isolacionismo identitário e
neurótico, ele quer a dissolução em um universalismo
coagulante. A dissolução do universalismo coagulante tem
aberturas, conexão das fronteiras e passagem ilegal das
fronteiras do embarque social. Esta é uma arte trágica que é
fundamentalmente insatisfação, incompletude e de rasura.

A filosofia negro africana como travessia não persiste


uma identidade africana, não se pretende voltar às origens. O
essencial não é mais aqui dizer o que a África foi (de onde se
vem), mas o que ela se torna (aquilo através do que ela passa).
O pensamento da travessia apresenta como possibilidade a
incompletude da história africana.

363
Arquipélago e deriva

A arte da travessia e a travessia como arte instaura a


possiblidade de desviar do discurso de origem e da
substância/essência e acredita na utopia como modo de criação
de mundos. O sentido ético-político o qual Bidima percorre o
aproxima, na minha leitura, da imersão filopoética do
martinicano Glissant.

Um dos conceitos que possibilita adentrar na “estética do


caos” do pensamento glissantiano é o da relação. Ele tem dois
livros que tem como título a relação: Philosophie de la relation
e Poética da Relação. Na poética da relação, o errante busca
conhecer a totalidade do mundo, mas sabe que não conseguirá, e
desta ausência mora a beleza ameaçada do mundo. O errante
não tem como sentido a ideia universal (generalizante) e
transparente do mundo, neste caso ele escapa da perspectiva do
viajante, do descobridor e do conquistador. A perspectiva da
errância, assim como da travessia (com sua incompletude),
mergulha nas opacidades do mundo. Glissant não nega a
totalidade-relação, mas se distancia da pretensão de comandar e
possuir o mundo.

A compreensão da opacidade é importante para o


entendido da estética em Glissant. Ele defende a tese que
“reivindicamos para todos o direito à opacidade”. A opacidade
tem como sentido colocar a ideia de transparência em crise. Há
uma injustiça fundamental na projeção da transparência do
pensamento ocidental no mundo. Por quê? Porque devemos
avaliar as pessoas, pelo padrão de transparência das ideias, que
foi proposto pelo Ocidente? Eu entendo, entendo isso, entendo
aquilo – a racionalidade. Eu disso que as pessoas tem o direito

364
de ser opaca aos meus olhos. Isso não vai me impedir de gostar
da pessoa, de trabalhar com ela, sair com ela, etc.

No tópico transparência e opacidade do livro Poética da


Relação, Glissant faz uma discussão sobre o poder dos centros
de dominação, que se dá por meio do universal generalizante
que é sempre etnocêntrico. Aqui vale uma crítica a Glissant em
diálogo com Pierre Clasters, o problema não é ser etnocêntrico,
mas o etnocentrismo. Glissant defende a opacidade na
contramão da transparência. Segundo o autor, o texto literário é
produtor de opacidade, pois o escritor ao entrar nas suas escritas
acumuladas, renuncia a um absoluto, a sua intenção poética,
todo ele feito de evidência e de sublimidade. Segundo Glissant
“a escrita é relativa em referência a esse absoluto, isto é, torna-o
opaco no efeito. O texto vai da transferência sonhada à
opacidade produzida nas palavras”. (GLISSANT, 2011, p.110).

“O compreender” é uma referência importante nas


críticas de Glissant. Por exemplo, o racista é aquele que rejeita
aquilo que não compreende, posso aceitar o que não
compreendo. A opacidade é um direito que devemos ter. O
racismo, a intolerância religiosa, o machismo, a homofobia,
agem na barbárie de impor ao outro a sua própria transparência.

Sempre digo aos psicanalistas: se eu não aceitar a minha


própria opacidade, estarei derrotado, mas posso aceitar a
minha própria opacidade e dizer: não sei porque detesto
essa pessoa ou gosto dessa pessoa. Porque gosto? Não há
razão, nem qualidade. Simplesmente gosto. Alguém sabe
porque detesta couve-flor. Eu detesto aquele vegetal
verde...-Brócolis?-Sim, Brócolis. Todo mundo gosta de
brócolis, eu detesto. Mas por acaso, sei por quê? Não sei,

365
aceito a minha opacidade nesse plano. Porque não
aceitaria em outros planos. (DIAWRA, 2010)

A provocação de Glissant é exatamente o por que de não


aceitar a opacidade do outro? A opacidade é a potência para a
relação porque assim não tem o objetivo central de entender o
outro. É uma das leis da Relação. Na Relação, os elementos não
se confundem assim, não se perdem assim. Cada elemento pode
não só manter sua autonomia, mas também sua essência,
acomodando-se à essência e à diferença dos outros.

Glissant não quer parar no direito à diferença mas chegar


no direito à opacidade. A opacidade seria uma singularidade não
redutível. As opacidades podem coexistir, confluir, tecendo
tramas cuja verdadeira compreensão incidiria na textura dessa
teia e não na natureza das componentes. O referente da
opacidade não é a humanidade mas a divergência exultante das
humanidades. A compreensão de pensamento de si e
pensamento do outro perde sentido. Todo o Outro é um cidadão,
e esta ideia de bárbaro perde o significado. O processo em
aberto é o sentido. Esta discussão vai na contra mão do Ocidente
que a partir da transparência pretendeu reduzir-nos.

A opacidade é um ponto importante da Relação porque a


Relação é compreendida como totalidade aberta, em movimento
sobre si mesma. O pensamento da opacidade retira as verdades
absolutas, ele protege das vias unívocas e das opções
irreversíveis. As opacidades entra no campo da política quando
ela instaura o direito. A opacidade também é ética. Neste ponto,
na dimensão da política surge alguns questionamentos: “ Como
traçar esses limites sem sucumbir ao ceticismo ou cair na
paralisia? Como conciliar a radicalidade inerente a toda a

366
política com o questionamento necessário a toda a relação?”
(GLISSANT, 2011, p.183). a resposta para estes
questionamentos é conceber que é impossível reduzir seja o que
for a uma verdade que não tivesse sido gerada a partir dele
mesmo. Ou seja, na opacidade do seu lugar e do seu tempo. Para
isto ele reforça a argumentação que a cidade do Griot é do Griot,
a cidade de Platão é para Platão e a visão de Hegel é para Hegel.
Mas isto não quer dizer que possa haver confluências , mas sem
ser confundidas ou reduzidas umas às outras. A não barbárie é
possível de não acontecer a partir do consentimento geral nas
opacidades particulares.

O argumento importante em que Glissant toma de


Segalen é o fato dele ter como entendimento que o
reconhecimento do outro é um componente estético, esta é a
primeira condição de uma verdadeira filopoética da relação. A
possibilidade de sentir o choque de outro lugar é o que constitui
o poeta, afirma Glissant. Outra característica filopoetica da
Relação é ser conjetural e não pressupor qualquer fixidez
ideológica, é uma poética aberta de desejo multilíngue, ligada ao
todo o possível. Ela tem como paisagem da tua palavra a
paisagem do mundo, mas a sua fronteira estará sempre aberta.

A experiência negro-indígenas é de uma passagem da


unidade para a multiplicidade. Esta reflexão Glissant aborda no
filme-documentário: Glissant, um mundo em relação de Manthia
Diawara, produzido em 2010, pela k’a Yelema Productions,
retrata 50’ de conversa com o poeta, ensaísta e filosofo. A
disposição da câmera coloca o entrevistado diante de um
espelho, a única imagem refletida é dele, verso e inverso. O
diretor, Diawara, aparece em um momento do documentário, na
parte em que filmam um grupo de martinicanos tratando um

367
porco. É a passagem do filme a qual Glissant volta as suas
raízes, volto ao local onde se criou, encontra sua prima e revive
o local enterrado pelas novas paisagens. Essa é uma das palavras
que definem o filme, paisagem. A paisagem que abre o plano é o
mar. O atlântico, responsável pela ligação e ruptura, pela deriva.

Glissant no filme afirma que “toda diáspora é a


passagem da unidade para a multiplicidade. É isso que é
importante em todos os movimentos do mundo. E volto tendo
ganhado algo, e o que ganharam, a multiplicidade. Ao contrário
da unidade que queria o escravagismo. Temos a multiplicidade
da vontade antiescravagista e foi isso que ganhamos, e esse é o
retorno real.” A estética da libertação: deriva, travessia e outros
itinerários é essa vontade antiescravagista. É uma perspectiva
que segue na crítica a violência da miséria traduzida pela
identidade-raiz, que tem como base a vontade antiescravagista,
a qual desenraizou o sagrado com o massacre dos índios, pela
política da ecologia.

A identidade pode ser resumida como a identidade-raiz,


fundada numa visão, num mito, da criação do mundo, é
santificada pela violência oculta de uma filiação, é ratificada
pela pretensão à legitimidade, que permite a uma comunidade
proclamar o seu direito à posse da terra, que se torna assim
território, é preservada, através da projeção noutros territórios
que se torna legítimo conquistar- e pelo projeto de um saber. A
identidade-raiz enraizou o pensamento de si e do território, e
com isso mobilizou o pensamento do outro e a viagem. A outra
possibilidade é a identidade-relação, ela não está ligada a uma
criação do mundo, mas a vivência contraditória e consciente dos
contatos entre culturas, pé dada na trama caótica da Relação e
não na violência oculta da filiação, não trabalha com a

368
legitimidade, mas com a extensão, não concebe a terra como um
território, de onde se projete para outros territórios, mas um
lugar onde as pessoas se dão em vez de se compreenderem. A
identidade-relação exulta no pensamento da errância e da
totalidade. Segundo Glissant:

Enquanto absoluto enraizado, a terra da Martinica não


pertence nem aos descendentes dos africanos deportados,
nem aos békés, nem aos hindus, nem aos mulatos. Mas
aquilo que era consequência da expansão europeia (o
extermínio dos pré-colombianos, a importação de
população novas) é precisamente aquilo que funda uma
nova relação com a terra: não o absoluto sacralizado de
uma posse ontológica, mas a cumplicidade relacional.
(GLISSANT, 2011, p.142).

A perspectiva de pensar seu lugar, uma geocultura, é o


problema de Glissant. A estética da terra liberta as ingenuidades
folclóricas, ou seja, sempre valorizar os produtos importados e
negar as construções do próprio lugar. A estética da terra é uma
estética do choque e da intrusão, da rutura e da junção, do
contínuo-variável, do descontinuo-invariante. A cumplicidade
relacional própria da estética da terra tem o outro como um
leitmotiv. O outro do pensamento trata-se de uma estética da
turbulência, cuja ética correspondente não é dada de antemão.
Glissant então infere que “se admitirmos assim que uma estética
é uma arte de conceber, de imaginar, de agir, o Outro do
pensamento é a estética criada por mim, por vocês, para nos
associarmos a uma dinâmica em que participamos.”
(GLISSANT, 2011, p. 149).

Neste aspecto a estética da libertação como aqui


entendida é uma das saídas para a barbárie, pois a crítica a qual

369
Glissant apresenta, assim como o movimento da travessia, se
revelam como uma excelente revelação do diverso.

Poética

E o diverso é assegurado pela força poética, em Glissant.


Ela é a energia do mundo mantida viva em nós. A violência
presente no real retira a possibilidade de saber dessa energia. O
fato de ter que “compreender” essa violência e muitas vezes de a
combater afasta-nos dessa vivacidade, petrifica o som e perturba
o conhecimento do futuro. O totalitário instaura-se como relação
a partir de um elemento não primordial (a violência, por
exemplo). A relação totalitária é abordável mas a sua definição
não pode ser imaginada. A Relação é diferente da totalidade
porque a Relação age por si mesma, quando a totalidade, no seu
conceito, é ameaçada de imobilidade. A Relação é totalidade
aberta, a totalidade seria relação em repouso. A totalidade é
virtual a Relação é movimento. Não se entre de imediato em
Relação, como se entraria na religião. Não se concebe a priori,
como se quis conceber o ser.

A poética é a possibilidade da escapar às generalizações.


Segundo Glissant “o último momento do conhecimento é
sempre uma poética” (GLISSANT, 2011, p. 135). A poética é o
duplo alcance, de uma teoria que tenta concluir, de uma
presença que não conclui.

A poética pensa com o tremor do mundo. Glissant


afirma que o pensamento do tremor surge de toda parte, desde
músicas e formas sugeridas pelos povos. As músicas são suaves

370
e lentas, pesadas e profundas, afirma Glissant sobre o
pensamento tremor, “Beleza, grito aberto” (GLISSANT, E.
2014, p.22). O pensamento de tremor nos preserva dos
pensamentos de sistema e dos sistemas de pensamento. O
pensamento do tremor estende-se infinitamente como um
pássaro inumerável, das asas semeadas do sal negro da terra. O
pensamento do tremor nos reúne da absoluta diversidade, num
turbilhão de encontros. É uma utopia que não se fixa e que abre
o amanhã, assim como o sol e um fruto compartilhado.

Para enfrentar os problemas simples de sobrevivência ou


da relação entre si é preciso a insurreição do imaginário. E o
imaginário que Glissant defende é da mudança, pois “posso
mudar, permutando com o Outro, sem me perder nem me
desnaturar” (Glissant, 2014, p.33). Neste ponto o pensamento do
tremor dialoga com a errância do mundo e com seu caráter
inexpressável. O pensamento do tremor não é medo, fraqueza
nem irresolução. Afirma Glissant, “Age no teu Lugar, pensa
com o Mundo” (p.33) e palpitar com a própria palpitação do
mundo. De acordo com Glissant é necessário defender as
identidades feridas dos povos, entretanto essa defesa não
poderia levar a um fechamento. “Quando os países oprimidos e
que lutam têm a generosidade de abrir-se ao Outro, a esperança
de todos se mantém”. (GLISSANT, 2014, p. 34). A abertura do
mundo se dá a partir de um sinal de vida, onde mantém a
diversidade, protege e prolonga os atalhos. A relação é possível
por causa dos arquipélagos, onde compartilha a fala entre todas
as línguas do mundo. “Não tememos a Utopia, ela é o nosso
único Ato: nossa única Arte”. (GLISSANT, 2014, p. 35). A
utopia de Glissant é evidenciado quando ele acredita que as
potências ocupam a Terra, ele, deste modo, acredita no futuro
dos pequenos países.

371
O arquipélago são as partes para o todo-o-mundo. O todo
mundo é o inextricável do uno, é este emaranhado de partes que
configuram o uno. E o mundo, qualquer parte dele, clama a
beleza. Mas nós não escapamos mais à violência. A primeira e
mais constante das violências, de acordo com Glissant, que
resume e contém todas as outras, exige que “o compreender o
mundo”.

Imaginário

O imaginário é uma das categorias de muita importância


pata a estética da libertação. Ele acredita que o que precisa
mudar hoje não é a razão, a racionalidade, nem a religião; é o
imaginário. O imaginário trabalha em espiral, ele não trabalha
com binaridades.

O imaginário reativado pelo Outro do pensamento é uma


das alternativas apresentada por Glissant, por exemplo, para
combater a violência. O pensamento mais tranquilo é violência,
quando imagina processos arrojados da Relação, mas evita a
armadilha sempre confortável da generalização. Essa violência
antiviolência, de acordo com Glissant, é abertura e criação.
Nesse ponto acrescenta um pleno-sentido à violência operativa
dos marginais, dos rebeles, dos desviantes, todos eles
especialistas do desvio. O desvio é das normas pré-estabelecida.

Claro que não se pode mudar o imaginário por decreto.


Não posso dizer: “Vou mudar o seu imaginário”. O imaginário
pertence a cada um, é algo precioso que não pode ser tocado.
Mas temos um imaginário coletivo. O que é isso? É o

372
imaginário do mundo, como vemos e sentimos o mundo.
Aqueles que tremem com a trepidação do mundo, aqueles que se
arrepiam com as palpitações do mundo, isso é o imaginário.
Segundo Glissant “Quando menos um povo tem imaginário,
mais ele é agressivo em relação aos outros povos”, neste aspecto
que o imaginário que é o nó da questão, e não a razão, como
define o Ocidente, nem a religião também como define o
ocidente.

A mudança de imaginário a disputa por ele é um dos


caminhos de libertação. Entretanto, não podemos mudar o
imaginário das pessoas. O imaginário pertence a cada um, não
podemos mudá-lo, mas os imaginários mudam. Se caso isso não
aconteça estaremos em um processo perpétuo de violência,
estaremos expostos a várias violências.

O poema, a poética, é um dos deslocamentos necessários


para pensar sobre o imaginário. É preciso descobrir e meditar a
maravilhosa, infinita e rara multiplicidade dos imaginários dos
povos. Pergunta Glissant “Estamos próximos de um Imaginário
ampliado do Todo-o-mundo?” (GLISSANT,2014, p.126). O
imaginário dos povos esquecidos é isso que nos falta.

Conclusão

A estética da libertação: deriva, travessia e outros


itinerários a busca poética que “cada um estar ali e noutro lugar,
enraizado e aberto, perdido na montanha e livre no mar, em
acordo e em errância” (GLISSANT, 2011, pag. 41).

Nesta perspectiva problematiza as oposições: vida e


morte, ignorância e saber, música e silêncio, sofrimentos e

373
alegrias. O inesperado e o tremor apresentam-se como leitmotiv
da filosofia como deriva, é um modo de filosofar no intuito de
criar outros mundos possíveis.

O mundo treme, criouliza-se, quer dizer, multiplica-se,


mistura suas florestas e seus mares e seus desertos, todos
ameaçados, mudando e permutando seus costumes e suas
culturas. O tremor é a própria qualidade daquilo que se opõe ao
brutal unívoco, rígido pensamento do eu menos o outro. A
estética da libertação como deriva treme com a lógica do lugar
próprio, pois, ao se territorializar, permite-se explodir em
diversos horizontes.

Esta perspectiva pensa com o mundo, desde os aportes


culturais do seu território, mas age no teu lugar (GLISSANT,
2014). O modo de pensar, relacionado com os seus problemas e
seus territórios, evidencia uma estética do lugar próprio, uma
estética da terra, que valoriza seus imaginários e as construções
do próprio lugar, mas relacionada com o todo-mundo

Não esquecemos que “Toda a poética é um paliativo de


eternidade”.

Referência

GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Portugal: Porto


Editora, 2011.

______. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora:


Editora UFJF, 2005.

374
______. Philosophie de la Relation: poésie en étendue. Paris:
Éditions Gallimard, 2009.

______. Une nouvelle région du monde. Esthétque I. Paris:


Éditions Gallimard, 2006.

BIDIMA, Jean-Godefroy. La Philosophie Négro-Africaine.


Paris: Presses Universitaires de France, 1995.

______. L’Art Négro- Africain. Paris: Presses Universitaires de


France, 1997.

_______. Law and the public sphere in africana. La Palabre and


other writings. EUA: Indiana University Press, 2014.

______. Da travessia:contar experiências, partilhar o sentido.


De la traversée: raconter des expériences, partager le sens. Rue
Descartes, 2002/2, n.36, p. 7-17. Tradução para uso didático por
Gabriel Silveira de Andrade Antunes. Disponível em:
https://filosofia-
africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/jean-
godefroy_bidima__da_travessia._contar_experi%C3%AAncias_
partilhar_o_sentido.pdf Acesso em: 16 out. 2018.

375
376
ARTE AFRO-BRASILEIRA: UM TRAÇO
DECOLONIAL?

Nelma Cristina Silva Barbosa de Mattos119

Introdução

A presença de negros e negras artistas foi constante na


história das artes plásticas do Brasil. Bem antes de se instalar
um sistema oficial de ensino da arte no país, já era possível
notar as manifestações plásticas negras em empreendimentos
coloniais. A decoração, imaginária e arquitetura religiosa cristã,
entre outros elementos, contaram com a mão de obra de artífices
negros. (SILVA; CALAÇA, 2006). Entretanto, o interesse em
sistematizar esse tipo de informações, registrando a importância
e a qualidade da contribuição negro-mestiça nas visualidades é
recente no cenário acadêmico nacional.

A história da arte brasileira não aborda o arcabouço


estético de origem negra. Os antigos trabalhos sobre a arte
plásticas não registravam o pertencimento étnico dos autores.
Segundo Salum (2004, p. 337),“Ou os artistas negros não eram
historiados, ou a arte de origem negra ou africana era
desconsiderada na história da arte”.

119
Doutora em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), professora do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano). E- mail:
nelma13@gmail

377
Marianno Carneiro da Cunha (1983), assinala que
embora a contribuição negra tenha sido negada nas artes visuais
oficiais, resultado de uma noção preconceituosa da história da
arte, ela foi fundamental para o desenvolvimento da expressão
artística nacional. É relevante lembrar que, mesmo entre os
estudiosos do negro, a temática das artes visuais recebeu pouca
atenção e interesse (ARAÚJO, 2010; SALUM, 2004). O negro
era estudado em recortes como a escravatura, literatura, idioma,
música, religiosidade ou costumes.

Autores como Salum (2004) e Araújo (2010) informam


que após o centenário da Abolição da Escravatura, em 1988, a
arte afro-brasileira passou a ser um tema mais atraente para os
pesquisadores. E recentemente, com a promulgação da lei
10.639 de 2003, que obriga o ensino da história da África e das
Culturas Afro-brasileira e Africana em todas as escolas do país,
a demanda por esses estudos já se reflete em grupos
institucionais de pesquisa, programas de pós-graduação e em
publicações sobre os temas. A referida lei observa o papel
especial de áreas como Literatura, História e Artes na produção
das identidades e sensibilidades. No entanto, as artes negras
ainda se constituem em um campo carente de olhares e análises.

Ao analisarmos os discursos acadêmicos acerca da


produção visual de origem negra no Brasil, percebemos tensões,
pois essa é uma área de caráter multidisciplinar, que dialoga
diretamente com a identidade, as suas representações e a
experiência negra no país. Inicialmente, essa arte foi abordada
nos campos do Direito e da Medicina, sob o viés do racismo
científico em finais do século XIX, como exemplo de
incapacidade intelectual, de demência ou de propensão ao crime.
O tema migrou para as Ciências Sociais (Antropologia) quando

378
esse campo de conhecimento se instituiu no país, para então ser
considerada nas Artes Visuais ao longo do século seguinte, mas
ocupando um espaço de menor prestígio, o das artes chamadas
de primitivas, naif ou populares. Isto é, o lugar destinado à
produção não-ocidental, daqueles que não seguiam as normas
acadêmicas e eurorreferenciadas.

Distante dos espaços institucionalizados do sistema da


arte, a arte afro-brasileira se manteve plena nos espaços
religiosos de matriz africana. Nesses territórios, suas funções e
processos criativos obedeceram à preceitos de tradição africana,
que orientaram técnicas e tecnologias do fazer artístico no
sentido de ressignificar a herança ancestral da África no grupo
religioso (MUNANGA, 2000).

Porém, a arte afro-brasileira não se constituiu em uma


escola estilística. Como afirma Salum (2004), para que
conheçamos a referida modalidade criativa, é preciso lançar mão
do estudo de trajetórias de artistas negros. Para a intelectual, a
tradicional e rigorosa análise formal de obras de artes plásticas
não consegue dar conta da complexidade em que está inserida a
expressão afro-brasileira. Trata-se da vertente material de uma
cultura oriunda de conflitos e negociações entre experiências
sensíveis nativas, europeias e predominantemente africanas.

A arte afro-brasileira é compreendida como o conjunto


de manifestações plásticas dos negros e descendentes de
escravos, ou daqueles que experimentam o universo cultural
afro-brasileiro no Brasil (SALUM, 2004). A autoria desse tipo
de arte não está ligada, exatamente, à cor da pele de quem
produz, mas sim ao seu discurso identitário e à vivência cultural.
Mas, o sistema da arte criou expectativas acerca da produção

379
visual de criadores reconhecidos como negros, aceitando-o
apenas enquanto criadores de uma arte inspirada na experiência
colonial negra, e não como artista, capaz de dialogar
sensivelmente sobre quaisquer temáticas além de sua origem
étnica-racial.

A arte sacra de origem negra

A criação visual afro-brasileira desenvolveu-se


principalmente no espaço da religiosidade de matriz africana,
que era o território da ressignificação da experiência escrava e
da ressocialização do contingente de escravizados (SODRÉ,
1983). Adereços, imaginária e outros objetos litúrgicos
compuseram o arcabouço material de uma arte centrada no traço
herdado da plasticidade africana, mas elaborada a partir dos
cruzamentos com outras visualidades.

A vinda da missão Artística Francesa, em 1816, com o


objetivo de implantar a academia de belas artes no Brasil
conseguiu interromper um fluxo de criação mestiça que
predominava na Colônia. Não havia escolas para a formação de
artistas até aquele momento. A produção visual era baseada em
observação de modelos importados de outros países,
especialmente os da Europa, além dos referenciais plásticos
africanos e indígenas. Após a criação da Academia Imperial de
Belas Artes em 1826, réplica do modelo acadêmico vigente a
partir de Paris, toda a produção plástica brasileira passou a ser
orientada por cânones europeus, ainda que alguns traços de
outras culturas pudessem se manifestar nos artefatos. (SILVA;
CALAÇA, 2006).

380
No paradigma acadêmico de formação artística, os
conhecimentos sensíveis eram apresentados segundo uma
hierarquia estética. A lógica de dominação colonial impunha
também o uso das imagens como instrumento de poder. A
representação daquele mundo indicava a superioridade de certos
grupos humanos em relação aos outros. As subjetividades
permitidas seguiam o referencial eurorreferenciado, isto é,
masculino, heterossexual, cristão e branco. O poder criativo
emanado de outros grupos humanos era destinado a uma esfera
inferior, que ao longo da história oficial da arte foi sendo
designado por diferentes expressões e rótulos. (GOMEZ, 2011;
GROSFOGUEL, 2007).

O estatuto social de artista no Brasil foi alterado com a


Academia de Belas Artes, pois somente aqueles que
frequentavam seus cursos eram reconhecidos como aptos à
criação e ao trabalho com artes visuais. Os raros artistas negros
que alçaram reconhecimento social como profissionais da arte, o
fizeram através do ingresso na academia, sobretudo a partir do
fim do século XIX. Porém, esses eram obrigados a
“desafricanizar” sua arte, integrando-se ao estilo europeu em
voga. Eles não sobreviveram ao racismo da sociedade, que os
excluía ou dificultava a sobrevivência através do trabalho
artístico. Então, a dimensão sacra da arte visual afro-brasileira e,
portanto, portadora das características ou feições mais africanas,
encontrou nos terreiros o território propício para sua
continuidade.

381
A circulação da arte de origem negra

No final do século XIX e início do XX, as


manifestações culturais negras sofreram intensa perseguição.
Foi nesse período que a presença negra na sociedade brasileira
se tornou um problema diante do ideal de civilização branca, à
moda europeia. Naquele contexto, expressões como o
candomblé ou a capoeira representavam o atraso do meio
colonial e da economia de base agrária; eram ameaças àquele
novo modelo de sociedade. O embranquecimento do país
tornou-se um projeto político, orientando instituições e
comportamentos, subsidiados pelas teorias raciológicas pseudo-
científicas e pela economia. Por exemplo, professar uma religião
de matriz africana era crime sujeito às penalidades da época.
Então, diante da perseguição sofrida, muitos eram presos e
trancafiados em delegacias, colônias penais ou hospitais
psiquiátricos. As provas materiais “dos crimes”, recolhidas pela
polícia, se constituíam de artefatos encontrados nos lugares das
cerimônias, como alimentos, adereços, roupas, instrumentos
musicais, entre outros.

Com essas diligências e apreensões, a polícia conseguiu


construir um acervo importante de peças de arte sacra de origem
negra, recolhidas como evidências de delinquência, demência ou
desordem social, de acordo com o pensamento racista científico
da época. Os objetos eram nomeados como exemplares de
“magia negra”. Tal material se tornou a base de importantes
estudos, referências do trabalho de precursores dos estudos
sobre negros no Brasil, como os de Nina Rodrigues ou Arthur
Ramos, médicos.

382
O curioso é que naquele contexto se desenvolvia um
discurso de origem nacional, com direito à uma política de
preservação e tombamento do patrimônio histórico e artístico
nacional, bem como a instituição de espaços de divulgação da
memória brasileira. Então, algumas peças dos acervos da polícia
passaram a ser entendidas como artefatos de valor etnográfico e
integraram coleções relevantes em museus. Como prova da
preocupação com a presença negra no ideário nacional, figuram
entre os primeiros bens móveis tombados no Brasil, em 1938,
objetos da Coleção de Magia Negra da Polícia Civil do Rio de
Janeiro:

Figura 1 – objetos da Coleção de Magia Negra

383
Na fotografia (Figura 1), é possível identificar artefatos
religiosos utilizados no culto às divindades africanas e afro-
brasileiras. As peças estão registradas no Livro Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, com inscrição de número 001, em dia 05 de
maio de 1938, no Processo 0035-T-38 (CORRÊA, 2005).

Nos anos 1950, os estudos do médico psiquiatra Arthur


Ramos, realizados a partir de coleções da polícia de Alagoas,
ampliaram a concepção da arte afro-brasileira para além do
território religioso. Ele concebia a autoria de uma arte de origem
negra também em pessoas que não professaram religiões de
matriz africana, contribuindo para que fosse denominada
também de arte popular, primitiva ou naif.

À luz do modernismo, que tinha a influência da arte


africana e de outros povos que sofreram colonização, a
circulação de bens culturais no Brasil tomava corpo. Logo foi se
criando um mercado consumidor para arte de autoria erudita ou
popular, o que sintonizava com as tendências internacionais
modernas. Surgia o artista primitivo no cenário brasileiro.
Aquele que criava, mas não sabia valorar seu trabalho,
tampouco tinha conhecimento sobre o poder artístico de suas
obras. Para ser reconhecido meio profissional da arte, o artista
primitivo ou popular deveria ser negro, autodidata e analfabeto,
conforme nos elucidam os estudos de Clarival do Prado
Valladares (1988).

Entretanto, para que os produtos visuais dos afro-


brasileiros circulassem, era necessário o intermédio de um
conhecedor, um especialista capaz de circular nas altas rodas

384
sociais e produzir discursos intelectuais sobre a
arte.(VALLADARES, 1988).

Como os afro-brasileiros enfrentavam problemas sociais


graves, tais como a falta de acesso à educação básica, a
comercialização de suas obras ficava à mercê de colecionadores
e atravessadores reconhecidos socialmente (intelectuais,
acadêmicos, galeristas, artistas plásticos brancos...). Com
raríssimas exceções, o trabalho do artista circulava, mas o autor
continuava impedido pelas estratégias racistas sociais de
usufruir ou interagir com quem consumia sua arte. (D´ÁVILA,
2009)

Até hoje, o maior espaço de circulação da criação dos


afro-brasileiros continuam sendo os meios da expressão da
cultura afro-brasileira, a exemplo das manifestações religiosas.
Ao invés de se repensar estratégias de inclusão de artistas
negros, o sistema da arte preferiu cristalizar a ideia de que os
negros produziam arte somente no âmbito religioso, para
justificar a ausência negra nos circuitos formais da Arte.

Arte negra na contemporaneidade

Na arte também podemos perceber as tensões oriundas


de valores civilizatórios em conflitos com os efeitos da
experiência colonial, os processos de dependência ou libertação
de povos. (GOMÈZ, 2011). O padrão de poder baseado na raça,
imposto pela colonização, e que orientou a organização de
sociedades (QUIJANO, 2007), enfrenta atualmente questões
como a emergência de identidades negadas ou negociadas

385
historicamente. Principalmente a partir dos anos 1960, o mundo
passou a conviver com reivindicações sociais focadas em
discursos de temas identitários, tais como gênero, raça, etc.
Essas manifestações abalaram todos os âmbitos das estruturas
sociais, inclusive a arte, que passou a refletir toda essa
diversidade de expextativas. (ARCHER, 2008)

As identidades locais exigem cada vez mais espaço no


sistema da arte. Novas plataformas expositivas vem sendo
organizadas em partes diferentes do mundo, mobilizando
iniciativas dialógicas entre diferentes expressões artísticas. As
ex-metrópoles coloniais ainda controlam a rede de instituições
que definem o que é ou não a arte – o sistema da arte, bem como
seu valor comercial, porém estão subordinadas a uma política
que exige a presença de outros sujeitos e sensibilidades em
projetos expositivos.( ANJOS, 2005)

A relação entre centro e periferia na arte é influenciada


por discursos de pertencimento identitários e por uma luta em
favor da descentralização do sistema oficial da arte (ANJOS,
2005; RUPP, 2007). Isso vem projetando novos artistas,
sobretudo aqueles de origem negra e mestiça.

No caso brasileiro, é interessante observar que os artistas


negros que primeiro despontaram internacionalmente na arte
contemporânea foram Rubem Valentim (1922-1991) e Mestre
Didi (1917-2013). Ambos exploravam a temática do candomblé
em suas obras, obrigando o sistema a rever nomenclaturas e
informações sobre a cultura negra. Rubem Valentim era baiano,
formado em Odontologia e em Jornalismo. Pintor autodidata,
participou do movimento de renovação das artes plásticas de seu
estado e realizou suas primeiras exposições em 1953. Foi

386
professor de História da Arte no Rio de Janeiro e em Brasília,
participou de grandes mostras internacionais que o projetaram
no exterior. Foi um dos primeiros artistas afro-brasileiros a ter
sucesso exponencial. Ao falecer, recebeu como homenagem
uma sala especial no Museu de Arte Moderna da Bahia:
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, ou Mestre Didi, era
sacerdote candomblecista em Salvador. Consagrou-se no meio
artístico nos anos 1980, ao ser incorporado como expositor na
emblemática exposição Les magiciens de la Terre, em Paris
(1989). Em 1996, foi homenageado com uma sala especial na
23ª Bienal Internacional de São Paulo.

Figura 2 – Sala dedicada a Rubem Valentim - 23ª Bienal Internacional


de São Paulo.

387
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, ou Mestre Didi,
era sacerdote candomblecista em Salvador. Consagrou-se no
meio artístico nos anos 1980, ao ser incorporado como expositor
na emblemática exposição Les magiciens de la Terre, em Paris
(1989). Em 1996, foi homenageado com uma sala especial na
23ª Bienal Internacional de São Paulo.

Figura 3

Mestre Didi expôs seus trabalhos em países como a


França, no Centre Pompidou, em Paris, e nos Estados Unidos,

388
no Museu Guggenheim, de Nova Iorque. Ambas são poderosas
instituições do sistema da arte contemporânea.

O traço decolonial

Ao questionarmos a existência de um traço decolonial na


arte afro-brasileira, consideramos que essa pergunta nos leva a
diversos caminhos, mas ao mesmo tempo se elabora dentro de
um campo epistêmico próprio, resultante da disputa de poder da
matriz colonial e dos lugares de enunciação do ser e do saber,
que reivindicam novas posições. As subjetividades erigidas
nessa dinâmica reelaboram rotas epistemológicas reafirmando
lugares de fala nunca antes privilegiados.

A arte afro-brasileira não era concebida como campo de


saber artístico. Entretanto, a mobilização por transformações
fundamentadas nas temáticas identitárias, vem instalando novas
relações na produção visual profissional. O discurso de
identidade étnica do artista é valorizado e tornou-se o objeto
fundamental na apreciação de sua obra ou processo criativo. A
exigência de novos sujeitos na circulação das artes visuais,
obriga a implementação e uso de novos vocábulos, novos
conceitos, remodelando relações de poder anteriormente
estabelecidas. (MOSQUERA, 2014).

O sistema tenta rotular novas produções, uniformizar


narrativas visuais, mas seu léxico ocidental e limitado ainda não
dá conta da diversidade de experiências e sujeitos resultantes
dos processos coloniais. É nesse entre-lugar que percebemos o
“decolonial” na arte afro-brasileira: o esforço do sistema da arte

389
para lhe definir como estilo específico não dá conta de explicar
sua complexidade; pois a arte afro-brasileira nos apresenta
questões e problemas que vão muito além de um estilo oficial de
arte, oferecendo interrogações e formas novas de conceber o ser
e o criar em contextos de diversidade.

Considerações finais

Na contemporaneidade, é possível localizar trabalhos


artísticos afro-brasileiros construídos com diferentes referenciais
plásticos, territoriais, discursivos etc tendo como ponto de
interseção o imaginário religioso de origem africana
(CONDURU, 2007). A arte contemporânea permite a variedade
de formas expressivas, e em todas elas podemos visualizar
algumas produções de origem negra.

Nas últimas duas décadas, a população negra alcançou


índices melhores de acesso à educação, e à outras políticas
públicas, como a cultura. Isso influenciou no ingresso de

artistas afro-brasileiros no meio profissional, mas não resolveu a


lacuna e a dívida histórica que o racismo implantou na vida
social brasileira.

Agindo individualmente ou em grupos, artistas afro-


brasileiros hoje reivindicam e demarcam seu espaço no sistema
oficial da arte, ainda que utilizando referenciais estéticos em
voga no mundo profissional. Eles, independentemente da
ferramenta expressiva escolhida (pintura, instalação, vídeo,
performance, etc), reconhecem e insistem na afirmação de seus

390
traços identitários como estratégia política. Nesse contexto, o
imaginário religioso afro-brasileiro aparece com frequência no
trabalho desses artistas. (CONDURU, 2007).

Por isso, mesmo quando se trata de uma temática outra, a


arte feita pelo negro do Brasil, esteja ela no terreiro ou na
galeria, enquanto arte afro-brasileira, continua sendo um
contraponto decolonial ao discurso visual eurorreferenciado.

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393
394
A CAPOEIRA NA GINGA COM A MODERNIDADE

Paulo Andrade Magalhães Filho120

Desencantamento, racionalização e modernidade

Nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 19), “O


programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo.
Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo
saber”. Entretanto, o desenvolvimento da ciência demonstrou
que esta seria não uma forma de emancipação da humanidade,
mas um instrumento de dominação mais aprofundado. A razão
instrumental não apenas permitiria uma sofisticação das técnicas
de dominação, como aprofundaria à alienação do indivíduo
frente a supremacia da técnica racional, burocratizada e
matematizada. A ciência se torna então ideologia, ao trazer
implícita uma visão de mundo ajustada com o atual patamar de
dominação. Ao tratar do pensamento grego, comentam que seus
conceitos

[…] refletiam com a mesma pureza das leis da física a


igualdade dos cidadãos plenos e a inferioridade das

120
Doutorando pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura
e Sociedade (Pós- Cultura – UFBA). Jornalista (UFMG), Mestre em Ciências
Sociais (UFBA). Contramestre de capoeira angola e membro do Conselho
Gestor da Salvaguarda da Capoeira na Bahia. E-mail:
paulomagalhaes80@gmail.com

395
mulheres, das crianças e dos escravos. A própria
linguagem conferia ao que era dito, isto é, às relações da
dominação, aquela universalidade que ela tinha assumido
como veículo de uma sociedade civil [...] (p. 31).

Não é difícil enxergar aqui como esta razão foi e é usada


para garantir a supremacia de padrões de pensamento e de
técnicas ligadas a determinados grupos sociais, e por que não
dizer, raciais. O colonialismo abusou dessa justificativa
ideológica, e em nossos tempos, esta ainda é uma lógica a
perseguir segmentos sociais marginalizados. Em nome de uma
técnica científica, perseguiram-se as curandeiras, e hoje, tentam
coibir as vendedoras de comida na rua, descendentes das antigas
escravas de ganho, em nome de normas de vigilância sanitária,
bem como até hoje perseguem-se os saberes populares sobre o
corpo que se manifestam na capoeira. A patrimonialização do
ofício das baianas de acarajé espantou essa ameaça que
pairavam sobre as mesmas, mas as tentativas de regulamentação
da capoeira sob a égide da educação física seguem nessa linha.
Nas palavras de Paul Gilroy, “as irracionalidades racionalizadas
do pensamento racial e a aplicação racional do terror racial da
mesma forma levaram os procedimentos técnicos da razão
europeia ao descrédito” (2001, p. 17). Rodolfo Kusch comenta
que

La ciencia no es un descubrimiento de la humanidad, es


uma creación de Occidente y en tanto es local exige su
estructuración. La ciencia como determinación de
objetos, como descubrimiento de leyes del universo, es
un hallazgo de Occidente dentro de um proyecto político
del propio Occidente. (1976, p. 107).

396
Enrique Dussel (2005), classifica esta visão como
eurocêntrica, porque indica como pontos de partida para
compreensão da “Modernidade” fenômenos europeus, e seu
desenvolvimento posterior necessita unicamente da Europa para
explicar o processo. O autor elabora uma leitura ampliada do
fenômeno Modernidade, definindo-a não a partir de fenômenos
europeus isolados como renascimento, iluminismo e revolução
francesa, mas a partir da integração de todo o planeta por meio
do colonialismo, algo possível graças à invasão e colonização
das Américas com as grandes navegações ibéricas.

A questão que esse texto propõe não é entender ou


definir o fenômeno da Modernidade em um sentido geral, mas
sim, entender os impactos sobre a capoeira do “projeto da
modernidade”, definido por Santiago Castro-Gómez (2005, p.
87), como uma “tentativa fáustica de submeter a vida inteira ao
controle absoluto do homem sob a direção segura do
conhecimento”.

A capoeira, manifestação cultural desenvolvida no Brasil


por africanos escravizados, foi tratada de diferentes formas pelo
Estado brasileiro, e vem se transformando ao longo da história.
Passou por períodos de relativa aceitação e alianças políticas,
quando se organizava em maltas. Foi criminalizada pelo Código
Penal de 1890, perseguida e reprimida de forma explícita. Após
a revolução de 1930, foi progressivamente enquadrada em
formatos apontados pelo Estado.

Interessa entender como a capoeira foi se adaptando às


estratégias do poder ao longo da história, em busca por
sobrevivência, legitimação social e mobilidade de classe e,
também, como tem se relacionado com o processo de

397
racionalizacão do campo cultural em pauta no Brasil
contemporâneo. Assim, a prática da capoeira em locais
fechados, constituindo escolas; o afastamento do mundo das
ruas, do álcool e da malandragem; o estabelecimento de
uniformes; foram alguns elementos adotados pelas lideranças da
capoeira baiana a partir da década de 1930 para aproveitar as
brechas oferecidas pelo Estado e pela sociedade. Estes mestres
foram os primeiros a se encantar com o discurso do esporte, e as
possibilidades que aí se ofereciam para a capoeira.

Esportivização

Oriunda da aristocracia inglesa do Século XIX, a


concepção de esporte rapidamente se transformou em um
fenômeno mundial, constituindo-se na “forma hegemônica da
cultura corporal de movimento”, ou seja, “a forma da cultura
corporal de movimento que é funcional para a atual hegemonia”
(BRACHT, 2005, p. 65). Dentro do esporte, sua faceta mais
competitiva, o esporte de alto rendimento, veio
progressivamente tornando-se a faceta dominante, impondo-se
como única no imaginário popular. O autor sugere caminhos
para se pensar como os valores esportivos, oriundos de
determinada racionalidade e contexto histórico, são
naturalizados, podendo constituir uma ideologia. Alguns
elementos característicos da racionalidade típica das sociedades
capitalistas estão presentes e são reafirmados por meio do
esporte: orientação para o rendimento e a competição, a
cientifização do treinamento, a organização burocrática, e o
nacionalismo, dentre outros.

398
A construção da hegemonia esportiva pode ser pensada
como um processo de disciplinamento dos corpos, um biopoder
a colonizar as culturas dos povos colonizados e inseri-las em
uma lógica cultural racional, moderna, capitalista e eurocêntrica.
O Brasil, como a maior parte dos países ocidentais, adota um
modelo neocorporatista, burocrático e centralizado de
administração do esporte. Segundo Regini (1992), o Estado
concede a algumas associações o reconhecimento institucional e
o monopólio de organização daquela modalidade. Tratam-se, em
sua maioria, de entidades centralizadas, hierárquicas, com pouca
transparência e alternância de poder.

No Brasil esta organização, ou controle, se inicia através


do Decreto-Lei nº 3.199, de 1941, que cria o Conselho Nacional
de Desportos (CND) e estabelece a primeira legislação nacional
sobre o assunto. Em 1972 (em plena ditadura militar) uma
portaria do MEC reconheceu oficialmente a capoeira como
esporte. A capoeira foi vinculada então à Confederação
Brasileira de Pugilismo através do seu Departamento Especial
de Capoeira. Se dá, a partir deste período, uma verdadeira queda
de braço entre os militares que comandavam a Confederação
Brasileira de Pugilismo e os mestres de capoeira. Aqueles
queriam enquadrar a capoeira em um formato de luta
competitiva, objetivamente mensurada, com unificação e
padronização de movimentos e marcação de pontos. Os
capoeiristas que apostavam nesse formato de esporte de
competição tinham outras ideias de como deveriam ser as lutas,
se afastando do modelo do boxe e do judô e tentando criar um
formato mais afim com a dinâmica da capoeiragem. Por muito
tempo se apostou neste formato esportivo. Criaram-se
graduações nas cores da bandeira brasileira, unificou-se uma
indumentária nacional (o abadá de helanca), mudaram as

399
metodologias de treinamento, o que veio ocasionando uma série
de transformações na estética e corporalidade da capoeira. Em
1992 é fundada a CBC, Confederação Brasileira de Capoeira,
que aprofunda esta tentativa de normatização, padronização e
controle da arte-luta, operada em sua maioria por burocratas do
esporte. Em 1995, ano em que a CBC é reconhecida pelo
Comitê Olímpico Brasileiro, ela articula o primeiro projeto de
regulamentação legal da capoeira. Posteriormente vários outros
projetos serão propostos com o mesmo objetivo, como o PL
7150/2002 e o PL 31/09, de Arnaldo Faria de Sá, e o PL-
2858/2008 de Carlos Zarattini. São tentativas de regulamentar a
prática profissional da capoeira a partir de uma entidade
burocrática centralizada, com o estabelecimento de critérios
“claros”, objetivos e racionais para a emissão de graduações. Ou
seja, uma clara tentativa de controle e enquadramento, um
exercício de um poder normatizador.

Outras tentativas seguirão no mesmo caminho, como as


que vieram após a Lei nº 9696 de 1998, que regulamentou a
profissão de educação física. Inicialmente a CBC se aproxima
do sistema CREF/CONFEF, e apoia estas iniciativas; depois se
afasta para perseguir objetivos semelhantes. “A CBC
representou, e ainda representa, uma ala que podemos designar
como conservadora da Capoeira, que procurou aliar seus
projetos ao setor também conservador da Educação Física”
(SILVA: 2002, p. 167). O Conselho Federal e os Conselhos
Regionais de Educação Física logo iniciaram uma campanha
agressiva para aprisionar todas as manifestações da cultura
corporal, como Capoeira, Artes Marciais, Dança, Yoga, Pilates,
dentre outros, pretendendo estabelecer que somente os
professores de educação física pudessem dar aulas de capoeira, e
que os mestres já estabelecidos (e com direitos garantidos,

400
portanto) tivessem que se filiar e pagar suas anuidades como
“provisionados”. Depois de muita batalha, os capoeiristas
conseguiram ganhar na justiça o direito de exercer livremente
sua arte, mas até hoje tramitam no

congresso nacional projetos de lei que tentam regulamentar de


alguma forma a capoeira. Estas tentativas de controle de uma
forma mais explícita, repressiva, são um prato cheio para
estudos sobre a capoeira. Constituem a faceta mais brutal e
escancarada do seu processo de “desencantamento”.

O processo de racionalização operado sobre a capoeira


(que se expressa de forma mais contundente nos megagrupos de
capoeira contemporânea) promove uma mecanização das
técnicas corporais, com métodos de treinamento adaptados da
ginástica, musculação e outras lutas. O biotipo também veio se
transformando, com a introdução da prática de musculação e o
uso de anabolizantes.

Este processo de racionalização, ocidentalização da


capoeira se dá também por meio do próprio processo religioso, e
é cada vez maior o movimento de “capoeira de Cristo”, que
conta hoje com encontros nacionais, federações próprias,
constituindo um campo relativamente autônomo, mas com forte
impacto sobre a capoeira como um todo. Simbólico desta
relação é o fato das Frentes Parlamentares em Defesa da
Capoeira (tanto a existente no Congresso Nacional como a
criada na Câmara Municipal de Salvador) serem dirigidas por
membros do PRB (Partido Republicano Brasileiro) e da Igreja
Universal do Reino de Deus (um deputado que é bispo e um
vereador que é pastor). A intolerância religiosa entra no campo
da capoeira e nega valores civilizatórios de matriz africana que

401
são/foram centrais na cultura capoeirana. A ética protestante
argumenta que “não se pode servir a dois senhores”, e a capoeira
de Jesus se converte, abandona sua mandinga. Seria um
desencantamento ou um reencantamento esta catequização?
Algo que ainda pretendemos descobrir.

Não se quer argumentar apenas no sentido dessas ações


explícitas do Estado, como já sublinhou-se anteriormente.
Muitos grupos se organizaram no formato de associações e
aderiram em maior ou menor grau às concepções desportivas
porque ali se abriam janelas, oportunidades, recursos. Não
pretende-se desprezar a agência dos capoeiristas e suas ricas
formas de “gingar” com as situações, se adaptar e traçar táticas
de subversão e sobrevivência. Mas interessa ao estudo que agora
apresenta-se lançar jogar luz sobre o outro lado do jogo. Como
bem pontua Foucault (1979), governar é estruturar o eventual
campo de ação dos outros. Ou, como coloca Wolf, citado por
Feldman-Bianco (2003, p. 326), “O poder estrutural molda o
campo social de ação de forma a tornar possível alguns tipos de
comportamento, enquanto dificulta ou impossibilita outros”.
Esta é e tênue trilha que se dispõe a seguir neste trabalho que se
inicia, de seguir os passos da violenta ação normatizadora
estatal, que se manifesta por vezes de forma “positiva”,
oferecendo oportunidades para os que caminham por
determinado rumo, garantindo assim que muitos trilhem este
mesmo rastro. Tentaremos depois entender a lógica de ação e
reação dos capoeiristas que jogaram este jogo com o Estado.
Afinal, como dizia Marx (2008, p. 207), “os homens fazem a
sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre
vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas
circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas
pelo passado.”

402
Salvaguarda e burocratização

O significado da proposta desportiva é relativamente


claro para os setores militantes da capoeira enquanto cultura,
uma vez que nega frontalmente a capoeira patrimônio (a
capoeira desportiva não trabalha com o formato roda de
capoeira, nem com a figura do mestre de capoeira, as duas
formas em que a capoeira foi registrada como patrimônio
imaterial brasileiro). Mas...e as políticas culturais? E as políticas
de patrimônio?

Em discurso à ONU em 2004, o então ministro da


cultura Gilberto Gil

classifica a capoeira como “ícone da representatividade do


Brasil perante os demais povos”, homenageia mestres e
professores como “embaixadores da Cultura Brasileira” e fala da
“diáspora da capoeira no mundo”, presente em mais de 150
países. Se inicia ali uma série de ações voltadas para a capoeira,
que incluem pontos de cultura (Programa Cultura Viva), os
editais do Capoeira Viva e o registro da capoeira como
patrimônio imaterial brasileiro, em 2008, e patrimônio da
humanidade, em 2014. Aparentemente, são políticas que
trabalham na preservação dos saberes populares, respeitando a
autonomia dos seus detentores. Na prática, entretanto, o modus
operandi do Estado e a cultura geral dos capoeiristas tiveram
vários choques e embates, como o que inviabilizou a
continuidade do Programa Pró-Capoeira, em 2010. Diversas
críticas têm sido feitas a essa política de editais, uma vez que os
mestres populares são regidos por outra racionalidade e
precisam de intermediários para escrever projetos, além de

403
terem vários problemas de prestações de contas, como apontam
as avaliações da Comissão Nacional de Pontos de Cultura.

Em certa medida, as políticas culturais, ao mesmo tempo


em que procuram valorizar e apoiar as culturas tradicionais
(incluindo aí a capoeira), induzem estas manifestações culturais
a uma certa organização e burocratização. O mestre de capoeira
se vê impelido a se tornar um gestor cultural ou a constituir um
corpo eficiente de colaboradores, para ter acesso a estas
políticas. Torna-se necessário registrar uma associação sem fins
lucrativos, pagar impostos, regularizar periodicamente, declarar
no imposto de renda, escrever projetos, executar e prestar
contas. Ou seja, trata-se de outra forma de racionalização
impelida pelo Estado, que em certa medida levaria também a um
processo de desencantamento da capoeira.

O dragão da maldade contra o santo guerreiro

Sob o risco de sermos acusados de simplificação da


realidade, mas caminhando para um nível de abstração que
permita essa síntese, acreditamos que há distintas visões de
mundo que se chocam e coexistem entre os capoeiristas. Por um
lado, a cosmovisão afro-brasileira, denominada por Eduardo
Oliveira de “filosofia da ancestralidade”, que tem uma relação
diferente com o tempo, trabalha a indissociabilidade do
jogo/luta/brincadeira, se articula em torno dos mais-velhos
(tendo o Mestre como figura central) e um senso comunitário de
construção e pertença, além de outras características. “Se nas
sociedades modernas o tempo é orientado para o futuro, nas
sociedades tradicionais o tempo é orientado para o passado. É

404
esse precisamente o caso das sociedades africanas”
(OLIVEIRA, 2003, p. 22).

De outro lado, os saberes coloniais continuam um lento e


ininterrupto processo de tentativa de transformação do mundo à
sua imagem e semelhança. Trata-se do Rei Midas da razão
instrumental eurocêntrica. Apesar dos processos de colonização
terem se findado em nosso continente, a colonialidade do saber
e do poder continuam em pleno vapor. Segundo Boaventura
Souza Santos (2009, p.7),

[...]o colonialismo, para além de todas as dominações por


que é conhecido, foi também uma dominação
epistemológica, uma relação extremamente desigual de
saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas
de saber próprias dos povos e nações colonizados,
relegando muitos outros saberes para um espaço de
subalternidade.

O paradigma evolucionista implícito no ideário


iluminista e sua concepção de progresso levam a um
pensamento de que é preciso aperfeiçoar a capoeira, abrindo
caminho para a esportivização e a imposição de uma série de
valores e saberes sobre o corpo que são objetivos, racionalistas,
baseados na ideia de recorde e resultado. Esse amplo processo
de racionalização, que privilegia o individual em detrimento do
coletivo, o atleta em detrimento do grupo, o resultado em
detrimento do processo, atinge a capoeira de diferentes formas,
e em suas diversas vertentes, contemporânea, regional, angola...
Argumentaremos que os diferentes projetos de “capoeira sem
mestre” são outra faceta deste mesmo fenômeno, salientando a
ideologia do “self made man” e do individualismo próprio das
sociedades contemporâneas, deslocando a centralidade do mais-

405
velho, o mestre de capoeira, na condução da comunidade.
Faremos um breve comentário de como a capoeira gospel aspira
a uma “neocatequização” da cultura negra, uma apropriação
com objetivos de proselitismo religioso, e como a ocupação dos
espaços de representação política da capoeira são táticas neste
sentido. Por fim, falaremos da burocratização dos agentes de
cultura como uma pré-condição para o acesso às políticas
culturais (inclusive no âmbito da salvaguarda do patrimônio
imaterial), constituindo mais uma faceta desse amplo processo
de racionalização.

Poderíamos fazer uma analogia com termos que se


usavam no período escravista, como ladinos e boçais. Os negros
que se integravam, aprendiam o idioma e os costumes europeus,
eram valorizados e tinham (pequenas e limitadas) chances de
ascensão social. Os que teimavam em manter sua língua e
costumes eram tidos como ignorantes, rudes, pouco inteligente,
boçais. “A boçalidade é a resistência capaz de manter tradições,
mesmo contra a vontade do colonizador, uma vez que o boçal é
aquele que não aceita aquilo que lhe é imposto” (SOARES:
2016, p. 20). Podemos também utilizar a analogia criada por
Rodolfo Kusch, de hedor e pulcritud. O autor fala da

[...] necesidad de delimitar a cada uno de los dos grupos


como si fueran antagónicos. Por una parte, los estratos
profundos de América con su raíz mesiánica y su ira
divina a flor de piel y, por la otra, los progresistas y
occidentalizados ciudadanos. Ambos son como los dos
extremos de una antigua experiencia del ser humano.
Uno está comprometido con el hedor y lleva encima el
miedo al exterminio y el otro, en cambio, es triunfante y
pulcro, y apunta hacia un triunfo ilimitado aunque
imposible. (KUSCH, 1999, p. 29)

406
Trabalharemos com estas duas facetas expressas na
capoeira. Em um primeiro momento, tentar entender o impacto
destes “projetos de modernidade”, ou a as formas em que a
capoeira absorve a pulcritud. Poderíamos traduzir como uma
capoeira higienizada, bem-comportada, socialmente ajustada e
aceita segundo os critérios dominantes da sociedade
eurocêntrica. Em seguida, interessa-nos sentir o hedor da
capoeira, sua boçalidade e resistência a abandonar seus
encantos, mistérios, aquilo que não é traduzível. A noção nativa
de mandinga expressa bem este universo que resiste a se
desencantar. Mandinga é algo dificilmente explicado, mas
facilmente compreendido pelos praticantes de capoeira.

Mandinga

A capoeira tem também seus segredos, seus encantos,


seus fundamentos não explicados e nem ensinados, mas que se
transmitem através da vivência. Trata-se da mandinga, termo
polissêmico, oriundo de uma etnia africana islamizada que teria
se envolvido na Revolta dos Malês. Mandinga tanto pode
denotar uma habilidade corporal de malícia, enganação, astúcia,
como uma “falsidade”, uma tática para o jogo (se fazer de
machucado para surpreender o adversário; finalizar o jogo, dar
as costas e voltar para surpreender o outro quando fizer o
mesmo; jogar areia nos olhos, etc.). Pode significar também o
seu uso mais corrente, da magia, da parte “sutil” da capoeira, de
sentir e compreender as energias ao redor, saber se situar nas
diferentes situações da vida, antecipar os acontecimentos, “saber
entrar e

407
saber sair”.

No documentário “Mandinga em Manhattan” (2006),


alguns mestres falam do que entendem como sendo mandinga,
sentidos que pretendemos debater e explorar:

Mandingueiro é aquele que sabe muitas orações. Antes


de entrar na roda de capoeira tem que tomar banho de
folha, incensar o corpo todo, passar três dias sem ir pra
cama com mulher, pemba pra fechar o corpo... - Mestre
João Grande
Mandinga é o conhecimento do invisível, que extrapola
o conhecimento teórico da capoeira. – Mestre Bola Sete
É a negaça da capoeira, é a mentira permanente (…). É a
intangibilidade do capoeira. Parece mas não é! – Dr
Decânio
Mandinga é saber viver. É saber entrar, é saber sair. –
Mestre Cobra
Mansa
Ele faz que vai, mas não vai. Quando o outro não tá
esperando ele
vai. – Mestre João Pequeno

Exu – a boca que tudo come!

Existem duas facetas, estes dois projetos expressos na


capoeira, um moderno, racional, integrado, ladino, pulcro; e
outro pré-moderno, animista, resistente, boçal, hediondo. Para
integrá-los de forma dialética, recorreremos ao arquétipo de
Exu, Orixá africano que seria uma espécie de “patrono” da
capoeira, segundo seus praticantes.

408
Mestre Pastinha, em depoimento narra um documentário:
“A capoeira tem negativa, a capoeira nega. A capoeira é
positiva, tem verdade”. (MURICY, 1998). Um corrido de
capoeira, muito conhecido, canta: “oi sim sim sim, oi não não
não”. Essa aparente contradição da capoeira é algo que define
sua essência. Em um dos diversos mitos de Exu (PRANDI,
2013, p. 48), ele passa no caminho que cruza dois terrenos, com
um chapéu de duas cores, um lado preto e outro vermelho. Após
sua passagem, os dois amigos, que tinham esquecido suas
obrigações com Exu, se põem a discutir sobre a cor do chapéu,
já que cada um tinha visto somente uma face do mesmo. A briga
os leva à morte, e Exu ri, vingado. Essa dualidade contraditória,
esse sim/não, também se revela no ponto de umbanda: “Exu que
tem duas cabeças, ele olha sua banda com fé. Uma é Satanás do
inferno, a outra é de Jesus Nazaré”. A aparente absorção do
maniqueísmo cristão revela-se na verdade uma subversão do
mesmo. São polos que não se eliminam, mas coexistem de
forma complementar.

Em um depoimento bastante conhecido do Mestre


Pastinha, ele afirma: “A capoeira é mandinga, é manha, é
malícia, é tudo que a boca come!” (MURICY, 1998). Não
podemos deixar de nos perguntar o que significa este tudo que a
boca come, que conta com diversas interpretações dentro da
capoeira. Os documentários “Exu - A boca que tudo come” e “A
boca do mundo - Exu no candomblé” nos dão essas pistas já no
título. Em outro mito descrito por Prandi (2013), Exu come a
tudo que vê em sua frente, todas as comidas, os bichos de quatro
pés, bichos de pena, a própria mãe, até que é perseguido pelo
pai, repartido em muitos pedaços e termina por ganhar a
primazia de sempre comer primeiro. As ruas eram o espaço

409
costumeiro da prática da capoeira antes da década de 1930, bem
como esse universo cultural

da boemia e da sexualidade não regrada pela moralidade cristã.

Este estudo é parte uma pesquisa de doutorado em curso,


com conclusões provisórias e campos a serem ainda explorados.
Ao buscar entender como a capoeira, analisada através do
arquétipo de Exu, se insere na Modernidade, podemos
desenvolver interessantes insights para uma teoria mais geral.
Estaríamos todos caminhando inexoravelmente em direção ao
desencantamento ou as culturas negras, indígenas, originárias,
conseguiriam promover um reencantamento do mundo em pleno
século 21?

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414
415
TRADIÇÕES, MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA
FESTA DE SÃO FRANCISCO DAS CHAGAS.121

Renata Araújo dos Reis122

Introdução

O trabalho em andamento dedica-se a estudar como uma


manifestação cultural pode atuar como elemento central em uma
comunidade rural de origem quilombola, cujo universo
simbólico próprio se baseia na manutenção de suas tradições
para seguir afirmando seus valores identitários. A festa de São
Francisco das Chagas é realizada a cerca de 60 anos na
comunidade do Remanso, o seu surgimento se confunde com a
própria constituição da comunidade em 1954, sua organização e
estabelecimento de práticas culturais e sociais. Para chegar à
comunidade, é necessário percorrer os 18km que a distanciam
do centro de Lençóis já que a mesma está situada em sua zona
rural. O lugar já chegou a ser considerado sustentável,
característica comum a comunidades isoladas que precisam

121
Trabalho submetido ao V CBFL – Congresso Brasileiro de Filosofia da
Libertação e II Encontro Internacional de Filosofia Africana no eixo temático
Decolonialidade.
122
Mestranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em
Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia na linha de pesquisa
Cultura e Identidade. Pesquisadora do Observatório Diversidade Cultural.
Gestora e produtora cultural com atuação em Salvador e Lençóis. E-mail:
a.renatareis@gmail.com

416
desenvolver seus próprios modos de sobrevivência. Hoje, a
relação com a cidade-sede e o crescente acesso ao mundo
globalizado, reduzem o seu isolamento e provocam influências
em suas práticas socioculturais. A comunidade é autodeclarada
quilombola e reconhecida pela Fundação Cultural Palmares123,
juntamente com Iuna e Lagoa, comunidades também
remanescentes de quilombo situadas na mesma cidade. Lençóis,
situa-se a 425km de Salvador e é a principal cidade da Chapada
Diamantina – região localizada no centro da Bahia e conhecida,
principalmente, pelo seu potencial turístico. O próprio Remanso
situa-se às margens do Marimbus, em um grande pântano de
água doce formado pelo encontro dos rios Santo Antônio,
Utinga e São José, o que lhe oferece, além do potencial turístico,
a possibilidade da pesca como atividade econômica. Vale citar
ainda que o lugar está situado na Área de Proteção Ambiental
(APA) Marimbus-Iraquara, fora dos limites do Parque Nacional
da Chapada Diamantina124. Sendo uma comunidade formada por
pescadores, é justo que, entre o seu universo simbólico, exista
uma louvação dedicada ao santo que confere proteção e fartura a
estes trabalhadores. AGUIAR e SENNA (2013, p.16) contam
que as tradições católicas foram trazidas à região por viajantes

123
A comunidade foi certificada como remanescente de quilombo em 17 de
março de 2005. Fonte: http://www.palmares.gov.br/wp-
content/uploads/2016/06/COMUNIDADES-CERTIFICADAS.pdf
124
O Parque Nacional da Chapada Diamantina foi criado em 1985 através do
Decreto n° 91.655 e compreende uma área de 1520km² localizada no centro
geográfico da Bahia, área esta que compreende menos de 4% do total da
Chapada Diamantina. A Área de Proteção Ambiental Marimbus-Iraquara foi
criada em 1993 através de um Decreto Estadual, no objetivo de ampliar a
área protegida. Os limites do Parque Nacional coincidem com as
delimitações históricas das Lavras Diamantinas, como a região foi
denominada durante o período de extração de diamantes. As cidades de
Lençóis, Andaraí, Mucugê e Palmeiras encontram-se dentro desta área.

417
oriundos da Região do São Francisco, sendo o catolicismo rural
fruto das migrações que permeiam a história da região,
constituindo-se como parte de um imaginário sincrético que
envolve ainda crenças de matriz africana e indígena. O
panorama histórico do Remanso será aprofundado no decorrer
da pesquisa, tendo como linha condutora a Festa de São
Francisco das Chagas do Remanso e o seu papel no
fortalecimento dos laços culturais e identitários através das
tradições relacionadas ao catolicismo rural, cujas características
marcam fortemente o imaginário da cultura popular no Brasil.

Estudar uma comunidade remanescente de quilombo


envolve olhar para uma complexa teia formada por aspectos
políticos, econômicos, sociais, culturais e identitários. A questão
quilombola no Brasil não será aprofundada na pesquisa, mas
consideramos importante trazer alguns aspectos que atuem na
compreensão da dinâmica de constituição do Remanso. Os
direitos das comunidades quilombolas só foram abordados
legalmente na Constituição de 1988, 100 anos após a abolição
da escravidão. Este fato ilustra uma carência no reconhecimento
das terras, das identidades e valores que permeiam a vida destas
comunidades. Hoje, instâncias federais como INCRA e
Fundação Palmares atuam no reconhecimento de tais direitos,
uma demanda acumulada e urgente tendo em vista a gravidade
dos conflitos que algumas comunidades enfrentaram ou
enfrentam, a exemplo de Rio das Rãs (localizada no território
Velho Chico) e Quilombo Rio dos Macacos (localizada na
Região Metropolitana de Salvador). Consideramos aqui o
conceito de “remanescente de quilombo” em um sentido
expandido, para além de uma definição associada à origem
escravocrata, mas compreendendo que as relações simbólicas de
ordem cultural (e suas dinâmicas próprias) são a base para a

418
garantia de um (auto) reconhecimento enquanto quilombola.
Aspectos como a definição de um nome para designar este
agrupamento, rituais e religiosidades compartilhadas, origem ou
ancestrais em comum, vínculo ancestral longo, relação de
parentesco generalizado e uma ligação com o território são
importantes para este reconhecimento (GOMES; MARQUES,
2013).

Daí, temos a importância dos rituais e da religiosidade


para a comunidade, já que este é um dos fatores que lhe atribui o
reconhecimento quilombola e fortalece, em sua centralidade, os
demais aspectos. Nesta pesquisa, escolhemos o recorte preciso
da festa do padroeiro como disparador de perguntas e questões
por se constituir em um momento de coesão social e afirmação
de valores, contendo em si um reflexo das fragilidades e
potências do lugar em seu processo de organização, tendo em
vista ainda que toda festa “forma a demarcação de um fazer
coletivo, reunindo muito esforço e prazer num mesmo
acontecimento” (TEIXEIRA, 2010). Uma festa agrega
importantes aspectos como o fortalecimento da coletividade e
dos vínculos, além de ser uma oportunidade para gerar recursos
financeiros e acolher visitantes, mas existe uma característica
que permeia estas outras: a celebração dos valores simbólicos e
identitários. Ao estar identificado o grupo festeja, mas este
momento de celebração reforça a identidade, uma contínua
relação entre a celebração e a identidade percebida como uma
forma de materializar a dimensão simbólica local. Desbravar
estes símbolos é compreender ainda as relações entre os
aspectos sagrados, religiosos e formais da festa e ainda aqueles
aspectos espontâneos que envolve danças e músicas com a
principal finalidade de divertir. Portanto, a festa é a reunião
destes símbolos identitários, reunindo ainda tudo o que eles

419
significam do ponto de vista cultural, mas também político e
social, incluindo suas tensões. Transitar entre os aspectos
subjetivos é fundamental, tendo em vista que estamos falando de
indivíduos que fundamentam suas práticas a partir do que lhes
foi ensinado e enraizado enquanto tradição, porém só eles não
dão conta de explicar os conflitos locais. Para tanto, a história
nos apresenta ainda as relações de poder que emergem destes
conflitos, sejam eles pequenos e cotidianos ou situados em
contextos amplos de luta. O povoado foi fundado a partir de um
ato de resistência e não-aceitação das práticas de trabalho em
vigor na época. A insatisfação provocou a fuga do seu líder e
descoberta do território onde hoje é o Remanso, garantindo uma
nova possibilidade e liberdade suficiente para que novos
imaginários se apresentem, dando origem a uma construção de
singularidades identitárias. Ou seja, resistência e simbolismo
dialogam entre si a todo momento (apesar das descontinuidades)
e resultam no fortalecimento de saberes locais ainda que não
legitimados por uma cultura hegemônica, mas que garantem a
permanência das práticas cotidianas.

Assim, direcionamo-nos ao dia 04 de outubro, que é


tradicionalmente um dia dedicado ao santo em todo o país. Para
este dia, o Remanso se enfeita com elementos característicos e
organiza um cortejo com apresentação de algumas
manifestações culturais locais. Entre eles, podemos citar:
marujada, samba de roda, baianas, o animado forró, cânticos em
louvor ao santo, missa, batizados, princesas e rainha (eleitas
entre meninas da comunidade), além de adereços típicos, a
exemplo das bandeirinhas do garimpeiro, andor e bandeiras. São
muitos os símbolos identitários que convergem neste dia,
afirmando a centralidade da festa na composição do ethos local.
Nas fotos abaixo, podemos ver as crianças aguardando o

420
momento da apresentação da marujada e ainda, as meninas
eleitas para abrir a procissão:

Figuras 1 e 2 – Festa de São Francisco das Chagas, 04 de outubro de


2013.

Fotos: Renata Araújo dos Reis

Mas louvar o santo católico exige uma mobilização


prévia que envolve toda a comunidade, tanto individual quanto
coletivamente e que se inicia alguns meses antes do início da
novena e do cortejo. O estudo em andamento vem analisar como
esta festa se configura como acontecimento central no processo
de manutenção e atualização dos valores simbólicos e
identitários, destacando os processos de permanências e
mudanças e como eles interagem de forma a fortalecer (ou não)
as características tradicionais. Destacamos, além dos aspectos
históricos, simbólicos e políticos do lugar, uma discussão
conceitual sobre os processos de atualização e transformação
comum às culturas populares e como as festas populares se
configuram como elemento central de afirmação identitária. As

421
tensões e desafios que envolvem os processos de articulação da
festa nos oferecem um importante ambiente para a compreensão
de como as tradições são legitimadas na atualidade.

O passado legitimando o presente

Falar da relação entre tradição e temporalidade é crucial


e escolhemos uma perspectiva decolonial como eixo norteador
do trabalho ao considerar a reinvenção do passado como
fundamental para a transformação social, posicionando-o muito
mais como um recurso do que como um simples relato
(SANTOS, 2010, p.53). É neste posicionamento do passado
enquanto recurso que a proposta de pesquisa se encontra, ao
estabelecer a festa enquanto um recurso de afirmação identitária,
de integração e fortalecimento das relações sociais marcadas por
um vasto universo simbólico onde a festa está inclusa e que é
caracterizado por seus aspectos tradicionais, que impõem
sentido às suas práticas através da memória, do passado e da
repetição de costumes.

Santos traz uma proposta de reflexão que parte da


centralidade do saber dos povos colonizados, integrando-os e
originando uma racionalidade ampla, “que dê conta da
diversidade epistemológica do mundo” (SANTOS, 2010, p.16).
Aqui, partimos do pensamento do sociólogo para abordar
questões relacionadas às tradições considerando que “ a
construção social da identidade e da transformação na
modernidade ocidental é baseada numa equação entre raízes e
opções” (Santos, 2010, p.54). Esta equação oferece uma
intepretação para as tensões que provocam permanências e

422
mudanças no nosso caso em particular e que caminham entre o
permanente e o efêmero, o único e o substituível ou entre a
segurança e os riscos que as opções oferecem. A dinâmica da
atualidade impede a existência de um suposto isolamento do
Remanso, colocando em risco os seus aspectos tradicionais e
identitários e acelerando um processo de transformações que
exige uma intensa pré-disposição para resistir.

Uma reflexão sobre o nosso tempo presente também faz


parte deste estudo pois é nele que se encontram os conflitos e
possibilidades de transformação. Em “O que é o
contemporâneo? ”, Agamben propõe um olhar para a
obscuridade contida no presente, no esforço de compreender a
inadaptação, o conflito, o choque entre as épocas.
Problematizar o presente, recusando uma normatividade, é ser
contemporâneo. A origem inscrita no presente oferece base
para estas intepretações, afinal “ela (a origem) é contemporânea
ao devir histórico e não cessa em operar neste” (AGAMBEN,
2009, p.69). Assim, o contemporâneo coloca a possibilidade de
relocar o passado para o presente, atualizando a origem a partir
dos estranhamentos vivenciados no agora. Para Santos (2010),
este contemporâneo estaria condicionado a um olha ocidental,
hierarquizado. Se o nosso presente está repleto de referências às
origens, o olhar hierárquico tende a considerar estas referências
como sinônimo de atraso, desconsiderando práticas tradicionais
- submetidas a um outro sentido do tempo presente, um tempo
expandido.
O recurso da tradição também tem como base uma
repetição, que ocorre em um ritmo próprio, distante daquele
imposto pelo capitalismo, mas ainda assim afetado por ele. A
repetição oferece a continuidade necessária para manter o
vínculo com o passado ativo através das práticas e valores

423
transmitidos de forma sistemática e cotidiana que atribuem
sentido e identidade aos sujeitos a ela vinculados e que,
portanto, tornam-se resistentes às mudanças. Mas este vínculo
com o passado não é rígido e estas mudanças surgem a todo
momento, influenciando as relações sociais internas e externas.
Assim, consideramos importante trazer a fluidez como
característica fundamental para a condução destas relações pois
é através dela que os sujeitos conseguem manter-se em seu
centro identitário durante as interações sociais com o diferente.
Ela contribui para o equilíbrio entre as forças da permanência e
da mudança, permitindo que as tradições se adaptem, se
apropriem e assumam características do presente, mas
mantendo os signos identitários que lhes dão singularidade. Na
prática, aprende-se a estabelecer agenciamentos, negociar e
articular de forma a manter os valores e rituais o mais próximo
possível da sua origem, em um intenso movimento de
resistência.
Na visão de Stuart Hall, que aborda o tema em seu artigo
“Notas sobre a desconstrução do ‘popular’” (2003, p.231), a
tradição é um elemento vital da cultura. Ela tem pouco a ver
com a persistência das velhas formas, negando qualquer
vestígio de caráter conservador ou atrasado. A tradição “está
muito mais associada às formas de associação e articulação dos
elementos”. Um conjunto de costumes, práticas e convenções
que não possuem formas fixas ou inalteráveis mas podem se
reorganizar para “se articular a diferentes práticas e posições e
adquirir um novo significado e relevância” (2003, p. 243). Aqui
reforçamos a importância da tradição enquanto um recurso para
resistir, destacando ainda o seu papel político em potencial,
reforçado quando diferentes tradições podem se cruzar,
constituindo um ambiente de “luta cultural”. A cultura,
portanto, assume, através das tradições, um caráter de

424
enfrentamento que sobressai em relação aos seus aspectos
relacionados aos modos de vida apesar de estarem neles
fundamentados. Tal enfrentamento, que também podemos
considerar como resistência, é característica essencial das
culturas populares, que representam um processo dinâmico e
sujeito a transformações, justamente porque é feito a partir das
relações sociais (ORTIZ, 1985, p. 71).

Metodologia

Para compreensão da festa, é fundamental traçar sua


trajetória através da história da comunidade, seus mitos de
origem e práticas cotidianas. Ao conversar com as pessoas
nativas, percebemos elementos que constituem os mitos
fundadores abordados por Glissant:

O mito fundador tranquiliza obscuramente a


comunidade sobre a continuidade sem falhas
dessa filiação e a partir daí autoriza essa
comunidade a considerar absolutamente sua
essa terra tornada território. (GLISSANT,
2005, p.74)

Este princípio do mito fundador oferece uma


legitimidade em relação às histórias que fortalecem a identidade,
estabelecendo uma relação com a terra fundamentada nas
histórias, na memória, no imaginário. Daí a importância dos
aspectos simbólicos, que atuam nas relações entre as pessoas e
entre estas pessoas e o território. No tópico anterior, abordamos
o tema ao atribuir ao passado um caráter de recurso, que é
acionado no presente e atua na afirmação das identidades.
Reiteramos a importância da consolidação destes mitos, mas,
sobretudo, tendo a consciência da sua relação com os aspectos

425
da contemporaneidade que ora atuam como ameaças, ora atuam
de forma a potencializar singularidades.
A revisão histórica é necessária para a compreensão do
contexto atual e será realizada a partir das entrevistas realizadas
em campo e da leitura dos autores regionais, tendo sempre como
eixo norteador os fatos que colaboram para uma melhor
compreensão do surgimento e realização da festa ao longo dos
anos. Portanto, a atuação em campo é fundamental para
compreender através do cotidiano e das práticas sociais
regulares ou variáveis, a importância da festa no fortalecimento
dos símbolos identitários locais. Esta convivência ocorrerá de
forma mais intensa a partir de julho até o início de outubro,
encerrando-se logo após o dia 4 de outubro. Digo mais intensa,
pois a cerca de 4 anos frequento o lugar em ocasiões festivas, já
tendo participado da procissão em outras oportunidades, fato
este que despertou um envolvimento e interesse em pesquisar o
lugar, ultrapassando visões baseadas no senso comum. Isto
implica em “reconhecer as diversidades e singularidades dos
fenômenos sociais para além das suas formas institucionais e
definições oficializadas por discursos legitimados por estruturas
de poder” (ECKERT; ROCHA, 2008, p. 04). Um
reconhecimento que só pode ser obtido através da convivência
intensa, em especial durante o processo de organização da festa.
Palavras, sons, desenhos e gestos podem ser usados para atribuir
significado à experiência. Normalmente as referências já são
oferecidas ao indivíduo na sua comunidade, ao nascer,
permanecendo por toda a sua vida (Geertz, 2008). Considerando
ainda que tudo pode assumir uma significação simbólica (tanto
objetos da natureza, quanto os construídos pelo homem),
usaremos estas fontes como um importante mecanismo para
perceber e destacar os elementos que constituem o arcabouço

426
simbólico da festa e que sintetizam valores refletidos na vida
cotidiana.
Para interpretar uma cultura, é preciso ainda ter uma
noção clara de que ela representa “estruturas psicológicas (e
complexas) por meio das quais indivíduos geram seu
comportamento” (pg. 8). Estas estruturas, quando expressas se
tornam identidade. Portanto, é necessária uma aproximação
profunda com estas identidades, as quais devam representar o
que há de mais singular no lugar e que guiam o comportamento
das pessoas. Lembrando que a cultura é pública. A festa existe
para ser vista, receber pessoas. Momento de encontro. Os seus
significados são públicos. Neste processo, necessário descobrir e
revelar o que é singular e funciona como guia para o
comportamento cotidiano. Mas apesar de importante, a análise
não se encerra no aspecto simbólico. Ela ganha sentido e
importância justamente na observação das relações permeadas
por disputas e conflitos, percebendo quais mecanismos ativam
estas disputas. São fatores que marcam a relação que a
comunidade estabelece com a contemporaneidade,
influenciando suas ações e provocando mudanças. Abordaremos
estes aspectos mais adiante.
Um ponto de partida para a realização do trabalho de
campo é a Associação de Pescadores do Remanso, principal
ambiente institucional da comunidade. É ela a responsável pela
organização da festa e por outras decisões políticas e culturais
da comunidade. Ela também enfrenta desafios, a exemplo da
constante dificuldade em renovar seu quadro de representantes.
Os próprios moradores já comentaram que não possuem
experiência e, portanto, não assumem tal cargo, fato este que
merece ser aprofundando para conhecer seus fundamentos. Um
recorte geracional será realizado pois é visível que cada geração
possui uma postura e opinião diferente sobre a festa. Outro

427
aspecto a ser observado é a participação distinta entre homens e
mulheres, com funções específicas e papéis definidos
informalmente.

Figura 3: Festa de São Francisco das Chagas, 04 de outubro de 2016

Foto: Renata Araújo dos Reis

Desafios, tensões e uma visão conciliadora

É importante perceber a cultura popular de dentro,


formada a partir dos conflitos, encontros e desafios oriundos das
diferenças locais e dos agenciamentos estabelecidos, de forma a
distanciar-se de uma imagem das culturas populares fortalecida
por meios de comunicação que celebram sua existência sem
problematizar as questões que envolvem sua prática. Canclini
afirma que “para o mercado e para a mídia o popular não
interessa enquanto tradição que perdura” (1989, p.260).
Portanto, esse mercado cria interesses a partir de produtos que

428
geram uma popularidade massiva e possuem um potencial de
atrair as novas gerações, afastando-as de uma cultura que
fundamenta sua existência no sentido simbólico e tradicional.
Se, por um lado, a cultura popular se aproxima da permanência
e da raíz, o que atribui identidades ao lugar, por outro lado, a
popularidade efêmera de alguns elementos socioculturais
provocam constantes mudanças nas práticas locais, diluindo os
referenciais identitários. A impermanência provoca frágeis
agenciamentos, ainda mais visíveis em lugares como o
Remanso, cuja relação diária com turistas e pessoas de outras
cidades e países traz uma possibilidade em acessar mecanismos
contemporâneos de socialização, comunicação e entretenimento
gerados a partir da sociedade de consumo. Propomos observar
como uma comunidade rural com seus modos de subsistência
próprios vem se inserindo e interagindo com os valores
capitalistas e como essa dinâmica interfere na vida cotidiana.
São duas forças extremas que provocam as permanências e
mudanças sugeridas no título deste trabalho: a dinâmica
capitalista e a força de resistência. Importante trazer a
contribuição de Canclini e do seu estudo sobre festas populares,
quando o autor afirma que:

A tendência predominante do capitalismo é a de


reduzir ou anular a diferença entre festas
participativas rurais e espetáculos mercantis
urbanos, como uma consequência da subordinação
do campo à cidade, da vida local ao mercado
nacional e transnacional. (Canclini, 1983, p. 131)

Com isso, tem-se uma diminuição da diferença entre o


rural e o urbano, uma exaltação da cultura e das práticas da
cidade, diluindo as singularidades locais. Mas aspectos positivos

429
também podem ser observados nestas relações de troca e, para
que esta relação seja cada vez mais saudável, existe a
necessidade de manter a identidade local, reforçando um sentido
de resistência às suas ações a tal ponto que, mesmo que acionem
os mecanismos impostos por uma cultura dominante, esta
apropriação deve trazer facilidades e benefícios cotidianos sem
que isso seja uma ameaça. A história do lugar aponta para o
desenvolvimento de mecanismos próprios de subsistência,
motivados pelo isolamento e pela ausência de ações regulares de
melhoria das condições de vida. Tais mecanismos provocam o
surgimento de saberes próprios e singulares, não legitimados por
uma cultura hegemônica, mas que garantem a permanência das
práticas cotidianas através das crenças fundamentadas na
identidade e na subjetividade próprias. Aliás, o próprio ato de
resistência que a festa representa pode ser interpretado como um
reflexo de uma globalização em que a reinvenção das culturas
está inserida e possui um crescente papel de afirmação.

Assim, destacamos o dinamismo existente nas práticas


da Festa de São Francisco das Chagas e do próprio cotidiano do
lugar, evitando interpretações dicotômicas, mas sim
considerando que as trocas são necessárias e motivadas a partir
do que Santos aponta como uma incompletude das culturas,
onde os dois lados podem atuar sob uma perspectiva solidária,
tendo o respeito à tradição e à dignidade humana como centrais
para o diálogo.

430
Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros


ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

AGUIAR, Itamar P.; SENNA, Ronaldo de S.; Remanso: uma


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uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF, 2005

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431
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tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

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Paulo: Brasiliense, 2006.

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uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010

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TEIXEIRA, Joaquim de S. Festa e Identidade. Revista do CECC


– Centro de Estudos em Comunicação e Cultura da Faculdade
de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
Lisboa, 2010.

432
CADA DANÇA É UMA MULHER, CADA DANÇA É UMA
AVÓ, CRIANÇA!

Sílvia Monique Rodrigues Ferreira125


Lara Rodrigues Machado126

Em memória às que sempre dançaram, tocaram,


cantaram e me emprestam as mensagens a serem acionadas em
movimentos dançantes. Que inspirações me movem? De onde
eu vim? Quem sou eu? Para onde vou? Água é saúde. Pessoas
são alimentos. Som. Ritmo. Movimento. Recuperação da
memória corporal através do (ré)nascimento. Sopro no ouvido.
Canto das pássaras. Danças (nem sempre) silentes com intenção
de desconstruir a lógica de encarceramento da vida que persiste
em nosso cotidiano em instituições familiares, educativas, sócio-
culturais-políticas, ou mesmo, hospitalares.

Toda dança é uma avó, mesmo quando se dança com


uma criança. Se dança é comunicação, elo de conexão,
ancestralidade guia as vias das encruzilhadas que nem todas/os

125
Norteriograndense, Artista da Dança, Aprendiz de Capoeira, Mestra em
Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail:
shylvinha@gmail.com.
126
Profa. Dra. do Centro de Artes da Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB), Mestra de Capoeira da Associação Arteiras na Dança; Orientadora
do trabalho de mestrado intitulado “DANÇA, VIOLÊNCIA E POÉTICA: O
CORPO REBELDE DE ESTÁNAMIRA MARRUÁ DAS DORES”, co-
orientado pelo Prof. Dr. Eduardo David de Oliveira da FACED/UFBA.

433
entenderão ou participarão. Omitir a nossa história não é uma
opção. Dança também é luta contra a continuidade dos sistemas
de exterminação de nossas culturas. Abaixo a alienação através
das orientações do corpo, das vibrações, pulsações que dão
vozes às memórias das/dos que lutaram para que estejamos cá,
pisando na terra para cultivar e alimentar as memórias de
continuidade, fios de nossas lembranças. Memória corporal
consciente, inconsciente ou esquecida ancestralmente, mas
regida em movimentos, ações e atitudes a nos (ré)orientar.

Corpo se constrói em seus desejos, sonhos e loucuras


ditas impossíveis. Águas, lamas, sopros, pedreiras, arco-íris,
pássaras, peixinhas e cobras. Bois... guias de tantas memórias.
Serelepe! Saracutiando, encantada, inquieta, apreendendo,
brincando, ousada... Escutando, sigo nesse jogo de celebração e
reverência, fabulando os deslocamentos de encontros e
ausências das/dos que falam através das intuições, dos sonhos,
escutas (por vezes não atentas), árvores inquietas a mobilizar
nossos sentidos com suas folhas e caules a flutuar em meio ao
caos agitado, urbano.

Do riso e da dor de uma dança, juntando os pesos dos


pedaços. Cantando os prazeres cambiantes. InspirAÇÕES
insistentes, relutantes sem acordo de desapego, acompanham e
impulsionam esse caminhAR. Enquanto isso, corpo vigília!
Hoje me pergunto quais forças atuam no corpo enquanto este se
encontra dançando? Qual a importância de alguém escolher lidar
com sua história através da dança? Qual a importância de se
trabalhar com dança na vida? Qual a importância de mobilizar,
de incentivar, de estimular a dança em outros corpos?

434
Como bailarina, meu primeiro contato com as artes do
corpo foi no balé clássico, seguido da dança contemporânea na
Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão (EDTAM) e Cia
de Dança do Teatro Alberto Maranhão (CDTAM), em Natal/RN
e adentrando nos estudos com a Mestra de Capoeira Lara
Rodrigues Machado, o que somam, hoje, 30 anos de dedicação.
Após 21 anos dançando nessa referida escola e companhia de
dança, em contato com algumas danças de nossas expressões
culturais potiguares, lancei-me na proposta metodológica do
Jogo da Construção Poética127, desde o ano de 2010, tomando-a
como fio condutor de minhas relações existenciais e filosofia de
vida.

Ao descrever sua própria proposta, a Mestra assinala ser


uma prática que:

(...) se dá a partir do improviso, das criações e


descobertas de movimentos que surgem em processos de
diálogos corporais na relação entre os intérpretes, de
modo que o jogo entre os corpos é o próprio jogo da
construção poética. Para esse relacionamento, adotam-se
elementos da capoeira e da dança que cada corpo traz
consigo. O jogo pode também ser tomado como a relação
entre o corpo do intérprete e outro estímulo qualquer,
realizando-se entre duas pessoas, entre uma pessoa e
determinado elemento cênico ou entre um corpo e uma
imagem (...)

127
Proposta metodológica desenvolvida em tese doutoral elaborada por Lara
Rodrigues Machado, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2008, que
propõe o jogo da capoeira como um dos fundamentos para o processo de
criação em dança.

435
(...) Esse jogo estudado, discutido e reelaborado,
transforma-se em sequências coreográficas e, finalmente,
torna-se responsável pelo entrelaçar das relações entre os
intérpretes e os corpos observados por eles durante a
imersão de campo (MACHADO, 2017).

nem toda dança é leve


se escavaque
mergulhe na bixiga de tua resistência
insistência é Rainha
nem toda dança é para agradar
muito menos em troca de palmas
cava tua história
desescute o dito
escute o não dito
estribuche
flui a qualquer momento
e nem me venha com essas histórias de deixar o que aconteceu no
passado
passado é agora
latente
se autoaceitar não é veneno
mas também não é flor cheirosa

Aqui, pensamos a arte a partir de encontros, ao investigar


o corpo nos processos diversos em relação às nossas próprias
histórias. Com isso, pretendemos contribuir com inquietações ao
instigar leitoras/res para uma busca de si no reconhecimento de

436
corpos, num fazer de histórias, de cenas, de artes, de mundos e
de resistências.

Por isso, pode-se dizer que nessa proposta metodológica


a dança é criação viva, tanto para quem dança quanto para quem
contempla. Ademais, a dança é entendida como uma:

(...) forma de expressão não apenas artística, mas,


sobretudo, como meio de descobertas e valorização do
sujeito em sua singularidade e ancestralidade. (...) uma
proposta de criação que prescinde dos movimentos
previamente coreografados e da linguagem (corporal)
rígida para ceder lugar à pesquisa de campo, aos
laboratórios dirigidos e à construção coletiva do trabalho
artístico (ANDRADE, 2017).

Por meio de várias práticas de interação, os laboratórios


se convertem em ambientes de preparação e sensibilização para
o processo de pesquisa em campo, escolhendo algumas
dinâmicas que permitem uma investigação corporal
diversificada e ampliada. O corpo, então, é preparado para o
campo de pesquisa, numa relação mediada por dinâmicas de
trabalho que sugerem experimentar voz, sons, dança e,
sobretudo, o sentir, perceber e intuir.

O Jogo da Construção Poética abre caminhos para


diversas investigações quando traz à superfície as tensões e
conflitos de nossaS culturaS (inclusive a artística), o lugar que
ocupa o corpo na sociedade atual e a construção de nossas
subjetividades. Ao buscAR um sentidos para a dança, deixa
pistas para que a arte, através da dança, possa reatar seus laços
com os questionamentos humanos mais memoriais. Ao valorizar
a interação entre os corpos, a diversidade e a singularidade,

437
destaco a fundamental importância da alteridade. Assim, trago
contribuições do filósofo Emmanuel Lévinas a esse respeito:

É preciso colocar a questão: a situação semântica original


em que o indivíduo humano recebe sentido ou se veste de
direito equivale ao esquema lógico gênero/indivíduo em
que, de um indivíduo ao outro, a alteridade permanece e
em que a noção de indivíduo do gênero, cada um sendo
outro para o outro? Ou – segundo termo da alternativa –
o acesso original ao indivíduo enquanto indivíduo
humano, longe de se reduzir a simples objetivação de um
indivíduo entre outros – é acesso característico onde
aquele que vem pertence ele mesmo à concretude do
encontro, sem poder tomar a distância necessária ao olhar
objetivante, sem poder livrar-se da relação e onde este
não-se-poder-livrar, esta não-indiferença a respeito da
diferença ou da alteridade do outro – esta
irreversibilidade – é não o simples revés de uma
objetivação, mas precisamente o direito reconhecido à
diferença de outrem que, nesta não-in-diferença, não é
uma alteridade formal e recíproca e insuficiente na
multiplicidade de indivíduos de um gênero, mas
alteridade do único, exterior ao todo gênero,
transcendendo todo gênero. Transcendência que não seria
então o simples gorado da imanência, mas a excelência
irredutível do social na sua proximidade, a própria paz.
Não a paz da pura segurança e da não-agressão que
assegura a cada um sua posição no ser, mas a paz que é
esta não-in-diferença mesma. A paz em que, pela não-in-
diferença, é preciso entender não o neutro de alguma
curiosidade descompromissada, mas o “para-o-outro” da
responsabilidade. Resposta – primeira linguagem;
bondade primordial que o ódio já supõe em suas
atenções, amor sem concupiscência em que recebe

438
sentido o direito do homem, o direito do amado, quer
dizer, a dignidade do único (LEVINÁS, 2004, p. 246).

Atuei no V Congresso de Filosofia da Libertação & II


Encontro Internacional de Filosofia Africana, concebido e
organizado pela Rede Africanidades128 em outubro de 2017, no
Kilombo Tenondé, localizado no município de Valença/BA...
dançando onde quer que eu estivesse: cortando alho na cozinha
para o almoço, assistindo alguma palestra, prestigiando um
show cultural, comendo na esteira, interagindo com as/os
participantes do encontro, correndo no barro aguado pelas águas
da chuva, banhando-me nas águas do rio, conversando debaixo
da jaqueira, brincando com as crianças e senhoras mais velhas,
como também na intervenção artística “EstáNaMira”, como
proposta de trabalho artístico e contribuição para o evento
ancestral e acadêmico em questão. Seguem fragmentos da
atuação de EstáNaMira no congresso:

128
A rede é um grupo de pesquisa que desenvolve trabalhos com os temas
ligados às africanidades na diáspora. O objetivo é articular, produzir e
difundir conhecimento, metodologias e práxis relativas à filosofia africana e
da libertação em diálogo com os movimentos sociais, comunidades
tradicionais, ativistas e suas diversas linguagens criativas, com acadêmicos
da graduação e pós-graduação. Desenvolve pesquisas, orientações,
seminários, congressos, cursos de formação permanente nas diversas áreas de
interesse como a capoeira e demais expressões culturais negras, a
permacultura, a economia solidária, as religiões de matriz africana, o
feminismo negro, particularmente, o movimento negro, de mulheres,
ecológico, lgbtqia+, juventude, entre outros.

439
Minh’a vó, bom dia!!!
Eeeeeeeei, essa meniiiiiiiiiina
Como é o nome da tua avó?

(rolamentos no chão, chacoalhando os sinos de bode no pescoço...


olha nos olhos de alguém e diz):

É Rosa! Severiiiiiiina, minha Rainha, tão cheirosa cajuína, me


abençoa jambo minha. Escritora, poetisa, contadora de historinhas
da vida. Reza de noite e de dia para fazer acontecer essa vida!

(Entrega-se ao chão. Demoradamente espalha-se, deleita-se nas


lembranças da infância ao contar as estrelas para fugir da rotina
violenta... rememorando cada possibilidade antepassada) e pergunta,
mirando mais algum corpo presente, com a indignação de quem não
se lembra de quem veio antes:

E tu? Como é o nome da tua avó?


(após o enfrentamento, encolhe-se que nem uma bebê no colo das
águas doces...sorri e fala mansamente:

É Sáfira! Matriarca resiliente, sábia, silente, doce, oradora das


ardências que provocam a não existência.

(EstáNaMira cambaleia, ancestralidade sanguínea-medular tomba seu


esterno peito em palpitações e vibrações de distanciamentos que
reaproximam-se através dos movimentos. De volta para casa corpo
sangue, ela vai se arrastando, caindo...lentamente apoiando-se com as
mãos e todas as partes possíveis do corpo para se amparar no chão. É
emoção que chega sem avisar):

O nome da minha avó é Maria Eunice! Trabalhadeira dentro de casa


pra tentar salvar a vida de suas treze crias e tantas netas e netos
espalhados pelo mundo. Lá de Acari/RN, ela nos emana sua fé e sua
força de resistência. A Luta pela sobrevivência! Seu companheiro,

440
meu vô, Cícero Alexandre, mais conhecido por seu Oscar Paulo,
adoeceu e acidentou-se após tanto trabalhar numa mineradora em
Currais Novos/RN, carregando pedras, pesos de gritos, dores
guardadas e não acolhidas pelos sistemas opressores dos
desgovernos.
Minha querida Maria Eunice...sua fuga é um
baforadinha...dela carrego e alimento a fé e uma cachimbadinha de
dia e outra de noite pra ficar bem de boazinha e fazer andar o
desacelerar dos pensamentos...

Figura 1 – Atuação no V Congresso de Filosofia da Libertação & II


Encontro Internacional de Filosofia Africana

Fonte: registro de Fernanda Schifani

441
Para construir esse corpo “EstáNaMira”, a imersão de
campo envolveu uma composição que reúne minhas próprias
experiências com os traços ditos insanos de minha mãe
sanguínea, de minha avó adotiva e da catadora de lixo, Estamira
(2004)129. Identificadas pela loucura, são forças do feminino que
resistem aos sistemas de opressão e cuja discursividade busco
expressar através da dança.


Dança
Tempo

Sobre o tempo, Makota Valdina nos presenteia no filme


AfroTrascendece – Tempo de Cura130:

Tempo. Tempo, a gente tem esse tempo doido marcado


por relógio, mas a gente tem um tempo que está aí,
sempre em movimento. Qual é o tempo de ser e de fazer?
Qual é o meu tempo? O que fazer agora? O que deixar
para depois? A gente precisa disso. Ter tempo a sua, sua
espiritualidade, sua essência. Todo mundo pode ter isso,
todo mundo tem. Às vezes, a gente perde porque a gente
não alimenta essa auto-espiritualidade que todo mundo

129
Além do documentário Estamira (2004), disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=KFyYE9Cssuo>, outras inspirações
fílmicas são igualmente fundamentais para o processo de criação e
continuidade da construção corporal de EstáNaMira Marruá das Dores,
dentre elas Nise da Silveira - Posfácio: Imagens do Inconsciente (1986),
disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=EDg0zjMe4nA>, e O
Bispo, sobre Arthur Bispo do Rosário, uma produção da Série Vídeo –
Cartas, de Fernando Gabeira na década de 1980, disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=ISt22V1U-hY>.
130
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WttKnEldnD0.
Acesso em 01/04/2019.

442
tem e que não é religião nenhuma, grupo religioso
nenhum que dá. É o que é a gente, está na gente. Tempo
é o vento, tempo é o tempo material, é o tempo imaterial.
Tempo é tempo. Relo é tempo (VALDINA, 2017).

O Jogo da Construção Poética me presenteou com a


capoeira, esta trouxe-me outra possibilidade de lidar com minha
espiritualidade, com minhas forças ancestrais, pôs-me a
encontrar minha ancestralidade. Apresentou-me a roda e a
comunicação com o sagrado, bem como as orações, as
oferendas, as celebrações, as saudações através do corpo que
canta, toca e dança. A ancestralidade como estratégia de luta, de
enfrentamento, de provocação e de força de continuidade.

A capoeira conduziu-me ao Candomblé e seria injusto e


muito violento omitir a relação desses sistemas culturais, assim
trago o conceito de Eduardo Oliveira acerca da ancestralidade:

A ancestralidade, inicialmente, é o princípio que organiza


o candomblé e arregimenta todos os princípios e valores
caros ao povo-de-santo na dinâmica civilizatória africana.
Ela não é, como no início do século XX, uma relação de
parentesco consanguíneo, mas o principal elemento da
cosmovisão africana no Brasil. Ela já não se refere às
linhagens de africanos e seus descendentes; a
ancestralidade é um princípio regulador das práticas e
representações do povo-de-santo. Devido a isso afirmo
que a ancestralidade tornou-se o principal fundamento do
candomblé (...)

(...) Posteriormente, a ancestralidade torna-se o signo da


resistência afrodescendente. Protagoniza a construção
histórico-cultural do negro no Brasil e gesta, ademais, um
novo projeto sócio-político fundamentado nos princípios

443
da inclusão social, no respeito às diferenças, na
convivência sustentável do Homem com o Meio-
Ambiente, no respeito à experiência dos mais velhos, na
complementação dos gêneros, na diversidade, na
resolução dos conflitos, na vida comunitária entre outros.
Tributária da experiência tradicional africana, a
ancestralidade converte-se em categoria analítica para
interpretar as várias esferas da vida do negro brasileiro.
Retroalimentada pela tradição, ela é um signo que
perpassa as manifestações culturais dos negros no Brasil,
esparramando sua dinâmica para qualquer grupo racial
que queira assumir os valores africanos. Passa, assim, a
configurar-se como uma epistemologia que permite
engendrar estruturas sociais capazes de confrontar o
modo único de organizar a vida e a produção no mundo
contemporâneo. (OLIVEIRA, 2012).

Não há um consenso entre os corpos capoeiras,


pesquisadoras/res, historiadoras/res e escritoras/res quanto à
cultura da capoeira e à religiosidade do candomblé e, de fato, a
diversidade da capoeira revela muitos grupos e corpos que se
dedicam somente à prática dos exercícios corporais,
musicalidade e toques dos instrumentos.

Como a Mestra Lara nos motiva a transitar por onde nos


sintamos chamadas, eis uma escolha singular corporal e não há
imposição dentro da Associação “Arteiros na Dança”131 para as
131
Arteiros na Dança são os corpos iniciados ou inseridos na capoeira por e
com a Mestra Lara que continuam seus caminhos em comunidades,
instituições educacionais e universidades, estimulando a troca de
experiências em torno da capoeira, trabalhos artísticos, educacionais e
culturais. Destaco aqui algumas cidades de atuação desses corpos:
Campinas/SP, Araraquara/SP, Natal/RN, Salvador/BA, Aracaju/SE e Rio de
Janeiro/RJ.

444
desconstruções e construções corporais inspiradas nos
fundamentos do Candomblé.

A investigação em dança como forma de criação


contempla variadas possibilidades artísticas. O que venho aqui
partilhar corresponde parte dos estudos desenvolvidos na
pesquisa de mestrado e corporal realizada a partir da proposta
metodológica do Jogo da Construção Poética, no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal
da Bahia.

A dissertação intitulada “Dança, violência e poética: o


corpo rebelde de EstáNaMira Marruá das Dores”, situada na
Linha “Mediações Culturais e Educacionais em Dança”
(PPGDANCA/UFBA), tem como aporte os estudos
bibliográficos, imersões de campo, laboratórios dirigidos e
composições coreográficas em torno de um trabalho artístico
ainda em construção, relacionando jogo e memória; neste último
caso, a memória cultural e corporal que carrego como artista.

Ao tentar descrever parte do processo de criação desse


trabalho, enfatizo que se trata “de um fazer ao caminhar”... Vai
andando, vai sentindo, percebendo, vai acontecendo. Vale
ressaltar também que tal criação permanece e permanecerá
independentemente do tempo que foi necessário para concluir a
dissertação. Ou seja, o texto presente abraça parte do processo,
não tem pretensão de ser real ou de abarcar essa dança na
íntegra, uma vez que nem mesmo o processo o faz.

Percebo um abismo entre meu corpo dançado e minha


escrita poética... A ausência de verbos, adjetivos,
temporalidades... Desejo que as leitoras/es escolham então para

445
onde ir, no que sentirem em suas buscas. Visceralmente
disponibilizo-me dançá-la, como também me desafio ao
escrever sobre essa dança, sobre a metamorfose, o devir do viver
em Corpo, Poética e Ancestralidade.

Para desenvolver a pesquisa, foi de fundamental


importância o trabalho intitulado “Da Tradição Africana
Brasileira a Uma Proposta Pluricultural de Dança-Arte-
Educação” (SANTOS, 1996), tese de doutorado da Professora
Inaicyra Falcão dos Santos no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, o
Jogo da Construção Poética - na interação com os estudos da
Professora Inaicyra em seu “Corpo e Ancestralidade” -, vem se
desdobrando em alguns projetos, a exemplo de pesquisas de
campo, criações cênicas, teses, dissertações e processos
artístico-pedagógicos. Esse encontro se consolida seguindo um
caminho que resulta, em 2015, com a liderança conjunta do
Grupo Interinstitucional de Pesquisa Corpo e Ancestralidade132,
vinculado à Universidade Federal da Bahia.

132
O Grupo Interinstitucional de Pesquisa Corpo e Ancestralidade nasceu em
2002, sob a liderança da Professora Livre Docente Inaicyra Falcão dos
Santos. É formado por artistas-pesquisadores do campo de estudo das artes
da cena vinculados a diferentes instituições de ensino superior no Brasil,
como UFBA, Unicamp, USP, UFGD, UNIRIO e UFS. O Grupo tem como
intenção proporcionar a troca de experiências e estudos referentes às
tradições culturais como elementos motivadores de linguagens cênicas na
contemporaneidade. Pretende ainda motivar a abertura de expressões
artísticas por meio da estética, da emoção, de histórias singulares e culturais.
No ano de 2012, foi publicado o livro 'Rituais e Linguagens da Cena:
trajetórias e pesquisas sobre corpo e ancestralidade', pela Editora CRV.
Desde 2015, Lara assume a coordenação juntamente à Inaicyra e o Grupo
segue promovendo edições anuais de Encontros Interinstitucionais (texto
disponível na Plataforma Lattes/CNPq, 2017).

446
Em seus estudos, Inaicyra Falcão dos Santos busca
recobrar aspectos da estética e da mítica da tradição afro-
brasileira, valorizando a criação coletiva e oferecendo uma
metodologia que se desdobra numa vivência pedagógica
pluricultural, sem descuidar das singularidades. Como destaca
Santos (1996),

(...) copiar modelos é negar a criação.

A nossa busca com essa proposta de trabalho artístico


educacional é encontrar um estilo original para expressar
e falar do corpo, com enfoque no indivíduo. Isso só vai
ser possível com a troca de fora para dentro e de dentro
para fora. Descobrir pelo movimento corporal a si mesmo
e ao outro sem dicotomia. Uma forma de pensar diversa
daquela que historicamente se teve (SANTOS, 1996).

Ainda nessa perspectiva de ativar percepções, outra


intenção dessa dança é sua não separação do próprio cotidiano,
pois nasce de corpos que estão por todos os lados: ruas, cidades,
casas. Não está fora de nós e as movimentações, portanto, são
percebidas, motivadas e suscitadas a partir do ambiente
doméstico e urbano, num processo que não separa a hora de
dançar, da hora de dormir, do brincar, de lutar e de
estudar....Noutras palavras, uma dança que sente, faz e acontece.
Assim, o corpo manifesta esse “agora”, assume o acontecimento
do instante. Pulsa, reage e expande.

Não é fácil, não é maravilhoso, não é simples nem


agradável. É sobre a possibilidade de alargar a consciência e
reinventar a vida que nem uma brincadeira de não ser eu pra
provocar a brincadeira nas pessoas e sentirmos, por alguns
instantes, os pés fincados na terra e as asas alçando vôos de

447
plenitude. Seguem registros de imagens (arquivos pessoais) do
congresso e do corpo (ainda em construção EstáNaMira):

Figuras 2, 3 e 4 - Atuação no V Congresso de Filosofia da Libertação


& II Encontro Internacional de Filosofia Africana

Fonte: Arquivo pessoal

448
Fonte: Arquivo pessoal

449
Fonte: Arquivo pessoal

450
Figura 5 - EstáNaMira Marruá das Dores e Dona Estamira

Fonte: Arquivo pessoal

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451
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452
ANEXOS

453
454
RESUMOS

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

455
456
EDUCAÇÃO FILOSÓFICA E RESISTÊNCIA
CULTURAL EM DUSSEL

Altair Gabardo Percicotty133


Geraldo Balduino Horn134

Propõe-se nesse artigo problematizar e entender a Filosofia da


Libertação, da forma como é concebida por Dussel, como
educação filosófica e formação cultural crítica; como saber
teórico articulado à práxis em defesa, promoção e
reconhecimento da vida, principalmente, em relação aos
explorados e marginalizados. O conhecimento filosófico
ocidental e eurocêntrico, historicamente, esteve ao lado e
prestou serviço aos colonizadores. Daí a inferência libertadora
em questionar esse tipo de conhecimento como único e
centralizador não reconhecendo outras formas de conhecimento
e culturas que estão presentes em distintas realidades.
Conhecimentos, por vezes, reproduzidos pela própria escola a
partir de modelos globalizadores que negam a natureza e as
especificidades culturais dos povos latino americanos, africanos

133
Graduação em Licenciatura Plena em Filosofia; Especialização em:
Metodologia de Ensino em Filosofia e Sociologia e Educação a Distância
com Ênfase na Formação de Tutores; Professor: Filosofia e Sociologia no
Colégio SESI; Ensino Religioso no Colégio Nossa Senhora do Sagrado
Coração; Mestrando em Educação pela UFPR e membro do Nesef (Núcleo
de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino de Filosofia, da UFPR).
134
Possui graduação em Filosofia pela UFPR (1985), mestrado em Educação
pela UFPR (1995) e doutorado em Educação pela FEUSP (2002).
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia
(NESEF/UFPR). Professor de Metodologia e Prática de Ensino no curso de
Filosofia (UFPR) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR.

457
e asiáticos. Dussel em “A Pedagógica” propõe pensar processo
educacional que inicia na concepção uterina, perpassando por
todas as influências e fases históricas da vivência do ser humano
no decorrer da vida. Ele critica as estruturas de opressão e
domínio existentes na relação entre pais/filhos,
educadores/educandos. Com fundamentações originais partindo
da América Latina, por meio da Analética, questiona e denuncia
as causas destas opressões através dos sistemas pedagógicos por
que dês dos primatas existem experiências, que são transmitidas
a nova geração, ao filho, à juventude, a totalidade de mediações
que constituem o mundo. Toda transmissão da cultura que é
acumulada transfere-se graças a sistemas pedagógicos. O
sistema pedagógico erótico doméstico educa dentro da estrutura
de classe social familiar pautado num ethos tradicional dentro de
determinada sociedade, o futuro cidadão é fruto de como foi
dada eroticamente sua personalidade na família perpassando
pelos sistemas pedagógicos políticos ou sociais que influi dentro
do ethos social na história. As culturas africanas, asiáticas e
latino-americanas ainda estão longe de serem compreendidas a
partir de suas raízes. Há um profundo desconhecimento que se
manifesta não só por meio da mídia como também nas escolas e
universidades.

Palavras-chave: Pedagógica, Reconhecimento Cultural,


Alteridade

458
COMO A MONITORIA INDÍGENA PASSA A SER UM
LUGAR DE TROCAS INTERCULTURAIS DENTRO DO
CURSO DE PEDAGOGIA DA UFRGS?

Ana Isabel Melo dos Santos135


Ana Lúcia Castro Brum136
Magali Mendes de Menezes137

Nas últimas décadas, no Brasil, está ocorrendo com maior


visibilidade o aumento das políticas públicas para o ingresso nas
universidades estaduais e federais. O trabalho desperta nosso
olhar para os povos indígenas que adentram a universidade
dialogando agora com o conhecimento acadêmico. O tema “ A
monitoria indígena na universidade Federal do Rio Grande do
Sul”, foi escolhido como uma reflexão das práticas vivenciadas
por uma das autoras durante o período da graduação em
Pedagogia, onde a mesma atuou como monitora indígena,

135
Mestranda em Educação. Linha de pesquisa: Universidade teoria e Prática.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
136
Mestranda em Educação. Linha de pesquisa: Universidade teoria e Prática.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
137
Vice-Diretora da Faculdade de Educação. Coordenadora do Programa
Saberes Indígenas na Escola. Programa de Pós-Graduação em Educação
Departamento de Estudos Básicos/ Área de Filosofia da Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Brasil

459
destacando este espaço como lugar de formação e trocas
interculturais. O trabalho tem como objetivo principal: analisar a
relevância da monitoria indígena como um lugar de trocas
interculturais e de formação, além de afirmar um novo espaço
de diálogo dentro da universidade, fazendo que estas narrativas
de aprendizagem possam ser ouvidas, discutidas e registradas.
Tomamos como aporte teórico Freire (1987), através do
conceito de conhecimento, Menezes (2011) ao analisar as trocas
interculturais e Betancourt (2004) com interculturalidade. A
metodologia consta de uma pesquisa qualitativa, com escrita
autobiográfica e análise de diários de campo de monitores.
Como a pesquisa está em andamento, fizemos uma descrição
das primeiras análises, bem como as respostas que encontramos
no caminho, nos levando a perceber que é necessário sempre
analisar e repensar sobre os acontecimentos do cotidiano, sobre
outro olhar, com a perspectiva de tornar a acolhida aos novos
estudantes indígenas verdadeiramente acolhedora. Dessa
maneira, este aluno ou aluna à sua maneira poderá desenvolver
suas potencialidades de forma plena. Este é nosso maior papel,
enquanto docentes e como seres humanos, formar e ser formado,
numa relação de trocas permanentes.

Palavras chaves: trocas interculturais, protagonismo indígena,


saberes.

460
A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM DIÁLOGO
INTERCULTURAL

Ana Lúcia Castro Brum

Este artigo vai aprofundar um diálogo com a educação escolar


indígena no campo da formação continuada de professores(as)
indígenas enquanto espaço intercultural de libertação. Pensar na
educação indígena é pensar sempre de outro lugar da educação,
é pensar na diferença de ver o mundo, desde o outro lugar
através de uma troca de culturas, de sentimentos, de alegrias.
Uma postura aberta ao diálogo intercultural, uma escuta sensível
à cultura diferente. A educação escolar indígena é um desafio, é
uma terra misteriosa, em que a interculturalidade se sobrepõe. A
interculturalidade é uma tomada de posição ética, a favor da
convivência com as diferenças, um processo de transformação
cultural, onde cada etnia é respeitada. Saber conviver com o
outro, é o princípio de um diálogo intercultural, é a razão para
que o diálogo seja entendido como necessidade, como exigência
existencial para homens e mulheres que lutam pela liberdade e
igualdade para todos(as). Pensar a formação continuada de
professores(as) indígenas kaingang e guarani, onde estes são os
protagonistas do seu fazer pedagógico, vai ao encontro de uma
práxis libertadora? Como se dá a troca de saberes em um espaço
de formação que tem como objetivo a construção de material
didático na língua materna dos kaingang e guarani. A formação
Saberes Indígenas na Escola é um espaço de formação
intercultural que está sendo construído pelos professores(as),

461
formadores(as) e pesquisadores(as) indígenas juntamente com
uma equipe interdisciplinar da UFRGS/RS; é um espaço de
diálogo intercultural entre os sujeitos sociais envolvidos nesta
formação. Buscar nos teóricos latino-americanos como Dussel,
Freire, Fournet-Betancourt, a fundamentação do diálogo
intercultural é possibilitar um horizonte para novos caminhos na
educação indígena, onde os professores(as) vão dizer a sua
palavra e fazer a sua história e a de seu povo.

462
A TAREFA DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO
NO BRASIL: POR UMA FILOSOFIA DA
INSURGÊNCIA

Daniel Pansarelli138,
Suze Piza139;
138
Professor na Universidade Federal do ABC, atual pró-reitor de
extensão e cultura. Docente no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia e nos cursos de graduação em Filosofia (bacharelado e
licenciatura) e em Ciências e Humanidades (bacharelado).
Coordenou o Bacharelado em Filosofia (2011-2012), a Licenciatura
em Filosofia (2012-2013) e foi vice-coordenador do Bacharelado
em Ciências e Humanidades (2013-2014). Coordena o Colégio de
Extensão (COEX) da Andifes e é presidente nacional do Fórum de
Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras
(Forproex). É doutor em Educação, área Filosofia e Educação, pela
FEUSP, mestre em Educação e graduado em Filosofia pela UMESP.
Atua principalmente em temas relacionados a: ética e filosofia
política; filosofia moderna e contemporânea; filosofia e educação;
América Latina. Coordena o GT Filosofia na Amética Latina,
Filosofia da Libertação e Pensamento Decolonial (ANPOF); lidera o
Grupo de Pesquisas Perspectivas Críticas da Filosofia Moderna e
Contemporânea (UFABC/CNPq), é membro do Centro de Filosofia
Brasileira (PPGF/UFRJ), do GT Ética e Cidadania (ANPOF), do
Laboratório de Pesquisa e Ensino de Filosofia (UFABC) e da
Asociación Latinoamericana de Filosofía de la Educación.
139
Professora de Filosofia na UFABC. Docente no Programa de
Pós-Graduação em Filosofia na linha de pesquisa Ética e Filosofia
Política. Foi pesquisadora de pós-doutorado e professora
colaboradora no Departamento de Filosofia (IFCH) UNICAMP
entre 2015-2017. É Doutora e Mestre em Filosofia pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atua
principalmente nos seguintes temas: produção de pensamento
filosófico, pensamento ético-político moderno e contemporâneo,

463
Hugo Allan Matos140

Qual a tarefa da Filosofia da libertação no Brasil? Com


o intuito de pensar o lugar e a posição da Filosofia da
libertação no Brasil e a fim de definir suas tarefas para a
próxima década, proporemos uma reflexão sobre a
institucionalização da Filosofia pelas universidades
brasileiras que aprisionam e regulam a produção de
Filosofia numa espécie de “estado de sítio”. Para pensar
filosoficamente desde o Brasil serão problematizadas
essas questões, relatadas experiências bem-sucedidas de
transformação da universidade em pluriversidade e
explicitadas as diversas dimensões da descolonização

filosofia contemporânea, ontologia, filosofia na América Latina,


interfaces entre Filosofia e Psicanálise e Filosofia e Ensino. É
bolsista CAPES como coordenadora de área do projeto PIBID-
Filosofia.
140
Possui graduação em Licenciatura em Filosofia
(2009), Pós-graduação em Filosofia Contemporânea e
História (2010) e mestrado em Educação pela
Universidade Metodista de São Paulo (2012).
Atualmente é pesquisador da Universidade Federal do
ABC, professor auxiliar da Universidade Metodista de
São Paulo e coordenador de PIBID na área de filosofia.
Atua principalmente nos seguintes temas: alteridade,
ética, educação, política e libertação.

464
dentro das instituições universitárias. O objetivo
principal do minicurso será elaborar coletivamente ações
de insurgência contra o atual estado de coisas.

Principais tópicos do minicurso


O lugar da Filosofia da libertação no Brasil;
Os usos dos espaços institucionais recentemente
conquistados;
Filosofia sitiada nas Universidades brasileiras;
Filosofia da libertação como insurgência;
Da universidade à pluriversidade;
A definição da tarefa e encaminhamentos para a ação.

Metodologia de ensino
Roda de conversa sobre os tópicos principais, relatos de
experiências significativas de insurgência institucional e
condições de possibilidade para produção de Filosofia no
Brasil e sistematização de propostas de ações coletivas.

Bibliografia de referência

GOMES, Nilma Lino (2014), “Los intelectuales negros y


la producción de conocimiento: algunas reflexiones
sobre la realidad brasileña”. In SANTOS, Boaventura de
Sousa & Meneses, María Paula (eds.), Epistemologías
del Sur (Perspectivas). Madrid: AKAL, 407-428.

MIGNOLO, Walter (2010). Desobediencia


epistémica. Retórica de la modernidad, lógica de la
colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos

465
Aires: Ediciones del Signo. Disponível em:
https://antropologiadeoutraforma.files.wordpress.com/20
13/04/mignolo-walter-desobediencia-epistc3a9mica-
buenos-aires-ediciones-del-signo-2010.pdf

PANSARELLI, Daniel; PIZA, Suze Eurocentrismo e


racismo ou em torno da periculosidade das teorias
filosóficas, Problemata, 2017.
Disponível em
http://periodicos.ufpb.br/index.php/problemata/article/vi
ew/28060

466
NOTAS DE UM DIÁLOGO INTERCULTURAL:
as (des)orientações entre um indígena e um não indígena

Dorvalino Rafej Cardoso


Magali Mendes de Menezes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Como mundos tão diferentes se comunicam? Em que língua se


faz possível o diálogo intercultural? Queríamos trazer nesta
reflexão como se construiu ao longo de dois anos uma relação
de (des)orientação entre uma professora(estudante) não indígena
e um estudante(professor) indígena. Trago a ideia de professor-
estudante porque estes papeis se invertiam constantemente
dentro da relação. O exercício de diálogo possibilitou que
pudéssemos pensar inclusive os sentidos do próprio diálogo, que
se fazem na relação constante e desafiante de estar diante do
Outro. Entre o espaço da universidade e da aldeia buscou-se
construir pontes possíveis para fazer comunicar mundos muito
distantes e, ao mesmo tempo, marcados pela violência histórica
que constituiu processos de colonização, vividos até hoje. Era
necessário então, iniciar desfazendo imagens, formas, lugares,
pensamentos. Não havia um único lugar (mesmo que o fato de
escrever uma dissertação pertencesse ao mundo da
Universidade). Aos poucos, na vivencia concreta de se
aproximar do mundo do Outro, foi-se buscando palavras,
compreendendo silêncios, aprendendo. Sabíamos que a palavra
traria a memória dos mais velhos (não)presentes a todo tempo
em cada coisa. Rompeu-se assim, com metodologias, pois estas

467
se apresentavam sempre como a priori impossíveis de serem
feitos quando se busca uma relação intercultural. A escrita foi se
tecendo no encontro do indígena com seu povo e a autoria de
cada palavra não era mais individual, mas coletiva. O texto não
possuía bibliografias, estas eram as palavras vivas dos mais
velhos que o indígena encontrava. Contudo, escrever continuava
sendo um universo estranho para uma cultura da oralidade.
Entendeu-se então que a palavra poderia ser falada (mesmo que
fosse escrita). Paradoxo de um texto que fala a medida que é
feito por desenhos, narrativas de mitos, que possui espaços em
branco. A escrita subverte as normas, e os diálogos passam a ser
conversas de como é possível (re)dizer o que só tem sentido na
língua indígena.

Palavras-chave: dialogo; interculturalidade; indígena; não


indígena, universidade

468
DECOLONIALIDADE NO CINEMA BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO:
o caso de “Que horas ela volta?”

Fagner de Lima Delazari 141


Maria Lyvia Pinheiro Barros 142

Em nosso artigo, buscamos problematizar o tema da


decolonialidade no cinema brasileiro contemporâneo, abordando
especialmente o longa-metragem Que horas ela volta? (2015),
da diretora Anna Muylaiert. Propomo-nos analisar aspectos
estéticos, sociais e políticos no filme, construído em torno das
migrantes pernambucanas Val (Regina Casé) e Jéssica (Camila
Márdila), mãe e filha, que se mudaram para a cidade de São
Paulo, em diferentes momentos históricos, buscando melhores
condições de vida – assim como milhões de nordestinos fizeram
ao longo do século XX. Pretendemos refletir sobre as noções de
colonialidade (Aníbal Quijano), subalternidade (Gayatri
Spivak) e decolonização do imaginário (Clement Akassi) na
trama ficcional do longa-metragem e investigar em que medida
o filme em questão propõe e realiza uma abordagem decolonial
141
Licenciado e Bacharel em Filosofia pela UFMG, especialista em
Sociologia pelo Instituto Claretiano e mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Letras: Linguagens e Representações da Universidade
Estadual de Santa Cruz – UESC/BA. fgnrdlzr@gmail.com
142
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sete Lagoas (MG),
licenciada em Letras pela Estácio de Sá e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Letras: Linguagens e Representações da Universidade
Estadual de Santa Cruz – UESC/BA. lyviapinheirobarros@gmail.com

469
em suas representações da migração e das relações étnico-raciais
e de classe, bem como os significados estéticos e as implicações
políticas que podem ser derivados desta leitura.

Palavras-chave: Decolonização do Imaginário, Cinema


Brasileiro, Migração.

470
O TRABALHO COMO FONTE DE DIREITOS

Lucas Gois Pereira143


MSc. Antonio Enrique Fonseca Romero144

A presente pesquisa consiste na relação entre o Trabalho e os


demais Direitos, primeiramente sob uma ótica sócio-histórica,
para assim chegar ao direito propriamente dito. Outro fator
relevante do projeto, e possivelmente o mais importante, é
observar o Trabalho desde uma perspectiva ideológica, seja esta
de opressão ou libertação. Para tanto, aproximamos do assunto
desde duas abordagens: de início, consideramos o Trabalho
como o lugar socioeconômico e cultural do operário, daquele
que produz a riqueza; Doutro estudamos o Trabalho como
fenômeno do Mercado, visto por muitos como inimigo do
trabalhador, representante dos interesses da média e alta
burguesia. A investigação pretende abrir uma discussão em
torno à categoria luta de classes, como elemento de análise e
compreensão da dinâmica social na sociedade contemporânea
pós-industrial; onde semanticamente patrão e operário aparecem
como parceiros mútuos, frente ao conflito da construção de
direitos, ou, hoje pelo menos a sua manutenção. Surge o
questionamento: será que o trabalhador pode atingir seus
direitos, ao contribuir com o empregador para que este atinja

143
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas
– UEA. E-mail: lucasgois12@hotmail.com
144
Docente do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas –
UEA. E-mail: aromero@uea.edu.br

471
os seus? A sociedade “pós-industrial e pós-trabalhista” superou
a mediação sócio-histórica da luta de classes como sua própria
teoria sociológica? De plano, isto pode parecer estranho – e,
é!!!; porém, se partirmos da premissa conciliadora que
queremos melhorar a estrutura social e elevar o nível de vida
dos cidadãos, por diferentes meios, mas com fins semelhantes,
não é tão difícil imaginar. Com isto, busca-se esclarecer a
ideológica simbiose estabelecida hoje, na relação Trabalho-
Capital. Consideramos que esta abordagem deve abrir seu
horizonte de compreensão à luta pelos direitos dos trabalhadores
e trabalhadoras, inclusive fazendo uma clara defesa dos direitos
sócio-político-econômicos até hoje conquistados, uma vez que,
há formas de enfrentar as crises econômicas, pensando novos
modelos socioeconômicos solidários, sem partir para a
derrubada dos já assegurados.

Palavras Chave: Direitos; Mercado; Trabalho.

472
PARA UMA FILOSOFIA DA TECNOLOGIA:
as contribuições de Enrique Dussel

Lucas Barbosa da Paz145,


Profª Drª Angela Luzia Miranda146

Do ponto de vista científico e tecnológico, a América Latina


sempre foi considerada um continente subdesenvolvido em
relação ao Norte e, por isso, dependente tecnologicamente.
Nesse contexto, situa-se o pensamento de Dussel (1995), o qual
pretende fundar uma filosofia da libertação, incluindo a esfera
da poiésis , que concerne às relações homem-natureza e incluo
pensamento da libertação sobre a tecnologia, instância que é
subjacente à economia e é sua condicionante material. A
problemática crucial desta pesquisa, portanto, se insere neste
contexto e pergunta: que papel cumpre a tecnologia nos
processos de exclusão e dominação social? E, em contraposição,
pode a tecnologia exercer e significar um processo de
libertação? Portanto, este artigo busca aprofundar o papel e o
lugar que ocupa a tecnologia na filosofia da libertação, bem
como avaliar a viabilidade de uma tecnologia da libertação com

145
Bacharel em Ciências & Tecnologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; Graduando em Sistemas de Informação pelo Instituto
Federal de Alagoas.
146
Doutora em Filosofia, Professora de Ética em Ciência e Tecnologia na
Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte; Coordenadora do Grupo de Pesquisa Phrònesis: Estudos em Filosofia,
Ciência, Tecnologia e Sociedade.

473
base nas assim chamadas “tecnologias sociais” ou “tecnologias
apropriadas”. Os dados, coletados a partir da pesquisa
essencialmente bibliográfica, baseiam-se nas obras de Dussel
(em especial, Filosofía de la Producción) e seus comentadores,
bem como na literatura sobre as tecnologias sociais ou
apropriadas. Conclui-se que a tecnologia é uma dimensão
importante para a filosofia da libertação e que a proposta de uma
tecnologia da libertação, desde os movimentos de participação
pública das tecnologias sociais e apropriadas, pode ser um
caminho rumo ao processo de libertação de povos e continentes,
historicamente dominados científica e tecnologicamente.

Palavras-chave: Filosofia, libertação, tecnologia, produção,


Dussel.

474
A COMPOSTAGEM COMO PRÁTICA DE
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Pedro Henrique de Oliveira Zanette147

Este artigo é baseado no Trabalho de Conclusão do curso


intitulado “ Compostagem dos Resíduos Orgânicos do
Restaurante Universitário do Campus 2 da USP São Carlos -
Balanço do funcionamento inicial e propostas de melhorias”
produzido no ano de 2015.. Mais de 80% da população
brasileira hoje localiza-se em ambiente urbano, estando
desconectada da possibilidade de produzir alimentos, remédios e
etc pelo plantio e práticas caseiras. Assim existe maior consumo
de manufaturados e alimentos processados contendo diversas
embalagens e/ou sendo composto por materiais de baixa ou nula
degradabilidade. Por conta disso evidencia-se grande geração de
resíduos sólidos que tornou-se desafio à sociedade: lidar com
seu acúmulo. Em 2010 foi regulamentada a lei 12.305
denominada Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que
dispõe sobre a gestão e o gerenciamento de resíduos sólidos e
também das responsabilidades dos geradores e demais atores
envolvidos. Engana-se quem pensa que as soluções estarão em
novas tecnologias quando necessitamos mesmo é mudar
atitudes. Deixar de consumir produtos agressivos ao meio
ambiente, diminuir nosso consumo reduzindo assim a geração
de resíduos e reciclar o máximo. Partindo da informação que em
147
Engenheiro Ambiental formado na Escola de Engenharia de São Carlos-
USP.

475
média mais que 50% dos resíduos sólidos urbanos gerados são
resíduos orgânicos, destiná-los a compostagem e não ao aterro
acarretaria em benefícios como aumentar a vida útil de aterros
sanitários e evitaria possíveis impactos negativos provenientes
da produção do chorume e de gases estufa. A compostagem é
um procedimento versátil e de baixo custo, podendo ser feita em
pequenas ou largas escalas, e pode ocorrer a partir do manejo de
diferentes materiais dependendo do que se tem disponível. Com
foco na pequena escala, este trabalho conclui que unidades
descentralizadas de compostagem podem ser desenvolvidas em
escolas, centros comunitários, quintais ou terrenos baldios
promovendo a transformação de espaços urbanos que passam a
ter um uso comum na vizinhança e é importante extratégia de
caráter pedagógico que propicia a difusão da prática,
conhecimento e fomenta a agricultura urbana e a sensibilização
para a coleta seletiva.

Palavras chave: compostagem, gestão de resíduos, resíduo


orgânico.

476
VIOLAS E CONGADAS:
aprender para a vida

Vívian Parreira da Silva148


Aida Victória Garcia Montrone149

O presente artigo apresenta a experiência de uma inserção


realizada junto ao grupo de violeiros da cidade de São Carlos
denominado Rancho do Abacateiro e busca dialogar também
com a pesquisa de mestrado intitulada: Do Chocalho ao Bastão:
processos educativos do Terno de Congado Marinheiro de São
Benedito – Uberlândia MG. O objetivo dos estudos foi
identificar e compreender os Processos Educativos presentes nas
Práticas Sociais apresentadas. O texto busca ainda, refletir, à luz
dos textos estudados na disciplina, como os saberes são
construídos na cultura popular. Foi realizada uma pesquisa
qualitativa, como estratégia de investigação foi utilizada da
técnica da pesquisa participante. Os resultados mostraram que
nos dois grupos estão presentes processos educativos que se
relacionam com a técnica de tocar e cantar, com a importância
em se manterem vivos os grupos, com a preservação da
memória nas relações intergeracionais, com as poesias , com as
relações que se estabelecem entre os mais experientes e os

148
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos na Linha de Pesquisa Práticas Sociais e
Processos Educativos.
149
Professora Associada da Universidade Federal de São Carlos no
Departamento de Metodologia de Ensino

477
menos experientes. Foi possível perceber que na cultura popular
estão presentes a valorização do saber de experiência, o respeito
ao tempo de aprendizagem, o erro não como uma forma de
desprezou ou “chacota” mas sim como uma forma de aprender e
ensinar coletivamente mostrando diferentes maneiras de se
adquirir e transmitir conhecimento.

Palavras-Chave: Prática Social, Processos Educativos, Cultura


Popular, Viola Caipira Congada.

478
RESUMOS

FILOSOFIA AFRICANA

479
480
FILOSOFIA AFRICANA TECIDA PELOS SABERES
ANCESTRAIS FEMININOS:
poéticas de encantamento.

Adilbênia Freire Machado150

Esta comunicação tem o intuito de dialogar com a filosofia


africana contemporânea desde os saberes ancestrais femininos,
delineados por vozes de mulheres africanas e afrodescendentes,
encantamento potencializando nosso estar no mundo. Com esse
intuito Oyèrónké Oyěwùmí nos falará sobre cosmo-percepção e
a importância de compreendermos o contexto global para a
produção de conhecimento e assim apreendermos a realidade
dos povos africanos e da condição humana. Vanda Machado
tecerá sobre a potência da ancestralidade africana na nossa
formação. Chimamanda Adichie delineará sobre feminismo e o
perigo da história única. Sobonfu Somé nos ensinará sobre o
espírito da intimidade perpassado pelo comunitarismo, pela
coletividade. Paulina Chiziane sobre o ser mulher, esse chão que
fecunda, alimenta, abriga, acolhe. Mãe Stella de Oxóssi versará
sobre comprometimento e oralidade. Conceição Evaristo sobre a
força das mulheres insubmissas. Sabedorias ancestrais tecidas
pelo encantamento, a potência para o existir. Filosofia africana

150
Doutoranda em Educação Brasileira (UFC), Mestra em Educação
(UFBA), Bacharela e Licenciada em Filosofia (UECE). Faz parte dos grupos
de pesquisa GRIÔ: Culturas Populares, Ancestralidade Africana e Educação
(UFBA), NACE (Núcleo das Africanidades Cearense – UFC) e Rede
Africanidades (UFBA). Assento na Cadeira 39 da Academia Afro-Cearense
de Letras (AAFROCEL). E-mail: adilmachado@yahoo.com.br

481
delineando saberes implicados no bem-viver, no desejo e
respeito pelo ser humano... Ancestralidade e encantamento re-
inventando nosso modo de ser / pensar / sentir / agir, implicar-se
com a construção de um mundo melhor onde sejamos
valorizados/as em nossas singularidades para que assim
possamos somar no coletivo, demarcando o conhecimento
afrorreferenciado.

Palavras-Chave: Filosofia Africana; Saberes Ancestrais


Feminino; Encantamento; Conhecimento Afrorreferenciado.

482
FORMAÇÃO DOCENTE EM GEOGRAFIA:
mitologia africana na prática intercultural

Eduardo Oliveira Miranda151

O movimento desse artigo traz consigo a minha práxis docente


em quatro turmas de licenciatura em Geografia da Universidade
Federal da Bahia – UFBA no ano de 2016. Acredito e defendo
que a Educação Geográfica precisa se ater a formação de
docentes com o olhar intercultural (CANDAU, 2008) e com isso
abarcar a Educação das Relações Étnicos Raciais. Então,
desenhei como objetivo dessa produção textual: propor as
interconexões dos postulados de Boaventura (2002) com os
princípios da Sociopoética (GAUTHIER, 2014; ADAD, 2014),
os quais partilham das premissas da Interculturalidade. Nesse
escopo, socializo com vocês a mensagem de um dos mitos do
panteão africano que compõe a minha identidade docente, o qual
nos conta que Iansã certa feita inconformada com o monopólio
de Ossain, perante as ervas, requereu uma reunião com todos os
Orixás e solicitou a partilha das folhas, mas Ossain se recusou.
Então, Iansã utilizou do seu poder e evocou uma ventania muito
forte responsável por quebrar a cabaça que guardava todas as
ervas e cada Orixá pode se apropriar do que até então estava
guardado em mãos únicas. Tenho tentado aplicar esse
ensinamento democrático, no qual todos e todas envolvidas nas
151
Licenciado em Geografia – UEFS. Mestre em Desenho, Cultura e
Interatividade – UEFS. Doutorando em Educação – FACED/UFBA.
Professor substituto na FACED/UFBA. eduardomiranda48@gmail.com

483
práticas educativas devem ser participantes igualitariamente da
produção de saberes, de experiências e de muitos confetos.

Palavras-chave: Mitologia Africana. Epistemologias do Sul.


Sociopoética. Formação Docente.

484
A CONCEPÇÃO DE RAÇA E A RAZÃO NEGRA EM
ACHILLE MBEMBE

Eliseu Amaro de Melo Pessanha

O pensador camaronês, Achille Mbembe defende a ideia que a


humanidade subalternizada irá se tornar o negro do mundo. O
desenvolvimento do colonialismo e a sua nova versão, a
globalização, objetificaram o homem em um processo que vai
do homem-metal ao homem-moeda. Nesse percalço o racismo
funciona como eixo estruturante da sociedade contemporânea. A
invenção da raça, uma “construção fantasista” determina o
espaço social em que deve permanecer o negro, determina
também a epistemologia que o define, e como consequência
delibera uma contra-epistemologia; a razão negra, que vai
agenciar um sujeito capaz de propor uma ontologia diferente da
ocidental, ou seja, uma que compreenda a alteridade como
sujeito e não como objeto. Enquanto o conceito de Biopoder de
Foucault identifica o negro como o sujeito que pode ser
eliminado, uma “não-pessoa”, segundo Mbembe, a humanidade
negra agoniza a espera de uma superação conceitual possa
“salvar a sua pele”.

Palavras-Chaves: Raça. Devir negro. Razão Negra.

485
486
RODOLFO KUSCH E LÉLIA GONZALEZ NA
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO:

América profunda, amefricanidade e a perspectiva feminista


de Lélia

Ineildes Calheiro152
Eduardo David Oliveira153

Esse estudo apresentado no V CBFL154 é resultado da discussão


das aulas do componente curricular “Filosofia Contemporânea:
a perspectiva Latino-Americana e Africana”, do doutorado em
Difusão do Conhecimento (DMMDC/multi-institucional e
multidisciplinar), ministrado pelo professor Eduardo Oliveira,
apresentando como atividade de conclusão do respectivo
componente. O objetivo é analisar as contribuições de Rodolfo
Kusch (o autor andino) na descolonização do pensamento
voltada para as epistemologias do Sul, o aproximando da autora
negra, brasileira, Lélia Gonzalez, de pensamento decolonial,
abordando o conceito de “Amefricanidade” na perspectiva
feminista. Foi utilizado o método de análise e descrição das

152
Bolsista financiada pela CAPES. Doutoranda do Programa Multi-
Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento - DMMDC;
Ma. em Crítica Cultural. Licenciada em Educação Física. Membro do Grupo
de Pesquisa Rede de Africanidades. E-mail: ildafrica@yahoo.com.br.
153
Professor adjunto da FACED/UFBA, Antropólogo e filósofo.
154
Congresso Brasileiro de Filosofia da Libertação e III Encontro
Internacional de Filosofia Africana.

487
exposições das aulas mescladas entre palestras, debates e
interpretações textuais mediadas.

Palavras-Chave: Descolonização; América profunda;


amefricanidade; filosofia da libertação; feminismo.

488
ESTÉTICA DA LIBERTAÇÃO:
deriva, travessia e outros itinerários

Luís Carlos Ferreira155


Eduardo Oliveira156

O texto “Estética da libertação: deriva, travessia e outros


itinerários” estabelece o diálogo das filosofias africanas com a
abordagem da estética da libertação. No percurso do texto
estaremos discutindo as categorias: deriva, travessia e
arquipélagos. Estes conceitos atravessam as produções
filosóficas de autores como Jean-Godefroy Bidima (travessia),
Glissant (arquipélagos) e deriva. O texto tem como objetivo
problematizar a filosofia negro africana e da libertação a partir
da estética da libertação, tendo como fim o enfrentamento do
racismo, o qual corrói as bases epistemológicas do pensamento
filosófico africano no Brasil. Temos como intenção trazer para
o debate a perspectiva estética da libertação como leitmotiv da
ampliação das liberdades. A grande marca que alia as filosofias

155
Doutor em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da
Bahia- UFBA. lcarlosfsantos@gmail.com. Membro da REDE-
AFRICANIDADES.
156
Doutor em Educação, Mestre em Antropologia, Especialista em Cultura
Africana e Graduado em Filosofia, é sócio-fundador do IFIL – Instituto de
Filosofia Africana e sócio-fundador do IPAD – Instituto de Pesquisa da
Afrodescendência e Coordenador do Grupo de Pesquisa REDE-
AFRICANIDADES.

489
africanas é o lugar em destaque da disputa do conceito de vida.
Portanto, a luta por uma vida descolonizada é o percurso
estético por excelência.

Palavra Chave: Estética; Deriva; Travessia; Filosofia negro-


Africana; Libertação

490
TRAVESSIAS EPISTEMOLÓGICAS: NARRATIVAS
FILOSÓFICAS DE ÁFRICA

Luís Thiago Freire Dantas157

A história da filosofia é construída, em diversos currículos,


através de uma similaridade que condicionam uma estrutura: a
filosofia é ocidental. A partir dessa estrutura, a narrativa
predominante desenvolve temas e questões que excluem outras
vozes e, por consequência, impossibilita um diálogo entre
perspectivas. Atento a esse problema, este minicurso pretende
apresentar um diálogo com a filosofia africana de maneira que
permite problematizar a história da filosofia como uma atividade
contínua de descolonização. Desse modo, a intenção é atravessar
alguns temas recorrentes na filosofia africana com a finalidade
de ampliar as vozes que uma história da filosofia é capaz de
abarcar.

Palavras chave: Currículo; Descolonização; Filosofia Africana;


História da Filosofia.

157
Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR

491
492
ARTE AFRO-BRASILEIRA:
um traço decolonial?

Nelma Cristina Silva Barbosa de Mattos158

A produção plástica de origem negra pode ser entendida como


uma consciente ferramenta decolonial do sujeito negro no
Brasil. A arte afro-brasileira pode ser compreendida como o
conjunto de manifestações plásticas dos negros e descendentes
de escravos, ou daqueles que experimentam o universo cultural
afro-brasileiro no Brasil. Essa específica criação visual
desenvolveu-se principalmente no espaço da religiosidade de
matriz africana, que era o território da ressignificação da
experiência escrava e da ressocialização do contingente de
escravizados. Adereços e outros objetos litúrgicos compuseram
o arcabouço material de uma arte centrada no traço herdado da
plasticidade africana, mas elaborada a partir dos cruzamentos
com outras visualidades. A arte afro-brasileira surgiu à revelia
da arte oficial, que era de perfil eurocêntrico e branco. Seus
autores foram mantidos fora do circuito oficial das artes
plásticas nacionais, a exemplo da academia e galerias. Com a
instalação de um sistema da arte no Brasil, a partir da criação
do ensino oficial e dos meios de circulação dos produtos, os

158
Doutora em Estudos Étnicos e Africanos, Mestre em Cultura e Sociedade,
Artista plástica. Vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e
Indígenas (NEABI) do IF Baiano Campus Valença. Instituto Federal Baiano,
Campus Valença

493
artistas de origem negra eram relegados ao papel de artesãos ou
artistas primitivos. Os raros artistas negros que alçaram
reconhecimento social como profissionais da arte, o fizeram
através do ingresso na academia, sobretudo a partir do fim do
século XIX. Porém, esses eram obrigados a “desafricanizar” sua
arte, integrando-se ao estilo europeu em voga. Eles não
sobreviveram ao racismo da sociedade, que os excluía ou
dificultava a sobrevivência através do trabalho artístico. Então, a
dimensão sacra da arte visual afro-brasileira e, portanto,
portadora das características ou feições mais africanas, foi
mantida principalmente nos terreiros. Na contemporaneidade,
artistas afro-brasileiros retomam tais referenciais estéticos, mas
insistem na afirmação de seus traços identitários. No terreiro ou
na galeria, a arte afro-brasileira continua sendo um contraponto
ao discurso visual eurorreferenciado.

Palavras-chave: Arte Afro-brasileira, arte sacra, identidade,


decolonidade

494
ORALIDADE:
A Literatura Africana e Afro-Brasileira e a voz negra na
formação de declamadores/leitores na escola

Paula Viviane Cordeiro159

Nesta prática pretende-se contar histórias através do declamar


poesias afro-brasileiras e africanas procurando acender nos
alunos uma relação entre a fantasia e realidade da figura negra
para o desenvolvimento do mundo, criando imagens no
cognitivo deles, talentos artísticos, muitas vezes desacordados.
Em uma recuperação da cultura e da literatura desconhecidas
ainda pelos alunos, de se ver nas histórias, nos poemas, nas
pinturas e nas ilustrações um pouco da riqueza cultural
dissociada do grau pitoresco, mas passível de apreciação por
seus elementos intrínsecos. Os alunos do Colégio Estadual
Izelina Daldin Gaiovicz, onde foi implementado o projeto, são
na sua maioria de classe social baixa, residem na periferia da
cidade, com porcentagem bastante relevante de alunos
afrodescendentes ou indígenas, mesmo muitas vezes não
sabendo ou não querendo reconhecer suas raízes étnicas. É um
trabalho que vem fazendo cumprir a Lei 10639/03 a qual

159
Formação em Letras/Português- Inglês, pós-graduada em Educação
Especial, atualmente está participando do PDE: PROJETO DE
INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA, Secretaria do Estado do
Paraná. Membro da Equipe Multidisciplinar do Colégio Est. Izelina Daldin
Gaiovicz. Instituição ou Entidade: Unespar/FAFIUV.

495
regulamenta a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura
Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis de ensino. A turma
para aplicação do projeto é o 9° ano do ensino fundamental.
Com ênfase na apresentação da cultura Afro-Brasileira com a
declamação de poesias e o consequente relacionamento com a
literatura de escritores dos países africanos de língua
Portuguesa, como: Moçambique, Guiné Bissau, São Tomé e
Príncipe, Angola, Cabo Verde, é uma maneira de se pensar a
atitude do professor como alguém inserido nas práticas
culturais, aliando o conhecimento dessas práticas e suas
ramificações cotejadas com o arcabouço teórico e histórico que
vem permeando o estudo da consciência afro nos últimos
tempos no Brasil.

Palavras-chave: Oralidade; Literatura Africana; Afro-


brasileira; Vozes Negras; Movimentos;

496
A CAPOEIRA NA GINGA COM A MODERNIDADE

Paulo Andrade Magalhães Filho160

Pretendemos através deste trabalho entender como a capoeira se


relaciona com a Modernidade. Manifestação cultural afro-
brasileira que se articula em torno da ideia de tradição, tem
relações contraditórias com os processos de racionalização e
desencantamento do mundo. Por um lado, há diversos projetos
que circulam pela capoeira, como os fenômenos da
esportivização e normatização, a relativização da figura do
mestre, o ensino à distância, a submissão dos eventos à lógica
capitalista, etc, que constituem as facetas mais evidentes da
colonialidade da razão instrumental em relação aos saberes afro-
brasileiros dessa arte-luta. A patrimonialização e as políticas
culturais, mesmo buscando a preservação deste legado, impõem
aos detentores em questão a lógica e dinâmica do Estado,
conduzindo a uma burocratização que pode ser vista como um
componente deste processo de racionalização. Pretendemos
apontar como o processo geral de racionalização e
modernização pelo qual tem passado a cultura brasileira atingiu
a capoeira. Entretanto, a capoeira resiste a deixar-se traduzir, a

160
Doutorando pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura
e Sociedade (Pós- Cultura – UFBA). Jornalista (UFMG), Mestre em Ciências
Sociais (UFBA). Contramestre de capoeira angola e membro do Conselho
Gestor da Salvaguarda da Capoeira na Bahia. E-mail:
paulomagalhaes80@gmail.com

497
se desencantar. Parte integrante dessa Modernidade conduzida
por uma razão instrumental colonial e eurocêntrica, a capoeira
mantém seu mistério, sua mandinga. Ela ginga com a
modernidade e o Estado, como se tivesse duas faces, à
semelhança do Orixá Exu, ancestral arquetípico da capoeira, o
pai da dualidade, da contradição, da malandragem.

Palavras-Chave: Capoeira, Modernidade, Racionalização,


Desencantamento,

Patrimônio

498
TRADIÇÕES, MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA
FESTA DE SÃO FRANCISCO DAS CHAGAS.161

Renata Araújo dos Reis162

O presente artigo propõe algumas observações sobre como as


tradições atuam de forma a legitimar o presente, considerando as
constantes transformações a que estão sujeitas. Para tanto,
trazemos uma visão ancorada na perspectiva decolonial para
observar o passado como um recurso que pode ser acionado em
momentos onde o progresso e as imposições capitalistas
ameaçam a coesão social, trazendo novos valores e
reconfigurando os aspectos tradicionais. Esta proposta de análise
inicia uma discussão que compõe o estudo sobre a Festa em
Louvor a São Francisco das Chagas, festa anual que possui uma
centralidade no fortalecimento dos valores identitários e
simbólicos do Remanso - comunidade remanescente de
quilombos localizada em Lençóis/Bahia. Tais símbolos
conduzem as práticas cotidianas e oferecem singularidade ao
lugar mas estão em constante processo de transformação e
adaptação. Nesta pesquisa, buscamos ainda compreender como
161
Trabalho submetido ao V CBFL – Congresso Brasileiro de Filosofia da
Libertação e II Encontro Internacional de Filosofia Africana no eixo temático
Decolonialidade.
162
Mestranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade da Universidade Federal da Bahia na linha de pesquisa Cultura e
Identidade. Pesquisadora do Observatório Diversidade Cultural. Gestora e
produtora cultural com atuação em Salvador e Lençóis. E-mail:
a.renatareis@gmail.com

499
as tradições são articuladas e renovadas na atualidade, de forma
a manter, alterar, excluir ou reforçar características identitárias.
A tradição assume assim um caráter de enfrentamento, uma
forma de resistência às influências da contemporaneidade, mas
que também podem atuar de forma fluida e integrada, onde o
fortalecimento identitário possui um papel central no equilíbrio
entre as permanências e as mudanças.

Palavra-chave: tradição, passado, mudanças, permanências,


festa.

500
PROGRAMAÇÃO

501
502
19 de Setembro de 20 de Setembro de 21 de Setembro de
2017 2017 2017
08:00-09:00 – 08:00-09:00– Café da 08:00-09:00– Café da
Credenciamento manhã manhã

09:00- 09:30- 09-12 09-12


Abertura oficina/,minicurso oficina/,minicurso

09:30- 10:00 –
Apresentação
cultural

10:00 Conferência-

Mediador:

Local: Espaço
cultural de
Valença?

12h às 14h – Intervalo para almoço


14:30- 17:00 Escuta 14:30 17:00 14:30 17:00
da comunidade COMUNICAÇÕES COMUNICAÇÕES

18:00-19:30 Jantar

503
20:00h- MESA 20:00h - MESA 20:00h - MESA
REDONDA- REDONDA-Filosofia REDONDA-
Filosofia da Africana Movimento Social
Libertação
Prof. Dr. Jose Profa. Anna Maria
Prof. Dr. Carlos Castiano Canavarro Benite
Cúllen (Argentino) (Presidenta da ABPN)
Prof. Dr. Severino
Profa. Dra. Dina Ngoenha Vereadora Ana
Picotti (Argentina) Carolina
Profa. Dra. Florita
Profa. Dra Neusa Teló
Vaz (Brasil)

21:00 Festival de
Cultura

504
SOBRE OS ORGANIZADORES

Eduardo David de Oliveira


Líder do Grupo de Pesquisa Rede-
Africanidades
Professor Permanente do DMMDC -
Doutorado em Difusão do Conhecimento
Coordenador da Linha de Pesquisa
Conhecimento e Cultura do DMMDC
Professor Adjunto da FACED-UFBA
Iniciado na Tradição de Ifá
Aprendiz de Angoleiro
Contato: afroduda@gmail.com

Leonor Franco Araújo


Graduação em Licenciatura em História
(UFES, 1983), especialização em
História das Sociedades Agrárias (UFG)
e mestra em História Social das Relações
Políticas, pela UFES. Doutoranda do
Doutorado Multinstitucional e
Multidisciplinar em Difusão do
Conhecimento da UFBA. Professora
assistente da Universidade Federal do
Espírito Santo. Pesquisadora nos grupos
de pesquisa Educação para as relações
etnico-raciais, territorialidades e inclusão
(UFES) e Rede-Africanidades (UFBA).
Consultora Especializada em Educação
Ambiental Crítica e Políticas Públicas
para Comunidades Quilombolas
Contato: leonor.araujopbq@gmail.com

505
Luiz Carlos Ferreira dos Santos
Doutor pelo do Doutorado Multi-
institucional e Multidisciplinar em
Difusão do Conhecimento pela
Universidade Federal da Bahia (2019);
Mestre em Educação pela Universidade
Federal da Bahia (2014); Graduado em
Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia (2010). Atua como pesquisador
nos seguintes temas: filosofias africanas,
afrodiaspórica e da libertação. Membro
do grupo de pesquisa: Rede
Africanidades.
Contato: lcarlosfsantos@gmail.com

Rejane Souza Costa Matos


Possui graduação em Pedagogia pela
UFBA , em Filosofia pela UESC e
Especialização em Ciências Sociais:
História e Geografia do Brasil pelas
Faculdades Integradas de Amparo/SP.
Graduanda no Bacharelado de Gênero e
Diversidade pelo NEIM/UFBA. Tem
experiência na área de Educação, com
ênfase em gênero, mídia, cultura,
atuando principalmente no seguinte
tema: gênero e relações étnico raciais.
Aprendiz de Capoeira Angola e
sambadeira por encantamento.
Contato: rejanematos571@gmail.com

506
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