Luis Maffei
Luis Maffei
Luis Maffei
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO: Há, na lírica portuguesa, uma tradição que muito bem pode ser
considerada pornográfica. Nesse campo, o nome incontornável é o de
Bocage. Não obstante, é na altíssima voltagem erótica da poesia camo-
niana que Bocage busca boa parte de sua inspiração, pois é em Camões
que se encontra, em estado inovador, uma dicção que contempla, por
exemplo, a articulação entre amor e prática erótica. Nessa tradição, a
contemporaneidade portuguesa apresenta o nome de Adília Lopes, poeta
que, entre outros temas, canta diversas possibilidades do corpo.
anto a beleza, canto a putaria / De um corpo tão gentil como profano” (BO-
CAGE, 2004: 125): assim Bocage começa seu “A Manteigui, poema em um
só canto”. Opto por começo idêntico porque posso já mostrar o rosto deste
escrito, dedicado a lidar com a inclusão a partir de certa exclusão. Digo de outra
maneira: se Bocage liga “beleza” a “putaria”, uma prática extremada da sexu-
alidade é unida a uma idéia que, em princípio, pode ser-lhe contrária, ou a ela
inconciliável. Assim sendo, e sendo a poesia um lugar afeito a transgressões
e novidades, a lírica de Bocage será incapaz de contradições óbvias, apesar de
fértil em ricas ambigüidades.
É includente a lírica bocagiana, e por isso eu gosto de pensá-la a partir de
seu mais radical movimento de ruptura consigo própria, o soneto de conver-
são “Já Bocage não sou!... À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em
vento...” (BOCAGE, 1987: 110). O soturno terceto final almeja uma espécie
de transcendência estranha à maior parte da poesia de Bocage: “Outro Are-
tino fui... A santidade / Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia, / Rasga
meus versos, crê na eternidade!” (BOCAGE, 1987: 110). Por que a necessi-
dade de rasgar “os versos”? Por que o poeta terá manchado “a santidade”?
Antes de qualquer coisa, não deixa de acreditar no poder da poesia aquele
que escreve o que acabo de citar, pois o impedimento da salvação pode ser
superado se os versos maléficos forem destruídos.
Esse não é o único apelo que Bocage faz em sua obra. Penso no soneto que
pretende, na abertura da edição das Rimas do poeta, que os leitores tenham em
mãos uma ferramenta que lhes permita perceber o que será fingido em alguns
dos poemas que virão a ler: “Crede, ó mortais, que foram com violência / Escri-
tos pela mão do Fingimento, / Cantados pela voz da Dependência” (BOCAGE,
1987: 23). É evidente que “Fingimento”, aqui, nada tem que ver com a perspec-
tiva pessoana, mas sim com uma prática, em poesia, que imita jogos necessá-
rios à sobrevivência do escritor enquanto participante de um grupo social. Não
perco de vista a condição de um poeta desse tempo, o século XVIII em seus
estertores. Segundo Daniel Pires, “a ordem social setecentista se caracterizava,
entre outros atributos, pela repressão feroz de todos aqueles que recusavam
ler pela cartilha canónica”. (PIRES, 2004: XIV). Bocage, peculiarmente, ainda
de acordo com Daniel Pires, “tinha consciência aguda de que se encontrava
particularmente vigiado”, e de que “a forma mais avisada de sobreviver numa
sociedade cujos valores recusava era a dissimulação” (PIRES, 2004: XIV).
to do poema não poderia ser mais claro quanto à postura que o sujeito lírico
tem em relação a certas verdades morais: “Isto de virgo e honra é” tão tolo
que encobre algo, aí sim, pleno de legitimidade, o ser “puta” de Nise. Nesse
pormenor, Bocage aproxima-se daquilo que, num famosíssimo soneto, diz
não lograr: “Camões, grande Camões, quão semelhante / Acho teu fado ao
meu quando os cotejo!” (BOCAGE, 1987: 45); a comparação é biográfica,
pois ambos os poetas sofreram em seus respectivos tempos, e ambos vive-
ram situações de exílio. O final do texto é onde se lê a impossibilidade com
que Bocage supõe deparar: “Se te imito nos transes da ventura, / Não te
imito nos dons da Natureza” (BOCAGE, 1987: 45): não? É claro que não, já
que Camões é Camões e Bocage, Bocage. Bocage, pois, não imita Camões,
seu “modelo” (BOCAGE, 1987: 45). Ele faz mais: Bocage, e aqui sua lírica
obscena torna-se ainda mais interessante no que diz respeito à história da
literatura portuguesa, radicaliza, pela palavra obscena, o que, séculos antes,
Camões já havia praticado.
“Isto de virgo e honra é tudo peta”, escreveu Bocage – conseguindo, as-
sinalo, outra articulação altamente sofisticada: a do humor, costumeiramente
um modo de investir num discurso moralista, vide as cantigas de escárnio
e maldizer, e o festejo da sexualidade. Camões terá escrito diferente, bem
diferente, algo bastante semelhante, e justo em seu poema épico. A situação
é exaltatória, pois Vênus cria, em parceria com seu filho Cupido, um evento
para celebrar o êxito da viagem de seus protegidos portugueses. E que cele-
bração aí tem lugar? A erótica, ou melhor, a sexual, já que é praticada nada
menos que uma orgia: “Ó que famintos beijos na floresta, / E que mimoso
choro que soava! / Que afagos tão suaves, que ira honesta / Que em risinhos
alegres se tornava!”: há os “beijos”, e eles são “famintos”; há os “afagos”, e
eles são “suaves”: onde a contradição? Não, não existe contradição.
Enfatizo, contudo, o que há de mais surpreendente nesses camonianos ver-
sos: a “ira” – um dos vários traços animais que os humanos e as ninfas trazem
para si a fim de que exista, como existirá em Bocage, uma lógica de inclusão – é
“honesta”. Feito: a sexualidade posta em prática, está-nos dizendo Camões,
é do universo da honestidade, e o vate mais nos diz no encerramento da es-
trofe: “Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode
Cf. Os Lusíadas, X, 83, 1-4.
Cf. Os Lusíadas, X, 83, 7-8.
Idem, 84, 1-5.
sujeito “foi” à “Senhora” “pedir” a tal “baixeza”, foi pedir aquilo que nele não
se “dana”, pois o “afeito puro” terá que ser outro, terá que ter corpo, o que
inclui, claro, as partes baixas, as zonas erógenas.
É, além do que, natural que seja assim, pois a “grave pedra tem por arte/
o centro desejar da natureza”. Segundo a ciência quinhentista, o semelhante
atrai o semelhante; logo, o centro da terra, que é feito de pedra, propicia que
as pedras caiam. Bocage, grande Bocage: se é assim, “isto de virgo e honra”
é mesmo “tudo peta”: como Bocage aprendeu com Camões! Assinalo: “A
Manteigui”, não obstante possuir um só canto, é composto de oitavas, como
Os Lusíadas, e de decassílabos, também como Os Lusíadas: será que a Ilha dos
Amores terá recebido outra convidada? Decerto, pois a promotora do baca-
nal camoniano está ao espelho da Manteigui: “Vênus, a mais formosa entre
as deidades, / Mais lasciva também que todas elas, / [...] // Tua virtude em
Manteigui respira, / Com graça, qual tu tens, motiva encanto; / E bem pode
entre vós haver disputa / Sobre qual é mais bela, ou qual mais puta” (BOCA-
GE, 2004: 126). Mais uma vez a “beleza” e a “putaria”, e agora a Deusa do
Amor encontra-se com uma devassa: de novo, onde a contradição? Não, não
há contradição.
Tampouco a há no Camões que entende a paixão ser uma benfazeja pato-
logia, e que entende também, séculos antes de Bocage, que o humor não pre-
cisa moralizar o sexo. Refiro-me à notável cantiga que tem por mote “Deu,
Senhora, por sentença / Amor, que fôsseis doente, / para fazerdes à gente /
doce e fermosa a doença” (CAMÕES, 2005: 49), e uma estrofe final magní-
fica: “Que eu, por ter, fermosa Dama, / a doença quem em vós vejo, / vos
confesso, que desejo / de cair convosco em cama. / Se consentis que me
vença / este mal, não houve gente/ de saúde tão contente / como eu serei da
doença” (CAMÕES, 2005: 50). Doente é o estado do sujeito em amor, e, para
que o amor se concretize, não é possível abrir mão do sexo. O duplo sentido
do “cair” “em cama” – doença e prática sexual – reforça o caráter natural do
ser sexualizado: tem-se “por arte” a paixão, é natural que se adoeça. Sexo e
amor em conjunção, pois, como no Bocage de “Amar dentro do peito uma
donzela” (BOCAGE, 2004: 80): o encerramento desse soneto, com amor,
sexo e humor, diz: “Vê-la rendida enfim a Amor fecundo; / Ditoso levantar-
lhe os brancos folhos: / É este o maior gosto que há no mundo” (BOCAGE,
2004: 80).
Quando Professor Substituto de Literatura Portuguesa da UFRJ, convidei Alílderson Cardoso a mi-
nistrar uma aula acerca das relações entre Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, e O amor é fodido, de
Miguel Esteves Cardoso, já que a Dissertação de Mestrado do referido estudioso dedica-se precisamente
ao romance estevescardosiano. Foi nessa circunstância que se deu o comentário citado neste texto.
mente. Já que forjei um tríplice encontro neste escrito, quero utilizar a separa-
ção proposta por Adília para unir de vez os três poetas: Bocage, mesmo que
tenha querido, não conseguiu imitar Camões, e só assim conseguiu produzir
uma obra tão própria e inovadora, ainda que com Camões ao fundo: “é bom”.
Adília, mesmo com a utilização da palavra obscena, sequer tentou imitar Bo-
cage, apesar das inegáveis afinidades da poeta de agora com o setubalense: “é
bom”. E, se convoca o nome de Camões para sua obra, Adília afirma uma
notável diferença, uma tremenda peculiaridade: “é”, de novo, “bom”. Encon-
tram-se os três poetas, agora, sim, na celebração do corpo, e, sobretudo, da
inclusão (na lírica, no pensamento, naquilo que a poesia tem de política, etc.) do
que certa moral canhestra insiste em excluir. Por isso eles se encontram, por
isso eles conversam: sim, “é bom”.
Referências Bibliográficas
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