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Luis Maffei

O documento discute a tradição lírica portuguesa que pode ser considerada pornográfica, com foco em Bocage, Camões e Adília Lopes. Apresenta como Bocage buscou inspiração na poesia erótica de Camões e como ambos usaram uma linguagem explícita para expressar sexualidade.
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O documento discute a tradição lírica portuguesa que pode ser considerada pornográfica, com foco em Bocage, Camões e Adília Lopes. Apresenta como Bocage buscou inspiração na poesia erótica de Camões e como ambos usaram uma linguagem explícita para expressar sexualidade.
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“Canto a Beleza, Canto a Putaria”:

de Bocage a Camões, de Bocage e


Camões a Adília

Luis Maffei
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Há, na lírica portuguesa, uma tradição que muito bem pode ser
considerada pornográfica. Nesse campo, o nome incontornável é o de
Bocage. Não obstante, é na altíssima voltagem erótica da poesia camo-
niana que Bocage busca boa parte de sua inspiração, pois é em Camões
que se encontra, em estado inovador, uma dicção que contempla, por
exemplo, a articulação entre amor e prática erótica. Nessa tradição, a
contemporaneidade portuguesa apresenta o nome de Adília Lopes, poeta
que, entre outros temas, canta diversas possibilidades do corpo.

ABSTRACT: There is, in the portuguese lyricalness, a tradition that could


be considered pornographic. In this field, Bocage is a particularly im-
portant name. Besides that, it is on the extremely high erotic voltage of
the camonian poetry that Bocage seeks a good part of his inspiration,
once it is in Camões that we find, in an innovating state, a diction which
contemplates, for instance, the articulation between love and erotic
practice. In this tradition, the portuguese contemporaneity presents Adí-
lia Lopes, a poet who, among other themes, sings various possibilities of
the body.

PALAVRAS-CHAVE: Bocage – Camões – Adília Lopes – poesia libertina


KEY-WORDS: Bocage – Camões – Adília Lopes – libertine poetry

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“C
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anto a beleza, canto a putaria / De um corpo tão gentil como profano” (BO-
CAGE, 2004: 125): assim Bocage começa seu “A Manteigui, poema em um
só canto”. Opto por começo idêntico porque posso já mostrar o rosto deste
escrito, dedicado a lidar com a inclusão a partir de certa exclusão. Digo de outra
maneira: se Bocage liga “beleza” a “putaria”, uma prática extremada da sexu-
alidade é unida a uma idéia que, em princípio, pode ser-lhe contrária, ou a ela
inconciliável. Assim sendo, e sendo a poesia um lugar afeito a transgressões
e novidades, a lírica de Bocage será incapaz de contradições óbvias, apesar de
fértil em ricas ambigüidades.
É includente a lírica bocagiana, e por isso eu gosto de pensá-la a partir de
seu mais radical movimento de ruptura consigo própria, o soneto de conver-
são “Já Bocage não sou!... À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em
vento...” (BOCAGE, 1987: 110). O soturno terceto final almeja uma espécie
de transcendência estranha à maior parte da poesia de Bocage: “Outro Are-
tino fui... A santidade / Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia, / Rasga
meus versos, crê na eternidade!” (BOCAGE, 1987: 110). Por que a necessi-
dade de rasgar “os versos”? Por que o poeta terá manchado “a santidade”?
Antes de qualquer coisa, não deixa de acreditar no poder da poesia aquele
que escreve o que acabo de citar, pois o impedimento da salvação pode ser
superado se os versos maléficos forem destruídos.
Esse não é o único apelo que Bocage faz em sua obra. Penso no soneto que
pretende, na abertura da edição das Rimas do poeta, que os leitores tenham em
mãos uma ferramenta que lhes permita perceber o que será fingido em alguns
dos poemas que virão a ler: “Crede, ó mortais, que foram com violência / Escri-
tos pela mão do Fingimento, / Cantados pela voz da Dependência” (BOCAGE,
1987: 23). É evidente que “Fingimento”, aqui, nada tem que ver com a perspec-
tiva pessoana, mas sim com uma prática, em poesia, que imita jogos necessá-
rios à sobrevivência do escritor enquanto participante de um grupo social. Não
perco de vista a condição de um poeta desse tempo, o século XVIII em seus
estertores. Segundo Daniel Pires, “a ordem social setecentista se caracterizava,
entre outros atributos, pela repressão feroz de todos aqueles que recusavam
ler pela cartilha canónica”. (PIRES, 2004: XIV). Bocage, peculiarmente, ainda
de acordo com Daniel Pires, “tinha consciência aguda de que se encontrava
particularmente vigiado”, e de que “a forma mais avisada de sobreviver numa
sociedade cujos valores recusava era a dissimulação” (PIRES, 2004: XIV).

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Portanto, se Bocage tinha consciência da necessidade de dissimulação e se,


a partir disso, avisava aos leitores de que estariam diante de versos dissimu-
lados, trata-se de um poeta, sem dúvida, com laivos políticos. Uso política,
obviamente, num sentido amplo e talvez ambíguo: por um lado, a mesma
dissimulação e a conseqüente sobrevivência social do indivíduo; por outro,
a crença numa poesia sincera, sincera a ponto de ser, em momentos livres
do “Fingimento” e da “Dependência”, cantora duma liberdade efetivamente
política: “Liberdade, onde estás? Quem te demora? / Quem faz que o teu
influxo em nós não caia?” (BOCAGE, 1987: 77).
Não quero, com tudo isso, dizer que o soneto de conversão do poeta pos-
sui algum traço dissimulado, mesmo porque é um soneto, inegavelmente, de
conversão. Quero apenas dizer que, no bojo das contradições bocagianas,
recusar toda uma poética altamente sexualizada não a invalida, pelo contrá-
rio, acaba por reforçar sua potência e sua importância. “Outro Aretino fui”?
Decerto, pois Pietro Aretino, poeta do Renascimento italiano, inovou imenso
no que tange a uma poética libertina, e com ele Bocage muito terá aprendi-
do. Exemplo claro disso é o “Argumento” de “A Manteigui”, que descreve o
tema do que será cantado: “Da grande Manteigui, puta rafada, / Se descreve a
brutal incontinência” (BOCAGE, 2004: 125). Com ou sem ironia, Manteigui
– personagem historicamente real, amante do governador de Goa e famosa,
dado o poema bocagiano, por sua ardência sexual – é “grande” e “puta”:
insisto na articulação entre aparentes contrários. O uso do palavrão é o que
permite a radicalização da sexualidade da Manteigui, e Bocage, com efeito,
segue a lição da cortesã Antonia, personagem de Aretino, que ensina a uma
colega: “Fale claramente [...], e diga ‘foder’, ‘caralho’, ‘boceta’ e ‘cu’” (apud
HUNT, 1999: 38).
Cabe, logo, uma afirmação de Ariel Arango acerca do palavrão: “Os ‘pa-
lavrões’ [...] são obscenos porque revelam, verdadeiramente, a vida sexual
que não deve ser mostrada em público; [...] todos eles estão investidos de um
poder alucinatório, quase mágico” (ARANGO, 1991: 21). Se é assim, uma
lírica que crê no seu próprio poder enquanto lírica, o que fica provado pelo
aviso que Bocage dá a seus leitores, saberá que o palavrão é necessário para
a expressão de algo que, em tese, “não deve ser” mostrado “em público”,
pois pertence ao âmbito do privado. Mais que isso: “não deve ser” mostrado
“em público” porque é proibido, porque é tabu. A lição da Antonia de Are-

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tino, rigorosamente absorvida por Bocage, dá conta do caráter alucinatório


do palavrão, não apenas porque ele é capaz de romper com o interdito, mas
também, e sobretudo, porque é o único modo efetivo de a linguagem apro-
ximar-se da realidade, e a realidade que aqui vem ao caso, evidentemente, é a
sexual. De acordo com Lucienne Frappier-Mazur, quem “possui o controle
mais direto sobre o corpo e exibe mais vigorosamente a relação entre desejo
e linguagem” é a “palavra obscena” (FRAPPIER-MAZUR, 1999: 234).
É por isso que Bocage cantará “a putaria”, mas sem deixar de pô-la em rela-
ção não só com “a beleza”, mas com a própria idéia, tão querida pelo poeta, de
liberdade: da exclusão, insisto, para a inclusão: o verso “Liberdade, onde estás?
Quem te demora?”, se lido numa perspectiva da ordem do sexual, poderia so-
licitar a liberdade mesma da expressão daquilo que se mostra oculto. Talvez a
etimologia da palavra “obsceno” tenha algo a dizer nesse pormenor; cito o Di-
cionário Houaiss: “obscénus, a, um, t. da linguagem augural ‘de mau augúrio’; [...]
depois, na linguagem corrente, passou a ‘de aspecto frio ou horroroso’, ‘que se
deve evitar ou esconder; obsceno, que fere o pudor, impuro’”. (HOUAISS, CD-
ROM). Saliento que obsceno, como já sugeriu Arango, é aquilo “que se deve
evitar ou esconder”. Desse modo, o palavrão, ou a palavra obscena, é algo que
contraria uma boa vida social – que volte à baila o fato de Bocage ter celebrado,
ainda que de modo um tanto discreto, aquilo que poderia estar para além da
“Dependência” e do “Fingimento” exigidos pelos valores da sociedade.
O cenário que cercava e sufocava Bocage, ou seja, o Portugal de seu tempo,
é muito bem descrito por Daniel Pires: “O tribunal do Santo Ofício estava
vigilante, coarctando as iniciativas dos cidadãos que, alegadamente, cometiam
delitos contra a fé, a Intendência-Geral da Polícia reprimia os que perfilha-
vam ideias alternativas”; além disso, prossegue Pires, “a Real Mesa Censória
desempenhava, obviamente, um papel importante no controlo da publicação
da palavra escrita e da circulação das obras estrangeiras” (PIRES, 2004: IX).
Ainda assim, o poeta acaba por concretizar, nesse sombrio Portugal, uma
tendência, mais clara em outros sítios da Europa, bastante credora do Ilumi-
nismo: a dos livres philosophiques, categoria que englobava as obras políticas,
filosóficas e pornográficas. Fica evidente, pois, o liame setecentista entre um
pensamento político e/ou filosófico e uma escrita obscena.
Não posso, neste momento, esquecer Sade, contemporâneo de Bocage,
que foi capaz de uma das afirmações mais radicais acerca da liberdade sexual

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e, mais especificamente, da liberdade sexual feminina: é em A filosofia na alcova


que se lê: “Tendo as mulheres recebido inclinações muito mais violentas para
os prazeres da luxúria do que nós, poderão entregar-se a eles o tanto que qui-
serem, absolutamente livres de todos os laços do himeneu, de todos os falsos
preconceitos do pudor” (SADE, 2003: 151). Se o “pudor” gera preconceitos
falsos, a palavra “obscena”, despudorada, é aquela que, filosoficamente, pode-
rá livrar o pensamento da reprodução desses mesmos “falsos preconceitos”.
Além disso, as palavras de Sade exaltam a sexualidade feminina – ressalto, de
passagem, que é mui atraente supor que Freud, séculos depois, pode ter-se
inspirado no Marquês para sua corajosa defesa do prazer erótico em detri-
mento da formação repressora baseada na religiosidade.
Digressiono um pouco, pois estou falando, indubitavelmente, de porno-
grafia, e, segundo Angela Carter, pornografia não deixa de ser “propaganda
para trepar” (apud WEILL, 1999: 134). Quero evitar que se confunda uma
poética como a de Bocage – pornográfica, sim, senhores, pois propagandista
do sexo, obscena e, sem que exista qualquer contradição, acentuadamente
filosófica – com a pornografia que se veicula em tempos atuais, a que move
rios de dinheiro e que, em grande medida, deserotiza o próprio sexo. Já que
andei recentemente por Sade, rumo a um felicíssimo comentário de Philippe
Sollers, presente em Sade contra o Ser Supremo precedido de Sade no tempo: “[...]
os filmes pornográficos [...] não comportam senão diálogos estúpidos sobre
um fundo de suspiros e arquejos esmerados. Pouco importa que as imagens
inquietem se as palavras tranqüilizam” (SOLLERS, 2001: 24-25).
É, portanto, nas palavras, as obscenas, que habitam a inquietude e o poder
da inquietação. As mulheres, disse Sade, “poderão entregar-se” aos prazeres
sexuais “o tanto que quiserem”, e é Bocage quem, obscenamente transfor-
mando um palavrão no maior dos elogios, saúda a condição de certa mulher:
“Não lamentes, ó Nise, o teu estado; / Puta tem sido gente muito boa” (BO-
CAGE, 2004: 93). A que se lamenta por ser vítima de uma exclusão passa
a ser informada de que nada há de mau em seu “estado”, mesmo porque o
exercício da sexualidade feminina pode ser um modo de a mulher atingir es-
tágios de poder jamais alcançáveis por outros métodos: “Putíssimas fidalgas
tem Lisboa, / Milhões de vezes putas têm reinado” (BOCAGE, 2004: 93).
“Todas no mundo dão a sua greta: / Não fiques pois, ó Nise, duvidosa /
Que isto de virgo e honra é tudo peta” (BOCAGE, 2004: 93). O encerramen-

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to do poema não poderia ser mais claro quanto à postura que o sujeito lírico
tem em relação a certas verdades morais: “Isto de virgo e honra é” tão tolo
que encobre algo, aí sim, pleno de legitimidade, o ser “puta” de Nise. Nesse
pormenor, Bocage aproxima-se daquilo que, num famosíssimo soneto, diz
não lograr: “Camões, grande Camões, quão semelhante / Acho teu fado ao
meu quando os cotejo!” (BOCAGE, 1987: 45); a comparação é biográfica,
pois ambos os poetas sofreram em seus respectivos tempos, e ambos vive-
ram situações de exílio. O final do texto é onde se lê a impossibilidade com
que Bocage supõe deparar: “Se te imito nos transes da ventura, / Não te
imito nos dons da Natureza” (BOCAGE, 1987: 45): não? É claro que não, já
que Camões é Camões e Bocage, Bocage. Bocage, pois, não imita Camões,
seu “modelo” (BOCAGE, 1987: 45). Ele faz mais: Bocage, e aqui sua lírica
obscena torna-se ainda mais interessante no que diz respeito à história da
literatura portuguesa, radicaliza, pela palavra obscena, o que, séculos antes,
Camões já havia praticado.
“Isto de virgo e honra é tudo peta”, escreveu Bocage – conseguindo, as-
sinalo, outra articulação altamente sofisticada: a do humor, costumeiramente
um modo de investir num discurso moralista, vide as cantigas de escárnio
e maldizer, e o festejo da sexualidade. Camões terá escrito diferente, bem
diferente, algo bastante semelhante, e justo em seu poema épico. A situação
é exaltatória, pois Vênus cria, em parceria com seu filho Cupido, um evento
para celebrar o êxito da viagem de seus protegidos portugueses. E que cele-
bração aí tem lugar? A erótica, ou melhor, a sexual, já que é praticada nada
menos que uma orgia: “Ó que famintos beijos na floresta, / E que mimoso
choro que soava! / Que afagos tão suaves, que ira honesta / Que em risinhos
alegres se tornava!”: há os “beijos”, e eles são “famintos”; há os “afagos”, e
eles são “suaves”: onde a contradição? Não, não existe contradição.
Enfatizo, contudo, o que há de mais surpreendente nesses camonianos ver-
sos: a “ira” – um dos vários traços animais que os humanos e as ninfas trazem
para si a fim de que exista, como existirá em Bocage, uma lógica de inclusão – é
“honesta”. Feito: a sexualidade posta em prática, está-nos dizendo Camões,
é do universo da honestidade, e o vate mais nos diz no encerramento da es-
trofe: “Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode


Cf. Os Lusíadas, X, 83, 1-4.

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experimentá-lo”: será um dos motores da repressão a incapacidade humana


de superar os interditos sociais para que a prática da sexualidade seja livre e
boa? Mais uma vez gosto de pensar que Freud pode ter aprendido muito com
a literatura, e não apenas com Sade...
O “Camões, grande Camões” vai ainda mais longe em sua feliz e feraz
junção. Da circunstância orgíaca da Ilha dos Amores resulta o matrimônio:
“Desta arte enfim conformes já as formosas / Ninfas com os seus amados
navegantes, / Os ornam de capelas deleitosas / De louro, e de ouro, e flores
abundantes. / As mãos alvas lhes davam como esposas”. O sexo não nega
o amor, o amor não nega o sexo. Conseqüentemente, o casamento não nega
o sexo, o sexo não nega o casamento. “Camões, grande Camões”; de acordo
com José Miguel Wisnik, “durante muito tempo, de uma maneira que remon-
ta às mais antigas relações entre a idéia de amor e a de casamento, o princípio
da paixão se opõe ao desgarramento e à ruptura” (WISNIK, 1995: 221). Mais
adiante, o mesmo Wisnik afirma: “Os teólogos da Igreja chegaram a dizer
que o marido ardente, que se comporta com sua esposa como amante, trai o
próprio princípio do casamento desde dentro, constituindo-se numa estranha
forma de adultério” (WISNIK, 1995: 221).
Camões supera esses teólogos da Igreja, e supera também o ideal petrar-
quista da Dama inatingível, exemplarmente, como no soneto “Pede o desejo,
Dama, que vos veja” (CAMÕES, 2005: 120): o amor puro é “fino” e “del-
gado”; ademais, o “desejado” não quer “o desejo” em virtude de uma alma
pacificada e cônscia de que o amor verdadeiro estará para além do corpo.
“Mas”, diz-nos o mestre das adversativas – foi, sim, com ele que Bocage
muito se instruiu acerca da coexistência de aparentes contrários –, “este puro
afeito em mim se dana” (CAMÕES, 2005: 120). Cito o restante do soneto:
“Que, como a grave pedra tem por arte / o centro desejar da natureza, //
assi o pensamento (pola parte / que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
/ foi, Senhora, pedir esta baixeza” (CAMÕES, 2005: 120). Trata-se, é patente,
de uma celebração do humano. Trata-se também duma união entre a Dama,
que jamais deixa de ser uma Dama, e o que nela há de irresistivelmente sexual.
Trata-se, portanto, do enaltecimento dum vindouro encontro erótico, pois o


Cf. Os Lusíadas, X, 83, 7-8.

Idem, 84, 1-5.

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sujeito “foi” à “Senhora” “pedir” a tal “baixeza”, foi pedir aquilo que nele não
se “dana”, pois o “afeito puro” terá que ser outro, terá que ter corpo, o que
inclui, claro, as partes baixas, as zonas erógenas.
É, além do que, natural que seja assim, pois a “grave pedra tem por arte/
o centro desejar da natureza”. Segundo a ciência quinhentista, o semelhante
atrai o semelhante; logo, o centro da terra, que é feito de pedra, propicia que
as pedras caiam. Bocage, grande Bocage: se é assim, “isto de virgo e honra”
é mesmo “tudo peta”: como Bocage aprendeu com Camões! Assinalo: “A
Manteigui”, não obstante possuir um só canto, é composto de oitavas, como
Os Lusíadas, e de decassílabos, também como Os Lusíadas: será que a Ilha dos
Amores terá recebido outra convidada? Decerto, pois a promotora do baca-
nal camoniano está ao espelho da Manteigui: “Vênus, a mais formosa entre
as deidades, / Mais lasciva também que todas elas, / [...] // Tua virtude em
Manteigui respira, / Com graça, qual tu tens, motiva encanto; / E bem pode
entre vós haver disputa / Sobre qual é mais bela, ou qual mais puta” (BOCA-
GE, 2004: 126). Mais uma vez a “beleza” e a “putaria”, e agora a Deusa do
Amor encontra-se com uma devassa: de novo, onde a contradição? Não, não
há contradição.
Tampouco a há no Camões que entende a paixão ser uma benfazeja pato-
logia, e que entende também, séculos antes de Bocage, que o humor não pre-
cisa moralizar o sexo. Refiro-me à notável cantiga que tem por mote “Deu,
Senhora, por sentença / Amor, que fôsseis doente, / para fazerdes à gente /
doce e fermosa a doença” (CAMÕES, 2005: 49), e uma estrofe final magní-
fica: “Que eu, por ter, fermosa Dama, / a doença quem em vós vejo, / vos
confesso, que desejo / de cair convosco em cama. / Se consentis que me
vença / este mal, não houve gente/ de saúde tão contente / como eu serei da
doença” (CAMÕES, 2005: 50). Doente é o estado do sujeito em amor, e, para
que o amor se concretize, não é possível abrir mão do sexo. O duplo sentido
do “cair” “em cama” – doença e prática sexual – reforça o caráter natural do
ser sexualizado: tem-se “por arte” a paixão, é natural que se adoeça. Sexo e
amor em conjunção, pois, como no Bocage de “Amar dentro do peito uma
donzela” (BOCAGE, 2004: 80): o encerramento desse soneto, com amor,
sexo e humor, diz: “Vê-la rendida enfim a Amor fecundo; / Ditoso levantar-
lhe os brancos folhos: / É este o maior gosto que há no mundo” (BOCAGE,
2004: 80).

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“Canto a Beleza, Canto a Putaria”: de Bocage a Camões,... 83

Sim, é “este o maior gosto que há no mundo” porque o prazer é máximo:


sentimento amoroso, gozo erótico e palavra, ainda que não obscena, poetica-
mente sugestiva da obscenidade. Devo passar por uma suposta contradição
bocagiana, as “Cartas de Olinda e Alzira”; a primeira destas personagens não
deixa de condenar a obscenidade literária ao dizer que “obscenas produções”
ferem “puros desejos, sentimentos doces” (BOCAGE, 2004: 34). O vínculo
entre amor e sexualidade existe no poema, mas não o que permite a aparição
da palavra obscena. Uma contradição a mais nesse poeta capaz do “Fingi-
mento”? O próprio “Fingimento”? Ou a personagem, por ser personagem e
locutora, nada terá que ver com a ética bocagiana que exploro?
Não sei. Mas sei que os dois poetas que venho contemplando neste escrito
resistem ao tempo, e quero celebrar essa resistência com uma das melhores
receptoras que ambos têm na contemporaneidade portuguesa: Adília Lopes.
Cito imediatamente um dos poemas de Adília que mais acusam o que acabo
de dizer: “Eu quero foder foder / achadamente / se esta revolução / não me
deixa / foder até morrer / é porque / não é revolução / nenhuma” (LOPES,
1999a: 52). Antes de mais, preciso passar pelo diálogo imediato que esse po-
ema apresenta, diálogo profícuo com Florbela Espanca, mesmo porque o
livro adiliano em que se encontra o poema citado intitula-se Florbela Espanca
espanca; Florbela é a autora de “Amar!”: “Eu quero amar, amar perdidamente!
/ Amar só por amar: Aqui... além... / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a
gente... / Amar! Amar! E não amar ninguém” (ESPANCA, 1996: 232).
O que há de libertário nesta Florbela é a pluralidade dos amantes, mas o
amor, diante de tantos amores, não se realiza efetivamente. A alentejana tal-
vez não tenha logrado superar a premissa que reza ser o amor algo da ordem
do exclusivo e, por conseqüência, do excludente. Por outro lado, tem razão
Raquel Menezes ao falar da “sanha” florbeliana “que assustava a sociedade
da época” (MENEZES, 2006); além do mais, prossegue Raquel: “Décadas
depois, foi possível a Adília apresentar o desejo florbeliano mais explicita-
mente ao substituir ‘amar’ por ‘foder’, mantendo apenas um dos sentidos de
‘amor’ e carregando-o de carga exclusivamente sexual” (MENEZES, 2006).
Adília quer “foder”, e “achadamente”, ou seja, ela é proprietária absoluta de
sua vontade e de seus desígnios, ela não se perde. Mas seu poema não será
também um poema de amor? Mais do que isso: não será sublime o fato de a
palavra obscena, ensina-me o estudioso de literatura portuguesa Alílderson

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Cardoso, poder ser um caminho para a melhor das mortes, a advinda da


prática sexual?
Lição bocagiana: “Se esta revolução / não me deixa / foder até morrer / é
porque / não é revolução / nenhuma”: a liberdade do pensamento e da ação
deve vir de braço dado a uma liberdade da ordem do libertino, caso contrário
“não é” liberdade “nenhuma”. Cito mais do poema de Adília, cito mais desta
radical vontade de articulação: “a revolução / faz-se na casa de banho / da
casa / da escola / do trabalho / [...] / o choro da bebé / não impede a mãe /
de se vir” (LOPES, 1999a: 52). A revolução na intimidade, já que no banhei-
ro, e na intimidade de diversos sítios: a revolução que inclui. “O choro da bebé
/ não impede a mãe / de se vir”: mãe é mãe, mas também tem direito – se
no político terreno da revolução estamos – ao gozo sexual. Outra articulação
adiliana: “Acho que o prazer é casto / o que não é casto / é o simulacro do
prazer / ou a renúncia ao prazer / tanto o simulacro / como a renúncia”
(LOPES, 2002: 27). Lição sadiana? Fim aos “falsos preconceitos do pudor”?
Claro, pois renunciar ao prazer é um pudor.
Mas, sobretudo, lição camoniana de um gozoso “afeito puro”: “Aquela
cativa / Que me tem cativo, / Porque nela vivo / Já não quer que viva. / [...]
// Leda mansidão / Que o siso acompanha; / Bem parece estranha, / Mas
bárbara não” (CAMÕES, 2005: 89-90). A amante, em nada “bárbara”, apesar
de estrangeira (e não perco de vista o peso de se ser estrangeiro a europeus no
tempo de Camões), mas bárbara num sentido bem hodierno, é aquela onde
o sujeito vive, pois ele ocupa fisicamente o corpo que a ela pertence. Essa
amante, além do mais, tem “siso”, ela é sábia, e pode trazer para si o poder da
fala, pois não balbucia, não é “bárbara”.
Dentre os diversos Camões que Adília pratica destaca-se um, o do tríptico
cuja primeira parte se intitula “anti-Camões”: “É bom / tu não seres / eu / é
bom / eu ser eu / e tu seres tu” (LOPES, 1999b: 72). Penso numa compreen-
são muito própria e clara do camoniano “Transforma-se o amador na cousa
amada”, pois apenas se os corpos são distintos eles se poderão encontrar ero-
ticamente, e apenas se os poetas são distintos eles se poderão encontrar lirica­


Quando Professor Substituto de Literatura Portuguesa da UFRJ, convidei Alílderson Cardoso a mi-
nistrar uma aula acerca das relações entre Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, e O amor é fodido, de
Miguel Esteves Cardoso, já que a Dissertação de Mestrado do referido estudioso dedica-se precisamente
ao romance estevescardosiano. Foi nessa circunstância que se deu o comentário citado neste texto.

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“Canto a Beleza, Canto a Putaria”: de Bocage a Camões,... 85

mente. Já que forjei um tríplice encontro neste escrito, quero utilizar a separa-
ção proposta por Adília para unir de vez os três poetas: Bocage, mesmo que
tenha querido, não conseguiu imitar Camões, e só assim conseguiu produzir
uma obra tão própria e inovadora, ainda que com Camões ao fundo: “é bom”.
Adília, mesmo com a utilização da palavra obscena, sequer tentou imitar Bo-
cage, apesar das inegáveis afinidades da poeta de agora com o setubalense: “é
bom”. E, se convoca o nome de Camões para sua obra, Adília afirma uma
notável diferença, uma tremenda peculiaridade: “é”, de novo, “bom”. Encon-
tram-se os três poetas, agora, sim, na celebração do corpo, e, sobretudo, da
inclusão (na lírica, no pensamento, naquilo que a poesia tem de política, etc.) do
que certa moral canhestra insiste em excluir. Por isso eles se encontram, por
isso eles conversam: sim, “é bom”.

Referências Bibliográficas

ARANGO, Ariel C. Os palavrões. São Paulo: Brasiliense, 1991.


BOCAGE. Obra completa – volume VII: Poesias eróticas, burlescas e satíricas. Ed. Daniel
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86 VIA ATLÂNTICA Nº 11 JUN/2007

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SADE. A filosofia na alcova. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2003.
SOLLERS, Philippe. Sade contra o Ser Supremo precedido de Sade no tempo. Trad. Luciano
Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
WEILL, Rachel. Às vezes, um cetro é apenas um cetro: pornografia e política na
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Carlos
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