A Interdisciplinaridade Como Crítica À Fragmentação
A Interdisciplinaridade Como Crítica À Fragmentação
DO SABER
Resumo
Iniciamos este artigo com o seguinte questionamento: quais os desafios e as perspectivas que a
interdisciplinaridade tem como pressuposto teórico e prático na educação em contexto
contemporâneo? Na tentativa de buscarmos reflexões e respostas para tal questão, partiremos
da primeira ideia de conhecimento, estabelecida pela Mitologia e pela Filosofia Clássica, até o
período histórico, em que o saber torna-se fragmentado como uma solução metafísica para a
ciência. O referido estudo procura mostrar, de certa forma, que com a disciplinarização o
conhecimento torna-se estanque e, muitas vezes, perde-se um pouco o sentido de abrangência
e é neste viés que surge a interdisciplinaridade, como uma crítica para tal problema. Nessa
perspectiva e para que a questão proposta nesse trabalho pudesse ser alcançada, mesmo que
parcialmente, não sendo como uma resposta exata e engessada, mas como uma possibilidade
de reflexão e/ou resposta para a questão proposta. Para que esse percurso fosse possível de ser
alcançado, contamos com as contribuições de autores como Jaeger 1989, Bachelard 1996,
Descartes 1973, Sousa Santos 1988, Japiassu 2006, dentre outros, os quais instigam a reflexão
a cerca da temática aqui proposta. O texto a seguir está dividido em três partes, a saber: na
primeira, traremos a história acompanhada do conhecimento filosófico para entendermos como
se dava a ideia de saber; na segunda, procuraremos compreender a dissociação de ciência e
filosofia para a disciplinarização; por fim, a terceira tratará de alguns possíveis desafios e de
algumas possíveis perspectivas existentes dentro do contexto da interdisciplinaridade para o
conhecimento e a educação no atual cenário.
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Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestre em Educação pela
Universidade de Passo Fundo (UPF). Especialista em Psicopedagogia Institucional pelo Instituto de
Desenvolvimento Educacional do Alto Uruguai (IDEAU). Graduada em Pedagogia pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). E-mail: marta.pr@gmail.com.
2
Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especialista em Neuroaprendizagem pela
Universidade Oeste do Paraná (UNOESC). Graduada em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (UPF). E-
mail: francielinunesdarosa@gmail.com.
ISSN 2176-1396
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Introdução
No mundo antigo o universo era um cosmos, era ordenação, e o ser humano estava
inserido nesta organização, harmonizando-se com a natureza e a sociedade à sua volta. A
princípio, a unidade encontrava-se nos mitos, a saber, Prometeu roubou o fogo sagrado e
presenteou os humanos que passaram a possuir o saber, mas a ira de Zeus fragmentou o humano
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e seu saber, só restou então, a totalidade, tanto subjetiva, quanto objetiva, no encontro com a
divindade. Com o advento da filosofia, as explicações fundamentadas na observação da
natureza e na construção de um pensamento lógico-racional passaram a constituir a totalidade
como cosmos. Conhecer o universo e conhecer o interior do humano era a mesma tarefa. A
formação do cidadão grego compreendia o domínio de todas as artes que lhe permitiam
conhecer a natureza, a sociedade e a si mesmo, encontrando o equilíbrio gerador da saúde do
ambiente e de sua estrutura interna, em suas múltiplas relações.
No Período Medieval, inicia-se uma sorrateira disciplinarização, a partir da divisão de
disciplinas: o trivium – correspondendo às artes da linguagem (gramática, retórica e dialética)
e o quadrivium – referindo-se às artes matemáticas (geometria, aritmética, música e
astronomia). Porém, mesmo distinguindo entre artes da linguagem e artes matemáticas, essa
divisão era somente metodológica, pois o universo era compreendido como totalidade (herança
grega) e a educação atendia o ideal de universalidade; à formação do cidadão cabia o domínio
de todas as artes. A constituição do saber nas disciplinas do trivium e do quadrivium visavam à
formação do homem integral, sendo, por vezes, a noção de totalidade entendida como o
conceito de Deus. Nas palavras de Jaeger (1989, p.256):
e direta, ensinando a natureza das coisas a partir de suas causas; ensinar cada coisa em seu
devido tempo e não abandonar nenhum assunto até sua perfeita compreensão, assim como dar
a devida importância às diferenças existentes entre as coisas, também eram passos constituintes
do método de Comenius. No século XVIII David Hume (1711-1776) questionou o conceito de
causalidade3 do francês René Descartes. Hume (1973) mostrava que a causalidade não existia
no mundo, nas questões de fato, mas estava em nossa mente, ao associarmos fenômenos que
habitualmente vemos. Isso tornaria as conclusões da ciência, sempre como prováveis, a partir
do método indutivo. Ainda neste século, enquanto acreditava-se que o conhecimento estava nos
objetos e nós éramos os sujeitos que o apreenderíamos, Immanuel Kant (1987) afirmava que
construíamos os conhecimentos, organizando os dados adquiridos na experiência segundo os
princípios e formas de nossa razão. Desta forma, questionar os limites da razão humana, assim
como a objetividade do mundo, foi a tarefa da filosofia kantiana.
O que se percebeu até aqui foi a grande guinada do saber desde sua origem primeira.
Partimos do mito e chegamos ao século das luzes, em que, se recria uma forma de entender as
coisas. Saímos da racionalidade para a experiência e entramos num fértil terreno, o da junção
entre razão e experiência. A partir disso, a Ciência Moderna (séculos XVI à XVIII) começava
a ganhar cada vez mais terreno e cada vez mais a “Ciência se distanciava da Filosofia, tornando-
se assim, duas unidades de um mesmo saber, desta forma, inicia-se o processo claro da
disciplinarização ou fragmentação do saber” (AIUB, 2016, p.6). Desta forma, no próximo
tópico enfatizaremos a disciplinarização em detrimento à Ciência Moderna.
Em meados do século XVIII, numa altura em que a Ciência Moderna, saía da revolução
científica do século XVI pelas mãos de Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Newton
(1643-1727), começava a deixar os cálculos esotéricos para se transformar no fermento de uma
transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de
transição, pois, que deixava perplexos os mais atentos e os fazia refletir sobre os fundamentos
3
A causalidade é simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado formou em nós; é um hábito
mental produzido por fatos contingentes ligados à natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de
causalidade como conexão necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não temos a impressão
de uma conexão necessária entre duas coisas; o que temos é apenas a impressão de contiguidade entre objetos ou
eventos. O que deste modo se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer demonstração
a priori da existência de relações causais no mundo.
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da sociedade em que viviam e sobre o impacto das vibrações a que estariam sujeitos por via da
ordem científica emergente (SANTOS, 1988, s/n).
No século XVIII a ciência amplia suas possibilidades que daí resulta, as luzes, ao criar
condições para a emergência das ciências sociais no século XIX. Como ressalta Boaventura de
Sousa Santos (1988, s/n) “a consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no
racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a
condensar-se no positivismo oitocentista”. Ou seja, segundo este, só há duas formas de
conhecimento científico: as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências
empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais; já as ciências sociais nasceram
para ser empíricas. O modo como o modelo mecanicista foi assumido, no entanto, diverso.
Distinguimos, segundo Santos (1988, s/n) duas vertentes principais: a primeira, sem dúvida
dominante, consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade todos os
princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o século
XVI; a segunda, durante muito tempo marginal, mas hoje cada vez mais seguida, consistiu em
reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com
base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza. Estas duas
concepções têm sido consideradas antagônicas, a primeira, sujeita ao jugo positivista, a
segunda, liberta dele, e qualquer delas reivindicando o monopólio do conhecimento científico-
social.
Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn (1991) o atraso das ciências
sociais é dado pelo caráter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências naturais.
Nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um
conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão
por toda a comunidade científica.
Em meio a essas discussões sobre o saber e com a crítica ao excesso de racionalidade
vigente no início do século XX4 (excesso de racionalidade incapaz de evitar duas guerras
mundiais em tão curto período) 5, a fragmentação do conhecimento e a constatação da
necessidade do diálogo entre as diferentes disciplinas para compreender o mundo e o ser
humano da contemporaneidade, ocorreu um movimento de promoção da interdisciplinariedade
4
Críticas mencionadas por Nietzsche (1992) (dionisíaco) e Marx (1984) (ideologia).
5
A ideia central é apresentar, em tom se sarcasmo, que mesmo em meio a tantas descobertas científicas e num
período em que o conhecimento racional estava em seu ápice, nada disso foi influenciável para não permitir as
duas grandes guerras mundiais.
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Termo retirado da palestra conferida no Seminário Internacional sobre Reestruturação Curricular, promovido pela
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre em 1994.
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importante que o estatuto epistêmico, que são os modos culturais de compreender, pensar e
agir, exige a descoberta e o emprego do método interdisciplinar, pois, no entender de Japiassu
(2006) este é capaz de modificar, deslocar e reestruturar o campo das disciplinas existentes.
Em função disso, a fragmentação, tornou-se hegemônica, nos diferentes níveis de
educação formal (Fundamental, Médio, Superior), um ensino puramente disciplinar. Conteúdos
divididos e organizados, que nasceram sob um pressuposto estritamente didático, dividiram-se
em um corpo cada vez mais fechado de especialidades disciplinares. Neste sentido, a
necessidade de interdisciplinariedade fundamenta-se no caráter dialético da realidade social,
que é, ao mesmo tempo, una e diversa. Se o processo de geração de conhecimento impõe a
delimitação de um problema situado num campo mais amplo, isto não significa que tenhamos
que abandonar as múltiplas determinações que o constituem (COUTO, 2011). É nesse sentido
que, para Frigotto (1995), mesmo quando um objeto é delimitado, ele teima em não se dissociar
da totalidade de que faz parte indissociável. Portanto, entendemos que o termo saber, tem hoje,
conotação mais ampla, que o termo ciência. Pois, conforme Japiassu (1977) é considerado saber
todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematizados
e prontos a serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Num sentido amplo, a
ideia de saber pode ser aplicada à aprendizagem de ordem prática e, ao mesmo tempo, de ordem
intelectual e teórica. Desse ponto de vista, colocaremos como problema, para o próximo tópico,
o contexto atual juntamente com os desafios e as perspectivas da interdisciplinariedade em
relação ao saber.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
COMÊNIO, João Amós. Didática Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos.
Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1985.
GERHARD, Ana Cristina; FILHO, João Bernardes da Rocha. A fragmentação dos saberes na
educação científica escolar na percepção de professores de uma escola de ensino médio. In:
Investigações em Ensino de Ciências. V. 17; nº 1. p.125-145. Porto Alegre, 2012.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1991.
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MORIN, Edgar. Educação e complexidade, os sete saberes e outros ensaios. São Paulo:
Cortez, 2005.
MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. São Paulo: Papirus, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A visão Dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência
pós-moderna. In: Estudos Avançados. vol.2 nº.2. São Paulo, 1988.