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A Interdisciplinaridade Como Crítica À Fragmentação

O documento discute a fragmentação do saber e como a interdisciplinaridade pode ajudar a superá-la. Na primeira parte, descreve como o conhecimento era visto de forma holística na Antiguidade versus a disciplinarização no Período Medieval. A segunda parte discute como Galileu e Descartes contribuíram para a separação entre ciência e filosofia. A terceira parte irá explorar os desafios e perspectivas da interdisciplinaridade para um conhecimento mais abrangente hoje.

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A Interdisciplinaridade Como Crítica À Fragmentação

O documento discute a fragmentação do saber e como a interdisciplinaridade pode ajudar a superá-la. Na primeira parte, descreve como o conhecimento era visto de forma holística na Antiguidade versus a disciplinarização no Período Medieval. A segunda parte discute como Galileu e Descartes contribuíram para a separação entre ciência e filosofia. A terceira parte irá explorar os desafios e perspectivas da interdisciplinaridade para um conhecimento mais abrangente hoje.

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A INTERDISCIPLINARIDADE COMO CRÍTICA À FRAGMENTAÇÃO

DO SABER

Marta Marques1 - UNISINOS


Francieli Nunes da Rosa2 - UPF

Eixo – Formação de Professores


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Iniciamos este artigo com o seguinte questionamento: quais os desafios e as perspectivas que a
interdisciplinaridade tem como pressuposto teórico e prático na educação em contexto
contemporâneo? Na tentativa de buscarmos reflexões e respostas para tal questão, partiremos
da primeira ideia de conhecimento, estabelecida pela Mitologia e pela Filosofia Clássica, até o
período histórico, em que o saber torna-se fragmentado como uma solução metafísica para a
ciência. O referido estudo procura mostrar, de certa forma, que com a disciplinarização o
conhecimento torna-se estanque e, muitas vezes, perde-se um pouco o sentido de abrangência
e é neste viés que surge a interdisciplinaridade, como uma crítica para tal problema. Nessa
perspectiva e para que a questão proposta nesse trabalho pudesse ser alcançada, mesmo que
parcialmente, não sendo como uma resposta exata e engessada, mas como uma possibilidade
de reflexão e/ou resposta para a questão proposta. Para que esse percurso fosse possível de ser
alcançado, contamos com as contribuições de autores como Jaeger 1989, Bachelard 1996,
Descartes 1973, Sousa Santos 1988, Japiassu 2006, dentre outros, os quais instigam a reflexão
a cerca da temática aqui proposta. O texto a seguir está dividido em três partes, a saber: na
primeira, traremos a história acompanhada do conhecimento filosófico para entendermos como
se dava a ideia de saber; na segunda, procuraremos compreender a dissociação de ciência e
filosofia para a disciplinarização; por fim, a terceira tratará de alguns possíveis desafios e de
algumas possíveis perspectivas existentes dentro do contexto da interdisciplinaridade para o
conhecimento e a educação no atual cenário.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Educação. Disciplinarização. Fragmentação.


Conhecimento.

1
Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestre em Educação pela
Universidade de Passo Fundo (UPF). Especialista em Psicopedagogia Institucional pelo Instituto de
Desenvolvimento Educacional do Alto Uruguai (IDEAU). Graduada em Pedagogia pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). E-mail: marta.pr@gmail.com.
2
Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especialista em Neuroaprendizagem pela
Universidade Oeste do Paraná (UNOESC). Graduada em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo (UPF). E-
mail: francielinunesdarosa@gmail.com.

ISSN 2176-1396
11903

Introdução

As complexas transformações que vem marcando a contemporaneidade encontram-se


na base da construção deste artigo sobre a fragmentação do saber. Historicamente, assistimos
sobre a inadequação do saber fragmentado das diversas disciplinas e, ao mesmo tempo, nos
vemos com questões de ordem global e interdisciplinar. A reforma do pensamento e da
educação parece, hoje, ser o maior desafio. Fragmentado em ambientes estanques, Educação
Superior e Educação Básica tendem a tolher a atitude natural do espírito humano de
contextualizar e globalizar.
A intenção do artigo não é partimos de opiniões prévias nem de reducionismos ou
compreensões equivocadas sobre a fragmentação do conhecimento, pois poderíamos cair tanto
no espontaneísmo quanto no dogmatismo do termo. Tampouco, a intenção não é organizarmos
referenciais teóricos para acabar com a fragmentação, isto talvez seria tolice e um tanto
autocrático. O que pretendemos é dialogar com a história e procurar entender os mecanismos
que propuseram a fragmentação, além de compreender o depois do fragmentado, ou seja, a
tentativa do interdisciplinar.
Para isso, o objetivo proposto é entender como a interdisciplinaridade, tão abordada
atualmente, pode auxiliar as disciplinas na ideia de completude do conhecimento. E para dar
conta disto, colocamos como problema norteador a seguinte pergunta: quais os desafios e as
perspectivas que a interdisciplinaridade tem como pressuposto teórico e prático na educação
em contexto contemporâneo? O texto estará didaticamente dividido em três partes, a saber: na
primeira, traremos a história acompanhada do conhecimento filosófico para entendermos como
se dava a ideia de saber; na segunda, compreenderemos a dissociação de ciência e filosofia para
a disciplinarização; por fim, a terceira tratará dos desafios e das perspectivas da
interdisciplinaridade para o conhecimento e a educação atualmente.

Abordagem histórico-filosófica sobre a construção do saber: do mito aos primórdios da


ciência

No mundo antigo o universo era um cosmos, era ordenação, e o ser humano estava
inserido nesta organização, harmonizando-se com a natureza e a sociedade à sua volta. A
princípio, a unidade encontrava-se nos mitos, a saber, Prometeu roubou o fogo sagrado e
presenteou os humanos que passaram a possuir o saber, mas a ira de Zeus fragmentou o humano
11904

e seu saber, só restou então, a totalidade, tanto subjetiva, quanto objetiva, no encontro com a
divindade. Com o advento da filosofia, as explicações fundamentadas na observação da
natureza e na construção de um pensamento lógico-racional passaram a constituir a totalidade
como cosmos. Conhecer o universo e conhecer o interior do humano era a mesma tarefa. A
formação do cidadão grego compreendia o domínio de todas as artes que lhe permitiam
conhecer a natureza, a sociedade e a si mesmo, encontrando o equilíbrio gerador da saúde do
ambiente e de sua estrutura interna, em suas múltiplas relações.
No Período Medieval, inicia-se uma sorrateira disciplinarização, a partir da divisão de
disciplinas: o trivium – correspondendo às artes da linguagem (gramática, retórica e dialética)
e o quadrivium – referindo-se às artes matemáticas (geometria, aritmética, música e
astronomia). Porém, mesmo distinguindo entre artes da linguagem e artes matemáticas, essa
divisão era somente metodológica, pois o universo era compreendido como totalidade (herança
grega) e a educação atendia o ideal de universalidade; à formação do cidadão cabia o domínio
de todas as artes. A constituição do saber nas disciplinas do trivium e do quadrivium visavam à
formação do homem integral, sendo, por vezes, a noção de totalidade entendida como o
conceito de Deus. Nas palavras de Jaeger (1989, p.256):

As Mathemata representam o elemento real da educação sofística; a gramática, a


retórica e a dialética, o elemento formal. A posterior divisão das artes liberais no
trivium e no quadrivium depõe também a favor daquela separação em dois grupos de
disciplinas. A diferença entre a função educativa de cada um dos dois grupos tornou-
se permanente e notória. O esforço para unir os dois ramos baseia-se na ideia da
harmonia ou, como em Hípias, no ideal da universalidade; mas nunca se trata de
alcançá-lo pela simples adição.

A partir de então, a Modernidade é marcada por contribuições como as de Galileu


Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650). Galilei (2004), com a teoria do corpo
isolado, enunciam as leis do movimento que permitiam uma nova forma de constituição do
saber, a física moderna. Ao invés de estudar um fenômeno inserido em seu entorno, como se
fazia na Antiguidade, a física de Galileu tratou os fenômenos isoladamente, tais como eles
ocorriam – sem a interferência dos conceitos prévios do cientista (BACHELARD, 1996) –
observando suas constantes e variáveis, a partir das quais eram compreendidas e constituídas
as leis gerais, capazes de explicá-lo.
Em 1641 René Descartes publica Meditações da Filosofia Primeira (1973), o qual
formulou o dualismo de substâncias. Ele compreendia o universo constituído por duas
substâncias de natureza distinta: física (res extensa) e mental (res cogitans – inextensa). A res
11905

extensa cartesiana relacionava-se ao corpo, ao fisiológico, conforme podemos observar em As


Paixões da Alma (DESCARTES, 1973, p.228), onde descreveu que “a forma toda de que se
compõe a máquina do nosso corpo” é composta por uma fisiologia que incluía músculos,
órgãos, veias, e tudo o que é material em nosso corpo. A res cogitans correspondia ao
pensamento, ao psíquico, como apresentado em Objeções e Respostas (DESCARTES, 1973,
p.163), “tudo o que pode pensar é espírito, ou se chama espírito. Mas como o corpo e o espírito
são realmente distintos, nenhum corpo é espírito. Logo, nenhum corpo pode pensar”.
Nas Meditações (DESCARTES, 1973), assim como no Discurso do Método
(DESCARTES, 1973), ele propôs uma cisão metodológica, uma divisão que permitia analisar
cada parte, para, a seguir, organizá-las, das mais simples às mais complexas, compreendendo,
assim, o todo. Segundo Descartes (1973), a glândula pineal era a única parte do cérebro que
não existia nos dois hemisférios, ela faria a ligação entre eles e seria responsável pela
comunicação entre o corpo e a alma. Daí constituiu-se um problema, pois, como é possível que
naturezas distintas como corpo e alma possam provocar interferências mútuas? Qual a natureza
da glândula pineal para permitir tal relação? As implicações disso, na Ciência Moderna,
levaram a um olhar para as partes em detrimento do todo. O corpo a ser estudado era isolado
de seu contexto, estudado parte a parte, até que se encontraria a parte defeituosa, que deveria
ser substituída por uma “nova peça”, ou extirpada, como se extirpa o mal.
Ainda no século XVII, com o surgimento da didática, a partir do livro Didática Magna:
tratado da arte universal de ensinar tudo a todos de João Amós Comênio (1985), revelava,
nesse subtítulo, um caráter revolucionário pautado em ideários ético-religiosos, pregava-se que
tudo quanto estava escrito no livro era um método único para ensinar tudo a todos. Sobre sua
didática, Comênio (1985, p.43) pretendeu que ela fosse:

[...] processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer


Reino cristão, cidades, aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e de outro
sexo, sem excetuar ninguém em parte alguma, possa ser formada nos estudos, educada
nos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos de
puberdade, instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura, com
economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez.

Nesse sentido, encontramos em Comênio o exagero caracterizado como objetivo em


apontar as dificuldades, que não ocorrem necessariamente nesse grau, mas aproximam-se a ele.
Propôs uma metodologia que consistia em ensinar tudo a todos, pois sua preocupação inicial
era a formação do bom cristão, ensinando-lhe os fundamentos para que pudesse ser ator de sua
própria vida; tudo o que era ensinado o deveria ser em sua aplicação prática, de maneira clara
11906

e direta, ensinando a natureza das coisas a partir de suas causas; ensinar cada coisa em seu
devido tempo e não abandonar nenhum assunto até sua perfeita compreensão, assim como dar
a devida importância às diferenças existentes entre as coisas, também eram passos constituintes
do método de Comenius. No século XVIII David Hume (1711-1776) questionou o conceito de
causalidade3 do francês René Descartes. Hume (1973) mostrava que a causalidade não existia
no mundo, nas questões de fato, mas estava em nossa mente, ao associarmos fenômenos que
habitualmente vemos. Isso tornaria as conclusões da ciência, sempre como prováveis, a partir
do método indutivo. Ainda neste século, enquanto acreditava-se que o conhecimento estava nos
objetos e nós éramos os sujeitos que o apreenderíamos, Immanuel Kant (1987) afirmava que
construíamos os conhecimentos, organizando os dados adquiridos na experiência segundo os
princípios e formas de nossa razão. Desta forma, questionar os limites da razão humana, assim
como a objetividade do mundo, foi a tarefa da filosofia kantiana.
O que se percebeu até aqui foi a grande guinada do saber desde sua origem primeira.
Partimos do mito e chegamos ao século das luzes, em que, se recria uma forma de entender as
coisas. Saímos da racionalidade para a experiência e entramos num fértil terreno, o da junção
entre razão e experiência. A partir disso, a Ciência Moderna (séculos XVI à XVIII) começava
a ganhar cada vez mais terreno e cada vez mais a “Ciência se distanciava da Filosofia, tornando-
se assim, duas unidades de um mesmo saber, desta forma, inicia-se o processo claro da
disciplinarização ou fragmentação do saber” (AIUB, 2016, p.6). Desta forma, no próximo
tópico enfatizaremos a disciplinarização em detrimento à Ciência Moderna.

A ciência moderna e a fragmentação do saber

Em meados do século XVIII, numa altura em que a Ciência Moderna, saía da revolução
científica do século XVI pelas mãos de Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Newton
(1643-1727), começava a deixar os cálculos esotéricos para se transformar no fermento de uma
transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de
transição, pois, que deixava perplexos os mais atentos e os fazia refletir sobre os fundamentos

3
A causalidade é simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado formou em nós; é um hábito
mental produzido por fatos contingentes ligados à natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de
causalidade como conexão necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não temos a impressão
de uma conexão necessária entre duas coisas; o que temos é apenas a impressão de contiguidade entre objetos ou
eventos. O que deste modo se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer demonstração
a priori da existência de relações causais no mundo.
11907

da sociedade em que viviam e sobre o impacto das vibrações a que estariam sujeitos por via da
ordem científica emergente (SANTOS, 1988, s/n).
No século XVIII a ciência amplia suas possibilidades que daí resulta, as luzes, ao criar
condições para a emergência das ciências sociais no século XIX. Como ressalta Boaventura de
Sousa Santos (1988, s/n) “a consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no
racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a
condensar-se no positivismo oitocentista”. Ou seja, segundo este, só há duas formas de
conhecimento científico: as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências
empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais; já as ciências sociais nasceram
para ser empíricas. O modo como o modelo mecanicista foi assumido, no entanto, diverso.
Distinguimos, segundo Santos (1988, s/n) duas vertentes principais: a primeira, sem dúvida
dominante, consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade todos os
princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o século
XVI; a segunda, durante muito tempo marginal, mas hoje cada vez mais seguida, consistiu em
reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com
base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza. Estas duas
concepções têm sido consideradas antagônicas, a primeira, sujeita ao jugo positivista, a
segunda, liberta dele, e qualquer delas reivindicando o monopólio do conhecimento científico-
social.
Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn (1991) o atraso das ciências
sociais é dado pelo caráter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências naturais.
Nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um
conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão
por toda a comunidade científica.
Em meio a essas discussões sobre o saber e com a crítica ao excesso de racionalidade
vigente no início do século XX4 (excesso de racionalidade incapaz de evitar duas guerras
mundiais em tão curto período) 5, a fragmentação do conhecimento e a constatação da
necessidade do diálogo entre as diferentes disciplinas para compreender o mundo e o ser
humano da contemporaneidade, ocorreu um movimento de promoção da interdisciplinariedade

4
Críticas mencionadas por Nietzsche (1992) (dionisíaco) e Marx (1984) (ideologia).
5
A ideia central é apresentar, em tom se sarcasmo, que mesmo em meio a tantas descobertas científicas e num
período em que o conhecimento racional estava em seu ápice, nada disso foi influenciável para não permitir as
duas grandes guerras mundiais.
11908

(constatando a impossibilidade de ensinar tudo a todos, como propunha Comenius). Já na


segunda metade do século XX é o cenário onde a interdisciplinariedade apresenta-se como
alternativa diante da fragmentação dos saberes (GERHARD; FILHO, 2012).
Neste sentido, percebemos que atrelado a proposta interdisciplinar, a produção de
informações (propiciado pelas novas tecnologias) tornou a organização dos conhecimentos,
uma operação cada vez mais difícil, imprimindo um reforço da tendência interdisciplinar, à
fragmentação (JAPIASSU, 2006). Se há pouco mais de um século todos os conhecimentos
disponíveis podiam ser dominados por um único ser humano e cabiam dentro de uma pequena
biblioteca, isto é atualmente inimaginável. O homem contemporâneo necessita especializar-se,
fazer recortes restritos da realidade sobre os quais concentra seus conhecimentos. Parafraseando
Ianni (1993), a explosão do saber ocorrida no último século obrigou os intelectuais a
delimitarem seus campos de conhecimento – processo que levou às superespecializações que
caracterizam a ciência hoje.
Apesar do aprofundamento da fragmentação disciplinar ter marcado o século XIX, a
divisão crescente do saber só se transformou numa hiperespecialização disciplinar em meados
do século XX, com o crescimento e a complexidade dos conhecimentos, pela multiplicação e
sofisticação das tecnologias. Como observa Sommerman (2006), até o início do século XX a
divisão do saber ainda era circular. As ciências ainda dialogavam entre si, como sempre haviam
feito, apesar disso, desde o século XIV, tal circularidade constitui círculos cada vez menores
devido à exclusão progressiva de vários campos de saber: da gnose ou da teologia mística no
século XIII, da religião no século XVIII, e da filosofia ou da metafísica no século XX.
Especialidades disciplinares cada vez mais delimitadas foram sendo geradas, cada uma delas
travando uma luta permanente para manter sua identidade e independência. Isso fez surgir o
que Japiassu (2006) denomina como “ilhas racionalidade”6, que têm por marca o dogmatismo
e são acriticamente ensinadas.
A especialização apresenta-se como oposto da síntese imaginativa que, sem limites,
culminou na fragmentação do horizonte epistemológico (JAPIASSU, 2006). Ela repartiu ao
infinito o território do conhecimento, no qual cada especialista ocupou seu lugar de saber. Dessa
forma, o especialista, alicerçado pelo desejo de saber, tem desejado cada vez mais a
ultraespecialização e dividindo interminavelmente seu território. Devido a isto, consideramos

6
Termo retirado da palestra conferida no Seminário Internacional sobre Reestruturação Curricular, promovido pela
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre em 1994.
11909

importante que o estatuto epistêmico, que são os modos culturais de compreender, pensar e
agir, exige a descoberta e o emprego do método interdisciplinar, pois, no entender de Japiassu
(2006) este é capaz de modificar, deslocar e reestruturar o campo das disciplinas existentes.
Em função disso, a fragmentação, tornou-se hegemônica, nos diferentes níveis de
educação formal (Fundamental, Médio, Superior), um ensino puramente disciplinar. Conteúdos
divididos e organizados, que nasceram sob um pressuposto estritamente didático, dividiram-se
em um corpo cada vez mais fechado de especialidades disciplinares. Neste sentido, a
necessidade de interdisciplinariedade fundamenta-se no caráter dialético da realidade social,
que é, ao mesmo tempo, una e diversa. Se o processo de geração de conhecimento impõe a
delimitação de um problema situado num campo mais amplo, isto não significa que tenhamos
que abandonar as múltiplas determinações que o constituem (COUTO, 2011). É nesse sentido
que, para Frigotto (1995), mesmo quando um objeto é delimitado, ele teima em não se dissociar
da totalidade de que faz parte indissociável. Portanto, entendemos que o termo saber, tem hoje,
conotação mais ampla, que o termo ciência. Pois, conforme Japiassu (1977) é considerado saber
todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematizados
e prontos a serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Num sentido amplo, a
ideia de saber pode ser aplicada à aprendizagem de ordem prática e, ao mesmo tempo, de ordem
intelectual e teórica. Desse ponto de vista, colocaremos como problema, para o próximo tópico,
o contexto atual juntamente com os desafios e as perspectivas da interdisciplinariedade em
relação ao saber.

Os desafios e as perspectivas da interdisciplinaridade no contexto contemporâneo

O movimento histórico que vem marcando a presença do enfoque interdisciplinar na


educação, seja no ensino ou na aprendizagem, constitui um dos pressupostos diretamente
relacionados a um contexto amplo e também muito complexo de mudanças que abrangem não
só a área da educação, mas também outros setores da vida social como a política e a tecnologia.
Pode-se dizer que se trata de uma grande mudança paradigmática que está em pleno curso e
colocando-se como desafios a serem enfrentados por esses setores principalmente no campo
educacional.
Nesse sentido, uma dentre tantas questões que desafiam a área educacional está ligada
às críticas da fragmentação dos saberes e ao do pensamento reducionista e simplificador, ainda
muito presentes nas práticas educativas. Moraes (2002), na obra O paradigma educacional
11910

emergente, ressalta que se a realidade é complexa, ela requer um pensamento abrangente,


multidimensional, capaz de compreender a complexidade do real e construir um conhecimento
que leve em consideração essa mesma amplitude.
Dentro desta perspectiva, a interdisciplinariedade, tanto na produção quanto na
socialização dos conhecimentos no campo educacional, vem sendo discutido por vários autores,
tais como, Fazenda (1991), Frigotto (1995), Morin (2005), entre outros, como uma viável
possibilidade de superação dessa fragmentação dos saberes. O que se pretende dizer é que o
pensar interdisciplinar no contexto da contemporaneidade deveria partir da premissa de que
nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, exaustiva (FAZENDA, 1991, p.15),
permitindo, com isso, diálogo com várias outras fontes de saber e enriquecendo as
possibilidades de relações com o outro e com o mundo. Dentre essas possibilidades, mesmo
que desafiadoras e dentro do contexto de mundo, onde o pensamento se alinha numa direção
de divisões, de fragmentações, de simplificação, de especializações e de reducionismo, a
interdisciplinariedade se apresenta como uma atitude possível na busca de alternativas abertas
a uma visão do conjunto.
Essa atitude de busca de alternativas por parte do campo educacional também se
apresenta como desafio. Desafio de redimensionar as velhas práticas, de estar em pleno
envolvimento e comprometimento com novos projetos, estando, dessa maneira, aberto aos
possíveis diálogos e assumindo a insegurança de implementar uma nova perspectiva
epistemológica dos sujeitos das relações de ensino e aprendizagem.
O contexto educacional, como espaço e lugar legítimo de aprendizagem, produção e
reconstrução de conhecimento, cada vez mais precisará acompanhar as transformações do
mundo contemporâneo, pensar na possibilidade de adotar e apoiar projetos educacionais numa
perspectiva interdisciplinar, os quais possam embasar o conhecimento interconectando os
saberes existentes. Fazenda (1991, p.33) ressalta que “o ensino interdisciplinar nasce da
proposição de novos objetivos, de novos métodos de uma nova pedagogia, cuja tônica primeira
é a supressão do monólogo e a instauração de uma prática dialógica”. Nesse sentido, a abolição
de possíveis barreiras nesse cenário se torna algo pertinente e necessário.
Ao considerar a interdisciplinaridade como possibilidade da superação da fragmentação
do ensino, do conhecimento e da aprendizagem, se faz necessário refletir sobre alguns
obstáculos apresentados por Fazenda (1991, p.33), os quais merecem atenção por parte de todos
os envolvidos numa perspectiva interdisciplinar. Segundo ela, o primeiro refere-se ao obstáculo
11911

epistemológicos e institucionais – em que a interdisciplinariedade se torna possível quando se


respeita a verdade e a relatividade de cada disciplina, tendo-se em vista um conhecer melhor.
Nesse sentido, a eliminação das barreiras entre as disciplinas exigiria a quebra da rigidez das
estruturas institucionais que, de certa forma, reforçam o capitalismo epistemológico das
diferentes ciências. Já o obstáculo psicossociológico e cultural – envolve o desenvolvimento
do real significado do projeto interdisciplinar, a falta de formação específica, a acomodação à
situação estabelecida e o medo de perder prestígio pessoal impedem a montagem de uma equipe
especializada que parta em busca de uma linguagem comum.
O terceiro, intitulado obstáculo metodológico – segue a instauração de uma metodologia
interdisciplinar que postularia um questionamento das formas de desenvolvimento do conteúdo
das disciplinas, em função do tipo de indivíduo que se pretende formar, bem como uma postura
una com respeito à reflexão de todos os elementos indicados. O seguinte, que é o obstáculo
quanto à formação – introduz a ideia de que na interdisciplinaridade passa-se de uma relação
pedagógica baseada na transmissão do saber de uma disciplina ou matéria a uma relação
dialógica em que a posição é de construção do conhecimento. É necessário que ao lado de uma
formação teórica se estabeleça um treino constante no trabalho interdisciplinar e, por fim, o
quinto e último, chamado obstáculo material – que presume a efetivação da
interdisciplinariedade, sendo primordial um planejamento de espaço e tempo, bem como uma
precisão orçamentária adequada.
Nesse sentido, percebe-se que pensar em uma proposta ou projeto interdisciplinar na
área educacional no atual cenário não é algo fácil e sucinto, pois requer muito planejamento e
dedicação para superar os obstáculos ressaltados pela referida autora, os quais podem surgir ou
estar postos como empecilhos de efetivação. Com um olhar diferenciado, entende-se que a
interdisciplinaridade, após a superação dos possíveis obstáculos, abre as portas para a
contextualização, ou seja, para um planejamento sob várias perspectivas, com uma proposta de
ensino e aprendizagem significativos e contempladores das interconexões existentes num
determinado espaço e tempo educacional.
Inúmeras são as relações que intervêm o processo de organização do conhecimento. As
relações existentes entre os integrantes desse processo são construídas e solidificadas por meio
do enfoque interdisciplinar, pois aproxima o sujeito de sua realidade mais ampla, auxilia os
aprendizes na compreensão das complexas redes conceituais, possibilita maior significado e
11912

sentido aos conteúdos da aprendizagem e permite uma formação mais consistente e


responsável.
Em um mundo contemporâneo com relações e dinâmicas tão diferentes, a educação e as
formas de ensinar e de aprender não dão conta das demandas sociais e, sobretudo, as mediadas
pelas tecnologias, necessitando de novas formas de tratar o conhecimento, a fim de formar
cidadão capazes de atuarem nesse contexto. Segundo Luck (1994, p.60):

O objetivo da interdisciplinaridade é, portanto, o de promover a superação da visão


restrita de mundo e a compreensão da complexidade da realidade, ao mesmo tempo
resgatando a centralidade do homem na realidade e na produção do conhecimento, de
modo a permitir ao mesmo tempo uma melhor compreensão da realidade e do homem
como ser determinante e determinado.

Nessa perspectiva, a interdisciplinaridade, como fenômeno metodológico, possibilita o


impulsionamento de transformações no pensar e no agir do homem em diferentes sentidos.
Retoma, aos poucos, o caráter de interdependência e interatividade existente entre as coisas e
as ideias, resgata a visão de contexto da realidade e demonstra que vivemos numa grande rede
de interações complexas conectados entre si. Ademais, ajuda a compreender que os indivíduos
não aprendem apenas usando a razão, o intelecto, mas também a intuição, as sensações, as
emoções e os sentimentos. É um movimento que acredita na criatividade das pessoas, na
complementaridade dos processos, na inteireza das relações, no diálogo, na problematização,
na atitude crítica e reflexiva. Em outras palavras, numa visão articuladora que rompe com o
pensamento disciplinar, parcelado, hierárquico e fragmentado, que marcou e ainda marca o
cenário educacional.
Portanto, pode-se dizer que a interdisciplinariedade é um movimento, uma metodologia
importante de articulação entre o ensinar e o aprender em um novo contexto carregado de
desafios e obstáculos a serem enfrentados e superados. Compreendida como uma pertinente
possibilidade e assumida enquanto atitude tem a potencialidade de auxiliar os educadores,
escolas e todos os ambiente educacionais na ressignificação do trabalho pedagógico em termos
de currículo, métodos, conteúdos, avaliação e nas formas de organização dos ambientes para
um ensino não fragmentado e para uma multiplicidade de aprendizagem.

Considerações finais

Pensar a interdisciplinaridade enquanto processo de integração recíproca entre várias


disciplinas e campos de conhecimento, é uma tarefa que demanda um grande esforço no
11913

rompimento de uma série de obstáculos ligados a racionalidade positivista da sociedade


industrializada. O contexto histórico, caracterizado pela divisão do trabalho intelectual,
fragmentação do conhecimento e pela excessiva predominância das especializações, demanda
a retomada do antigo conceito de interdisciplinaridade que no longo percurso desse século foi
sufocado pela racionalidade da revolução industrial.
Neste sentido, entendemos a necessidade em romper com a tendência fragmentadora e
desarticulada do processo do conhecimento, que se justifica pela compreensão da importância
da interação e transformação recíprocas entre as diferentes áreas do saber. Essa compreensão
crítica colabora para a superação da divisão do pensamento e do conhecimento, que vem
colocando a pesquisa e o ensino como processo reprodutor de um saber parcelado que,
consequentemente, muito tem refletido na profissionalização, nas relações de trabalho, no
fortalecimento da predominância reprodutivista e na desvinculação do conhecimento do projeto
global de sociedade.
A interdisciplinaridade como crítica à fragmentação do saber aparece como
entendimento de uma nova forma de institucionalizar a produção do conhecimento nos espaços
da pesquisa, na articulação de novos paradigmas curriculares e na comunicação do processo
perceber as várias disciplinas. Esta realização integrativa-interativa permite-nos visualizar um
conjunto de ações interligadas de caráter totalizante e isenta de qualquer visão parcelada,
superando-se as atuais fronteiras disciplinares e conceituais.
Portanto, trabalhar a interdisciplinaridade não significa negar as especialidades e a
objetividade de cada ciência. O seu sentido reside na oposição da concepção de que o
conhecimento se processa em campos fechados em si mesmo, como se as teorias pudessem ser
construídas em mundos particulares sem uma posição unificadora que sirva de base para todas
as ciências, e isoladas dos processos e contextos histórico-culturais. Significa respeitar o
território de cada área do saber, distinguindo os pontos que unem e que os diferenciam. Essa é
a condição necessária para estabelecer os vínculos com as disciplinas e superar a fragmentação.

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