O Neoliberalês PDF
O Neoliberalês PDF
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados
sem permissão escrita dos autores deste texto.
_____________________________________________________________
Prefácio ....................................................................................... 9
5. O Neoliberalês ...................................................................... 57
9
usamos para compreender e estar no mundo, que o poder nos
impede de pensar outros mundos possíveis, de modo que
possibilitasse questionar e criticar as estruturas vigentes em nossa
sociedade.
Em segundo lugar, para além dessa constatação geral da
relação entre poder e linguagem, o ensaio se esforça em mostrar
qual seria a linguagem do poder característica de nosso tempo, e
de que maneira ela definiria o mundo unicamente no qual
consideramos possível, hoje, habitar: o Neoliberalês, que, com
seus jargões da positividade, da pró-atividade e da produtividade,
faz parecer que o único mundo que podemos habitar é aquele que
habitamos como sujeitos empreendedores de si mesmos, cujo
valor residiria unicamente na nossa capacidade de produzir
sempre mais e nos tornarmos sempre melhores versões de nós
mesmos (leia-se: melhores produtores, o que se traduz em cada
vez mais estender o trabalho e o desempenho para todas as esferas
de nossas vidas). Nesse sentido, é particularmente importante
notar, como observam os autores, que o modo com que o
Neoliberalês se forma como língua é significantemente distinto
do modo do exemplo literário paradigmático da língua do poder,
a Novafala do livro 1984, de George Orwell. Isso porque os
mecanismos de constituição da linguagem da Novafala, por meio
10
dos quais ela deveria impedir o pensamento, seriam o de
destruição e de aglutinação de palavras, de modo a limitar cada
vez mais o vocabulário de seu falante e, assim, inibir o
pensamento.
O Neoliberalês, porém, é, com o perdão do trocadilho,
simultaneamente mais liberal e mais totalitário e totalizante. Isso
porque os mecanismos com os quais ele se constitui como
linguagem não se encontram na negatividade da limitação e da
destruição, mas, pelo contrário, são o do excesso de positividade
e o da proliferação de termos, jargões e expressões que devem
jogar sobre o todo da experiência do indivíduo o verniz da
positividade, de modo que ele não possa enxergar sentido na sua
vida e não possa buscar outra coisa senão a exploração irrestrita
e ilimitada de sua capacidade produtiva, descrita, pelo
Neoliberalês, como “liberdade” e “realização”. É assim que, por
fim, o Neoliberalês se mostra bem-sucedido em fazer com que a
autoexploração do sujeito em nossa sociedade contemporânea
seja percebida por ele próprio como autorrealização, diante da
qual nenhum outro objetivo poderia ser mais importante ou mais
elevado. Assim, porém, o Neoliberalês cumpre o mesmo
propósito que a Novafala, ainda que com mecanismos distintos
de constituição e formação de seus termos: o de bloquear a
11
capacidade de pensar em outros mundos possíveis, em outras
formas de ser e de viver.
O presente ensaio tem o mérito inestimável de, a partir do
esquema conceitual fornecido a nós pelo filósofo sul-coreano
Byung-Chul Han, mas também por outros referenciais
importantes, fazer uma análise do poder em nossa sociedade em
termos da linguagem e da gramática que lhe é própria,
desnudando os mecanismos pérfidos de sedução e de controle
psíquico que se encontram por trás do jargão supostamente
benéfico e terapêutico e apenas aparentemente neutro e científico
da “positividade”, tão em voga em nossos dias. Ele também tem
a importância de nos lembrar que, se devemos nos livrar
verdadeiramente dos mecanismos de controle que se ocultam por
trás das expressões e discursos que circulam tão livremente hoje
entre nós, sobretudo no âmbito das redes sociais, então, não
devemos acreditar que o controle por esse poder que fala
Neoliberalês seja tão pervasivo e incontornável quanto ele se faz
parecer e se quer fazer parecer. Antes, se alguma revolução em
nosso modo de vida deve ocorrer, ela não se dará apenas pelo
macro, mas, pelo contrário, deve vir fundamentalmente do
pequeno, mas coletivo, que, aos poucos, arquiteta a sua própria
gramática, uma gramática para um outro mundo.
12
Lucas Nascimento Machado
Professor substituto de História da Filosofia UFRJ e Doutor em Filosofia pela
USP. Traduziu do alemão obras de Byung-Chul Han como No Enxame
(2018), Bom entretenimento (2019) e Filosofia do Zen Budismo (2020) e
outros autores. É também o atual Diretor da Associação Latino-Americana de
Filosofia Intercultural (ALAFI).
13
14
1
15
elaboração e implementação de um idioma próprio, denominado
pelo respectivo partido como Novafala. Naquele texto, a
Novafala é tratada como uma das maiores demonstrações de
autoridade e poder por parte do Grande Irmão, graças a sua
capacidade de restringir o pensamento e limitar ações.
O que ocorre com o idioma elaborado pelo Grande Irmão
é que ele é pobre lexicalmente, ou seja, não dispõe de muitas
palavras, e isso é proposital. O partido não queria apenas que as
ameaças ao seu domínio fossem combatidas, mas sim, que aquilo
que pudesse oferecer qualquer tipo de perigo ao poder vigente não
fosse nem cogitado, ou mais ainda, não fosse nem sequer
pensado.
De maneira ideológica e tendenciosa, o Grande Irmão,
através da Novafala, reduzia de tempos em tempos as
possibilidades de comunicação. Isso era feito através da
destruição de palavras que pudessem representar qualquer ideia
perigosa ao partido. No idioma elaborado pelo Grande Irmão, as
pessoas não encontravam representações linguísticas para se
referir, por exemplo, a ideais de liberdade, revolução, resistência
e etc., o que culminava, por fim, no desaparecimento das próprias
ideias em si.
16
É por isso que a Novafala restringia o pensamento, afinal,
como é possível pensar em algo que está além dos limites que a
sua linguagem alcança? Na falta de expressões que possam dar
sentido conceitual a um fenômeno, o próprio fenômeno deixa de
ser percebido na consciência, na medida em que não se é possível
pensar nele e muito menos materializá-lo.
Em concomitante com o processo de destruição de
algumas palavras, existia também um movimento de junção das
mesmas, que davam origem a expressões como sexocrime,
bempensante, crimideia, ordemdia, despessoa e etc. A ideia desse
movimento de condensação de palavras era que cada vez mais
fenômenos fossem representados por uma quantidade cada vez
menor de palavras e expressões. No fim, tanto a destruição quanto
a junção de palavras miravam o mesmo fim: impossibilitar
pensamentos específicos e, por conseguinte, as ações que eles
poderiam inspirar.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017)
entende 1984 (2009) como uma materialização das angústias de
toda uma geração. Até aquele momento, sobretudo na Europa, o
século XX estava sendo marcado apenas pelas Grandes Guerras
e por regimes totalitários que surgiam ou que poderiam surgir de
qualquer lado. Vivia-se com medo de que, a qualquer momento,
17
seu próprio país sofresse algum golpe, se tornasse uma ditadura
e, em última instância, iniciasse uma nova guerra (BAUMAN,
2001). As pessoas expressavam suas angústias e medos de
maneiras diversas, e no caso de Orwell foi escrevendo, entre
vários títulos, um romance que retrata a guerra, o totalitarismo e
a opressão.
De certo modo, essas angústias não passam de
lembranças, hoje, de acordo com Bauman (2001). Não que o
totalitarismo tenha deixado de ser uma ameaça, mas é – por
motivos que apresentaremos ao longo deste ensaio – uma
realidade cada vez mais distante, ou pelo menos é assim que boa
parte da população vai sendo levada a perceber. Por isso, os
dilemas e atravessamentos do século XXI acabam sendo muito
diferentes daqueles do século passado.
Os próprios modos de organização, atuação e
gerenciamento do poder se transformam entre um século e outro:
se no século passado tínhamos um Estado soberano que podia, na
pior das hipóteses, agir de maneira violenta, opressiva e
totalitária; que era representado por figuras de poder e autoridade,
por prédios públicos enormes e por volumosas constituições; hoje
quem ocupa o lugar de soberania é o mercado, do qual o Estado é
apenas um braço operacional. O mercado, tal como se apresenta
18
na contemporaneidade, é representado pelas lógicas, diretrizes e
ideais neoliberais e que, por razões que este ensaio discute,
habitam no imaginário popular (BAUMAN, 2008).
O Grande Irmão e a Novafala são abordados em nosso
texto por servirem como um contraponto fundamental, tendo em
vista que a hipótese nuclear desse ensaio consiste na ideia de que,
assim como o partido totalitário da obra de Orwell (2009), as
diretrizes do neoliberalismo – responsáveis por instituir e
consolidar o mercado como novo soberano – estabelecem o
controle sobre a sociedade contemporânea através da constituição
e propagação de um idioma próprio, denominado, por nós, de
Neoliberalês.
Entretanto, o Neoliberalês apresenta características muito
diferentes da Novafala. No idioma neoliberal não há uma
destruição/junção de palavras, mas sim, uma produção intensa
delas, somado a um processo de (re)significação de outras já
existentes. Isso ocorre porque, embora os dois idiomas funcionem
como ferramentas de controle social, as tecnologias envolvidas
nesse processo são diferentes.
Enquanto a Novafala buscava restringir ações e
pensamentos através do empobrecimento lexical, o Neoliberalês
modula a percepção da realidade do indivíduo em favor daqueles
19
e daquelas que estão no topo da hierarquia social por meio da
ampliação do vocabulário e produção de novos significados,
criando assim, miragens urbanas que disfarçam a realidade de
sofrimento e negligência política que a população enfrenta.
Para resumir e ilustrar: se no idioma do Grande Irmão, as
pessoas controladas esqueciam pouco a pouco o que era e o que
significava uma realidade de sofrimento e violência, no idioma
neoliberal as novas palavras e significados que vão surgindo
distorcem a realidade de tal forma que as pessoas até sabem o que
é opressão e violência, só não conseguem enxergar de que
maneira são acometidas e atravessadas por esses fenômenos.
Tanto a Novafala quanto o Neoliberalês refletem a
tendência entre aqueles e aquelas que detêm o poder sobre a
sociedade de enxergarem na linguagem um meio eficiente de
dominar pessoas e capturar suas percepções de mundo. Ao longo
do primeiro capítulo deste ensaio, as razões pelas quais a
linguagem é tão importante para quem almeja o controle social,
são aprofundadas. Apresentamos a Novafala com mais detalhes
para que a existência desse idioma enquanto uma tecnologia de
controle e captura, sirva de base para o argumento que vamos
expor: a linguagem é um acontecimento valorativo e ideológico,
que estrutura as consciências em níveis individuais e coletivos,
20
portanto, quem tiver controle sobre ela terá controle sobre quem
a usa (VOLÓCHINOV, 2018).
Contudo, como já foi dito aqui, o Neoliberalês e a
Novafala apresentam características distintas em termos de
funcionamento. Isso se deve ao fato de que os poderes que estão
por detrás desses idiomas apresentam perspectivas de
gerenciamento social muito diferentes. O Grande Irmão, embora
fictício, é uma representação bastante interessante de uma
sociedade regulamentada por um poder tanto autoritário quanto
disciplinar. O neoliberalismo, por sua vez, age de maneira mais
inteligente. No segundo capítulo deste ensaio, invocaremos os
conceitos de poder autoritário/disciplinar e de poder inteligente,
através da perspectiva do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han
(2018), para ilustrar as diferenças nos modos de atuação entre os
poderes.
Se no segundo capítulo são as distinções entre os dois
poderes que nos interessarão, no terceiro capítulo, nós nos
concentraremos na passagem de um poder ao outro. Nesse
momento do texto serão apresentados os motivos pelos quais as
diretrizes neoliberais se estabelecem frente à soberania do Estado
e que tipo de sujeito emergirá dessa nova dinâmica. Nosso
objetivo com esses dois capítulos é mostrar que há todo um
21
contexto histórico e social que justifica a existência, a função e as
novidades do Neoliberalês,
Essa contextualização histórica, social e cultural é muito
necessária por dois motivos: em primeiro lugar, é através dela que
conseguimos chegar ao quarto capítulo sem riscos maiores de
interpretarem isso que chamamos de Neoliberalês, como um
fenômeno solto no cenário social, que ocorre sem causa e nem
razão; em segundo lugar, porque feita essa contextualização,
ficamos livres, para nesse capítulo, nos concentrarmos de maneira
aprofundada e sem interrupções, nas formas de funcionamento do
idioma neoliberal e em seus desdobramentos.
É nesse momento do texto que as tecnologias de
produção/(re)significação de palavras e expressões serão
expostas de maneira detalhada, e isso é mostrado em diferentes
contextos sociais nos quais estamos inseridos e inseridas, como
trabalho, saúde, lazer, consumo, relacionamentos e redes sociais.
22
2
23
De acordo com o que é narrado no livro, de tempos em
tempos, mais palavras vão sumindo do vocabulário popular
enquanto outras vão se fundido, formando uma só palavra. Essa
destruição/junção de palavras, sobretudo aquelas consideradas
perigosas para o Grande Irmão, faziam parte de uma estratégia de
controle social: é impossível se rebelar ou se manifestar contra o
poder hegemônico, se não há palavras ou expressões que reflitam
essa vontade/necessidade. Dessa maneira, com a ausência de
qualquer expressão que possa remeter a uma revolução ou a um
questionamento por parte da população, não apenas uma revolta
contra o partido é evitada, como também a própria possibilidade
de pensar sobre isso se extingue:
A palavra livre continuava a existir em Novafala, porém só
podia ser empregada em sentenças como: “O caminho está
livre” ou: “O toalete está livre”. Não podia ser usada no velho
sentido de “politicamente livre” ou “intelectualmente livre”,
pois as liberdades políticas e intelectuais já não existiam nem
como conceitos, não sendo, portanto, passíveis de ser
nomeadas. Por outro lado, embora fosse vista como um em
si mesma, a redução do vocabulário teve alcance muito mais
amplo que a mera supressão de palavras hereges: nenhuma
palavra que não fosse imprescindível sobreviveu. A
Novafala foi concebida não para ampliar, e sim restringir os
limites do pensamento, e a redução a um mínimo do estoque
de palavras disponíveis era uma maneira indireta de atingir
esse propósito (ORWELL, 2009, p. 409, 410).
Inúmeras palavras, como honra, justiça, moralidade,
internacionalismo, democracia, ciência e religião haviam
simplesmente deixado de existir, passando a ser englobadas
por alguns poucos vocábulos que, no ato mesmo de englobá-
24
las, provocavam sua obliteração. Todas as palavras cujo
sentido giravam em torno dos conceitos de liberdade e
igualdade, por exemplo, estavam contidas na palavra
crimepensar. Teria sido perigoso lidar com sentidos mais
precisos. [...] o membro do Partido sabia o que constituía
uma conduta correta e, em termos extremamente vagos e
gerais, sabia que tipos de desvios em relação a ela eram
possíveis. Toda a sua vida sexual, por exemplo, era regulada
por duas palavras: sexocrime (imoralidade sexual) e
benesexo (castidade). Sexocrime englobava toda e qualquer
forma de transgressão sexual, incluindo fornicação,
adultério, homossexualidade e outras perversões — entre as
quais se contavam também as relações sexuais normais que
um casal tivesse apenas por prazer. Não havia necessidade
de enumerar cada um desses delitos, visto serem todos
igualmente reprováveis e, em princípio, passíveis de punição
com a morte. [...] Ele conhecia o significado de benesexo —
a saber, relações sexuais normais entre um homem e sua
esposa, tendo a procriação como único objetivo e sem que
houvesse, da parte da mulher, nenhum prazer físico; o resto
era sexocrime. Em Novafala era praticamente impossível
fazer um pensamento herege ultrapassar a constatação de que
ele era uma heresia; inexistiam as palavras necessárias para
avançar mais que isso (ORWELL, 2009, p. 416, 417).
25
dessa questão, é preciso entender de que maneira o autor enxerga
isso que ele chama de palavra.
De acordo com a análise de Volóchinov (2018), a palavra
tem uma função de signo, na medida em que ela remete à diversas
realidades e significados diferentes. Por não existir na realidade
material/física, a palavra é, essencialmente, um signo neutro, ou
seja, ela pode representar qualquer fenômeno, logo, ao mesmo
tempo em que ela reflete sua própria realidade, pode refratar
muitas outras.
Para que fique claro, vamos exemplificar: a palavra livro
remete rapidamente a conceitos como leitura, aprendizado,
conhecimento, estudos e outras coisas; essa é a realidade que
naturalmente lhe é própria, portanto, refletida. Entretanto,
dependendo de quem, onde e quando fala, a mesma palavra pode
remeter a perigo, ameaça, cuidado, alerta, às vezes, até confusão;
essa seria então uma realidade refratada. O que Volóchinov
(2018) nos mostra é que em uma mesma palavra há realidades,
significados, culturas, histórias e vivências diferentes.
Por se tratar de um signo neutro, Volóchinov (2018)
compreende que a palavra está sempre submetida às forças
ideológicas que buscam dar significado a ela, ou seja, o ato de
26
conceituar, de atribuir sentido e/ou significado, é uma ação
ideológica.
A linguagem verbal tem uma função estruturante,
justamente porque a consciência humana e individual é formada
através da interação entre grupos estabelecidos; essa interação
ocorre por intermédio da troca/compartilhamento desses signos
ideológicos, ou seja, pela comunicação, sobretudo, verbal. Essa
percepção nos leva a duas conclusões importantes: primeiro a de
que a consciência não é, portanto, um produto ontológico, mas
sim, um fato sócio-ideológico; e segundo que se assim o é de fato,
a subjetividade do ser humano é construída/atravessada por
aquilo que ele escuta e fala – seja verbalmente ou por sinais
(VOLÓCHINOV, 2018).
E é por dois motivos também, que essa discussão nos
interessa aqui: em primeiro lugar, se a palavra é um signo
ideológico por causa de sua capacidade de refletir e refratar
realidades, isso quer dizer que a atribuição de significado à
determinada expressão é feita sempre de forma valorativa, ou
seja, dar nome é atribuir valor. Isso significa que os significados,
realidades e conceitos que irão constituir uma palavra terão como
base a interpretação daquele que conceitua e nomeia. Portanto,
interpretar e conceituar “é um meio de se tornar senhor de um
27
acontecimento na medida em que interpretar é constituir”
(MOSÉ, 2018, p. 88).
Em segundo lugar, se a consciência individual é um fato
sócio-ideológico, o ato de nomear, interpretar e conceituar não
somente é um meio de se tornar senhor de um acontecimento,
como é também, um meio de se tornar senhor do próprio ato de
constituição da consciência individual, e, por conseguinte,
coletiva. Em outras palavras, dependendo da influência de quem
nomeia e conceitua, uma narrativa acerca de determinado
fenômeno pode acabar se consolidando como uma verdade
absoluta acerca do mesmo, influenciando, assim, o julgamento
individual/coletivo, além de interiorizar e cristalizar crenças.
As palavras, como apontado aqui, são signos neutros,
receptáculos vazios que são preenchidos com aquilo que
colocamos dentro. É a percepção de que a jurisdição sobre um
determinado signo gera autonomia sobre os seus significados e
sobre as representações ideológicas que surgirão a partir dele, que
vai estimular as técnicas de controle social, sejam
governamentais, sejam mercadológicas.
Essa discussão revela que todo signo pode gerar tensão e
se tornar o centro de uma luta de poder onde vozes opostas travam
combates poderosos, na tentativa de garantir para si o direito de
28
atribuir significado e dar sentido ao mundo e seus
atravessamentos (VOLÓCHINOV, 2018).
A título de ilustração, aqui no Brasil, há um esforço
enorme, perpetrado por pessoas brancas e de determinada classe
social, para atribuir um significado próprio ao termo racismo;
nessa mesma esteira, vemos homens discutindo com mulheres
pelo direito de dizer o que viria a ser de fato machismo e
misoginia; nas ciências humanas, sociais e biológicas há um
debate enorme acerca do que pode ser considerado normal ou
patológico, com cada uma trazendo uma verdade, uma
perspectiva, um sentido e um significado que refletem e refratam
as realidades, culturas e, sobretudo, interesses de cada um e cada
uma, sobre a questão.
Não é sem motivos, portanto, que a linguagem seja alvo
de tanta intervenção por parte de quem governa, domina, coloniza
e controla. É por isso que falar de linguagem, signos, ideologias
e sobre como tudo isso influencia a consciência/subjetividade
humana, nos importa muito aqui.
Han (2018) percebe o papel da linguagem nas atuais
tecnologias de controle e formas contemporâneas de gestão
populacional. Para o sul-coreano, nossa sociedade também sofre
com uma intervenção sobre a linguagem, mas estamos em um
29
patamar muito diferente daquele imaginado e descrito por Orwell
(2009) na obra 1984: não há uma destruição/junção de palavras,
mas sim, uma produção profícua das mesmas. Processo que se
soma a um projeto de (re)significação de palavras/expressões já
conhecidas. Para resumir: um alargamento lexical e semiótico que
tem por objetivo a criação e propagação de representações sociais
aceitáveis para situações que, por essência, não são tão aceitáveis
assim.
Nada mais é do que o neoliberalismo – ciente de que a
consciência humana é um fato sócio-ideológico que depende da
linguagem para se constituir – tentando se tornar senhor dos
acontecimentos sociais. Isso ocorre através da intervenção sobre
os significados e sentidos de expressões corriqueiras, ao mesmo
tempo em que se constrói um vocabulário próprio, inchado de
novas palavras que nos estimulam a olhar de forma menos ríspida
– e muitas vezes até com uma certa abertura – para situações de
violência, descaso, precariedade, injustiça, desigualdade e tantas
outras coisas ruins. É esse vocabulário próprio do ideário
neoliberal e estimulado por ele que tratamos aqui neste ensaio
como um idioma, que porventura, chamamos de Neoliberalês.
Tanto a destruição/junção quanto a
produção/(re)significação de palavras, compartilham do mesmo
30
fim, a saber, o controle social. A diferença se encontra justamente
nos meios de atuação e nos poderes que os orquestram: enquanto
as técnicas que buscam destruir indicam que há um poder
autoritário e disciplinar atuando, as tecnologias que incentivam a
produção são indícios de um poder inteligente.
31
32
3
33
A negatividade, na filosofia de Han (2018; 2017c; 2017b),
nada tem a ver com a ideia de um certo pessimismo, energias
negativas ou vibrações ruins – que é como essa palavra é usada
no senso comum. Quando o autor fala em negatividade, sanções
negativas, processo de negativação ou paradigma de
negatividade, o filósofo está se referindo a uma relação
estabelecida entre duas figuras distintas, onde uma está submissa
e/ou influenciada pela outra. As relações de negatividade estão,
portanto, marcadas por uma tensão que conecta pares opostos:
amigo e inimigo, senhor e escravo, Estado e indivíduo, dentro e
fora, opressor e oprimido, etc. Nesse caso, é possível distinguir
facilmente o eu e o outro.
A Novafala, enquanto um instrumento de controle que
restringe o pensamento através da intervenção sobre a linguagem,
é um dispositivo de negatividade na medida em que é perpetrado
por uma força bem delimitada, representada por figuras de
autoridade, que você sabe quem são, e como se deve agir quando
elas estiverem por perto, caso não queira ser violentado. Dessa
maneira, o idioma criado pelo Grande Irmão, marca uma relação
de poder e violência, que vai de um polo – o outro, representado
pelo poder autoritário/disciplinar do Grande Irmão – a outro – o
eu, que vê sua capacidade de pensamento reduzida pela falta de
34
palavras, signos e expressões que possam representar qualquer
ideia entendida pelo outro como perigosa.
Para Han (2019; 2018), o poder se manifesta de muitas
formas diferentes e a mais fraca delas é justamente essa que
depende da violência, das ameaças e do uso da força para tentar
estabelecer um estado de obediência. A fraqueza desse tipo de
poder está em dois fatores básicos: o primeiro deles, é que quanto
maior a autoridade, mais resistência e insatisfação ela gera; o
segundo, é que tanta autoridade não consegue ser exercida sem
exposição, ou seja, esse poder não só gera forças contrárias a ele,
como atrai para si essas forças. O poder autoritário/disciplinar é
um poder com um alvo nas costas.
Para o sul-coreano, quanto mais poderoso é um
determinado poder, mais discretamente ele age. Esse poder, que
ele chama de inteligente, não atrai atenção para si; consegue
estabelecer certo controle sem o uso da força, das normas e da
violência; e não restringe e nem ameaça a liberdade, mas sim, a
explora. O poder inteligente não é autoritário, e sim, sedutor, vai
ao encontro do sujeito ao invés de ir contra ele.
A política neoliberal, responsável por estruturar nosso
arranjo social, se manifesta como um poder inteligente que não
faz uso da negatividade, mas sim, da positividade, que no projeto
35
filosófico de Han (2018; 2017c; 2017b), também difere muito das
associações feitas com esse termo pelo senso comum: o autor não
está se referindo a atitudes positivas, uma postura alto-astral ou
a um pensamento mais otimista. Nas relações de positividade, não
há mais perfis indistinguíveis.
Os pares opostos, presentes nas relações de negatividade,
começam a se misturar. A figura do outro é completamente
absorvida pelo eu. Assim, se na negatividade temos o primeiro
agindo de maneira violenta contra o segundo, na positividade,
isso vai continuar acontecendo, só que com o atenuante de que as
duas figuras habitam o mesmo espaço, a saber, o eu. Em termos
mais claros: nas relações negativas o outro explora o eu e nas
relações positivas o papel e a figura do outro são interiorizados
pelo eu, fazendo com que este último continue sendo explorado,
mas não mais por um agente externo a ele, e sim, por um agente
interno. Nas relações de positividade o eu é explorado pelo
próprio eu.
As relações de negatividade, de acordo com Han (2018;
2017c; 2017b), são a marca dos séculos XIX e XX, um período
histórico marcado por algo que o autor chama de paradigma
imunológico, que seria uma tendência social, cultural e política de
repelir, constranger, eliminar, explorar e/ou expulsar do convívio
36
social aquele outro que é estranho e ameaçador, assim como o
sistema imunológico do corpo é responsável por eliminar, de
alguma maneira, os agentes que invadem o organismo e o
colocam sob ameaça.
Os arranjos sociais que começaram a se desenvolver no
final do século XX e seguem ainda em desenvolvimento no século
XXI, exigem novas leituras para o filósofo sul-coreano. Acontece
que, graças à consolidação e propagação global das diretrizes e
políticas neoliberais, uma nova forma de gestão populacional e de
controle social se instalou pelo mundo, ou pelo menos em sua
parte ocidental: a figura do Estado e seu poder de autonomia e
atuação se enfraquecem, enquanto a figura do mercado, se
populariza e se potencializa em igual medida. Pensar as estruturas
sociais através de termos como positividade ou negatividade,
contribui para que Han (2018; 2017c; 2017b) não só consiga
diferenciá-las, mas também para que possa estabelecer de que
maneira elas agem.
Apesar de ainda existirem, e como existem, as atuações
autoritária/disciplinares perdem seu espaço privilegiado de
outrora em nossa sociedade contemporânea e, por isso, o
neoliberalismo se esforça para tecer na sociedade uma trama de
controle social, tanto complexa quanto eficaz. Entre suas
37
manifestações podemos destacar a substituição das “ameaças com
o chicote” pelo apelo à motivação1:
Em vez de usar ameaças negativas, ela trabalha com
estímulos positivos. Não aplica nenhum “remédio amargo”,
e sim o curtir. Lisonjeia a alma em vez de estremecê-la e
paralisá-la. Seduz a alma que a precede, em vez de se opor a
ela. Registra cuidadosamente seus anseios, suas
necessidades, seus desejos, em vez de “desagravá-los”. [...]
é uma política inteligente que busca agradar em vez de
oprimir (HAN, 2018, p. 52, 53, grifo do autor).
1
O apelo à motivação é o “fôlego de vida” do idioma Neoliberalês. Como será
mostrado no momento adequado, neste ensaio, o Neoliberalês é um dispositivo
de controle social que, através da intervenção sobre a linguagem, regula a
consciência, enquanto um fato sócio-ideológico, a fim de mascarar uma
realidade de dor e sofrimento e de transferir os imperativos
autoritário/disciplinares que habitavam no outro da negatividade para o eu da
positividade. Vamos aprofundar isso, mais a frente, mas em suma, o idioma
Neoliberalês atua na consolidação das diretrizes neoliberais na medida em que
fortalece no indivíduo o estímulo ao desempenho e à produtividade ilimitada,
ao invés de interpelá-lo a isso.
38
a estimativa de vida se tornam objeto de controles
regulatórios. Foucault fala expressamente da “biopolítica da
população”. A biopolítica é a técnica de governança da
sociedade disciplinar, mas é totalmente inadequada para o
regime neoliberal, que, antes de tudo, explora a psique
(HAN, 2018, p. 35, grifo do autor).
40
não ter feito o giro epistemológico necessário para a devida
compreensão das formas de atuação do regime neoliberal2, a
saber, a substituição do conceito de biopolítica – aquele conjunto
de estratégias que buscam, de certa maneira, a esfera biológica
como campo de controle e intervenção – pelo de psicopolítica –
uma complexa rede de processos que atuam sobre a esfera
psíquica, influenciando pensamentos, subjetividades e vontades3.
Contudo, mesmo dentro de suas limitações temporais,
Foucault estava atento ao que o neoliberalismo – em seu estágio
inicial – estava produzindo e isso fica claro na abertura da sétima
aula de seu curso sobre o nascimento da biopolítica, ministrado
2
É preciso destacar aqui, para não ser injusto com o filósofo francês, que talvez
isso não fosse um problema para ele ou para a época. É preciso levar em
consideração que essas críticas acontecem no agora, onde os problemas e
dificuldades se fazem presentes por conta do momento vivido. Temos o
privilégio – se é que podemos falar assim – de ter um olhar histórico acerca do
processo de construção, estabelecimento e propagação do neoliberalismo. O
que hoje vemos como o estágio inicial do projeto neoliberal, Foucault via
apenas como seu ápice.
3
Temos ciência de que tratar toda e qualquer tipo de análise biopolítica da
sociedade como inadequada é uma redução problemática da potência do termo
enquanto instrumento teórico. Han (2018), de forma não muito diferente que
Foucault (2008; 2006), se mantém firme ao contexto histórico-cultural
europeu, que é muito diferente da nossa realidade latino-americana. Talvez a
fala do filósofo sul-coreano se justifique por lá, mas aqui, no sul do mundo,
sobretudo no Brasil, nós partimos da perspectiva de que pode haver ganhos
muito maiores se nos lançarmos em um desafio de compreensão acerca de
como os conceitos de biopolítica e psicopolítica se integram, ao invés de
pensarmos de que forma eles se excluem.
41
entre 1978 e 1979: “Gostaria de lhes garantir que, apesar de tudo,
eu tinha a intenção, no começo, de lhes falar de biopolítica, mas,
sendo as coisas como são, acabei me alongando, me alongando
talvez demais, sobre o neoliberalismo” (FOUCAULT, 2008, p.
257).
Para que haja uma compreensão adequada acerca de como
se dá essa passagem do poder autoritário/disciplinar para o poder
inteligente; de como a motivação substitui o “chicote”; das razões
pelas quais a psiquê é mais explorada que o corpo; e de como
esses acontecimentos reforçam e são reforçados pelo que
chamamos aqui de Neoliberalês, embarcaremos em uma breve
digressão com o intuito de deixar todos esses conceitos e olhares
acerca da história e do próprio funcionamento social
contextualizados.
42
4
44
O aspecto central das Instituições Totais pode ser
retratado com a ruptura das barreiras que geralmente separam
estas esferas da vida:
Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados
no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo
lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada
na companhia imediata de um grupo relativamente grande de
outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e
obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro
lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente
estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em
tempo determinado, à seguinte, e toda a sequência de
atividades é imposta de cima, por um sistema de regras
formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente,
as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano
racional único, supostamente planejado para atender aos
objetivos oficiais da instituição. [...] Controle de muitas
necessidades humanas pela organização burocrática de
grupos completos de pessoas – seja ou não uma necessidade
ou meio eficiente de organização social nas circunstâncias –
é o fato básico das instituições totais (GOFFMAN, 1974, p.
18, grifo nosso).
45
O psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980) por sua
vez, influenciado pela obra de Goffman (1974), parece encontrar
nas situações-limites relatadas uma característica substancial que
aproxima todas as instituições, que é, a saber, a violência.
Portanto, as chama de Instituições da Violência (BASAGLIA,
1985).
Prisões, escolas, manicômios, quartéis, fábricas, e até
mesmo a família, constituem esses espaços fechados da sociedade
disciplinar. Basaglia (1985) vai além dos agrupamentos propostos
por Goffman (1974) e observa que os exemplos podem ser ainda
infinitos em relação a esses espaços, chegando a incorporar todas
as instituições organizadas nesse tempo. O mais importante na
análise desses espaços é que essa característica substancial que as
aproxima é produzida e efetivada “por quem está com a faca na
mão sobre quem se vê irremediavelmente subjugado”
(BASAGLIA, 2010, p. 101). Isto é, se trata de um tipo de
sociedade cujas instituições estão assentadas em uma
segmentação explícita dos papéis, ou seja, na divisão e ordem do
trabalho:
seja um servo e senhor, professor e aluno, empregador e
trabalhador, médico e doente ou organizador e organizado.
Isto significa que o que caracteriza as instituições é a clara
divisão entre quem dispõe e quem não dispõe do poder, de
onde se pode deduzir que a subdivisão dos papéis representa
a relação de abuso e violência entre poder e não-poder, que
46
se transforma na exclusão do não-poder por parte do poder:
a violência e a exclusão estão na base de qualquer relação
que se instaure em nossa sociedade (BASAGLIA, 2010, p.
93, grifo nosso).
48
pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam
(p. 220).
4
Apesar de ser um conceito incrível, não vamos nos deter acerca dos
pormenores do que seria a sociedade do controle, pois achamos que a ideia de
sociedade do desempenho é mais adequada para a análise que nos propomos a
realizar aqui.
5
Conceito que Han (2017b) usa para se referir a um processo de
invisibilização. O poder des-subjetivado é algo que ocupa todos os lugares ao
mesmo tempo em que não está em lugar nenhum. Existe, mas ninguém vê e
nem sabe onde está.
49
impressão de que eles não existem mais, ou pelo menos, não são
mais tão fortes assim. Por efeito, surge nos indivíduos dessa
sociedade neoliberal, uma profunda sensação de libertação diante
do poder que oprimia, violentava e restringia. É esse sentimento
de liberdade que o neoliberalismo vai explorar.
Acontece que o mesmo poder que força e que limita as
ações é aquele que provê recursos e se expõe. Com essas formas
de poder se tornando des-subjetivadas, o indivíduo se torna livre
para agir, mas não para não-agir. A liberdade assume assim, um
status paradoxal, pois se manifesta imperativamente através do
ditame: seja livre. Em outras palavras, a des-subjetivação dos
poderes não produz apenas uma sensação de liberdade, mas
também de desamparo (HAN, 2018; 2017c; BAUMAN, 2001).
O sujeito forjado pelo ideário neoliberal não tem ninguém
para restringir suas ações, mas também não tem ninguém, além
de si mesmo, para responsabilizar por seus fracassos ou sucessos.
Abandonado aos seus próprios cuidados, esse sujeito logo
percebe que depende apenas de suas próprias iniciativas se quiser
alcançar algum triunfo – representado de maneira muito forte em
nossa sociedade como uma boa condição financeira. A solução
que esse indivíduo encontra – ou é levado a encontrar – para
50
sobreviver é através de uma vontade de produtividade e
desempenho.
Na medida em que os resultados satisfatórios não chegam
e o fracasso desponta no horizonte de visão, o indivíduo – já
totalmente tomado pela racionalidade neoliberal – se lança numa
busca cada vez maior por produtividade e desempenho. É assim
que esse indivíduo se transforma em sujeito do desempenho:
aquele que confunde autoexploração com autorrealização.
É através desse mecanismo que o neoliberalismo
consegue se estabelecer como um sistema eficaz de controle
social. Ele não torna os indivíduos livres, apenas cria um novo
estado de submissão através da exploração da liberdade. O sujeito
do desempenho acredita ser seu próprio senhor, quando na
verdade, é seu próprio escravo (HAN, 2018).
Han (2018) atribui ao neoliberalismo um status de poder
inteligente, justamente por se tratar de um sistema de controle que
domina a sociedade sem o uso da força e da violência. Na
verdade, até a figura do algoz se torna irrelevante, na medida em
que o próprio sujeito do desempenho se explora ilimitadamente.
O que os poderes neoliberais entenderam é que a
produtividade tem uma limitação quando se domina contra a
vontade dos dominados. O que não acontece quando se cria um
51
estado de coisas baseado na sensação de liberdade. Fazer com que
as pessoas se explorem acreditando que estão se realizando, eleva
a produtividade em níveis jamais vislumbrados antes.
É mais do que óbvio que quanto mais as camadas
inferiores da hierarquia social produzem, mais as camadas
superiores lucram. A possibilidade de lucrar mais está no cerne
de todo esse mecanismo de controle neoliberal. Dessa forma, o
poder inteligente, através da exploração da liberdade, consegue o
que nenhum poder autoritário/disciplinar conseguiu antes:
produtividade, desempenho e lucros ilimitados.
Deleuze (1992) evoca duas figuras zoopolíticas como
evidências de alojamento da vida: a toupeira e a serpente. Han
(2018) Também se apropria dessa ideia para fazer uma análise da
passagem do sujeito disciplinar ao sujeito neoliberal do
desempenho. O que diz Deleuze (1992) é que “A velha toupeira
monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente
o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro,
da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também
na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem” (p.
222, 223).
O sujeito disciplinar é uma toupeira, dado que esta
consegue se movimentar nos espaços fechados. Ela é
52
trabalhadora, e consegue transitar por lugares pré-instalados,
submetendo-se a qualquer restrição. O sujeito disciplinar é
administrável e submisso. A serpente, por sua vez, alusiva ao
sujeito neoliberal de desempenho, não é capaz de movimentar-se
em espaços fechados, seu próprio movimento que dá origem aos
espaços. Ela é empreendedora, é um projeto.
O sujeito disciplinar, apontado por Han (2018), enquanto
toupeira, não tolera a abertura proposta pelas formas de produção
pós-industriais. Logo, da transição da sociedade disciplinar
(negativada) para a sociedade neoliberal (positivada), desponta
um novo sujeito, forjado pela racionalidade neoliberal,
culminando, assim, no sujeito do desempenho. A toupeira dá
lugar à serpente (HAN, 2018; DARDOT E LAVAL, 2016;
DELEUZE, 1992).
A passagem do sujeito disciplinar para o sujeito neoliberal
de desempenho, da toupeira para serpente, não significa uma
ruptura sem continuidade. Pelo contrário, quando Han (2018) traz
a ideia de mutação, ele deixa claro que o sujeito forjado nesse
século, isto é, o sujeito contemporâneo, devido aos novos arranjos
sociais, é um aperfeiçoamento do sujeito disciplinar. Diante deste
arranjo, tão logo uma questão pode nos suscitar: Por que há a
mutação? Han (2018) nos responde ao enunciar que a toupeira,
53
em vista de sua reduzida capacidade de movimento coloca limites
à produtividade. Ela tem uma estremadura de produtividade,
mesmo que desempenhe seu trabalho com disciplina. A questão
fundamental da transmutação está no limite de produtividade que
a sociedade neoliberal encontra no sujeito toupeira e, portanto,
forja um novo sujeito, a saber, o sujeito serpente: “A serpente
anula essas limitações através de novas formas de movimento.
Assim, o sistema capitalista, passa do modelo-toupeira para o
modelo-serpente, aumentando a produtividade” (HAN, 2018, p.
30).
Toda essa nossa digressão serviu para ilustrar os meandros
pelos quais o neoliberalismo flui. Compreendemos aqui que falar
das técnicas de produção/(re)significação de palavras sem
localizar e expor esse mecanismo de controle que explora a
liberdade e que mira no sempre-mais de desempenho e de
produtividade, daria a impressão de que estaríamos escrevendo
sobre um fenômeno que carece de sentido, que existe sem motivo
e que acontece devido às forças do acaso. Foi preciso se deter
nesse contexto, já que essa máquina de produção constante de
palavras e expressões, assim como o processo de criar novos
significados a todo momento está atrelada a esse tipo de sociedade
54
cujo poder age de forma inteligente e silenciosa, como é o caso
do neoliberalismo.
Agora, devidamente contextualizados acerca da
importância da linguagem para a formação de consciências
individuais e coletivas, da racionalidade característica do
neoliberalismo e dos tipos de demanda e de pessoas que ele
produz, resta ver na prática o idioma/vocabulário neoliberal em
uso e como ele contribui para o estabelecimento e propagação das
lógicas que expomos até este momento em nosso texto.
55
56
5
O Neoliberalês
57
nova ordem social, uma nova razão e, por conseguinte, cria novos
sujeitos, cujas subjetividades estão tomadas pelos traços
neoliberais (DARDOT & LAVAL, 2016). Chega-se a esse efeito
criando/modulando as consciências individuais/coletivas, que –
como vimos com Volóchinov (2018) – são estruturadas
ideologicamente pela linguagem. O neoliberalismo, ciente desse
fenômeno, percebe que é fundamental ter seu próprio idioma, seu
próprio vocabulário, se quiser de fato penetrar na consciência
coletiva e dominar a população de dentro para fora.
É nesse momento que palavras vão sendo
criadas/(re)significadas, dando origem ao que chamamos neste
ensaio de Neoliberalês: uma arquitetônica linguística de controle
social da sociedade do desempenho-neoliberal, focada na
produção constante de novos sentidos e significados. Esse
fenômeno avança de maneira capilar, promovendo alterações
significativas em nossa percepção da realidade através da
intervenção sobre nossa consciência enquanto um fato sócio-
ideológico estruturado pela linguagem.
A criação/(re)significação de palavras é um mecanismo
perfeito para que o neoliberalismo – enquanto um poder
inteligente, circunscrito nos paradigmas de positividade – se
estabeleça. A política/filosofia neoliberal tem como objetivo,
58
transformar uma realidade de sofrimento em uma realidade de
felicidade; tornar desejável aquilo que outrora não o era.
Mas essa mudança na realidade/percepção de determinado
fenômeno, não se dá intervindo de alguma maneira sobre ele, mas
sim, alterando seus significados, criando novas expressões, se
aproveitando da neutralidade da palavra enquanto signo
ideológico e de sua capacidade de refletir e refratar realidades
diversas. Não é que o feio seja moldado e transformado em algo
belo. O que o neoliberalismo faz é se referir ao feio usando a
expressão belo até que isso se transforme em uma verdade
universal.
Se o Grande Irmão, através da Novafala, limitava as ações
e as formas de resistência por meio da impossibilidade de se
pensar naquilo que não podia mais ser expresso pela falta de
palavras adequadas, o neoliberalismo, através do Neoliberalês,
trabalha na criação de realidades alternativas e ilusórias, que são
atraentes por causa de seus belos significados e de suas intenções
aparentemente boas.
O Neoliberalês é propagado graças ao trabalho árduo de
diversos veículos que servem como instrumentos nas mãos dos
poderes neoliberais: a mídia com seus portais de notícia,
entretenimento e propaganda; as redes sociais com suas
59
publicações, memes e disparos em massa; publicações ditas
científicas, publicadas por laboratórios e/ou pesquisadores e
pesquisadoras que recebem bonificações de todos os tipos de
“patrocinadores e patrocinadoras”; todos e todas formando uma
ampla frente de manipulação da realidade. É uma estratégia sutil,
mas eficaz e bem-sucedida.
Para exemplificar um pouco disso que estamos falando, é
através do neoliberalismo que o trabalho flexível, informal e
precário, se transforma em empreendedorismo. Trabalhar durante
longas jornadas, em péssimas condições e sem a proteção da
legislação do trabalho, é tratado pelo ideário neoliberal como uma
– ótima, maravilhosa, incrível e etc. – oportunidade de
empreender. Esse empreendedorismo neoliberal é doce, afaga a
alma, induz ao curtir. Vende a promessa de transformar pessoas
em empresários de si mesmas, seus próprios patrões, seus
próprios senhores; o empreendedorismo neoliberal vende, a
grosso modo, liberdade – só que não a liberdade de fato ou a coisa
em si, mas sim, uma pequena representação. Mas, claro, o
consumidor não sabe disso e nem deve saber (ANTUNES, 2018;
HAN, 2018).
O vocabulário trabalhista neoliberal vai moldando então
as consciências individuais/coletivas: de repente, a falta de um
60
vínculo empregatício e de uma proteção legal, deixa de ser algo
indesejável para se tornar tentador, atraente. Dessa forma, o
sujeito começa a se submeter voluntariamente às condições mais
desumanas possíveis, e isso vai se sustentando sob a crença da
autorrealização. Aliás, autorrealização – meta do sujeito do
desempenho e promessa vendida pela liberdade neoliberal, tal
como foi apresentado anteriormente – também faz parte do
idioma Neoliberalês: é uma expressão usada para justificar esse
regime de autoexploração.
A ideia neoliberal de empreendedorismo promete
enriquecimento, ou no pior dos casos, uma vida dignamente mais
satisfatória – seja lá o que isso significa. Ser seu próprio patrão
implica em fazer seu próprio horário e não estar mais submisso a
ninguém. Isso, definitivamente, é motivador, diferente do que
seria se, ao invés de ofertar a promessa de empreender, fosse
oferecida uma oportunidade de trabalho assumidamente precária,
injusta, informal e sem nenhuma garantia.
O sujeito esperançoso então, por vontade própria, se lança
em jornadas cada vez mais intensas e longas de trabalho, se
submete a situações precárias e passa a enxergar toda espécie de
proteção legislativa como entrave ao seu ato de empreender, e,
por conseguinte, a sua busca por riqueza e/ou dignidade. Aos
61
poucos, o senhor de si mesmo se transforma – se é que já não
nasce assim – em seu próprio escravo (HAN, 2018).
Uma ilustração boa acerca dessa nossa discussão pode ser
encontrada no perfil brasileiro da empresa Uber6 no Instagram7.
Nos últimos dias do ano de 2021, a Uber, através da campanha
#heróisdetododia tentou vender a ideia de que ser um motorista
cadastrado no aplicativo é uma experiência maravilhosa. Em uma
de suas publicações, há um motorista que é tratado como
entregador de felicidade; em outra, um motorista é chamado de
uberstetra, por levar uma passageira em trabalho de parto para o
hospital; tem também a vovó uber – uma senhora de idade que,
sabe-se lá por qual motivo, virou motorista no aplicativo – que
6
A Uber se tornou, talvez, o maior exemplo do que seja essa ideia de trabalho
informal, flexível e precário, mas disfarçado de oportunidade de
empreendedorismo. Tanto é que, cada vez mais, os trabalhos flexibilizados,
precarizados, informais e, até, terceirizados estão sendo definidos nas ciências
sociais como trabalhos uberizados, mesmo que a Uber não esteja diretamente
envolvida com os casos, justamente pela amplitude que suas diretrizes
tomaram. É comum encontrar artigos que tratem de temáticas como:
uberização da saúde, uberização da educação e etc. Não nos deteremos aqui
sobre o fenômeno da uberização do trabalho, seus atravessamentos e suas
consequências mais diretas, mas para quem tiver interesse em se aprofundar na
temática, indicamos o artigo Do Sujeito à Sujeição: apontamentos reflexivos à
Psicologia do trabalho em contexto de pandemia pela Covid-19 (2021), escrito
por Sérgio Dias Guimarães Junior, Lucas Rocha Gonçalves (coautor do
presente ensaio) e Artur Junior Santos Cardoso (também coautor do presente
ensaio).
7
@uber_br.
62
segundo o perfil da empresa, dirige na Uber para se distrair e
porque é uma terapia.
O perfil da empresa só não avisa para seus seguidores que
seus trabalhadores e trabalhadoras:
enfrentam rotinas pesadas e jornadas excessivas de trabalho
para alcançar as metas do aplicativo e sua própria renda
básica para sobreviver. No entanto, as garantias são mínimas
ou nenhuma, principalmente em casos de doença ou prejuízo
material: o conserto/manutenção do automóvel e a saúde
física e mental do (a) motorista é um problema apenas dele
(a) (GUIMARÃES JUNIOR, GONÇALVES & CARDOSO,
2021, p. 50, 51).
E que:
Não há vínculos entre os três – trabalhador (a), consumidor
(a) e empresa-aplicativo – muito menos empregatício. Dessa
forma as empresas isentam-se de qualquer responsabilidade
sobre ambas as partes, além de faturar à custa da exploração,
subordinação e constantes demandas por produtividade e boa
avaliação (GUIMARÃES JUNIOR, GONÇALVES &
CARDOSO, 2021, p. 51).
63
um número elevado – e segue crescente – de trabalho informal,
flexível e precário sendo modulado através da arquitetônica
linguística do Neoliberalês, seja por meio de empresas-
aplicativos ou não (CARTA CAPITAL, 2019).
Obviamente que essa é uma situação que produz um
profundo desgaste em massa. Os indivíduos de nossa sociedade
contemporânea e neoliberal são – quase sempre – atravessados
por diversas formas diferentes de sofrimento: desgaste físico e
psicológico, estresse, ansiedade, tristeza, perda de sentido,
desatenção, hiperatividade, entre outras coisas (HAN, 2017a).
Esse sofrimento em massa, não é visto pelo
neoliberalismo como um triste efeito colateral causado por suas
diretrizes, mas sim, como uma excelente oportunidade de
mercado. Desde a década de 1980, quando a Associação
Americana de Psiquiatria (APA) lançou a terceira versão de seu
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-
III), há um esforço psiquiátrico, cada vez maior, de transformar
expressões humanas em patologia, ou melhor, em psicopatologia
(FREITAS & AMARANTE, 2017).
Aqui vemos a importância da linguagem enquanto
formadora/moduladora de consciências individuais/coletivas,
novamente, e o movimento de criação/(re)significação de
64
palavras: ao longo do século XX presenciamos a tristeza, a
melancolia e a angustia se transformarem em depressão; mudança
de humor em bipolaridade; mania em transtorno obsessivo-
compulsivo; desatenção em autismo ou em TDAH, caso se
misture com um excesso de energia; ansiedade em transtorno de
ansiedade e assim por diante. Se, no universo do trabalho,
palavras e expressões como empreendedorismo, se tornar seu
próprio patrão, liberdade e autorrealização são apropriadas pelo
idioma Neoliberalês, no âmbito da saúde, sobretudo, a mental, o
neoliberalismo vai modular a realidade fazendo uso de expressões
como síndrome, transtorno, problemas e dificuldades.
O neoliberalismo consegue produzir uma mudança até no
próprio aparato diagnóstico psiquiátrico, na medida em que ele
deixa de ser uma ferramenta de aprisionamento e punição –
tecnologia disciplinar, muito útil às já citadas instituições totais
da violência – para se tonar uma ferramenta de otimização dos
processos físicos e mentais, tudo com o objetivo de aumentar a
produtividade – tecnologia de desempenho e de consumo. O
disciplinamento corporal dá lugar a otimização cognitiva, a
psiquê se torna uma força produtiva (HAN, 2018).
Enquanto o ato psiquiátrico de diagnosticar servia para
definir quem seria excluído e privado de liberdade, na sociedade
65
disciplinar; na sociedade do desempenho, o excesso de
diagnósticos e de categorias diagnósticas não priva ninguém e
alcança todos e todas, interpelando – ainda que não pareça uma
obrigação – ao consumo.
Falamos do DSM-III, anteriormente, mas o manual foi
aperfeiçoado desde então. Desde 2013, a versão que está em voga
é o DSM-5, sendo que já foi anunciado pela APA o DSM-5-TR
(texto revisado) para março de 2022. Não temos muitos dados,
ainda, sobre essa versão revisada que será lançada, mas, na versão
que circula desde 2013, foram contadas incríveis 446 categorias
diagnósticas diferentes. De acordo com o que pode ser notado no
DSM-5, são pouquíssimas as formas humanas de existir e se
expressar que não possam ser consideradas como transtornos e
síndromes psiquiátricas.
No texto A Liquefação da Psicopatologia Psiquiátrica:
uma estratégia psicopolítica de estimulação ao consumo de
psicofármacos (2020), Cardoso deixa claro o projeto psiquiátrico,
farmacêutico e neoliberal de colonização à geografia da
normalidade. A discussão que o autor levanta não gira em torno
dos critérios usados para definir o que é normal ou não. A
provocação que Cardoso (2020) traz é acerca do apagamento
compulsório de tudo o que é não patológico.
66
Para quem achar que estamos exagerando, convidamos a
pesquisarem sobre o Transtorno de Oposição Desafiante (TOD),
uma categoria diagnóstica elaborada apenas para representar
crianças irritadiças, rebeldes e respondonas (como se isso não
fosse algo comum na infância de todo mundo); e que tal o
Transtorno Disfórico Pré-Menstrual? Uma categoria diagnóstica
exclusiva para mulheres que sentem sintomas físicos e
psicológicos no período menstrual (difícil encontrar alguma
mulher que não possa ser enquadrada nos critérios estabelecidos
por essa categoria); não podemos deixar de citar também a
inclusão do sofrimento intenso diante da perda de alguém querido
ou querida – luto – no quadro sintomático do Transtorno
Depressivo Maior (APA, 2014).
Absurdos, generalizações baratas e patologizações
extremas não faltam no DSM-5. Infelizmente, não há espaço para
problematizarmos todas, já que a ideia é apenas ilustrar. Mas, por
que estamos apresentando esse excesso de categorias diagnósticas
psiquiátricas como parte do idioma Neoliberalês? Simplesmente
porque nem o DSM, nem quem elabora o manual e nem quem o
propaga tem qualquer compromisso com a ciência.
Whitaker (2017), Freitas e Amarante (2017), Kedouk
(2016), Gotzsche (2016) e Angell (2007) são alguns dos autores
67
e autoras – respeitadíssimos no Brasil e no mundo – responsáveis
por divulgar as corrupções psiquiátricas e farmacêuticas,
sobretudo no que diz respeito ao processo de criação/revisão de
um DSM. O que há é um forte interesse político e financeiro por
detrás da existência desse manual, na medida em que ele se torna
uma grande ferramenta – talvez a maior – de propaganda
farmacêutica. Ter uma categoria diagnóstica listada nesse manual
é garantia de uma venda vertiginosa dos produtos considerados
eficazes para o “tratamento” de determinado fenômeno
(SANTOS, 2014).
Se tudo isso já não fosse por demais absurdo, ainda se
soma o fato de que, diferente do que ocorre em outras
especialidades médicas, na aliança entre indústria farmacêutica e
psiquiatria, descobre-se primeiro a droga, estuda-se seus efeitos e
sua ação sobre o sistema nervoso para, a partir disso, elaborar algo
que vai se transformar em uma categoria diagnóstica. Logo, as
psicopatologias descritas no DSM são mais frutos de uma aliança
político-financeira, perpetrada por representantes médicos e
empresários do que conclusões extraídas de estudos científicos8
(WHITAKER, 2017).
8
Há também os casos de exclusão de uma categoria diagnóstica do manual –
como o caso da homossexualidade – e os de inclusão – como o do Transtorno
68
Se tudo isso é verdade, por qual motivo essas categorias
ainda são propagadas como fatos científicos? Como foi dito
anteriormente, o Neoliberalês conta com uma ampla gama de
veículos que modulam a realidade de acordo com o que as
diretrizes neoliberais vão solicitando: essa forma de
patologização das expressões humanas que tem ocorrido de
maneira mais forte e escancarada, a partir da década de 1980,
encontra respaldo nas explicações neuroquímicas. É dito e
amplamente divulgado que todo sofrimento psíquico/mental
ocorre por algum desajuste neuroquímico. Essa hipótese, além de
incomprovada é facilmente desmentida, porém, largamente
divulgada: seja em portais e plataformas ditas científicas, em
programas de prestígio na TV e, até de maneira irreverente,
através de memes na internet. Através dessa narrativa, a
psiquiatria constrói um novo mercado, a saber, o de
comercialização de drogas psicoativas. É dessa forma que a
psiquiatria e indústria farmacêutica se tornam aliadas
(WHITAKER, 2017).
É através dessa união que as lógicas de mercado
neoliberais vão penetrando nos serviços/saberes responsáveis por
70
entre muitas outras coisas. A cura é uma cobrança da sociedade
do consumo. O capitalismo estabelece a relação do sujeito com o
objeto, onde o próprio sujeito é objetificado, ou seja, se torna uma
mercadoria. A tentativa de se bastar por si mesmo,
usando/ingerindo soluções mágicas para continuar produzindo e
se mantendo cada vez mais distante de si próprio, permite que o
eu seja apropriado pelo neoliberalismo, que usa essa matéria para
criar um novo ser, que corresponda às necessidades do capital
(DARDOT & LAVAL, 2016).
Inclusive, é justamente por causa dessas necessidades do
capital e da objetificação do sujeito, que surge e se estabelece,
cada vez mais, uma era onde a ingestão de algumas drogas
farmacêuticas perde seu caráter terapêutico em favor de um uso
voltado para o aperfeiçoamento. Compostos químicos – muitos
deles farmacêuticos – surgem como as mercadorias por
excelência nessa tão citada sociedade do desempenho. Os maiores
exemplos dessa lógica são o Viagra para o desempenho sexual
masculino, os esteroides e anabolizantes para o desempenho
muscular de atletas e de entusiastas do chamado corpo sarado e
alguns psicofármacos – entre eles a Ritalina – para o desempenho
cognitivo.
71
Aqui, o Neoliberalês se faz presente em expressões como
desempenho, aprimoramento e aperfeiçoamento, que acabam por
se tornar os ideais mais almejados nessa sociedade do
desempenho neoliberal, onde os imperativos autoimpostos de
performance física e mental acima da média são mais importantes
que a própria vida. Se o eu é objetificado e se torna uma
mercadoria, a otimização pessoal precisa ser imperativa, pois
somente o funcionamento perfeito do sistema serve; mercadoria
boa é mercadoria atualizada e funcionando.
A ideia de mercadoria é muito adequada, inclusive, se
formos fazer uma análise dos relacionamentos contemporâneos.
De acordo com Bauman (2008; 2001) a política-vida do indivíduo
moderno é circunscrita através de parâmetros econômicos, ou
seja, todas as ações no mundo estão atravessadas – e até mesmo
definidas – por lógicas de compra/venda e lucro/prejuízo. As
relações humanas não se excluem dessa racionalidade.
As lógicas de mercado invadem a vida pública e cotidiana,
contribuindo para a criação e estabelecimento de uma sociedade
totalmente voltada para o consumo: tudo pode ser
comercializado, principalmente estilos de vidas, padrões de
estética e saúde. As próprias pessoas são vistas como mercadorias
72
que podem ser desejadas, consumidas e depois descartadas tão
logo percam sua funcionalidade.
Enquanto mercadorias, as pessoas se lançam numa busca
cansativa e interminável para adquirir ou aumentar seu valor de
mercado, para se tornarem desejadas pelos consumidores. Isso é
feito, em grande medida, com investimentos que atingem a
aparência e envolvem desempenho e ações de consumo:
academias para a busca por um corpo perfeito (sem gorduras
indesejadas e de preferência com músculos avantajados, clínicas
de estética para procedimentos cirúrgicos diversos, botox,
alinhamento facial, silicone, lipoaspiração, entre outros);
farmácias para medicamentos de desempenho e suplementos;
shoppings centers com lojas de marcas famosas e caras para
roupas e acessórios que chamem a atenção; e etc. Em suma, para
se tornar uma mercadoria verdadeiramente atraente e desejável,
não há solução fora do mercado (HAN, 2018; BAUMAN, 2008).
“O corpo, com seu valor expositivo equipara-se a uma
mercadoria. [...] Não se pode amar o outro, a quem se privou de
sua alteridade; só se poderá consumi-lo” (HAN, 2017a, p. 26, 27).
É importante destacar que o eu não está livre desse jugo.
Se nós buscamos por pessoas-mercadorias que possam saciar
nossa vontade de consumo, nós também somos pessoas-
73
mercadorias consumíveis por outros que também buscam saciar
suas vontades de consumo. Nós também estamos submetidos a
essa lógica de autoaperfeiçoamento para elevação de nosso valor
de mercado. É um ciclo infernal e que se alimenta da fragilidade
humana.
Toda essa dinâmica também está intermediada pelo
Neoliberalês, que estabelece como parâmetro de avaliação e
objeto de desejo, expressões como like e view. Essas duas
pequenas palavras, a partir da incorporação ao idioma neoliberal,
se tornaram o valor máximo de nossa sociedade do desempenho.
A aparência corporal, as ações no mundo, a performance em
qualquer área, viagens, compras, propagandas, a política, a
ciência, enfim, a totalidade da existência humana, em sua esfera
cultural, social e histórica, passa a girar em torno do mais-like e
do mais-view.
O valor de mercadoria do sujeito do desempenho é
avaliado de acordo com seu número de seguidores nas redes
sociais virtuais, pelo número de likes e views que seu conteúdo
recebe. Então para que seus números cresçam e, por conseguinte,
seu valor de mercadoria, o indivíduo também precisa de muita
eficiência e desempenho para entregar aquilo que as pessoas
querem ver e escutar. O mais-like e o mais-view são o mesmo que
74
o mais-desempenho e o mais-consumo. A vida, na sua totalidade,
é tomada pelo ideal da alta performance.
Ter tantas áreas da vida submetidas a esses imperativos
autoimpostos de desempenho, produtividade e consumo,
difundidos por um poder inteligente que estimula as relações de
positividade, onde o eu se explora de maneira ilimitada, só
poderia inaugurar uma era do esgotamento, ou uma sociedade do
cansaço – como Han (2017b) gosta de chamar. Esse mecanismo
é reforçado de dentro para fora através da intervenção sobre a
linguagem, causando profundas transformações ideológicas sobre
a consciência individual e coletiva na sociedade.
O idioma Neoliberalês reforça essa racionalidade onde
bloqueios, debilidades, erros e dores, devem ser removidos
terapeuticamente para melhorar a eficiência e desempenho. A
única experiência desagradável tolerada nesse contexto social é
aquela que pode ser explorada em favor de uma otimização de
produção, pois a ordem autoimposta é produzir sempre mais. A
ortopedia disciplinar é substituída pelas cirurgias plásticas e
academias, o corpo forte hoje se torna vitrine de uma produção
que não pode cessar. Com isso, vale tudo para aumentar a
potencialização do que é visível e que pode – e tem que – ser
75
rapidamente substituído, quando não corresponde ao que é
imposto ou sutilmente sugerido (HAN, 2018; BAUMAN, 2004).
Não há espaço e nem tempo para o desagradável nessa
conjuntura social. A dor, o desconforto, o tédio e o sofrimento são
tidos como verdadeiros demônios que precisam ser expulsos a
todo custo, e os (as) terapeutas, os medicamentos, o consumo e o
desempenho exacerbado, a busca por prazer corporal e
emocional, as redes sociais virtuais e muitas outras coisas são
consideradas como os sacerdotes que, de forma espiritual,
realizam o expurgo.
No idioma Neoliberalês, a expressão psicotrópico –
enquanto o signo usado para representar o dispositivo9
psiquiátrico de afastamento compulsório daquelas formas de
sofrer que colocam a produtividade sob ameaça – ganha um
correlato, a saber, o termo nootrópico – a representação
linguística do dispositivo farmacêutico de aprimoramento mental
e corporal, que tem como objetivo potencializar processos
biológicos e cognitivos, a fim de deixar o indivíduo pronto para
9
Dispositivo é um conceito explorado por Foucault (1984), que se refere aos
saberes estruturais e estratégicos, que podem atuar tanto institucionalmente,
como burocraticamente e/ou administrativamente, afim de consolidar e
propagar um determinado exercício de poder em uma determinada sociedade.
76
os imperativos sempre maiores de desempenho e produtividade.
Han (2018) nos alerta:
A psicopolítica neoliberal inventa formas de exploração cada
vez mais refinadas. Inúmeros workshops de gestão pessoal,
fins de semana motivacionais, seminários de
desenvolvimento pessoal e treinamentos de inteligência
emocional prometem a otimização pessoal e o aumento da
eficiência sem limites. As pessoas são controladas pela
técnica de dominação neoliberal que visa explorar não
apenas a jornada de trabalho, mas a pessoa por completo, a
atenção total, e até a própria vida. O ser humano é descoberto
e tornado objeto de exploração (p. 45, grifo do autor).
77
soluções para os problemas sistêmicos só podem ser biográficas,
ou seja, precisam partir dele próprio: “não interessa que você não
tem culpa pelas mazelas da sociedade, como desemprego em
massa, desigualdade social, preconceito, falta de acesso à
educação, saúde e segurança, e também não interessa se aqueles
e aquelas que nos representam politicamente também não tentam
melhorar a sua qualidade de vida; vai ficar reclamando? Vai ficar
de mimimi? Você precisa ser resiliente, ter inteligência
emocional, superar as adversidades, você precisa de terapia, você
precisa de tal medicamento para te dar um up, você precisa de um
workshop de gestão pessoal e financeira. E daí que sua
aposentadoria é pouca e boa parte dela vai com remédios? Você
pode virar motorista de aplicativo, já ouviu falar da vovó uber? E
daí que você não tem carro? Dá para entregar lanche de bicicleta”.
Sem o Neoliberalês essa racionalidade neoliberal não
conseguiria se estabelecer. Se a linguagem tem de fato uma
função de estruturação subjetiva, como aponta Volóchinov
(2018), uma dominação eficiente que ocorre de dentro para fora,
como essa realizada pelo neoliberalismo, só poderia dar certo
através da elaboração de um idioma ou vocabulário próprio. Se
for verdade o que Fanon (2008) diz, que aprender/falar uma
língua é assumir uma cultura e que possuir determinada
78
linguagem é também possuir o mundo que essa linguagem
expressa, muito – ou talvez tudo – de nossa cultura individualista,
de consumo e de desempenho, poderia ser explicada através do
uso que fazemos do idioma Neoliberalês.
79
80
6
81
disciplinar, demonstramos, como exemplo, a implementação da
Novafala, um idioma próprio forjado pelo Grande Irmão para
estabelecer e ampliar seu projeto político de dominação. Uma vez
que tal idioma permitiria, ao destruir as palavras que denotam
qualquer ideia intimidante ao partido, a redução de tempos em
tempos das chances de comunicação. Em contrapartida, na
sociedade do desempenho-neoliberal, que dispõe de um poder
inteligente, as tecnologias fomentam a produção do discurso. O
sujeito-serpente faz uso da palavra, ele é um agente e consumidor
de conteúdo. Sua palavra é, com efeito, herdeira do “novo
sujeito”, de consciência convertida, que carrega traços
neoliberais.
Posto assim, podemos depor que chegamos ao âmago
deste ensaio. O percurso analítico-narrativo que fizemos até o
momento nos desvela a compreensão de que, a valer, assim como
o partido totalitário da Obra de Orwell (2009), os regimentos
neoliberais, autores da instituição e consolidação do mercado
como novo soberano, estabelecem o controle social
contemporâneo através da criação e propagação de um idioma
próprio, denominado aqui de Neoliberalês.
Portanto, é fundamental notarmos que o Neoliberalês é,
na prática, a arquitetônica linguística de controle social da
82
sociedade do desempenho-neoliberal, que se vale de um sistema
de colonização, que se espacializa10 por meio dos discursos,
avançando de maneira capilar, assenhoreando-se progressiva e
velozmente dos territórios de nossa vida. Por essa razão, somos
pertencentes a uma colonização efetivada em um sistema de um
pelo outro, manifestado nas invenções e (re)significações das
palavras, sem que o poder precise nos subjugar, segregar ou
coagir para que estabeleça seu domínio. Embora todo processo de
colonização encontre resistências e lutas pelos territórios
geográficos, culturais e de sentido, contra esta forma de
colonização, exercida através da espacialização da linguagem, as
possibilidades de revoluções e relutâncias são mínimas, dado que
– como acreditamos que não somos sujeitos submissos, por não
haver uma figura de coerção externa como na sociedade
disciplinar – somos acompanhados e acompanhadas por um
sentimento de liberdade, que termina por interiorizar formas de
exploração.
A arquitetônica linguística que insistimos tanto em
desvelar, conduz o sistema neoliberal a uma estabilidade
fundamental na operação de sua dominação. O Neoliberalês, com
10
Usamos o termo espacializar como sinônimo de perpetuação espacial, isto
é, algo que ganha dimensões através do espaço/território.
83
todo seu aparato de produção/(re)significação das palavras,
promovendo, como argumentamos, um alargamento lexical e
semiótico que mira na criação e propagação de representações
aceitáveis para situações que, por natureza, não são tão aceitáveis
assim, elimina toda e qualquer resistência e oposição ao sistema
sem que seja necessário o uso de violência marcial.
O poder que ampara o estabelecimento do sistema da
sociedade disciplinar situava-se mediante a uma organização
repressiva. A classe trabalhadora era explorada brutalmente pelos
patrões. Contudo, essa exploração violenta era manifesta e
visível, o que levava, então, a protestos e resistências. Nesse
contexto, a possibilidade de uma revolução contra a relação
dominante é latente, pois tanto a opressão quanto o opressor são
visíveis concretamente. O sistema neoliberal, por sua vez, pelo
uso linguístico, estrutura-se de uma maneira completamente
distinta. O poder que o esteia não se situa mais por uma
organização repressiva, mas de uma maneira atrativa e quase
irresistível. Não demonstra tanta visibilidade quando era do
regime disciplinar. Não há, portanto, a concretude de um opositor
que restringe a liberdade e usa de coerções, criando, assim, uma
necessidade de resistência.
84
Como produto dessa organização do poder que se
manifesta de forma atrativa, o neoliberalismo delineou o
trabalhador oprimido em um empreendedor de si mesmo, através
da eterna sensação de liberdade. Cada indivíduo trilha seu
empreendimento no caminho da autoexploração, sendo o
explorado e o explorador ao mesmo tempo. A sequela causada
por esse arranjo faz com que, quem fracasse hoje, culpabilize a si
mesmo. O questionamento se direciona ao eu e não ao sistema,
transformando a despolitização do sujeito/cidadão na grande
sequela de todo esse arranjo.
Hoje, nos expomos por livre e também espontânea
vontade. Será essa sensação de liberdade sentida que torna os
protestos e as revoluções uma quase não possibilidade. Afinal,
como nos ajuda a questionar Han (2021): “Protestar contra o quê?
Contra si mesmo?” (p. 35). O sujeito submetido não tem nem
sequer consciência de sua subjugação. Concebe-se em liberdade.
A técnica de controle social neoliberal neutraliza a resistência a
ela de uma maneira efetiva. Han (2021) demonstra que o regime
Neoliberal dispõe de uma estabilidade imunizada contra a
resistência e oposição, seja ela qual for, precisamente porque faz
uso da liberdade no lugar da opressão. A opressão e restrição da
liberdade vai gerar, em algum momento, uma resistência. A
85
exploração da liberdade, por sua vez, quase não dá espaço para
essa condição.
Na obra Capitalismo e impulso de morte: ensaios e
entrevistas (2021), Han enuncia que, diante desse cenário de não
resistência e oposição ao sistema neoliberal, “uma revolução já
não é possível” (p. 31). Não obstante, embora tenhamos
percorrido um caminho de profusas concordâncias com seu
pensamento, nos permitimos aqui um descaminho diante dessa
afirmação.
Discordamos da impossibilidade de uma revolução,
mesmo diante deste sistema que demonstra tanta estabilidade. É
óbvio que não somos ingênuos em pensar uma revolução que
possa ocorrer de uma maneira macro, mas sim de uma
organização micro, que embora seja fragmentada, ainda assim é
uma revolução; uma microrevolução. E é a despeito da crença e
esperança nas microrrevoluções que se situa o movimento
provocativo deste ensaio: se a colonização se dá através do um
pelo outro, a resistência a esse mecanismo precisa se dar,
também, em um pelo outro, ou seja, espacializando, de alguma
maneira, uma nova compreensão sobre os enunciados que possam
esvaziar de sentido as palavras que compõem esse idioma
neoliberal, tencionando uns com os outros e exercendo nossa
86
função criativa para alcançar as microrrevoluções necessárias,
com intenção de provocar um abalamento nas formas de
subjetivação que agora se encontram hegemônicas.
Todos aqueles que compreendem a necessidade dessas
rupturas tornam-se responsáveis por elas, mas, sobretudo nós que
compomos a classe dos trabalhadores e trabalhadoras sociais, que
de alguma maneira contribuímos para as formações subjetivas.
Esperamos que a construção narrativo-provocativa deste ensaio
possa nos levar a uma tomada de consciência sobre o fenômeno
de colonização e controle social que ocorre através da linguagem,
que se espacializa através do um pelo outro. Pois, é ao tomarmos
consciência que poderemos construir as microrrevoluções
necessárias que precisam passar, talvez, pelo estabelecimento de
resistências e (re)significações diante da arquitetônica linguística
neoliberal. Já que, desta forma, estaríamos atuando em um
movimento antagônico à espacialização de seu idioma.
É importante ainda que estabeleçamos a palavra-contra-
palavra. Também é necessária a construção de percursos
narrativos de resistência, que pretendem a constituição de novos
sentidos, juntamente com a negação dos sentidos das palavras que
constituem o idioma Neoliberalês.
87
Esses movimentos de microrresistências só são possíveis
se constituídos, estabelecidos e perpetuados na coletividade,
também através do um pelo outro, criando uma nova consciência-
resistência. Porquanto, os poderosos insistem em pensar que a
palavra deles é a única, mas não é; e é nesse território narrativo
que precisamos desenvolver uma gramática da resistência,
colocar palava-contra-palavra, construindo assim, tensões e
disputas indispensáveis para as rupturas. Eis aqui a nossa
palavra...
88
Referências bibliográficas
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION. Manual de
Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais – DSM 5. Porto
Alegre: Artmed, 2014.
ANGELL, M. A Verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos:
como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. 6. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2007.
ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletário de
serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BASAGLIA, F. As Instituições da Violência. In: AMARANTE,
F. (Org.). Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma
Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
______. As Instituições da Violência. In: BASAGLIA, F. (Org.).
A Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1985.
BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços
humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
______. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
______. Vida Para Consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
CARDOSO, A. S. A Liquefação da Psicopatologia Psiquiátrica:
uma estratégia psicopolítica de estimulação ao consumo de
psicofármacos. In: CASTRO, F. C. L.; ROSA, B. J.; MARQUES,
C. (Orgs.). Filosofia e Psicanálise: psicopolítica e as patologias
contemporâneas. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020.
CARTACAPITAL. Trabalho informal bate recorde no Brasil,
diz IBGE. CartaCapital, 2019. Disponível em:
89
<https://www.cartacapital.com.br/politica/trabalho-informal-
bate- recorde-no-brasil-diz-ibge/>. Acesso em: 05 de jan. 2022.
DARDOT, P. LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre
a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA,
2008.
FOUCAULT, M. Estratégia Poder-Saber. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.
______. Microfísica do Poder. 4 ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1984.
______. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de
France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização em Psiquiatria.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.
GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1974.
GOTZSCHE, P. C. Medicamentos Mortais e Crime Organizado:
como a Indústria Farmacêutica corrompeu a assistência médica.
Porto Alegre: Bookman, 2016.
GUIMARÃES JUNIOR, S. D.; GONÇALVES, L. R.;
CARDOSO, A. J. S. Do sujeito à sujeição: Apontamentos
reflexivos à psicologia organizacional e do trabalho em contexto
de pandemia pela COVID -19. R. Laborativa, v. 10, n.1, p. 40-
67, abr./2021.
HAN, B. C. Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017a.
90
______. Capitalismo e Impulso de Morte: ensaios e entrevistas.
Petrópolis: Vozes, 2021.
______. O Que é Poder?. Petrópolis: Vozes, 2019.
______. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de
poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
______. Sociedade do Cansaço. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2017b.
______. Topologia da Violência. Petrópolis: Vozes, 2017c.
KEDOUK, M. Tarja Preta: os segredos que os médicos não
contam sobre os remédios que você toma. São Paulo: Abril, 2016.
MOSÉ, V. Nietzsche e a Grande Política da Linguagem.
Petrópolis: Vozes, 2018.
ORWELL, G. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SANTOS, K. Y. P. Feliz Para Sempre? Uma análise dos efeitos
do uso a longo prazo de antidepressivos. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2014.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.
WHITAKER, R. Anatomia de Uma Epidemia: pílulas mágicas,
drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.
91