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TESE - Augusta Zana 2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica

UNIVERSITÉ DE PARIS
UFR d’Études Psychanalytiques
École Doctorale Recherches en Psychanalyse et Psychopathologie (ED 450)
Centre de Recherche Psychanalyse, Médicine et Société

Augusta Rodrigues de Oliveira Zana

Identidades e posições nas relações sociais em perspectivas feministas:


Interrogações à psicanálise a partir de articulações entre materialidade e discurso

Identités et positions dans les rapports sociaux selon des perspectives féministes:
Questions à la psychanalyse à partir d’articulations entre matérialité et discours

Rio de Janeiro
2020
Augusta Rodrigues de Oliveira Zana

Identidades e posições nas relações sociais em perspectivas feministas:


Interrogações à psicanálise a partir de articulações entre materialidade e discurso

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Insti-
tuto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, em cotutela com a Université de
Paris, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Teoria Psica-
nalítica e em Pesquisa em Psicanálise e Psico-
patologia.
Orientadoras: Simone Perelson e Laurie Laufer
Co-orientadora: Beatriz Santos

Rio de Janeiro
2020
Augusta Rodrigues de Oliveira Zana

Identités et positions dans les rapports sociaux selon des perspectives féministes :
Questions à la psychanalyse à partir d’articulations entre matérialité et discours

Thèse de doctorat de l’Université de Paris,


École Doctorale Recherches en Psychanalyse et
Psychopathologie (ED 450), en cotutelle avec
l’Université Fédérale de Rio de Janeiro.
Présentée pour l’obtention du titre de Docteur
en Recherches en Psychanalyse et Psychopa-
thologie et en Théorie Psychanalytique.
Dirigée par Simone Perelson, Laurie Laufer et
Beatriz Santos

Rio de Janeiro
2020
Augusta Rodrigues de Oliveira Zana

Identidades e posições nas relações sociais em perspectivas feministas:


Interrogações à psicanálise a partir de articulações entre materialidade e discurso

Orientadoras: Simone Perelson, Laurie Laufer e Beatriz Santos

Tese em cotutela apresentada e defendida publicamente para a obtenção do título de Doutor em


Teoria Psicanalítica, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em Pesquisa em Psicanálise
e Psicopatologia, pela Université de Paris.

Aprovada em 8 de julho de 2020.

Banca examinadora

_______________________________________________
Profª. Drª. Simone Perelson, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Orientadora)

_______________________________________________
Profª. Drª. Laurie Laufer, Université de Paris (Orientadora)

_______________________________________________
Profª. Drª. Beatriz Santos, Université de Paris (Co-Orientadora)

_______________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Leal Cunha, Universidade Federal de Sergipe

_______________________________________________
Profª. Drª. Fernanda Canavêz de Magalhães, Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________________
Prof. Dr. Joel Birman, Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________________
Profª. Drª. Patricia Porchat Pereira da Silva Knudsen,
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

_______________________________________________
Prof. Dr. Thamy Ayouch, Université de Paris
Para es alunes,
que transformaram em interrogação
o que era, para mim, ponto final.
AGRADECIMENTOS

À Simone Perelson, pela caminhada que compartilhamos desde o mestrado, para a qual eu não
poderia ter escolhido melhor parceira. Pelas pontuações que me possibilitaram chegar ao tema
desta tese, pelas ricas interlocuções sobre psicanálise e gênero, pelas indicações sempre preci-
sas. Pelo acolhimento e pela presença sempre tão generosa, pela orientação cuidadosa e sensí-
vel, que tornaram este processo de pesquisa um percurso de trabalho conjunto que vai deixar
muitas saudades para mim.

Je tiens à remercier Laurie Laufer de m’avoir reçue en tant que doctorante en cotutelle et
d’avoir dirigé ma recherche. Je la remercie également pour l’accueil généreux en France et la
disponibilité tout au long de la période d’études à l’Université de Paris, et de m'avoir accueillie
dans ses différents cours et intégrée à son séminaire de recherche, qui ont apporté des contri-
butions fondamentales à cette recherche.

À Beatriz Santos, por aceitar participar conjuntamente da orientação desta tese e por ter trazido
contribuições fundamentais à pesquisa. Pelo acolhimento e apoio, essenciais durante o período
de estudos na França. Pela orientação cuidadosa e encorajadora, assim como pelas ricas inter-
locuções sobre psicanálise e feminismos, decisivas para que eu pudesse prosseguir, tanto nos
momentos mais produtivos quanto naqueles de dúvidas e dificuldades.

Ao Eduardo Cunha, por acompanhar meu percurso desde o mestrado, pela generosidade e
disponibilidade ao diálogo ao longo dessa caminhada. Por aceitar gentilmente participar do
exame de qualificação e elaborar o pré-rapport de tese. Pelas indicações preciosas de leituras e
contribuições decisivas no momento do exame de qualificação, fundamentais para a delimita-
ção dos eixos em torno do quais se organiza a tese.

À Fernanda Canavêz, por ter se mostrado tão cuidadosa, generosa e disponível ao diálogo.

Ao Joel Birman, por acompanhar meu percurso desde o mestrado, de maneira sempre tão ge-
nerosa. Por aceitar gentilmente participar do exame de qualificação e pelas indicações preciosas
naquele momento, que contribuíram decisivamente para que a pesquisa explorasse outras pos-
sibilidades teóricas. Pelo rico diálogo que se estabelece em seus seminários, os quais, também
desde o mestrado, sempre trouxeram contribuições fundamentais à pesquisa.
À Patricia Porchat, por aceitar gentilmente participar da soutenance de mi-parcours e elaborar
o pré-rapport de tese. Pelas pontuações precisas no momento da soutenance de mi-parcours,
tanto contribuições teóricas quanto assinalamentos em relação ao processo de produção do
texto, fundamentais para me auxiliar a encontrar minha voz. Pelas ricas interlocuções sobre
psicanálise e gênero, pela presença sempre sensível e generosa, pelo apoio e encorajamento.

Ao Thamy Ayouch, por aceitar gentilmente participar da soutenance de mi-parcours, trazendo


contribuições decisivas, sobretudo a partir da pontuação quanto ao endereçamento da pesquisa,
o que a reorientou no sentido de interrogar a psicanálise. Pelas interlocuções sempre inspirado-
ras em seus seminários, que trouxeram contribuições fundamentais à pesquisa tanto por apre-
sentarem novas possibilidades no âmbito da psicanálise quanto pelas potencialidades abertas a
partir das incidências de outros campos do conhecimento.

A todas essas professoras e a todos esses professores, por aceitarem gentilmente participar da
banca e por colocarem em cena, de diversas maneiras, que uma outra psicanálise é possível.

Je tiens également à remercier Derek Humphreys et Pascale Molinier d’avoir gentiment ac-
cepté de participer au comité de suivi de ma thèse et d’avoir produit le rapport pour compte
rendu requis par l’Université de Paris.

A todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, pelas ricas


interlocuções, fundamentais à pesquisa. Ao Amandio Gomes e à Angélica Bastos, pelas con-
tribuições no processo de reflexão sobre nossas pesquisas, no Seminário de Dissertação e Tese.

Não poderia deixar de registrar meu agradecimento pelo período de estudos na França, ocasião
de interlocuções verdadeiramente apaixonantes, tanto no âmbito de perspectivas feministas, que
me encantaram pela pluralidade, quanto psicanalíticas, que reavivaram o brilho que a psicaná-
lise desperta em meus olhos. Je tiens à remercier les professeur·es et chargé·es de cours, no-
tamment Florence Rochefort, Jules Falquet, Mara Montanaro, Michelle Zancarini-Fournel,
Sylvie Steinberg et Thamy Ayouch de m’avoir aimablement reçue dans leurs cours en tant
qu’auditrice libre. Ces cours ont apporté des contributions décisives à la thèse. Sou também
especialmente grata à Patricia Porchat e à Simone Perelson, pelo período compartilhado na
França, particularmente rico, tanto no sentido de estreitar laços quanto das interlocuções sobre
gênero e psicanálise que se produziram.
À Alice Quintella e ao José Luiz Farias, pela disponibilidade e atenção em relação a todos os
trâmites do doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, e pelo cuidado
que foi decisivo para o processo de cotutela. Je tiens également à remercier les responsables
de l'École Doctorale, Ali Brador, Charlotte Rauxet et Karolina Garnczarek, et du Bureau des
Relations Internationales, notamment Daisy Moranga Boula, la responsable des cotutelles de
thèse internationales, pour leur accompagnement dans toutes les démarches administratives de
l’Université de Paris.

À minha família de amigas, pelos momentos compartilhados, pelo companheirismo, afeto e


cuidado, e pela compreensão de minhas ausências, que foram muitas ao longo do doutorado. À
Alessandra Ackel, pelos 25 anos de amizade, pela presença sempre carinhosa, pelo vínculo
que se manteve mesmo com a distância geográfica, pela leitura cuidadosa desta tese e por suas
contribuições ao trabalho. À Beatriz Sampaio e à Cintia Mori, pelos maravilhosos tempos de
Unicamp, à Helena Steiner e à Luciana Oushiro, pela caminhada compartilhada na USP, e a
todas pela amizade que permanece tantos anos depois. A Camila Kushnir, Camila Machado,
Jôse Sales, Lívia Schechter, pelas interlocuções na psicanálise, pelo apoio constante e pela
amizade que se mantém desde que nossos caminhos se encontraram, de alguma maneira, graças
à UFRJ. À Carolina Peixe Lessa, pelos tão frutíferos diálogos sobre psicanálise, pela genero-
sidade e parceria de uma amiga que comemora meus bons momentos com um entusiasmo maior
do que o meu próprio e que está sempre junto incondicionalmente nos momentos difíceis, pela
leitura cuidadosa desta tese e por suas contribuições ao trabalho. À Patricia Moschini e à Si-
mone Dominici pelo vínculo que se iniciou como colegas de trabalho e se transformou em
amizade, e à Simone, também, pela leitura cuidadosa de meu projeto de qualificação e pelas
contribuições teóricas decisivas no momento em que eu começava a trilhar os caminhos dos
feminismos. À Fernanda Arioli, pela amizade e pelo apoio sem o qual a cotutela não teria sido
possível, desde a ajuda com questões administrativas até a troca de experiências, tão fundamen-
tal quando estamos diante de algo tão desconhecido. À Júlia Schlemm, pelo dia-a-dia compar-
tilhado na BNF, que se tornava tão mais agradável e estimulante com nossos cafés marcados
pelas ricas interlocuções sobre nossas pesquisas, pela amizade que permanece tão próxima,
cheia de carinho e apoio, mesmo com a distância geográfica. À Natália Cidade, por se tornar
fundamental no dia-a-dia em Paris, pelos diálogos sobre psicanálise e pelo apoio tão importante
quando se compartilha a experiência de ser doutoranda, pela amizade marcada pela presença
sempre tão afetuosa, que se fortalece cada vez mais no Rio de Janeiro. À Nathalia Kloos pela
tradução tão atenta e cuidadosa do resumo substancial desta tese, que evidencia sua paixão por
tudo o que faz, por todo o apoio antes e durante o período em Paris, pela amizade e pelas dis-
cussões sobre feminismos, que deixaram tantas saudades.

Ao Anderson e à Tatiana, meus primos por nascimento, irmãos por escolha, pelo amor que
nos une e que só aumenta, junto com as saudades. Aos meus avós, Ary e Janyra (in memo-
riam), e aos meus pais, Celso e Margareth, por transmitirem a importância dos estudos, por
todo o apoio ao longo de minha formação e por sempre me estimularem a buscar meus sonhos.

Ao Eduardo, pelas interlocuções desde a Economia até a psicanálise, pelo apoio nos momentos
difíceis e pela presença sempre tão alegre nos bons momentos, pelo companheirismo em tantos
anos de caminhada juntos. Quando interesses e necessidades diferentes conduziram meu traba-
lho acadêmico a um período de estudos na França e o dele à China, não faltou apoio para em-
barcar em uma jornada que levou cada um a milhares de quilômetros do outro. Minha gratidão
pelo amor e parceria, mesmo quando isso significa não estar junto.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coorde-


nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro ao
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica.

Finalmente, mas não menos importante, ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecno-
logia do Rio de Janeiro (IFRJ), pela concessão do afastamento remunerado que tornou possí-
vel a cotutela. Aos colegas técnicos-administrativos e docentes, pelo acolhimento e carinho
com que me receberam na instituição. Dentre esses colegas, um agradecimento especial aos
responsáveis pelos trâmites administrativos relacionados ao afastamento, sobretudo Carlos
Silva, Fernando Beserra, Marta Barbosa da Silva, Neusa Pimenta e Tassia Freitas, e àque-
les que, na Coordenação e Direção, não mediram esforços para que o projeto da cotutela pu-
desse se concretizar: Fabiana Almeida, João Guerreiro, Thiago Matos e Wallace Vallory.
Aos estudantes, que tanto me ensinam, por terem mudado definitivamente os rumos desta tese.
RESUMO

ZANA, A. R. O. Identidades e posições nas relações sociais em perspectivas feministas:


Interrogações à psicanálise a partir de articulações entre materialidade e discurso. Tese
em cotutela (Doutorado em Teoria Psicanalítica), Instituto de Psicologia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, (Doutorado em Pesquisas em Psicanálise e Psicopatologia),
Escola Doutoral Pesquisas em Psicanálise e Psicopatologia, Universidade de Paris, Paris, 2020.

Tanto no âmbito da psicanálise quanto nos campos dos estudos feministas e queer, diferentes
perspectivas concebem a identidade “mulheres” como uma espécie de unificação imaginária.
No entanto, uma vez reconhecida a importância da dessessencialização, não podemos negar a
existência de vulnerabilidades diferenciadas. A partir dessa tensão, nosso objetivo é pensar a
categoria “mulheres” segundo a hipótese de que, se não há nada de “autenticamente feminino”
e, ao mesmo tempo, existe uma vulnerabilidade diferenciada, tal categoria não pode ser definida
senão em virtude de sua opressão. A partir de um referencial teórico ancorado na psicanálise,
notadamente Freud e Laplanche, bem como em perspectivas feministas, delineamos uma me-
todologia de pesquisa teórico-conceitual, orientada pela abordagem teórico-metodológica dos
“saberes situados”, a fim de interrogar a psicanálise a partir de inflexões ocasionadas por pers-
pectivas feministas. Fazendo recurso a proposições não-identitárias, tais como a performativi-
dade em Judith Butler e as contribuições de perspectivas feministas materialistas no que se
refere a posições nas relações sociais, chegamos a uma compreensão não essencialista da cate-
goria “mulheres”, caracterizada por posições nas relações sociais que circunscrevem formas
concretas e variadas de opressão, as quais não podem ser compreendidas senão a partir de rela-
ções sociais múltiplas e imbricadas. Nessa perspectiva, o “tornar-se mulher” pode ser concebido
enquanto a experiência mesma da opressão, que a psicanálise permite situar a partir de normas
operantes – por um princípio de hierarquia de gêneros – ao mesmo tempo em que sempre existe
algo que falha, uma vez que essa hierarquia se coloca para a criança como um enigma a traduzir.
Esa abordagem possibilita situar opressões gênero-específicas, assim como articular o que seria
a “especificidade da psicanálise”, levando em consideração as imbricações entre discurso (ou
o campo da representação) e materialidade.
Palavras-chave: Psicanálise. Perspectivas feministas. Identidade. Performatividade. Posições
nas relações sociais
RÉSUMÉ

ZANA, A. R. O. Identités et positions dans les rapports sociaux selon des perspectives
féministes : Questions à la psychanalyse à partir d’articulations entre matérialité et dis-
cours. Thèse en cotutelle (Doctorat en Théorie Psychanalytique), Institut de Psychologie, Uni-
versité Fédérale de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, (Doctorat en Recherches en Psychanalyse et
Psychopathologie), École Doctorale Recherches en Psychanalyse et Psychopathologie, Univer-
sité de Paris, Paris, 2020.

Que ce soit dans le champ de la psychanalyse ou dans celui des études féministes et queer,
différents courants perçoivent l’identité des femmes purement comme une sorte d’unification
imaginaire. Cependant, une fois reconnue l’importance de la désessentialisation, nous ne pou-
vons nier l’existence de vulnérabilités différenciées. À partir de cette tension, notre objectif est
de penser la catégorie « femmes » selon l’hypothèse que, s’il n’y a rien d’« authentiquement
féminin », mais il y a bien une vulnérabilité différenciée, la catégorie « femmes » ne peut être
définie qu’en vertu de l’oppression éprouvée par elles. Dans un cadre théorique ancré dans la
psychanalyse, notamment à partir de Freud et de Laplanche, et des perspectives féministes,
nous esquissons une méthodologie de recherche théorico-conceptuelle guidée par l’approche
théorico-méthodologique des « savoirs situés » afin d’interroger la psychanalyse à partir des
inflexions occasionnées par des perspectives féministes. En faisant appel à des propositions non
identitaires, telles que la performativité selon Judith Butler et l’apport des perspectives fémi-
nistes matérialistes concernant les positions dans les rapports sociaux, nous arrivons à une com-
préhension non essentialiste de la catégorie « femmes », caractérisée par une position dans les
rapports sociaux comportant des formes d’oppressions concrètes et variées, qui ne peuvent être
comprises en dehors des rapports sociaux multiples et imbriqués. Selon cette perspective, le «
devenir femme » est appréhendé en tant qu’expérience même de l’oppression, dont la psycha-
nalyse permet de situer à partir de normes opérantes – sur le principe de la hiérarchie des genres
– en même temps que défaillantes car cette hiérarchie se pose à l’enfant comme une énigme à
traduire. Cette approche nous permet de situer des oppressions genrées, ainsi que d’articuler ce
que serait la « spécificité de la psychanalyse », en tenant compte de l’imbrication entre discours
(ou le champ de la représentation) et matérialité.
Mots-clés : Psychanalyse. Perspectives féministes. Identité. Performativité. Positions dans les
rapports sociaux
ABSTRACT

ZANA, A. R. O. Identities and positions in social relations under feminist perspectives:


Questioning psychoanalysis based on articulations between materiality and discourse.
Thesis in co-tutorship (PhD in Psychoanalytic Theory), Institute of Psychology, Federal Uni-
versity of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, (PhD in Research in Psychoanalysis and Psycho-
pathology), Doctoral School Research in Psychoanalysis and Psychopathology, Paris Univer-
sity, Paris, 2020.

Both in the field of psychoanalysis and in that of feminist and queer studies, different perspec-
tives conceive the identity “women” as a kind of imaginary unification. However, once we
recognize the importance of desessentialization, we cannot deny the existence of differentiated
vulnerabilities. This tension placed, our objective is to think about the category “women” under
the assumption that if there is nothing “genuinely feminine”, but there is indeed a differentiated
vulnerability, that category can only be defined by the oppression experienced by them. In order
to question psychoanalysis about some feminist perspectives’ contributions, we outline a theo-
retical-conceptual methodology guided by the “situated knowledge” theoretical-methodologi-
cal approach based on a theoretical framework anchored in psychoanalysis, notably Freud and
Laplanche, and in feminist perspectives. Appealing to propositions outwards identity ap-
proaches, such as performativity according to Judith Butler and positions in social relations
provided by materialist feminism perspectives, we achieve a non-essentialist understanding of
the category “women”, characterized by positions in social relations bounded to concrete and
varied forms of oppression, which cannot be understood outside multiple and imbricated social
relations. In this perspective, “becoming a woman” can be defined by the experience of oppres-
sion, which psychoanalysis allows us to situate as operative standards, such as the principle of
gender hierarchy, that at the same time that work reveal their flaw, in the way that is posed to
the child as an enigma to translate. Understanding the notion of “women” in those terms allows
us to locate gender oppressions, as well as to articulate what would be the “specificity of psy-
choanalysis” considering the imbrications between discourse (or the field of representation) and
materiality.
Keywords: Psychoanalysis. Feminist perspectives. Identity. Performativity. Positions in social
relations
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 16

Delimitação do problema de pesquisa............................................................................... 27

Objetivos ............................................................................................................................ 29
Objetivo geral .................................................................................................................. 29
Objetivos específicos ....................................................................................................... 30

Metodologia ....................................................................................................................... 30

Estruturação dos capítulos ................................................................................................ 37

CAPÍTULO 1. IDENTIDADES E MÚLTIPLOS ATRAVESSAMENTOS NO


CENÁRIO POLÍTICO CONTEMPORÂNEO: REDISTRIBUIÇÃO E
RECONHECIMENTO CONTRA O “UNIVERSALISMO IMAGINÁRIO” ................ 39

1.1 A formulação freudiana de “identificação” e a crítica psicanalítica à concepção


de “identidade” .................................................................................................................. 43
1.1.1 Identificação e escolha de objeto .......................................................................... 44
1.1.2 A impossibilidade da identidade a partir da psicanálise ........................................ 54

1.2 Conceituações de “identidade” e a colocação em cena dos riscos de essencialismo


e de universalismo.............................................................................................................. 59

1.3 O debate redistribuição versus reconhecimento ................................................... 75


1.3.1 Hegel e a dialética do senhor e do escravo ............................................................ 78
1.3.2 Marx: a centralidade do trabalho e a luta de classes .............................................. 80
1.3.3 Reconhecimento em Axel Honneth ...................................................................... 84
1.3.4 A crítica de Nancy Fraser ..................................................................................... 89
1.3.5 Uma leitura do dilema redistribuição-reconhecimento a partir de um recorte
específico: gênero ...........................................................................................................102

CAPÍTULO 2. O QUE PERMANECE APÓS DESESTABILIZAR IDENTIDADES?


DIÁLOGOS ENTRE PERSPECTIVAS MATERIALISTAS E QUEER .......................108

2.1 O que corre o risco de ficar excluído em algumas teorizações psicanalíticas? ...113

2.2 Gênero: algumas contribuições a partir da Sociologia e da Antropologia .........121

2.3 “Se ‘mulher’ é apenas uma categoria sem conteúdo, por que tenho medo de
andar sozinha à noite?” ....................................................................................................133

2.4 O gênero como performativo e a importância de articular relações sociais que


tornam possíveis determinadas performances ................................................................139

2.5 Relações interindividuais e relações sociais : contribuições de perspectivas


feministas materialistas ....................................................................................................152

2.6 A materialidade da opressão em Judith Butler e Nancy Fraser .........................170


CAPÍTULO 3. O “TORNAR-SE MULHER” NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA:
NORMAS QUE OPERAM E FALHAM .........................................................................188

3.1 As restrições à sexualidade e as neuroses atuais: uma tematização da


materialidade da opressão ................................................................................................194

3.2 Sexualidade feminina, feminilidade e histeria: possíveis leituras a partir das


formulações freudianas ....................................................................................................207
3.2.1 A oposição masculinidade-feminilidade em Freud...............................................208
3.2.2 A histeria como questionamento da condição de opressão das mulheres ..............217
3.2.3 Sexualidade feminina e feminilidade ...................................................................225

3.3 Um princípio de hierarquia como fundamento de normas que operam e falham ... 240

CAPÍTULO 4. MATERIALIDADE, REPRESENTAÇÃO E “PARA ALÉM DA


REPRESENTAÇÃO”: É POSSÍVEL PENSAR A ESPECIFICIDADE
PSICANALÍTICA SEM ECLIPSAR RECONHECIMENTO E REDISTRIBUIÇÃO?
...........................................................................................................................................258

4.1 A importância de pensar a “especificidade da psicanálise” articulada a outras


dimensões de análise .........................................................................................................264

4.2 Normatividade e trabalho analítico ......................................................................287

4.3 Delineando possibilidades de conceituação de “mulheres” a partir de posições nas


relações sociais ..................................................................................................................297

4.4 Uma abordagem não-identitária do reconhecimento ..........................................315

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................326

RÉSUMÉ SUBSTANTIEL...............................................................................................341

REFERÊNCIAS ...............................................................................................................390
Introdução

Esta tese nasceu de um desconforto. Desconforto de alguém que iniciou o percurso aca-
dêmico não na psicologia nem na psicanálise, mas nas ciências econômicas, em uma instituição
com uma formação fortemente marcada pelas ciências sociais. Ao longo da graduação em ci-
ências econômicas, o encantamento com as ciências sociais sempre esteve presente. Quando
comecei efetivamente a trabalhar como economista, percebi que o que me atraía e tinha sido
responsável por minha continuidade na graduação não era a economia, mas, justamente, as ci-
ências sociais.
Pensei em fazer pós-graduação em ciências sociais, vivi um momento de repensar esco-
lhas – assinalando que faço recurso aqui ao termo “escolha”, embora considere que algo nos
atravessa, de maneira que talvez “sejamos escolhidos” mais do que, efetivamente, “escolha-
mos”. Cheguei à psicologia não pela via da psicanálise, mas pela psicologia social. Na tentativa
de conhecer esse campo que começava a me interessar, o primeiro livro que li foi “Psicologia
Social: O homem em movimento” (1986), organizado por professores da PUC-SP com a pro-
posta de “contribuir para uma psicologia voltada para os problemas concretos de nossa reali-
dade, tornando o profissional um agente de transformação na sociedade brasileira” (p. 7).
A escolha por cursar uma graduação em psicologia, e não uma pós-graduação em ciên-
cias sociais, veio da consideração de que gostaria de trabalhar no âmbito da clínica. Foi, então,
a partir do interesse pela clínica que cheguei à psicanálise. Talvez por ter sido a graduação em
ciências econômicas marcada pelas ciências sociais, tinha a expectativa de que também assim
seria a graduação em psicologia. No entanto, percebi que, se os economistas – pelo menos
aqueles, professores e colegas, com quem compartilhei o percurso na graduação – não tinham
dificuldade em articular o campo das ciências econômicas com o das ciências sociais, o mesmo
não parecia ser tão evidente na psicologia ou na psicanálise.
No mestrado, a escolha foi por um tema de pesquisa que se situava eminentemente em
um campo de articulação necessária, pelo menos a meu ver, entre psicanálise e ciências sociais:
o reconhecimento da alteridade. Naquele momento, o trabalho foi organizado em termos de
duas ordens de reconhecimento: reconhecimento entre indivíduos, que apareceria associado à
luta por direitos, e reconhecimento do estranho, da não-identidade, perspectiva que encontraria
ressonância na psicanálise. Foi ao longo do mestrado que entrei em contato com as ideias de
Judith Butler e a problematização dos riscos de essencialização quando se trata de categorias
identitárias. Entretanto, no momento da dissertação de mestrado, ficou a questão sobre como
16
articular essas duas ordens de reconhecimento. O desconforto foi recolocado, para mim, nos
seguintes termos: como articular a importância das lutas por direitos, se a psicanálise tratava de
outra coisa?
Finalizado o mestrado e a partir do desejo de atuação clínica, não segui diretamente para
o doutorado. Além da atuação em consultório e em uma clínica social de psicanálise, trabalhei
na área de psicologia hospitalar, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e, posterior-
mente, na Escola Nacional de Circo (ENC). Em abril de 2016, deixei o cargo de psicóloga da
ENC para assumir o de professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio de Janeiro (IFRJ), campus Nilópolis (município que se situa na região conhecida como
“Baixada fluminense”). A escolha por iniciar uma carreira na docência no IFRJ veio concomi-
tantemente ao início do doutorado, em março de 2016, três anos após a conclusão do mestrado.
No doutorado, pretendia dar continuidade ao trabalho com as ideias de Butler. Não es-
tava confortável com o que havia produzido no mestrado – afinal, ao reconhecer a importância
da luta por direitos e afirmar que a psicanálise tratava de outra coisa, permanecia a questão
sobre como articular aquilo de que supostamente trata a psicanálise com o que aparece no âm-
bito dos movimentos sociais – mas acreditava que o caminho para “movimentar” a psicanálise
era via Butler. Foi grande minha surpresa quando essa ideia foi interrogada, interrogação que
se deu fora do campo da psicanálise, a partir de interlocuções com os estudantes do IFRJ, que
me levaram a recolocar diversas questões.
Apenas para situar brevemente esta instituição, os Institutos Federais são definidos, em
sua lei de criação, como “instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurricu-
lares e multicampi, especializados na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferen-
tes modalidades de ensino”. No caso dos cursos de educação superior, para efeitos de regulação,
avaliação e supervisão, “os Institutos Federais são equiparados às universidades federais”
(BRASIL, 2008). Assim como as Universidades, os Institutos estão baseado no tripé ensino,
pesquisa e extensão, o que também está estabelecido na lei da criação e que se reflete no traba-
lho dos professores, que são, então, professores-pesquisadores.
No campus Nilópolis do IFRJ, não existem disciplinas relacionadas ao campo da psico-
logia no ensino médio, por isso eu apenas ensino na graduação. Ministrei as disciplinas obriga-
tórias de Psicologia Social para o bacharelado em Produção Cultural e de “Contemporaneidade,
subjetividade e práticas escolares” para as Licenciaturas em Matemática, Química e Física.
Como se trata de um contexto que prima pela articulação entre ensino, pesquisa e extensão,
minha atuação na esfera do ensino não é desvinculada de meu trabalho de pesquisa, então foi
nesse diálogo que se colocaram questões que modificaram os rumos da pesquisa.
17
Notei que, entre os estudantes, as ideias de Butler pareciam utópicas e talvez um tanto
acadêmicas, pouco articuladas com o cotidiano. Esse cotidiano exigiria a enunciação em torno
de categorias identitárias, frequentemente articuladas à noção de participação exclusiva dos
membros de determinado grupo identitário (por exemplo, coletivos em que a participação é
não-mista), bem como de políticas concebidas especificamente para determinados grupos.
Certa vez, ao recorrer às ideias de Butler para discutir a questão da identidade na disci-
plina de Psicologia Social, uma estudante disse que considerava que a ideia de problematizar
identidades permanecia como uma perspectiva para o futuro, mas que, no momento presente,
precisávamos dessa categoria. Ela fundamentou seu argumento a partir de um exemplo do trans-
porte público no Rio de Janeiro: em cada trem do metrô, há um vagão exclusivo para mulheres
nos horários de pico. Ela disse que considera que o vagão exclusivo não deveria existir, mas,
ao mesmo tempo, precisa existir. O ideal seria que todas e todos pudéssemos compartilhar es-
paços, mas, de fato, existe a realidade do assédio sofrido pelas mulheres, o que justifica a exis-
tência do vagão exclusivo.
O exemplo escolhido evidencia a defesa de uma política que reserva um espaço exclu-
sivo para as mulheres, através do reconhecimento de suas necessidades específicas, a fim de
garantir seus direitos (neste caso, sua liberdade de ir e vir). A fala da estudante coloca a ambi-
valência desse fato, tanto um sintoma de uma sociedade sexista quanto uma solução para tentar
dar conta de um aspecto da opressão vivenciada pelas mulheres. A ambivalência reside no fato
de que essa solução, ao separar um vagão exclusivo para mulheres, não deixa de reproduzir os
termos daquilo que se trata de combater. Em um horizonte ideal, poderíamos pensar em uma
desestabilização do que se compreende por “homem” ou “mulher” e que os espaços fossem
compartilhados. Porém, o que fazer diante da realidade do assédio sofrido pelas mulheres?
Outra vez, coloquei a questão sobre o que seria “mulher”, se seria possível ou não en-
contrar um terreno comum que caracterizasse todas as mulheres. Uma estudante respondeu que
não, que não havia algo que nos caracterizaria como mulheres, mas que, culturalmente, um
homem homossexual não é considerado “homem de verdade”, assim como uma mulher trans
não é considerada “mulher de verdade”. Essa pontuação da estudante coloca em evidência que
a categoria “mulheres” é uma produção, uma ficção, mas que opera na realidade, tem efeitos
reais.
A partir dessas interlocuções, comecei a me perguntar se minha identificação com as
ideias de Butler não seria articulada à posição privilegiada que ocupo. A ideia de problemati-
zação de identidades, que se colocava para mim como afirmação, foi transformada em interro-
gação. Se antes o desconforto se colocava pela dificuldade de articulação entre psicanálise e
18
ciências sociais, nesse momento esse desconforto ganhou um contorno adicional: o que signi-
fica a aproximação que se costuma estabelecer entre formulações da psicanálise e de Judith
Butler pela via da problematização das identidades? Será que nós, psicanalistas, estamos dei-
xando de fora uma dimensão da realidade de opressão?
Fiquei com essas questões, e, inicialmente, não encontrei nenhuma resposta. Seguiram-
se alguns momentos em que coloquei em dúvida se haveria, efetivamente, possibilidades de
articulação entre psicanálise e perspectivas feministas. Fundamental para o encaminhamento
dessas questões foi o período de estudos na França, que marcou definitivamente a pesquisa e a
tese. Por um lado, considero que talvez esta seja uma limitação da pesquisa, muita ancorada em
perspectivas francesas e norte-americanas, sobre as quais também me debrucei nesse período
na França. Por outro lado, acredito que neste ponto reside também uma potencialidade, por ter
aberto um caminho, a partir do qual é possível seguir trilhando outros, na trajetória como pes-
quisadora que não se encerra com a tese.
Esse caminho me possibilitou estabelecer articulações entre psicanálise e perspectivas
feministas, assim como me situar como psicanalista endereçando questões à psicanálise, ou
seja, como psicanalista analisando criticamente o “vocabulário básico do movimento de pensa-
mento ao qual pertence”, assim como afirma Butler (2005) em relação aos feminismos, como
veremos no capítulo 2.
Tendo trilhado esse percurso, continuei com minha hipótese inicial – a de que formula-
ções tanto da psicanálise quanto de Judith Butler possibilitam questionar a categoria da identi-
dade como integridade e permanência –, mas essa hipótese foi recolocada de maneira diferente,
a partir da ênfase na consideração de que também não podemos negar que categorias identitá-
rias, ainda que da ordem da ficção, operem na realidade. Mas talvez o mais importante tenha
sido uma mudança que reorientou os rumos da pesquisa: a hipótese de que, se reconhecemos a
importância da desessencialização e desconstrução, também não podemos negar a existência
de vulnerabilidades diferenciadas, o que coloca a necessidade de se pensar as realidades de
opressão. Dito de outra forma, consideramos ser importante um duplo movimento: assinalar a
importância da reflexão sobre a “identidade” como “unificação imaginária” e, ao mesmo tempo,
pensar a realidade material da experiência da opressão.
No que se refere à categoria “identidade”, é importante situar que a organização em
torno dessa categoria constitui uma característica da atual configuração do campo político das
demandas por direitos, configuração que adquire centralidade a partir do final do século XX,
como afirma Fraser (2006). Isso não significa que esse campo da luta por direitos se reduza a

19
grupos socioculturais que reivindicam o reconhecimento de suas especificidades para que seus
direitos sejam assegurados, mas sim que essa configuração é historicamente nova.
Esse recurso a categorias identitárias, ao mesmo tempo que se revela importante na luta
política, coloca dilemas – os quais, como lembra Almeida (2006), são problematizados mesmo
no âmbito dos movimentos sociais. No caso dos feminismos, Alcoff (1988) situa a concepção
de “mulher” como problema, uma vez que os movimentos e teorias feministas se organizam
em torno de uma concepção que não tem uma definição precisa.
Na tentativa de se falar em nome das mulheres, Alcoff (1988) considera que frequente-
mente se pressupõe que já se sabe o que as mulheres são. No entanto, a autora aponta os riscos
envolvidos nessa suposição, uma vez que misoginia e sexismo também se fazem presentes no
conhecimento produzido sobre as mulheres. Isso coloca as teóricas feministas diante do dilema
de que “nossa própria autodefinição se baseia em um conceito que devemos desconstruir e de-
sessencializar em todos os seus aspectos”1 (ALCOFF, 1988, p. 406, tradução nossa). Diante
desse dilema, a autora sintetiza duas diferentes posições:

[...] a resposta do feminismo culturalista à pergunta de Simone de Beauvoir, “Existem


mulheres?” é responder sim e definir as mulheres por suas atividades e atributos na
cultura atual. A resposta pós-estruturalista é responder não e atacar a categoria e o
conceito de mulher através da problematização de subjetividade.2 (ALCOFF, 1988, p.
407, tradução nossa).

Com relação a correntes que responderiam “sim, existem mulheres”, Alcoff (1988) situa
que, partindo da consideração de que muitas das definições do que seria “mulher” foram pro-
duzidas por homens, propõe-se que caberia às feministas descrever o que seriam “mulheres”.
Essa tendência se apresenta, para Alcoff (1988), entre feministas culturalistas (“cultural femi-
nists”), como Mary Daly e Adrienne Rich. Nessa perspectiva, não se questiona, portanto, a
definição de “mulher”, mas sim que esta definição seja feita por homens.
Defende-se, então, uma “natureza” ou “essência” feminina reapropriada pelas próprias
feministas, que passaria pela valorização de atributos femininos subvalorizados. A opressão das
mulheres não é localizada em um sistema social ou uma institucionalidade, mas na própria
masculinidade, por vezes inclusive na biologia masculina. A liberação das mulheres seria

1
“[…] our very self-definition is grounded in a concept that we must deconstruct and de-essentialize in all of its
aspects” (ALCOFF, 1988, p. 406)
2
“[…] the cultural feminist response to Simone de Beauvoir's question, ‘Are there women?’ is to answer yes and
to define women by their activities and attributes in the present culture. The post-structuralist response is to answer
no and attack the category and the concept of woman through problematizing subjectivity.” (ALCOFF, 1988, p.
407)

20
compreendida, então, a partir da criação de uma “cultura feminina”, o que fundamenta a criação
de espaços livre de valores masculinistas (ALCOFF, 1988).
A autora situa essa perspectiva como de feministas brancas, mas ressalta que não se trata
de uma abordagem homogênea. Sustentando uma perspectiva crítica, que vê riscos nessa abor-
dagem, Alcoff (1988), no entanto, não deixa de considerar que também existem considerações
válidas, sobretudo por se colocar em cena a valorização de aspectos culturalmente ligados a
mulheres. Dessa maneira, torna-se possível uma contraposição à valorização exclusiva do que
é articulado ao masculino. De acordo com a autora:

Depois de uma década ouvindo feministas liberais nos convidando a vestir ternos de
executivos e entrar no mundo masculino, é útil e corretivo que as feministas cultura-
listas argumentem que o mundo das mulheres está cheio de virtudes e valores superi-
ores, a serem creditados e aprendidos ao invés de desprezados.3 (ALCOFF, 1988, p.
414, tradução nossa)

No que se refere a correntes que respondem negativamente à questão “Existem mulhe-


res?”, Alcoff (1988) situa que a rejeição da possibilidade de definição é realizada por meio da
desconstrução das concepções de “mulher”, partindo da consideração de que a tentativa de de-
finir “mulheres” acaba por reproduzir estratégias misóginas. Entre essas vertentes, Alcoff
(1988) destaca a influência de teorias pós-estruturalistas francesas – entre as quais Foucault,
Derrida e Lacan –, cujas teorizações diferem muito, mas que encontrariam um ponto de con-
vergência, segundo a autora, na consideração de que o caráter de autonomia e autenticidade
articulado ao sujeito constitui uma construção do discurso humanista. Por meio de perspectivas
teóricas diferentes, esses autores propõem que não haveria atributos naturais que caracterizas-
sem o sujeito, nem mesmo uma consciência autônoma. Como explica Alcoff (1988):

Lacan usa a psicanálise, Derrida a gramática e Foucault a história dos discursos para
atacar e “desconstruir” nossa concepção de sujeito como tendo uma identidade essen-
cial e um núcleo autêntico que foi reprimido pela sociedade. Não há essencial núcleo
“natural” para nós e, portanto, não há repressão no sentido humanista.4 (ALCOFF,
1988, p. 415, tradução nossa)

A autora explicita que o termo “desconstrução” está associado principalmente a Derrida,


no processo de desvelar que metáforas se apoiam em oposições binárias – como homem/mu-
lher, sujeito/objeto, cultura/natureza etc – em que um dos termos assume valor superior. Alcoff

3
“After a decade of hearing liberal feminists advising us to wear business suits and enter the male world, it is
helpful corrective to have cultural feminists argue instead that women's world is full of superior virtues and values,
to be credited and learned from rather than despised.” (ALCOFF, 1988, p. 414)
4
“Lacan uses psychoanalysis, Derrida uses grammar, and Foucault uses the history of discourses all to attack and
‘deconstruct’ our concept of the subject as having an essential identity and an authentic core that has been repressed
by society. There is no essential core ‘natural’ to us, and so there is no repression in the humanist sense.”
(ALCOFF, 1988, p. 415)
21
(1988) considera que o termo passou a significar, de maneira mais ampla, o desvelamento do
caráter ideológico ou culturalmente construído de determinado conceito, que não constituiria
um mero reflexo da realidade.
Quando se trata do conceito de mulher, a aplicação da visão pós-estruturalista pode re-
sultar no que Alcoff (1988) denomina “nominalismo”, que circunscreve a concepção de que a
categoria “mulher” é uma ficção, e de que os esforços feministas devem buscar desconstruir
essa ficção. Nessa perspectiva, Alcoff (1988) situa Julia Kristeva e a defesa de que a prática
feminista só poderia ser negativa, rejeitando o que já existe, isto é, tudo o que estaria definido
e estruturado no estado vigente da sociedade.
Alcoff (1988) pontua que essa perspectiva é articulada a uma maior liberdade para as
mulheres, levando em conta uma pluralidade de diferenças, sem restrições a qualquer identi-
dade de gênero predeterminada. Além disso, teoriza algo que nem o feminismo cultural nem o
liberal tratavam: o aspecto de construção articulado à subjetividade. Destacadas essas contri-
buições, Alcoff (1988) discute, também os riscos. A autora considera que essa abordagem difi-
culta a contraposição à tendência dominante no pensamento intelectual ocidental, com sua
insistência no universal, neutro, sem perspectiva, de maneira que pode acabar por “conspira[r]
com essa tese do ‘humano genérico’ do pensamento liberal clássico”5 (ALCOFF, 1988, p. 420,
tradução nossa). No caso específico dos feminismos, “uma posição nominalista sobre a subje-
tividade tem o efeito deletério de remover o gênero de nossa análise, de tornar o gênero invisível
novamente”6 (ALCOFF, 1988, p. 420, tradução nossa).
Assim, para Alcoff (1988), ambas as respostas apresentam vantagens e limitações. O
feminismo cultural possibilitaria uma contraposição à tese do “humano genérico” do libera-
lismo clássico, ao mesmo tempo em que promoveria comunidade e auto-afirmação, mas se
basearia na afirmação de um essencialismo, injustificável e bastante problemático. A apropria-
ção feminista do pós-estruturalismo, por sua vez, evidenciaria o caráter de construção da sub-
jetividade – de homens e mulheres – e introduziria a consideração dos mecanismos de poder,
porém pode acabar limitando o feminismo ao âmbito de ações negativas (reação e desconstru-
ção).
A questão que se coloca, a nosso ver, é se estratégias como a desconstrução podem,
isoladamente, dar conta de problemas produzidos a partir de realidades de opressão. Se deve-
mos tomar seriamente os riscos de essencialismo, não podemos desconsiderar também os riscos

5
“[…] colludes with this ‘generic human’ thesis of classical liberal thought” (ALCOFF, 1988, p. 420)
6
“A nominalist position on subjectivity has the deleterious effect of de-gendering our analysis, of in effect making
gender invisible once again.” (ALCOFF, 1988, p. 420)
22
de universalismo, como pontuamos a partir de Alcoff (1988) e como desenvolveremos ao longo
da tese. Se não existe algo especificamente feminino que possibilitaria caracterizar a categoria
“mulheres”, também não podemos negar a existência de formas concretas e variadas de opres-
são.
Essa discussão será detalhada ao longo da tese, mas é importante situar, desde já, como
compreendemos “opressão”. Nancy Fraser (2006), autora com quem trabalharemos ao longo
de toda a tese, afirma que: “Oprimidas ou subordinadas, portanto, sofrem injustiças que remon-
tam simultaneamente à economia política e à cultura” (p. 233). No capítulo 1, detalharemos que
essas injustiças às quais a autora se refere incluem injustiças distributivas (econômico-políticas)
e culturais. As primeiras incluem exploração (expropriação do fruto do próprio trabalho), mar-
ginalização (que se refere a trabalhos não desejáveis e/ou mal remunerado, ou ainda ausência
de trabalho remunerado) e privação (relativa a um padrão de vida material adequado). Já as
injustiças culturais abarcam dominação cultural (submissão a padrões de representação), ocul-
tamento (invisibilização no campo das práticas de representação) e desrespeito (desqualificação
nas representações culturais) (FRASER, 2006).
No caso das mulheres, as injustiças na perspectiva da distribuição são discutidas por
Fraser (2003a) a partir da predominância de homens e mulheres, respectivamente, na divisão
entre trabalho “produtivo” remunerado e trabalho “reprodutivo” e doméstico não-remunerado,
bem como entre ocupações de remuneração mais alta, e ocupações com baixa remuneração, de
“colarinho rosa” (p. 20) e de serviços domésticos. No que se refere às injustiças culturais, Fraser
(2003a) destaca o androcentrismo como padrão institucionalizado que produz a desqualificação
do que é tido como “feminino”, articulado pela autora a situações de violência e exploração
sexual e doméstica, representações objetificadoras na mídia, assédio e a desqualificação na vida
cotidiana, exclusão ou marginalização das esferas públicas e processos decisórios etc.
Essas injustiças – distributivas e culturais – são “gênero-específicas”, como propõe Fra-
ser (2003a), ou seja, existe uma vulnerabilidade diferenciada. No entanto, isso não significa que
possamos tomar a dimensão do gênero isoladamente para compreender a opressão. Considera-
mos a imbricação das relações sociais, perspectiva a partir da qual discutiremos, no capítulo 2,
por exemplo, o “trabalho considerado feminino” na imbricação de relações de poder (relações
sociais de sexo, de “raça” e de classe), e não apenas a partir do gênero.
Situemos alguns dados para evidenciar essas realidades de opressão vivenciadas pelas
mulheres no contexto brasileiro. É fundamental destacar que, de acordo com relatório da Orga-
nização das Nações Unidas (ONU), divulgado em 9 de dezembro de 2019, o Brasil tem a se-
gunda pior distribuição de renda entre os países analisados: o 1% mais rico concentra 28,3% da
23
renda total do país, o que nos coloca atrás apenas do Catar (onde o 1% mais rico concentra 29%
da renda)7. Segundo dados divulgados em 13 de novembro de 2019, pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), entre os 10% mais ricos, 70,6% são brancos, o que se inverte
entre os 10% mais pobres: 75,2% são negros8.
Mas por que destacar esses dados que não fazem referência diretamente a mulheres?
Para nos alertar que, como veremos no capítulo 4, em um contexto tão injusto e desigual, a
defesa de igualdade salarial entre homens e mulheres pode representar apenas “igualdade na
miséria” (ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 42). Não podemos, portanto,
considerar gênero sem uma perspectiva de imbricação de relações de poder, o que implica con-
siderar gênero, raça, classe social, entre outras dimensões, múltiplas e imbricadas.
De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea)9, considerando os grupos homens brancos, mulheres brancas, homens negros, mulheres
negras, os dados de rendimento médio do trabalho revelam que não houve alteração significa-
tiva nas posições e distâncias entre esses grupos no período compreendido entre 1995 e 2015:
“As distâncias entre os quatro grupos populacionais não se alteram expressivamente ao longo
do período [...] é possível observar a manutenção da mesma ordem – homens brancos, mulheres
brancas, homens negros, mulheres negras – do maior para o menor rendimento” (IPEA, 2017,
p. 3).
No que tange a dados especificamente sobre as mulheres, de acordo com o Índice de
Desenvolvimento de Gênero (IDG), divulgado em 9 de dezembro de 2019 pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), embora as mulheres no Brasil estudem mais,
sua renda é 41,5% menor que a dos homens10. Esses dados são corroborados pela já mencionada
pesquisa realizada pelo Ipea, segundo a qual:

Se no caso do campo educacional, as mulheres encontram-se, em geral, em melhor


posição que os homens, esta vantagem não se reflete no mercado de trabalho, onde a
maior parte dos indicadores mostra uma hierarquia estanque, na qual o topo é ocupado
pelos homens brancos e a base pelas mulheres negras. (IPEA, 2017, p. 2)

7
“Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz relatório da ONU”. Por G1 em 09/12/2019. Disponível
em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/brasil-tem-segunda-maior-concentracao-de-renda-do-
mundo-diz-relatorio-da-onu.ghtml
8
“Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre os mais ricos”. Por UOL em 13/11/2019. Disponível
em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/13/percentual-de-negros-entre-10-mais-pobre-
e-triplo-do-que-entre-mais-ricos.htm.
9
Relatório “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça – 1995-2015”, pesquisa publicada em 2017, desenvol-
vida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a ONU Mulheres, a partir de indica-
dores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf
10
“Mulheres estudam mais no Brasil, mas têm renda 41,5% menor que homens, diz ONU”. Por G1 em 09/12/2019.
Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/mulheres-estudam-mais-no-brasil-mas-tem-
renda-415percent-menor-que-homens-diz-onu.ghtml.
24
Essa informação sobre a base ser ocupada por mulheres negras é importante para situar
o dado sobre o número de domicílios brasileiros chefiados por mulheres, que passou de 23%
para 40% entre 1995 e 2015. Tais famílias chefiadas por mulheres não correspondem apenas
àquelas em que não há presença masculina; em 34% delas, um cônjuge se faz presente. No
entanto, o elevado número de famílias constituídas por mulheres sem cônjuges e com filhos(as)
torna importante ressaltar que “tais famílias se encontram em maior risco de vulnerabilidade
social, já que a renda média das mulheres, especialmente a das mulheres negras, continua bas-
tante inferior não só à dos homens, como à das mulheres brancas” (IPEA, 2017, p. 1).
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, 54,8
milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da pobreza11, o que representava 26,5% da popu-
lação. Considerando os arranjos familiares, fica evidente a maior vulnerabilidade de mulheres
sem cônjuge com filhos (dentre os arranjos formados por mulheres sem cônjuge, com filhos até
14 anos, 56,9% estava abaixo da linha da pobreza), e, entre estas, de mulheres negras (a inci-
dência de pobreza se eleva para 64,4% quando considerados os arranjos formados por mulheres
pretas ou pardas, sem cônjuge, com filhos até 14 anos)12.
No que se refere ao trabalho doméstico não remunerado, segundo a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a média de horas semanais dedicadas por mulheres a atividades de afazeres domésticos
e/ou cuidado de pessoas é quase o dobro das horas despendidas por homens (21,3 contra 10,9).
Os dados de média de horas semanais dedicadas a tais atividades, segundo o sexo e a situação
na ocupação, evidenciam que os homens ocupados despendem em média 10,3 horas semanais
com afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, contra 12 horas entre os não ocupados. No
caso das mulheres, em média 18,5 horas entre as ocupadas e 23,8 entre as não ocupadas. Ou
seja, “mesmo em situações ocupacionais iguais, as mulheres tendem a dedicar mais horas a
afazeres domésticos e cuidado de pessoas que os homens” (IBGE, 2018a, p. 9). Além disso,
considerando que os homens não ocupados despendem em média 12 horas semanais com tais
atividades e as mulheres ocupadas em média 18,5 horas, as mulheres em situação de ocupação
despendem, em média, mais horas semanais às tarefas de casa e cuidados de pessoas do que os
homens em situação de não ocupação13.

11
Considerando critérios do Banco Mundial, estão abaixo da linha da pobreza as pessoas com rendimentos diários
abaixo de US$ 5,5, equivalente a R$ 406 mensais em 2017, pela paridade de poder de compra.
12
“Síntese de Indicadores Sociais 2017”, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf
13
Relatório “Outras formas de trabalho 2018 – PNAD contínua”. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/vi-
sualizacao/livros/liv101650_informativo.pdf
25
No que se refere à violência contra mulheres, dados do Ministério da Saúde revelam
que, em média, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida por ao menos um homem no
Brasil. Na maioria dos casos (36%), o agressor é o atual ou ex-companheiro. Esses dados in-
cluem violência física, sexual, psicológica e outros tipos, e referem-se apenas às mulheres que
sobreviveram à agressão. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 4.396
mulheres foram assassinadas no Brasil em 201714.
Com relação a maternidade e paternidade, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) revelam que, nos casos de divórcio em 2017, em 69,4% dos casos a guarda
dos filhos foi atribuída à mãe, em 4,8% ao pai e em 20,9% em regime de guarda compartilhada.
No entanto, o relatório destaca que o pai nem sempre assume de fato a responsabilidade na
guarda compartilhada: apesar da lei, há casos em que a guarda compartilhada fica “só no pa-
pel”15.
A discussão sobre pais que não cumprem ou cumprem apenas com as obrigações legais,
sem uma efetiva divisão de tarefas no cuidado com os filhos, vem aparecendo cada vez mais
nas redes sociais, articulada aos sentidos atribuídos culturalmente à maternidade e à paterni-
dade. Ganhou força nas redes sociais a expressão “o aborto masculino já é legalizado”, em uma
comparação entre aborto e abandono paterno. A ideia com a expressão é uma provocação no
sentido de evidenciar que, enquanto o aborto é intensamente debatido, o abandono paterno não
recebe a mesma atenção. Surgiram questionamentos à expressão, inclusive por feministas, mas
vale ressaltar a tentativa de chamar a atenção para o número elevado de homens que abandonam
filhos, sendo que 11 milhões16 de brasileiras são responsáveis, sozinhas, pela criação dos filhos.
A ideia seria “mostrar a contradição no peso que se dá à obrigação de uma mãe em comparação
à do pai”, ao evidenciar que o abandono paterno “não tem o mesmo espaço para discussão,
tampouco políticas públicas para evitar que pais abandonem crianças”17 (BRANDALISE,
2018).

14
“Brasil registra 1 caso de agressão a mulher a cada 4 minutos, mostra levantamento”. Por Folha de São Paulo
em 09/09/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-1-caso-de-
agressao-a-mulher-a-cada-4-minutos-mostra-levantamento.shtml
15
“Pais dividem responsabilidades na guarda compartilhada dos filhos”. Por Agência IBGE Notícias em
11/03/2019. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noti-
cias/23931-pais-dividem-responsabilidades-na-guarda-compartilhada-dos-filhos
16
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam 11,6 milhões de famílias de mulheres
sem cônjuge e com filhos em 2015. Informação obtida em: “Em 10 anos, Brasil ganha mais de 1 milhão de famílias
formadas por mães solteiras”, Por Clara Velasco, G1, 14/05/2017. Disponível em: https://g1.globo.com/econo-
mia/noticia/em-10-anos-brasil-ganha-mais-de-1-milhao-de-familias-formadas-por-maes-solteiras.ghtml
17
“O Aborto Masculino - A comparação entre aborto e abandono paterno ganhou uma frase que pipoca nas redes
sociais sempre que um dos dois temas aparece: ‘o aborto masculino já é legalizado’”. Por Camila Brandalise no
Universa em 23/08/2018. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-aborto-masculino/
26
Com esses dados, não temos a pretensão de dar conta de um panorama completo da
situação das mulheres no Brasil, mas apenas de situar a existência formas concretas e variadas
de opressão, por isso a importância do tema. Como afirma Alcoff (1988):

Gostaria de enfatizar que o problema da mulher como sujeito é real para o feminismo,
e não apenas no plano da alta teoria. As demandas de milhões de mulheres por assis-
tência infantil, controle reprodutivo e segurança contra agressão sexual podem rein-
vocar a suposição cultural de que essas são questões exclusivamente femininas e po-
dem reforçar a reificação da direita das diferenças de gênero, a menos que e até que
possamos formular um programa político que possa articular essas demandas de ma-
neira a desafiar, em vez de utilizar o discurso sexista.18 (ALCOFF, 1988, p. 435,
tradução nossa)

Delimitação do problema de pesquisa

Teorizações no campo da psicanálise e em outros campos do conhecimento evidenciam


que “identidade” é uma espécie de unificação imaginária. Em trabalhos de psicanalistas que
buscam aproximações com formulações de Judith Butler, o assinalamento do caráter ilusório
de identidades é frequentemente destacado como um ponto de convergência entre proposições
de Butler e formulações psicanalíticas, assim como o aspecto normativo de categorias identitá-
rias. De fato, se nos contentamos em recolocar categorias como “homem” e “mulher”, “mascu-
lino” e “feminino”, estamos reproduzindo um regime de normas, como se essas categorias ti-
vessem sempre existido – e não como algo contingente, resultante de uma dinâmica em cons-
tante movimento, de conflitos de forças etc.
No entanto, se “mulher” não existe enquanto uma essência – seja da ordem da anatomia
ou da cultura –, se não é possível definir uma região de algo “especificamente” ou “autentica-
mente” “feminino”, não deixa de ser verdade uma vulnerabilidade diferenciada e de realidades
de opressão das quais é importante falar. Seria possível, então, reconhecer sem essencializar a
condição de opressão/vulnerabilidade das mulheres?
Trata-se de um limite tenso a ser considerado: reconhecer a situação específica de uma
categoria socialmente construída, sem essencializá-la ou estabelecê-la como uma identidade.
Nesse sentido, uma das possibilidades é recorrer ao conceito de “essencialismo estratégico”,
proposto por Gayatri Chakravorty Spivak em sua entrevista com Elizabeth Grosz, em 1984

18
“I would like to emphasize that the problem of woman as subject is a real one for feminism and not just on the
plane of high theory. The demands of millions of women for child care, reproductive control, and safety from
sexual assault can reinvoke the cultural assumption that these are exclusively feminine issues and can reinforce
the right-wing's reification of gender differences unless and until we can formulate a political program that can
articulate these demands in a way that challenges rather than utilizes sexist discourse.” (ALCOFF, 1988, p. 435)

27
(CHAKRABORTY, 2010). Segundo Bahri (2010), Spivak define esse conceito como o uso
tático e intencional do essencialismo, articulado a um interesse político, sem jamais negar os
riscos associados ao essencialismo e circunscrevendo seu uso a um contexto específico e bem
definido.
Outras possibilidades – que discutiremos na tese, mais especificamente no capítulo 2 –
de compreensão da categoria “mulheres” em uma perspectiva não essencialista colocam-se a
partir das concepções de performatividade e de posições nas relações sociais. No que se refere
à concepção de performatividade, tal como proposta por Butler (1990/2013), consideramos im-
portante situar análises em termos de performance a partir das relações sociais que tornaram
possível tal performance. Quanto às posições nas relações sociais, trata-se de diferenciar níveis
interindividuais e estruturais em uma perspectiva de imbricação das relações sociais.
Neste momento, essas proposições estão apresentadas de maneira muito resumida, mas
serão detalhadas na tese. O que pretendemos destacar é que nosso esforço em trabalhar com
essas concepções – performatividade e posições nas relações sociais – está articulado à tentativa
de delimitar possíveis compreensões não essencialistas da categoria “mulheres”. Se não existe
nada de “autenticamente feminino” e, ao mesmo tempo, existe uma vulnerabilidade diferenci-
ada, a categoria “mulheres” não pode ser definida senão em virtude de sua opressão.
A importância de levar em conta a materialidade da opressão nos levou a estudar pers-
pectivas feministas materialistas e a lançar interrogações a algumas teorizações psicanalíticas.
Se psicanalistas não negam a existência de dimensões sociais e históricas, acreditamos que o
desafio é como efetivamente conseguir articular tais dimensões a uma leitura psicanalítica.
Muitas vezes, parece que essas dimensões ficam como algo que se “considera sem considerar”,
ou seja, reconhece-se que existem, mas a psicanálise vai tratar de outra coisa.
A dificuldade de relacionar diferentes dimensões de análise é destacada por Fraser
(2018a) ao afirmar que a teorização feminista tem como tarefa – importante e difícil, ao mesmo
tempo – articular “análises discursivas de significações de gênero com análises estruturais de
instituições e economia política” (p. 238). Essa dificuldade de articular materialidade e discurso
também se coloca, a nosso ver, no caso de teorizações psicanalíticas, com o desafio adicional
de articular dimensões que caracterizam a “especificidade da psicanálise”, como discutiremos.
Consideramos ser importante o esforço em buscar tais articulações, porque, na sua au-
sência, corremos o risco de reproduzir realidades de opressão no âmbito da clínica e de teori-
zações psicanalíticas – discussão que detalharemos no capítulo 4. No sentido de procurar

28
estabelecer articulações, orientamo-nos, como propõe Ayouch (2018)19, por uma atenção – clí-
nica e teórica – às vulnerabilidades, em uma perspectiva de reconhecê-las sem as essencializar.
Além disso, nossa hipótese é de que perspectivas feministas possibilitam interrogar a psicaná-
lise e colocá-la em movimento. Como afirma Laufer (2014a): “Tratar-se-ia, então, de extrair
dos estudos de gênero as críticas feitas à psicanálise, a fim de colocar em movimento a própria
psicanálise, que não pode ser excluída da história em que está inscrita.”20 (p. 20, tradução
nossa).

Objetivos

Objetivo geral
A partir dessa delimitação da problemática da tese, nosso objetivo geral é pensar a ca-
tegoria “mulheres” a partir da já enunciada hipótese de que, se não existe nada de “autentica-
mente feminino” e, ao mesmo tempo, existe uma vulnerabilidade diferenciada, tal categoria não
pode ser definida senão em virtude de sua opressão – inscrita em uma materialidade e discursi-
vamente mediada. Também buscaremos situar que as normas que (re)produzem a opressão são
operantes ao mesmo tempo em que existe algo que falha. Em uma leitura psicanalítica, essa
falha se coloca a partir da divisão, do imprevisto, de uma tradução que deixa restos. Além disso,
pretendemos recolocar diferentemente conceituações em termos de identidade, performativi-
dade e posições nas relações sociais, de maneira a lançar interrogações à psicanálise no que se
refere aos riscos de reprodução das situações de opressão no âmbito da clínica e das teorizações
psicanalíticas.
Importante especificar que, quando afirmamos que pretendemos “recolocar diferente-
mente”, nossa intenção é assinalar que não existe apenas uma possibilidade única de trabalhar
com essas concepções de identidade, performatividade e posições nas relações sociais. Uma
especificidade se coloca ao abordarmos essas conceituações em uma perspectiva que toma a
categoria “mulheres” como constituída em virtude de sua opressão.

19
Retomaremos esse argumento no capítulo 4, mas destacamos a necessidade de, nos termos de Ayouch (2018):
“[...] uma atenção psicanalítica, clínica e teórica, à maior exposição à vulnerabilidade dos sujeitos minoritários,
com sexuações e sexualidades não binárias” (p. 143, tradução nossa).
20
“Il s’agirait alors de puiser dans les gender studies les critiques faites à la psychanalyse afin de mettre en mou-
vement la psychanalyse elle-même, qui ne peut s’exclure de l’histoire dans laquelle elle s’inscrit.” (LAUFER,
2014a, p. 20)

29
Objetivos específicos
1) Circunscrever problemas epistemológicos e políticos que podem se apresentar a partir
de enunciações fundamentadas em categorias identitárias;
2) Discutir as concepções de performatividade de gênero e de posições nas relações sociais
a partir da consideração de que os aspectos da opressão das mulheres são discursiva-
mente mediados, mas sua materialidade não é meramente discursiva;
3) Delimitar uma possibilidade de compreensão da categoria “mulheres” como constituída
a partir de realidades de opressão e do “tornar-se mulher” enquanto fazer a experiência
destas opressões;
4) Pensar a especificidade da tematização da opressão na psicanálise a partir do assinala-
mento de normas que operam, ao mesmo tempo em que falham;
5) Situar que a desconsideração da realidade de vulnerabilidades diferenciadas coloca o
risco de reprodução das situações de opressão no âmbito da clínica e das teorizações
psicanalíticas.

Metodologia

A proposição de um trabalho de pesquisa que busca uma interlocução a partir de dife-


rentes campos epistemológicos coloca riscos, mas também abre possibilidades. Recorreremos
a outros campos do conhecimento (como filosofia e ciências sociais), e, sobretudo, a perspec-
tivas feministas, com o objetivo de interrogar a psicanálise. Do ponto de vista metodológico, é
preciso cuidado nesse esforço de interlocução entre diferentes campos epistemológicos, uma
vez que são caracterizados por linguagens e conceitos distintos. Tratando-se de um trabalho
teórico-conceitual, é importante buscar estabelecer paralelos, mas também estar atento para
traçar eixos de descontinuidade entre esses campos.
Cabe indicar, também, como pretendemos colocar os autores em diálogo e como as for-
mulações de diferentes campos do conhecimento contribuem para pensar nosso problema de
pesquisa. Como trabalhamos com muitos autores estrangeiros ao campo da psicanálise, alguns
que talvez não sejam muito conhecidos no Brasil, buscaremos, ao longo da tese, incluir (no
corpo do texto ou em nota de rodapé) algumas informações sobre esses autores – não sobre
todos os autores, mas sobre aqueles que trazem contribuições específicas que ganham centrali-
dade em nosso trabalho. Procuraremos também iniciar cada capítulo com uma apresentação de
como pretendemos fazer dialogar os diferentes autores e quais suas principais contribuições
para nossa pesquisa.
30
Consideramos também fundamental procurar esclarecer os caminhos que levam às nos-
sas escolhas teóricas e os mecanismos de pensamento implicados no trabalho, de maneira que
seja possível tanto a discussão sobre o conteúdo do trabalho quanto da própria estrutura meto-
dológica que o orienta.
Nesse sentido, procuraremos seguir a orientação de Freud (1933a/1996), que traça uma
possível aproximação entre o trabalho científico e o analítico, destacando a importância de
manter a atenção uniformemente suspensa, sem dirigir o reparo para algum conteúdo es-
pecífico. Segundo seus termos:

O progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise. Trazemos para


o trabalho as nossas esperanças, mas estas necessariamente devem ser contidas. Me-
diante a observação, ora num ponto, ora noutro, encontramos alguma coisa nova; mas,
no início, as peças não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as
quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência e vivaci-
dade em qualquer eventualidade, renunciamos às convicções precoces, de modo a não
sermos levados a negligenciar fatores inesperados, e, no final, todo o nosso dispêndio
de esforços é recompensado, os achados dispersos se encaixam mutuamente, obtemos
uma compreensão interna (insight) de toda uma parte dos eventos mentais, temos
completado nosso trabalho e, então, estamos livres para o próximo trabalho. (FREUD,
1933a/1996, p. 169-70)

A ideia original do projeto de pesquisa sofreu modificações substanciais ao longo do


tempo, pois, como nos lembra Freud, “trazemos para o trabalho as nossas esperanças, mas estas
necessariamente devem ser contidas”. Nesse percurso, “encontramos alguma coisa nova” e “re-
nunciamos às convicções precoces”. Inicialmente, pretendíamos discutir o problema do reco-
nhecimento e interrogar como o gênero possibilita interrogar a identidade. Ao longo da pes-
quisa, percebemos que “gênero” constitui um vasto campo de estudos e que se colocava a ne-
cessidade de um recorte. Fizemos esse recorte a partir da enunciação em torno da categoria
“mulheres” no âmbito de perspectivas e movimentos feministas, com a pretensão de problema-
tizar os riscos de essencialismo. No desenvolvimento da pesquisa, percebemos que se, por um
lado, temos os riscos de essencialismo, por outro, temos os riscos de universalismo, e temos
também a materialidade da opressão que coloca a necessidade de falar em termos de “mulheres”
– seja em termos de identidade ou não. Foi a importância da materialidade da opressão que nos
levou a perspectivas feministas materialistas, com as quais não tínhamos intenção de trabalhar
inicialmente. Assim, todo o processo de pesquisa foi marcado por questões e dúvidas que fomos
encontrando ao longo do caminho e que reorientaram os rumos do trabalho, de maneira que a
experiência de “encontrar alguma coisa nova” e “renunciar às convicções precoces” foi uma
constante ao longo do trabalho de pesquisa.

31
Outro aspecto que se alterou substancialmente foi o nosso endereçamento. Inicialmente,
não tínhamos a pretensão de interrogar a psicanálise, mas, no desenvolvimento da pesquisa,
percebemos que era precisamente disso que se tratava. Butler (2005), ao comentar sobre autores
que buscam discutir se seria possível transpor a teoria da performatividade de gênero para pen-
sar questões raciais, afirma que “a questão não é saber se a teoria da performatividade de gênero
é passível de transposição para a raça, mas ver o que acontece com a teoria quando ela é con-
frontada com a questão da raça”21 (p. 28, tradução nossa). Assim como Butler (2005), conside-
ramos mais produtivo pensar o que acontece com a psicanálise quando confrontada com as
incidências de outros campos teóricos. Nosso endereçamento é, portanto, aos psicanalistas, e
nossa opção metodológica é de interrogar a psicanálise a partir de perspectivas feministas.
Nesse sentido, não podemos deixar de considerar nossa posição, de maneira que ganha
importância, do ponto de vista metodológico, a perspectiva dos “saberes situados” (“situated
knowledge”), tal como proposto por Haraway (2009), autora que defende a noção de objetivi-
dade associada à concepção de conhecimento como parcial, localizado e crítico. Nessa pers-
pectiva, se pretendemos nos posicionar em relação a um objeto, é preciso que nos interrogue-
mos sobre nossa posição em relação a esse objeto – portanto, que nos interroguemos sobre
nossa posição, como psicanalistas, quando nos pronunciamos sobre qualquer objeto.
Teorias de perspectiva ou de ponto de vista (“standpoint theory”) surgiram nos anos
1970-80 como uma “teoria crítica feminista sobre as relações entre produção de conhecimento
e práticas de poder”22 (HARDING, 2004, p. 1, tradução nossa). Essas teorias se contrapõem à
afirmação de que uma perspectiva política prejudica a produção de conhecimento científico, de
maneira que as teorias de perspectiva ou de ponto de vista constituem “um método ou uma
teoria do método (metodologia)”23 (HARDING, 2004, p. 1, tradução nossa).
É importante destacar que não existe uma teoria de perspectiva ou de ponto de vista
unificada, mas diferentes proposições, como destaca Espínola (2012). Não é nosso objetivo
fazer uma análise exaustiva de tais perspectivas24, mas destacar aspectos que são importantes

21
“[...] je dirais que la question n’est pas de savoir si la théorie de la performativité du genre est transposable à la
race, mais plutôt de voir ce qui arrive à la théorie quand elle est confrontée à la question de la race.” (BUTLER,
2005, p. 28)
22
“[...] feminist critical theory about relations between the production of knowledge and practices of power”
(HARDING, 2004, p. 1)
23
“[...] a method or a theory of method (methodology)” (HARDING, 2004, p. 1)
24
Para um maior detalhamento sobre as teorias de perspectiva ou de ponto de vista, sugerimos, por exemplo:
ESPÍNOLA, A. F. (2012). Subjectivité et connaissance: réflexions sur les épistémologies du ‘point de vue’. Cahi-
ers du Genre, 53, n. 2, p. 99-120. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-cahiers-du-genre-2012-2-page-
99.html. Destacamos, ainda, que existem críticas dirigidas a tais perspectivas, como, por exemplo, a interrogação
se a ideia de “privilégio epistêmico” não recolocaria uma essencialismo. No âmbito desta tese, não faremos uma
32
para nosso trabalho, do ponto de vista metodológico: a concepção de que todo conhecimento é
situado e a importância de interrogar nossa própria posição.
No âmbito da produção de conhecimento, mulheres – assim como outros grupos opri-
midos – foram durante muito tempo objeto de estudo. A partir da consideração de que, em
produções científicas, aquele que fala nunca foi mulher, a questão que se coloca é se mulheres
poderiam se tornar sujeitos – e não objeto – do conhecimento (HARDING, 2004). Teorizações
feministas evidenciaram os vieses sexistas e androcêntricos da produção científica, o que levou
à formulação de questões epistemológicas, tais como: “o que teria sido uma ciência feita pelas
mulheres? Quais foram as consequências da hegemonia dos homens (brancos, de classe média,
ocidentais e heterossexuais) no campo da ciência?”25 (ESPÍNOLA, 2012, p. 99-100, tradução
nossa).
Espínola (2012) destaca as contribuições da análise feminista para a discussão sobre o
sujeito do conhecimento, “evidenciando em particular as inconsistências do sujeito livre de
condicionamento da filosofia moderna”26 (p. 116, tradução nossa). Esse sujeito do conheci-
mento – supostamente, a “humanidade em geral” – aparecia como um agente idealizado “fa-
lando com autoridade sobre tudo no mundo a partir de absolutamente nenhuma localização
particular ou perspectiva humana”27 (HARDING, 2004, p. 4, tradução nossa). Esse agente ide-
alizado, que supostamente falaria a partir de nenhum lugar ou perspectiva em particular, é, na
verdade, homem e branco, como afirma Haraway (2009). Essa “categoria não marcada” supos-
tamente teria o “poder de ver sem ser vista, de representar, escapando à representação”, quando,
ao contrário, tal “olhar significa as posições não marcadas de Homem e Branco” (HARAWAY,
2009, p. 18).
Harding (2004) propõe que o “conhecimento é sempre socialmente situado”28 (p. 7, tra-
dução nossa), mesmo quando aparece de maneira supostamente “neutra” ou “universal”, a partir
de agentes idealizados não marcados. Como afirma Ayouch (2018): “diferentes pontos de vista

análise detalhada de tais perspectivas, mas apenas retomaremos aspectos metodológicos importantes para nosso
trabalho.
25
“[...] qu’aurait été une science faite par les femmes ? Quelles ont été les conséquences de l’hégémonie des
hommes (blancs, de classe moyenne, occidentaux et hétérosexuels) dans le domaine de la science ?” (ESPÍNOLA,
2012, p. 99-100)
26
“[...] en montrant en particulier les inconsistances du sujet libre de conditionnement de la philosophie moderne.”
(ESPÍNOLA, 2012, p. 116)
27
“speaking authoritatively about everything in the world from no particular location or human perspective at all”
(HARDING, 2004, p. 4)
28
“Knowledge is always socially situated” (HARDING, 2004, p. 7)
33
[...] revelavam a parcialidade da enunciação da história oficial, supostamente objetiva, e, na
realidade, branca, masculina e heterocentrada”29 (p. 124, tradução nossa).
A partir dessa análise, Haraway (2009) propõe, então, que a objetividade na produção
de conhecimento científico está associada a saberes localizados: “saberes parciais, localizáveis,
críticos” (p. 23). Segundo seus termos: “Estou argumentando a favor de políticas e epistemolo-
gias de alocação, posicionamento e situação nas quais parcialidade e não universalidade é a
condição de ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional” (HARAWAY, 2009,
p. 30).
Consideramos que falar a partir de localizações particulares, historicamente específicas,
é importante por evidenciar que também as enunciações supostamente “universais” são parci-
ais, bem como para conferir visibilidade a posições minoritárias, historicamente invisibilizadas.
No entanto, é fundamental, também, estar atentos para reconhecer sem essencializar essas vozes
minoritárias, como afirma Ayouch (2018): “Embora essas tentativas de tornar visível a experi-
ência minoritária mostrem a extensão do silêncio e da opressão das vidas minoritárias”, deve-
mos levar em conta o risco de recolocar “sem analisar, e como identidades fixas, as categorias
de representação da história majoritária, homem/mulher, homossexual/heterossexual, ne-
gro/branco”30 (p. 124, tradução nossa).
Nesse ponto do texto, Ayouch (2018) recorre ao trabalho “The Evidence of Experience”,
da historiadora Joan Scott (1991), em que a autora sustenta que tomar como “evidentes as iden-
tidades daqueles cuja experiência está sendo documentada”31 (p. 777) coloca o risco de natura-
lizar suas diferenças. Ou seja, a tentativa de tornar visível a experiência pode acabar impedindo
“a análise do funcionamento desse sistema e de sua historicidade; em vez disso, reproduz seus
termos”32 (SCOTT, 1991, p. 779, tradução nossa). Segundo a autora:

Falar sobre a experiência dessa maneira nos leva a tomar como certa a existência de
indivíduos (experiência é algo que as pessoas têm), ao invés de perguntar como são
produzidas as concepções de eu (de sujeitos e suas identidades). Opera dentro de uma
construção ideológica que não apenas toma os indivíduos como ponto de partida do
conhecimento, mas também naturaliza categorias como homem, mulher, negro,

29
“[...] points de vue différents qui révélaient la partialité de l’énonciation de l’histoire officielle, prétendument
objective et en réalité blanche, masculine et hétérocentrée.” (AYOUCH, 2018, p. 124)
30
“Si ces tentatives de rendre visible l’expérience minoritaire montrent bien l’ampleur du silence et de l’oppression
des vies minoritaires, elles reprennent toutefois, sans les analyser, et au titre d’identités fixes, les catégories de
représentation de l’histoire majoritaire, homme/femme, homosexuel/hétérosexuel, noir/blanc.” (AYOUCH, 2018,
p. 124)
31
“They take as self-evident the identities of those whose experience is being documented and thus naturalize their
difference.” ” (SCOTT, 1991, p. 777)
32
“The project of making experience visible precludes analysis of the workings of this system and of its historicity;
instead, it reproduces its terms.” (SCOTT, 1991, p. 779)
34
branco, heterossexual e homossexual, considerando-as como características dadas de
indivíduos.33 (SCOTT, 1991, p. 782, tradução nossa)

Por considerar que “não são indivíduos que têm experiência, mas sujeitos que são cons-
tituídos através da experiência”34 (SCOTT, 1991, p. 779, tradução nossa), a autora propõe pen-
sar sobre a experiência de maneira a “historicizá-la e também historicizar as identidades que
produz”35 (SCOTT, 1991, p. 780, tradução nossa). Assim, procurando articular o que desenvol-
vemos até aqui, destacamos que todo saber é situado, mas, ao situar esse saber, é importante
que esse processo não se produza a partir de essencialismos. Por exemplo, quando Espínola
(2012) interroga “o que teria sido uma ciência feita pelas mulheres?” (p. 99-100, tradução
nossa), é importante que não tomemos “mulheres” como uma essência que seria definida por
algo “intrinsecamente feminino”.
Ao longo da tese, pretendemos sustentar uma compreensão da categoria “mulheres” em
uma perspectiva não essencialista, como caracterizada por uma posição nas relações sociais que
circunscreve formas concretas e variadas de opressão. A partir dessa atenção aos riscos de uma
essencialização da experiência, quais as implicações para a psicanálise, do ponto de vista me-
todológico? Primeiramente, consideramos, assim como Laufer (2014a), que “a psicanálise é
um saber situado e constituído historicamente.”36 (p. 25, tradução nossa). Além disso, Ayouch
(2018) destaca que é importante analisar a “maneira pela qual funciona, na postura enunciativa
pretensamente neutra da psicanálise, uma identidade implícita”37 (p. 124, tradução nossa). Se-
gundo seus termos:

Se, portanto, muitos analistas descartam identidades minoritárias como capturas ima-
ginárias, essa mesma captura também caracteriza a identidade majoritária implícita a
partir da qual eles falam (masculina, heterocentrada, cis-centrada, ocidental, branca),
também igualmente construída mas que não é recebe a mesma crítica.38 (AYOUCH,
2018, p. 124, tradução nossa)

33
“Talking about experience in these ways leads us to take the existence of individuals for granted (experience is
something people have) rather than to ask how conceptions of selves (of subjects and their identities) are produced.
It operates within an ideological construction that not only makes individuals the starting point of knowledge, but
that also naturalizes categories such as man, woman, black, white, heterosexual, and homosexual by treating them
as given characteristics of individuals.” (SCOTT, 1991, p. 782)
34
“It is not individuals who have experience, but subjects who are constituted through experience” (SCOTT, 1991,
p. 779)
35
“To think about experience in this way is to historicize it as well as to historicize the identities it produces.”
(SCOTT, 1991, p. 780)
36
[…] la psychanalyse est un savoir situé et constitué historiquement.” (LAUFER, 2014a, p. 25)
37
“[...] la manière dont fonctionne, dans la posture énonciative prétendument neutre de la psychanalyse, une iden-
tité implicite.” (AYOUCH, 2018, p. 124)
38
“Si donc bien des analystes écartent les identités minoritaires comme captations imaginaires, cette même capta-
tion caractérise également l’identité majoritaire implicite depuis laquelle ils parlent (masculine, hétérocentrée, cis-
centrée, occidentale, blanche), tout aussi construite, et qui n’est pas alors livrée à la même critique.” (AYOUCH,
2018, p. 124)

35
Considerando que tomamos como perspectiva metodológica os saberes situados, é im-
portante situar de onde eu falo. No entanto, como situar minha posição sem fazê-lo de maneira
essencialista? Posso dizer que falo como brasileira, psicanalista, professora, mulher, branca,
heterossexual, cisgênero, sem filhos e sem intenção de tê-los, de classe socioeconômica privi-
legiada. Em relação a este último aspecto – classe socioeconômica –, veremos, no capítulo 4,
que uma renda muito menor do que se costuma supor é suficiente para colocar um brasileiro
entre os 10% mais ricos, por isso considero importante reconhecer essa dimensão de privilégio,
sobretudo considerando que, de maneira geral, nossa percepção sobre a desigualdade de renda
revela-se muito equivocada.
Evidentemente, a enumeração dessas características não diz tudo sobre mim nem define
os contornos de uma identidade unificada e coerente, porém circunscreve que a posição que
ocupo é de privilégio na maioria dessas dimensões. Mas o que essas características diriam sobre
o trabalho de pesquisa? Talvez seja importante me situar a partir de tais categorias sobretudo
para enfatizar aquilo que se coloca a partir do negativo. Ou seja, talvez seja válido ressaltar que,
quando abordo questões relativas à maternidade, faço enquanto alguém que não é nem pretende
ser mãe, ou que, quando falo das escandalosas desigualdades sociais em nosso país, faço en-
quanto membro de uma classe socioeconômica privilegiada. Além disso, mais importante do
que enumerar características é evidenciar o percurso que orientou as questões de pesquisa, por
isso iniciei esta introdução apresentando as incidências de meu percurso acadêmico e profissi-
onal sobre a pesquisa.
Essa enunciação em primeira pessoa do singular coloca uma outra questão metodoló-
gica: a opção por utilizar a primeira pessoa do plural, à exceção de momentos como o que acaba
de acontecer e o que aconteceu no início desta introdução, em que se trata de enunciação ne-
cessariamente na primeira pessoa do singular. Essa questão foi objeto de reflexão e a opção
pela primeira pessoa do plural se deve à consideração de que um trabalho acadêmico é escrito
a muitas mãos. A tese é uma produção coletiva, e consideramos que esse coletivo inclui orien-
tadoras, professores, autores, estudantes, interlocutores no interior e no exterior do âmbito aca-
dêmico etc.
Retomando a questão de situar nossa perspectiva, consideramos que, talvez, mais im-
portante do que enumerar características da autora seja situar determinadas tomadas de posição.
Por exemplo, consideramos importante situar que, assim como Butler (1990/2013) se preocupa
com aqueles que ficam excluídos das normas de inteligibilidade socialmente instituídas, nós
nos preocupamos com o que pode ficar excluído a partir de uma abordagem exclusivamente
psicanalítica, ou que busque obstinadamente a “especificidade” da psicanálise ou ainda que
36
tome a psicanálise como discurso de mestria que buscaria “levar verdades” para outros campos.
Esses aspectos serão detalhados ao longo da tese, mas consideramos importante pontuar, desde
já, que consideramos que o que corre o risco de ficar excluído é a materialidade de realidades
de opressão. Essa consideração situa nosso trabalho de pesquisa, orientado pela tentativa de
articular dimensões de análise e de não desconsiderar essas realidades de opressão. Esta é uma
preocupação central, que certamente faz com que nosso trabalho seja específico e situado. Pos-
sivelmente, um trabalho muito diferente se produziria se não fosse essa a preocupação central.

Estruturação dos capítulos

No capítulo 1, discutiremos conceituações de identidade e como essa categoria aparece


no cenário político contemporâneo. No âmbito da psicanálise, a concepção de identificação
coloca a impossibilidade da identidade, o que chama a atenção para os riscos de essencialização
e normalização. No entanto, não podemos deixar de considerar que existem vulnerabilidades
diferenciadas que fundamentam os movimentos sociais organizados em torno de categorias
identitárias. Uma das possibilidades de leitura do problema das identidades como categoria em
torno da qual movimentos coletivos se organizam está colocada no debate redistribuição versus
reconhecimento, que apresentaremos neste início da tese e retomaremos para seu fechamento.
Nancy Fraser, uma das interlocutoras deste debate, destaca que tanto injustiças de redis-
tribuição quanto de reconhecimento são materiais, o que coloca a ênfase na materialidade da
opressão. Foi a consideração da importância dessa dimensão material que nos levou a perspec-
tivas feministas materialistas, que discutiremos no capítulo 2. Nesse capítulo, apresentaremos
também as contribuições de Judith Butler e evidenciaremos as ênfases diferenciadas em dife-
rentes momentos e produções da autora. No âmbito da psicanálise, Butler é retomada frequen-
temente a partir do gênero como performativo e da problematização de identidades em “Pro-
blemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” (BUTLER, 1990/2013), porém, em
outro texto – “Meramente cultural” (BUTLER, 1996/2017) –, a ênfase da autora é materialista.
Assim, coloca-se a possibilidade de uma análise em termos de performance que leve em conta
as relações sociais que tornam possível tal performance, ou seja, as mediações que fazem com
que os discursos tenham efeito de produção.
Nessa perspectiva de destacar as condições sociais de produção e reprodução dos dife-
rentes discursos, pretendemos situar o “tornar-se mulher” enquanto fazer a experiência mesma
da opressão. No capítulo 3, retomaremos momentos da obra freudiana em que podemos encon-
trar tematizações da opressão vivida pelas mulheres naquele momento histórico, sobretudo a
37
partir das proposições de Rubin (1975/2017), que vê nos textos freudianos uma descrição da
realidade da opressão das mulheres. Além dos textos freudianos, recorreremos a psicanalistas
que estabelecem um diálogo com os feminismos, bem como às formulações de Jean Laplanche
(2014a; 2014b; 2014c) e de Pascale Molinier (2008), considerando que a psicanálise traz uma
contribuição importante para essa discussão ao destacar a dimensão daquilo que é transmitido
de maneira “comprometida” – porque existe algo de recalcado, de impossível de dizer.
Assim, nosso esforço será o de traçar possibilidades de compreensão da opressão viven-
ciada pelas mulheres a partir de uma materialidade, que é discursivamente mediada, ao mesmo
tempo em que existe algo que é transmitido de maneira “comprometida”. Essa delimitação pos-
sibilita a compreensão da categoria “mulheres” como constituída a partir da realidade de opres-
são, o que nos leva, no capítulo 4, às proposições de Chantal Mouffe e de Linda Alcoff, que, a
nosso ver, possibilitam pensar uma conceituação de “mulheres” em termos de posições nas
relações sociais. Nosso objetivo é interrogar a psicanálise, sobretudo no que se refere aos riscos
de reprodução das realidades de opressão no contexto da clínica e às perspectivas dos psicana-
listas em relação a teorizações psicanalíticas. Finalizaremos retomando as proposições de
Nancy Fraser sobre redistribuição e reconhecimento, que possibilitam articular a necessidade
de atenção às realidades de opressão e de como a dimensão material não pode ser desconside-
rada.

38
CAPÍTULO 1. Identidades e múltiplos atravessamentos no cenário político contemporâ-
neo: Redistribuição e reconhecimento contra o “universalismo imaginário”

O campo político das demandas por direitos na contemporaneidade tem se organizado


em torno da categoria “identidade”, em uma configuração específica que adquire centralidade
a partir do final do século XX. Nesse contexto, a questão do reconhecimento se coloca de ma-
neira que diversos grupos socioculturais são vistos como portadores de identidades diferentes,
e reivindicam o reconhecimento de suas especificidades para que seus direitos sejam assegura-
dos, como afirma Fraser (2006).
Nesses movimentos de mobilização, o que há em comum é a afirmação de uma identi-
dade, para que seja reconhecida a especificidade de determinado grupo na luta por direitos. Isso
não significa que o atual campo da luta por direitos se reduza a lutas mobilizadas em torno de
categorias identitárias, mas sim que, como destaca Safatle (2015), essa configuração – marcada
pela compreensão de lutas de grupos historicamente vulneráveis e espoliados de direitos em
termos de afirmação cultural das diferenças – é historicamente específica.
É importante destacar que a preocupação com a temática da “identidade” é antiga, po-
dendo ser observada por exemplo nas “comunidades imaginadas” dos nacionalismos modernos.
Porém, a ideia de “políticas identitárias” (identity politics) é nova, como destaca Zaretsky
(1994), constituindo uma nova forma de luta política que, embora assim denominadas apenas
mais recentemente, têm suas origens nos Estados Unidos nos anos 1960.
O contexto dos anos 1960 mostra-se favorável à difusão da concepção de “identidade”,
que ganha relevo não apenas no debate acadêmico, mas na linguagem jornalística e no âmbito
dos movimentos sociais, como afirma Brubaker (2001). O autor destaca o movimento Black
Panthers39 no final dos anos 1960, nos EUA, que serve de modelo para outros movimentos
organizados em torno da questão da etnicidade.

39
A formação do Black Panther Party (BPP) aconteceu em 1966, em um momento em que a segregação racial
acabava de ser abolida nos Estados Unidos, como lembra Alondra Nelson, professora da Universidade de Colum-
bia em Nova York. Em entrevista a Caroline Izambert e Claire Richard, Nelson (2013) destaca que a segregação
se reproduzia no sistema de saúde, no acesso aos cuidados primários. A professora afirma que “Nos Estados Uni-
dos, à esquerda e à direita, entre os que têm simpatia pelos Black Panthers ou entre os que ainda os consideram
como terroristas, compartilhamos a imagem do Black Panther Party (BPP) como um movimento armado e para-
militar” (p. 70, tradução nossa). Nelson (2013) busca traçar um aspecto pouco conhecido desse movimento: sua
luta pelo acesso aos cuidados e a abertura de clínicas comunitárias nos bairros negros, em uma perspectiva de
saúde social, ou seja, considerando a saúde como também referida a questões econômicas, satisfação das necessi-
dades básicas, desigualdades sociais e ao racismo.
39
Essa mudança de perspectiva no final do século XX – com uma configuração marcada
por políticas identitárias e pelo discurso acerca do reconhecimento – constitui fenômeno re-
cente, o que não significa que reivindicações por reconhecimento não existissem anteriormente,
como afirma Spinelli (2016). A especificidade desse momento histórico recente reside no fato
de que questões sobre identidade e reconhecimento passaram a protagonizar discussões e ações,
em uma configuração que, segundo Zaretsky (1994), apresenta como características: ênfase na
diferença em contraposição à universalidade e consideração da comunidade identitária como
ponto central de identificação.
No que se refere à questão da ênfase na diferença, Calhoun (1994) destaca que, se a
ideia de estabelecer distinções se faz presente nas mais variadas culturas ao longo da história –
cada pessoa é conhecida por seu nome, as linguagens e culturas estabelecem distinções entre
eu e outro, existem critérios de gênero e idade como distintivos entre pessoas etc. –, as identi-
dades, em contrapartida, são localizadas historicamente e caracterizam o nosso tempo: “não é
por acaso que o discurso sobre a identidade parece, em algum sentido importante, distintamente
moderno – parece, de fato, intrínseco e parcialmente definidor da era moderna”40 (p. 9, tradução
nossa). O autor articula a modernidade da preocupação com identidade ao novo tipo de indiví-
duo produzido pela disciplina, tal como formula Foucault, em um momento de ascensão do
individualismo.
Nesse mesmo sentido, ao tratar dos conflitos políticos no final do século XX, Fraser
(2006) afirma a “emergência de um novo imaginário político centrado nas noções de ‘identi-
dade’, ‘diferença’, ‘dominação cultural’ e ‘reconhecimento’” (p. 231). Honneth (2007) destaca
que os movimentos sociais passaram a demandar a consideração da questão do reconhecimento
e a defender que “os indivíduos ou grupos sociais têm de ser aceitos e respeitados em suas
diferenças” (p. 81). Essas demandas de reconhecimento cultural de identidades coletivas se
articulam, portanto, como afirma Honneth (2003a), em torno de “políticas da identidade”.
Nesse contexto, nos anos 1970 e 1980, a “promessa emancipatória” aparece articulada
às lutas pelo reconhecimento da diferença, organizadas em torno de categorias como sexuali-
dade, gênero, etnia e “raça” e da aspiração de afirmar identidades até então negadas. Com a
virada do século, as questões de reconhecimento e identidade tornam-se ainda mais centrais, de
maneira que hoje as reivindicações por reconhecimento da diferença impulsionam muitos dos
conflitos sociais do mundo, além de se tornarem predominantes em movimentos sociais como

40
“[…] it is no accident that discourse about identity seems in some important sense distinctively modern – seems,
indeed, intrinsic to and partially defining of the modern era” (CALHOUN, 1994, p. 9)
40
o feminismo, que anteriormente colocava ênfase na redistribuição de recursos (FRASER,
2000).
Nessa perspectiva, o reconhecimento é predominantemente visto em termos de reconhe-
cimento da identidade, ou seja, “o que requer reconhecimento é a identidade cultural específica
dos grupos” (FRASER, 2002, p. 14). Os problemas de reconhecimento consistem na deprecia-
ção de determinadas identidades pela cultura dominante, diante da qual as políticas de reconhe-
cimento buscam contestar a imagem pejorativa do grupo. Essas representações são rejeitadas
em nome de outras representações construídas pelos próprios membros do grupo, o que levaria
a uma nova identidade coletiva que deve ganhar visibilidade para conquistar respeito e valori-
zação social.
Fraser (2006) articula as lutas por reconhecimento ao combate da dominação inscrita na
esfera da cultura, em contraposição ao modelo da luta de classes que identificava a exploração
econômica como injustiça fundamental, o que caracterizaria nossa era como “pós-socialista”.
Nos termos da autora:

Demandas por “reconhecimento das diferenças” alimentam a luta de grupos mobili-


zados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade. Nes-
ses conflitos “pós-socialistas”, identidades grupais substituem interesses de classe
como principal incentivo para a mobilização política. Dominação cultural suplanta a
exploração como a injustiça fundamental. E reconhecimento cultural desloca a redis-
tribuição socioeconômica como o remédio para injustiças e objetivo da luta política.
(p. 231)

Essa transformação é acompanhada, portanto, por relativo declínio nas reivindicações


por redistribuição igualitária, de maneira que “a globalização está a gerar uma nova gramática
de reivindicação política. Nesta constelação, o centro de gravidade foi transferido da redistri-
buição para o reconhecimento” (FRASER, 2002, p. 9). A autora destaca uma contraposição
entre lutas pela identidade e diferença, em que a reivindicação de reconhecimento aparece como
força impulsionadora, e o modelo da política de classe, que colocava no centro da contestação
política as reivindicações de igualdade econômica e que hoje se encontra em declínio: “os mo-
vimentos sociais que não há muito tempo exigiam com audácia uma partilha equitativa dos
recursos e da riqueza já não são exemplificativos do espírito da época. É certo que não desapa-
receram totalmente, mas o seu impacto tem sido grandemente reduzido” (FRASER, 2002, p.
9).
Honneth (2007) concorda que o peso se deslocou para o lado do reconhecimento, afir-
mando que “Nancy Fraser forneceu uma fórmula sucinta, quando se referiu a essa transição
como uma passagem da ‘redistribuição’ para o ‘reconhecimento’” (p. 79), ou seja, de um mo-
delo que almejava a igualdade socioeconômica, por meio da redistribuição de recursos
41
materiais, para outro que define justiça em termos do reconhecimento da dignidade pessoal e
busca combater a degradação e o desrespeito.
Considerando, então, redistribuição e reconhecimento, uma das possibilidades de leitura
do problema das identidades – como categoria em torno da qual movimentos coletivos se orga-
nizam – é o debate em torno desses dois eixos. Porém, antes de apresentar esse debate, inicia-
remos o capítulo colocando em cena a temática da identidade, fundamental para que, posteri-
ormente, possamos situar as questões acerca de redistribuição e reconhecimento.
Um primeiro ponto a considerar é que “identidade” não é uma concepção da psicanálise,
que dispõe do conceito de “identificação”. Existem psicanalistas que sustentam um princípio
de identidade a partir da noção de identificação, mas, em nossa tese, trabalharemos com uma
outra leitura: a de que a concepção de identificação coloca a impossibilidade da identidade.
Partiremos de uma retomada das proposições freudianas para, em seguida, discutir as formula-
ções de autores contemporâneos, notadamente Joel Birman (1997; 2003), Eduardo Leal Cunha
(1992; 2000; 2009) e Yannis Stavrakakis (1999).
Não estando o conceito de “identidade” delimitado conceitualmente no campo teórico
psicanalítico, recorreremos, na seção 1.2, a contribuições de autores no campo da filosofia e
das ciências sociais para delinear possíveis conceituações de “identidade”. Pretendemos discu-
tir que uma tensão perpassa a conceituação de “identidade”: a que se estabelece entre essenci-
alismo e não essencialismo. A partir dos “Estudos culturais” e das contribuições de Avtar Brah
(2006), abordagens com as quais trabalharemos na seção 1.2, é possível uma conceituação não
essencialista e relacional de identidade. Além disso, a problematização de integridade e perma-
nência já aparece no âmbito dos movimentos sociais: o movimento feminista negro no final dos
anos 1970, nos Estados Unidos, já estabelecia a interdependência das relações de poder (de
raça, sexo e classe), o que nos parece fundamental para evitar os riscos de um “universalismo
imaginário”.
A partir dessa consideração, apresentaremos, na seção 1.3, o debate redistribuição ver-
sus reconhecimento. O texto de Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, publicado em
1992, é um dos fundadores da tematização sobre o reconhecimento, com a proposta de uma
leitura da discussão sobre o sistema político e as emendas constitucionais que determinaram a
diversidade linguística no Canadá como referidas ao âmbito das “políticas de reconhecimento”
(AMADEO, 2017).
Embora Charles Taylor tenha sido o primeiro a elaborar a noção de reconhecimento, foi
a abordagem de Axel Honneth que ganhou mais destaque no campo da teoria social (GARRET,
2013a). Em “The Struggle of Recognition”, também publicado originalmente em 1992, Honneth
42
propõe o conceito de reconhecimento como categoria fundamental para uma reconstrução da
teoria crítica (AMADEO, 2017).
O debate que ficou conhecido como reconhecimento versus redistribuição tem como
interlocutora, também no campo da teoria social, Nancy Fraser, que discute a política de reco-
nhecimento e a política de redistribuição. Um dos momentos mais importantes desse debate foi
a publicação, em 2003, de “Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Ex-
change”, por Axel Honneth e Nancy Fraser (AMADEO, 2017). As contribuições de Nancy
Fraser nos parecem fundamentais para situar uma abordagem que coloca a necessidade de re-
distribuição e reconhecimento, afastando-se do “universalismo imaginário”.

1.1 A formulação freudiana de “identificação” e a crítica psicanalítica à concepção de


“identidade”

Tendo em vista a configuração do cenário político contemporâneo, em que os “novos


movimentos sociais” colocam em cena a organização em torno de categorias identitárias, a
questão da identidade ganha relevância como problema epistemológico e político. No âmbito
da psicanálise, a discussão sobre essa temática encontra uma especificidade, uma vez que “iden-
tidade” não é uma concepção psicanalítica. Cunha (2000) destaca que a introdução do conceito
de “identidade” no campo da psicanálise coloca problemas que devem ser discutidos, dada a
importância dessa “presença estrangeira [...] absolutamente necessária”:

[...] o conceito de identidade não pertence à terminologia da psicanálise e sua intro-


dução nesse campo coloca uma série de problemas – teóricos e clínicos. Esses proble-
mas, no entanto, precisam ser encarados de frente e debatidos com seriedade, pois,
ainda que a noção de identidade seja uma presença estrangeira no campo psicanalítico,
essa presença parece-me absolutamente necessária. (p. 210)

Não sendo “identidade” um conceito da psicanálise, esta dispõe, por sua vez, do con-
ceito de “identificação”, mas estes não são equivalentes e as relações entre eles devem ser dis-
cutidas. É possível sustentar um princípio de identidade a partir da noção de identificação, de-
pendendo da leitura que se faz das contribuições freudianas. O psicanalista Erik Erikson, por
exemplo, alcançou grande popularização com a ideia de “crise de identidade”41. Além disso, a
noção de identificação, extraída de seu contexto psicanalítico original, foi apropriada por outros

41
Para um aprofundamento das formulações eriksonianas sobre identidade e crise de identidade, sugerimos, entre
outros, ERIKSON, E. H. Identidade, Juventude e Crise. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1976 e ERIKSON, E. H.
Infância e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1987.
43
campos do conhecimento, aparecendo em estudos sobre etnicidade e teoria sociológica dos pa-
péis, como afirma Brubaker (2001).
Uma outra leitura considera, ao contrário, que a concepção de identificação coloca a
impossibilidade da identidade. Para situar essa perspectiva, que lança interrogações sobre a
possibilidade de uma experiência da ordem da identidade, partiremos de uma retomada das
proposições freudianas para, em seguida, discutir as formulações de psicanalistas contemporâ-
neos. Iniciaremos retomando formulações freudianas sobre identificação, na seção 1.1.1, e tri-
lharemos um percurso que começa por delinear aquilo que identificação não é: escolha de ob-
jeto. Existem relações entre identificação e escolha de objeto, ambas tomam parte nas formu-
lações sobre o Complexo de Édipo, mas é importante partir de uma delimitação dessas concep-
ções. Além disso, a teorização sobre escolha de objeto em Freud traz elementos para uma com-
preensão não normativa da sexualidade, fundamental para a retomada de formulações freudia-
nas sobre sexualidade feminina, que apresentaremos no capítulo 3.
Partiremos de uma retomada dos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, quando
Freud (1905a/1996) circunscreve o objeto como o que há de mais variável na pulsão. A partir
dessa consideração, coloca-se a contingência e a possibilidade de escolhas de objeto homosse-
xual ou heterossexual, de maneira que qualquer restrição no que se refere à escolha de objeto
só pode ser considerada inscrita em um determinado regime de normas. Em seguida, apresen-
taremos a concepção de identificação, a partir das três modalidades propostas por Freud
(1921/1996), bem como articulações entre identificação e escolha de objeto a partir das vicis-
situdes do complexo de Édipo.
Tendo retomado a formulação psicanalítica de identificação, discutiremos, na seção
1.1.2, que as concepções psicanalíticas de eu e de sujeito colocam a impossibilidade da integri-
dade e permanência, assim como a concepção de identificação coloca a impossibilidade da
identidade. Situaremos também que essa problematização da concepção de identidade se faz a
partir da ênfase naquilo que estaria para além da representação.

1.1.1 Identificação e escolha de objeto

De acordo com Laplanche e Pontalis (1982/2001), o conceito de identificação é “mais


do que um mecanismo psicológico entre outros” (p. 227), uma vez que, aparecendo na obra
freudiana desde um período mais inicial, com os sintomas histéricos, assumiu progressivamente
um valor central. Uma primeira delimitação de identificação em relação à escolha de objeto é
a contraposição estabelecida por Freud (1933b[1932]/1996) entre ser e ter: identificar-se com

44
alguém corresponderia a desejar ser como esse alguém, enquanto que desejar ter alguém estaria
referido à escolha de objeto. No entanto, quando observamos, em “Psicologia das massas e
análise do eu” (FREUD, 1921/1996), a discussão de identificação a partir de três modalidades,
colocam-se articulações entre identificação e relação de objeto, como apresentaremos nesta se-
ção.
No que se refere à escolha de objeto, desde os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexua-
lidade”, Freud (1905a/1996) trata da sexualidade como desprovida de um objeto definido, des-
tacando que a pulsão independe do objeto. O conceito de “pulsão” é definido como o “repre-
sentante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para
diferenciá-la do ‘estímulo’, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora” (FREUD,
1905a/1996, p. 159)
Essa diferenciação é fundamental porque o organismo pode se esquivar de estímulos
externos, enquanto que, dos estímulos endógenos, não é possível fugir. A fonte da pulsão é um
processo excitatório interno, que cessa apenas por meio de intervenção que suspenda proviso-
riamente a descarga de quantidades de excitação no corpo, o que requer uma alteração no
mundo externo através da ação específica, que fornece o objeto adequado (FREUD,
1895c/1996).
Existem diferentes tipos de pulsão, que se diferenciam conforme seu objeto e alvo. O
termo “pulsão sexual” ou “libido” refere-se às necessidades sexuais, assim como a “fome” es-
taria associado à “pulsão de nutrição”42 (FREUD, 1905a/1996). Para atingir sua finalidade, a
pulsão sexual requer o objeto, e esse objeto é o que há de mais variável na pulsão. Não há
vínculo entre eles, o objeto que torna possível a satisfação é contingente e pode ser modificado
(FREUD, 1915/1996).
Freud (1905a/1996) afirma que a opinião popular “tem seu mais belo equivalente na
fábula poética da divisão do ser humano em duas metades – homem e mulher – que aspiram a
unir-se de novo no amor” (p. 128-9). No entanto, a observação leva ao questionamento dessa
teoria popular, considerando a existência de: “invertidos absolutos”, cujo objeto sexual é ex-
clusivamente do mesmo sexo; “invertidos anfígenos” ou “hermafroditas sexuais”, para quem o
objeto sexual pode ser do mesmo sexo ou do sexo oposto; “invertidos ocasionais”, que podem
tomar como objeto alguém do mesmo sexo em certas condições, como, por exemplo, a inaces-
sibilidade de objeto sexual do sexo oposto.

42
“Falta à linguagem vulgar [no caso da pulsão sexual] uma designação equivalente à palavra ‘fome’: a ciência
vale-se, para isso, de ‘libido’” (FREUD, 1905a/1996, p. 128)
45
Em relação à “inversão”43, Freud (1905a/1996) discute a teoria do hermafroditismo psí-
quico, indicando que seu pressuposto repousaria na ideia de que, nos “invertidos”, ocorreria
uma escolha de objeto “oposto ao normal”, ou seja, o “homem invertido sucumbiria, como a
mulher, ao encanto proveniente dos atributos masculinos do corpo e da alma; sentir-se-ia como
uma mulher e buscaria o homem” (p. 136). Essa perspectiva possibilitaria, então, estabelecer
uma vinculação entre identificação e escolha de objeto, a partir da consideração de que o ho-
mem “invertido” buscaria um objeto com traços masculinos por “se sentir” mulher.
Freud (1905a/1996), no entanto, considera que, embora isso possa se aplicar “a toda
uma série de invertidos”, “está longe de revelar uma característica universal da inversão” (p.
136), e é interessante notar como a crítica dessa teoria aponta para a separação e independência
entre identificação e escolha de objeto. Freud (1905a/1996) sustenta esse argumento destacando
a preservação, em grande parte dos “invertidos” masculinos, do “caráter psíquico da virilidade”,
a presença de “relativamente poucos caracteres secundários do sexo oposto” e a “busca em seu
objeto sexual de traços psíquicos femininos” (p. 136). Em relação a este último ponto, recorre
aos seguintes exemplos: a prostituição masculina voltada para os “invertidos” buscaria “copiar
as mulheres em todas as exteriorizações” (p. 136) e os “invertidos” na Antiguidade grega seriam
caracterizados por traços da virilidade, buscando, no que se refere à escolha de objeto, traços
femininos – tanto do ponto de vista físico quanto psíquico (e Freud atribui, então, ao feminino
características como timidez, recato e dependência):

Nos gregos, entre os quais os homens mais viris figuravam entre os invertidos, está
claro que o que inflamava o amor do homem não era o caráter masculino do efebo,
mas sua semelhança física com a mulher, bem como seus atributos anímicos femini-
nos: a timidez, o recato e a necessidade de ensinamentos e assistência. Mal se tornava
homem, o efebo deixava de ser um objeto sexual para o homem, e talvez ele próprio
se transformasse num amante de efebos. (FREUD, 1905a/1996, p. 137)

Freud (1905a/1996) defende que a escolha de objeto nesse caso não se refere a um ob-
jeto do mesmo sexo, mas a algo que mistura características de ambos (traços femininos e geni-
tália masculina). Atribui esse tipo de escolha objetal à bissexualidade, que explicaria as duas
correntes, em direção ao masculino e ao feminino:

Nesses casos, portanto, como em muitos outros, o objeto sexual não é do mesmo sexo,
mas uma conjugação dos caracteres de ambos os sexos, como que um compromisso

43
Não nos aprofundaremos nesse ponto, mas cabe apontar o caráter problemático do termo “inversão”, afinal,
supor que algo estaria “invertido” implica a contraposição a algo que algo não estaria, o que se revela normativo.
Como afirma Vieira (2009), “o termo ‘inversão sexual’ implicava que existe um desejo não invertido” (p. 495), o
que pode levar a uma leitura em que “o anormal e o homossexual serão enigmas, enquanto que normal e heteros-
sexual serão aceitos” (p. 495). Como veremos, não é esta a perspectiva adotada por Freud, que, ao contrário,
destaca que a escolha de objeto heterossexual deve ser tomada como enigma assim como a homossexual. No
entanto, não deixa de ser problemático o termo “inversão”.
46
entre uma moção que anseia pelo homem e outra que anseia pela mulher, com a con-
dição imprescindível da masculinidade do corpo (da genitália): é, por assim dizer, o
reflexo especular da própria natureza bissexual. (FREUD, 1905a/1996, p. 137)

Em relação às mulheres, considera que “a situação é menos ambígua” uma vez que “as
invertidas ativas exibem com particular frequência os caracteres somáticos e anímicos do ho-
mem e anseiam pela feminilidade em seu objeto sexual”. Contudo, acrescenta que “também
nesse caso, um conhecimento mais estreito pudesse revelar uma variedade maior” (FREUD,
1905a/1996, p. 138).
Dessa maneira, Freud (1905a/1996) separa identificação e escolha de objeto, indicando
que um homem que se relaciona com homens não necessariamente apresenta traços associados
à “feminilidade” (podendo, ao contrário, mostrar-se “viril”), assim como também questiona a
ideia de que “se sentiria mulher” e demonstraria atração por homens com características “mas-
culinas”. Quando se refere às mulheres, parece aderir à ideia de mulher que “se sentiria homem”
e buscaria traços femininos no objeto amoroso, mas, em seguida, inclui a ressalva de que pode
haver maior variabilidade. Se com essas pontuações Freud delimita o que seria da ordem da
identificação e da escolha de objeto, também não podemos deixar de notar a adesão a ideias
pré-concebidas que definem culturalmente o que seria um homem ou uma mulher, por exemplo
associando masculinidade à virilidade e feminilidade a timidez, recato e dependência – ou seja,
Freud contrapõe-se a determinadas ideias pré-concebidas recorrendo a outras igualmente pré-
estabelecidas, que não são interrogadas.
Ainda no que se refere à escolha de objeto, consideramos importante destacar um texto
posterior, quando Freud discute um caso de homossexualidade feminina, em 1920. O caso de
uma jovem de 18 anos, que chega à análise por intermédio dos pais, preocupados com seu
envolvimento com uma mulher mais velha (que seria, na visão deles, uma “cocotte”) é apre-
sentado em “A psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher” (FREUD,
1920/1996). Importante destacar que Freud inicia o texto tecendo uma série de considerações
sobre a circunstância de sua chegada via mediação dos pais, pontuando a diferença entre alguém
que vai em busca de um tratamento psicanalítico por si e a situação, como era o caso, em que
se é levado ao tratamento por familiares.
Além disso, destaca o fato de a jovem “não estar de modo algum doente (não sofria em
si de nada, nem se queixava de sua condição)” (FREUD, 1920/1996, p. 162), de maneira que
não se tratava de uma cura, mas de buscar transformar um tipo de organização genital da sexu-
alidade em outro, o que Freud considera difícil de conseguir, pontuando que se tratava de “fa-
cilitar o acesso ao sexo oposto (até então barrado) a uma pessoa restrita ao homossexualismo,

47
restaurando assim suas funções bissexuais plenas. Depois, competia a ela escolher se desejava
abandonar o caminho que é proibido pela sociedade” (FREUD, 1920/1996, p. 162). Ou seja,
importante destacar que a homossexualidade não aparece como doença ou como algum tipo de
“anormalidade”, mas como “caminho proibido pela sociedade”.
O autor acrescenta que tanto as orientações homo quanto heterossexual envolvem uma
restrição na escolha do objeto, de maneira que “em geral, empreender a conversão de um ho-
mossexual plenamente desenvolvido em um heterossexual não oferece muito maiores perspec-
tivas de sucesso que o inverso; exceto que, por boas e práticas razões, o último caso nunca é
tentado.” (FREUD, 1920/1996, p. 162). Tecidas essas considerações em relação à chegada pela
intermediação de familiares e sobre a homossexualidade, Freud se dispõe a receber a jovem
para ouvi-la, não oferecendo garantias em relação à demanda dos pais, embora pareça conside-
rar a possibilidade de uma “influência” no sentido de mudança de orientação sexual, apesar de
todas as ressalvas sobre as dificuldades envolvidas:

Por essas razões me abstive por completo de oferecer aos pais qualquer perspectiva
de realização de seu desejo. Simplesmente lhes disse que estava preparado para estu-
dar cuidadosamente a moça durante algumas semanas ou meses, para então poder
julgar em que medida uma continuação da análise teria probabilidade de influenciá-
la. (FREUD, 1920/1996, p. 163)

A questão da diferenciação entre identificação e escolha de objeto é retomada, e Freud


(1920/1996) destaca a confusão muitas vezes presente entre essas duas dimensões: “a literatura
do homossexualismo em geral deixa de distinguir claramente entre as questões da escolha do
objeto, por um lado, e das características sexuais e da atitude sexual do sujeito” (p. 181). Con-
sidera que se deve distinguir três conjuntos de características: caracteres sexuais físicos, carac-
teres sexuais “mentais” (que se refeririam à atitude masculina ou feminina) e tipo de escolha de
objeto. Tais características são independentes e diversas combinações são possíveis. Como
afirma Freud (1920/1996):

Essas características, até certo ponto, variam independentemente uma da outra e em


indivíduos diferentes são encontradas em permutações múltiplas. A literatura tenden-
ciosa obscureceu nossa visão dessa inter-relação, colocando em primeiro plano, por
razões práticas, o terceiro aspecto (tipo de escolha de objeto). (p. 182)

Considerando essa variabilidade, Freud destaca a contingência, de maneira que homos-


sexualidade e heterossexualidade são possibilidades. O que coloca restrição é o regime de nor-
matividade vigente, tanto que fica evidente a compreensão da homossexualidade não como
“anormalidade”, mas como “caminho proibido pela sociedade”.

48
Nesse mesmo sentido – de não circunscrever a homossexualidade a doença ou “anor-
malidade” –, temos a carta de 1935, em que Freud (1935/2019) responde a uma mãe que havia
lhe solicitado ajuda para o filho. A mãe não se refere diretamente à homossexualidade, o que
não passa despercebido a Freud, que questiona sobre o porquê da evitação desse termo e pontua
que a homossexualidade não poderia ser considerada uma vantagem, mas também não consti-
tuiria vício, desonra ou doença. Freud desvia o foco do pedido da mudança de orientação sexual
para afirmar que o que a psicanálise poderia fazer seria acompanhar o filho da mulher que lhe
escreve, caso ele estivesse infeliz, independentemente de permanecer ou não homossexual.
É importante situar as formulações desses dois textos em que Freud discorre sobre a
homossexualidade a partir de suas teorizações sobre a bissexualidade. Nos “Três Ensaios sobre
a Teoria da Sexualidade”, Freud (1905a/1996) parte do caráter bissexual da sexualidade infantil
para propor a liberdade da escolha de objeto, de maneira que a escolha heterossexual exige
explicação assim como a homossexual. Originariamente todos seríamos bissexuais, e, ao longo
do desenvolvimento, uma das tendências pode vir a predominar, o que leva Freud (1905a/1996)
a considerar que o interesse sexual exclusivo pelo sexo oposto exige explicação da mesma ma-
neira que o interesse pelo mesmo sexo. Em uma nota de rodapé acrescentada em 1915, o autor
pontua que:

A Psicanálise considera, antes, que a independência da escolha objetal em relação ao


sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos,
tal como observada na infância e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual,
mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal
como o invertido. No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do
homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma
evidência que se possa atribuir a uma atração de base química. (FREUD, 1905a/1996,
p. 137-8)

Esse ponto reaparece em “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, quando
Freud (1909/1996) remete ao “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” e reafirma as vi-
cissitudes que colocam a escolha de objeto como contingente, de maneira que uma escolha de
objeto particular caracteriza tanto a escolha homo quanto a heterossexual (ou outras possibili-
dades e combinações possíveis, podemos acrescentar). Segundo seus termos:

Não há absolutamente qualquer justificativa para distinguir um instinto homossexual


especial. O que constitui um homossexual é uma peculiaridade não na sua vida ins-
tintual, mas na sua escolha de um objeto. Deixem-me lembrar o que eu disse nos meus
Três Ensaios quanto ao fato de que erradamente imaginamos a conexão entre instinto
e objeto na vida sexual como sendo mais íntima do que realmente é. (FREUD,
1909/1996, p. 101-2)

Assim, nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1905a/1996) recorre
à homossexualidade para evidenciar que não há nada de natural ou automático no objeto da
49
pulsão sexual, como afirma Mitchell (2001): “não há absolutamente nada nos ensaios que seja
compatível com qualquer noção de atração heterossexual natural”44 (p. 11, tradução nossa). A
noção de vicissitude indica uma especificidade que aparece no próprio conceito de pulsão, uma
vez que as vicissitudes da pulsão não correspondem a um desvio ou acidente (ROSE, 2001).
No que se refere à identificação, por sua vez, uma primeira delimitação em relação à
escolha de objeto é a contraposição estabelecida por Freud (1933b[1932]/1996) entre ser e ter:
se um menino se identifica com seu pai, deseja ser igual a ele, enquanto que, se faz do pai seu
objeto de escolha, deseja tê-lo. Nesse sentido, a identificação refere-se, portanto, à “ação de um
ego assemelhar-se a outro ego” (FREUD, 1933b[1932]/1996, p. 68). No entanto, esta não cor-
responde à única possibilidade. Quando observamos, em “Psicologia das massas e análise do
eu” (FREUD, 1921/1996), a discussão sobre identificação a partir de três modalidades, perce-
bemos as articulações entre identificação e relação de objeto.
A primeira forma refere-se à identificação primária. Como “a mais remota expressão de
um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, 1921/1996, p. 115), a identificação aparece na
história primitiva do Complexo de Édipo quando, na sua forma positiva, o menino toma o pai
como ideal: “mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e
tomar seu lugar em tudo” (FREUD, 1921/1996, p. 115). Ao mesmo tempo ou logo depois, o
menino desenvolve uma catexia de objeto em relação à mãe, e esses dois laços (identificação e
catexia de objeto) coexistem por um tempo independentemente. Em seguida, reúnem-se quando
o menino passa a ver o pai como rival em relação à mãe, de maneira que a hostilidade é então
articulada à identificação (FREUD, 1921/1996).
Cunha (1992) destaca a articulação entre essa identificação originária e a origem dos
processos identificatórios, bem como das relações de objeto, uma vez que essa modalidade de
identificação aparece como “forma originária do laço afetivo com o objeto”, nos termos de
Laplanche e Pontalis (1982/2001, p. 229). Cunha (1992) considera ainda sua importância no
processo de constituição do eu, já que, desde a formulação freudiana sobre o narcisismo, uma
“nova ação psíquica” é necessária para esse processo. Essa identificação primária teria, então,
um caráter original e originário, situando-se de maneira quase mítica na pré-história do sujeito.
A identificação também aparece na estrutura do sintoma neurótico, como “sucedâneo
para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no
ego” (FREUD, 1921/1996, p. 117). Por exemplo, se uma menina desenvolve o mesmo sintoma

44
“[…] there is absolutely nothing within the essays that is compatible with any notion of natural heterosexual
attraction” (MITCHELL, 2001, p. 11)

50
que a mãe, pode se tratar de um desejo hostil de tomar seu lugar, articulado ao Complexo de
Édipo e ao amor objetal pelo pai. Freud (1921/1996) resume esse processo apontando a influên-
cia do sentimento de culpa no mecanismo da estrutura do sintoma histérico: “Você queria ser
sua mãe e agora você a é – pelo menos no que concerne ao seu sofrimento” (p. 116). Uma outra
possibilidade é exemplificada recorrendo ao caso Dora, em que o sintoma corresponde à tosse
do pai, o objeto amado. Nesse caso, “a identificação apareceu no lugar da escolha de objeto e a
escolha de objeto regrediu para a identificação” (FREUD, 1921/1996, p. 116), ou seja, o ego
assume as características do objeto e a identificação toma um traço da pessoa. Como explicam
Laplanche e Pontalis (1982/2001), a identificação aparece aqui “como substituto regressivo de
uma escolha de objeto abandonada” (p. 229).
Esse segundo tipo de identificação toma como referência o mecanismo descrito nas for-
mulações sobre a melancolia, mas também se aplica à identificação que ocorre no trabalho do
luto diante de uma perda amorosa, com um movimento de retorno da libido sobre o eu. Além
disso, essa modalidade também aparece na dissolução do complexo de Édipo, articulada ao
trabalho de luto pela perda amorosa primordial (CUNHA, 1992).
A terceira modalidade é exemplificada por Freud (1921/1996) a partir de uma situação
em um internato, em que uma moça apaixonada recebe uma carta que lhe desperta ciúmes e
desencadeia uma crise histérica. Posteriormente, a crise acomete suas amigas, em uma espécie
de “infecção mental” (FREUD, 1921/1996, p. 117), o que revela que o mecanismo, nesse caso,
é o desejo de estar na mesma situação e que a identificação pode “surgir com qualquer nova
percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de
instinto45 sexual” (FREUD, 1921/1996, p. 117).
A identificação histérica no mecanismo dos sintomas já aparece em “A interpretação
dos sonhos”, quando Freud (1900/1996) afirma não se tratar de mero contágio psíquico. Re-
corre ao exemplo de um mesmo tipo de acometimento em diferentes pacientes em uma mesma
enfermaria hospitalar e afirma que isso acontece porque os pacientes tomam conhecimento do
motivo que desencadeou a crise (por exemplo, o recebimento de uma carta, o ressurgimento de
uma situação infeliz etc.). Se a inferência de que algo semelhante poderia lhes acontecer se
processasse no âmbito da consciência, despertaria medo de ter aquela mesma crise. Porém,
como essa inferência não se dá no âmbito da consciência, ocorre a irrupção do sintoma.
Essa identificação frequentemente expressa um elemento sexual comum, o que não ne-
cessariamente implica que tenha efetivamente acontecido uma relação sexual, mas que existam

45
O termo “instinto” aparece na edição brasileira das “Obras completas”, a partir da tradução do inglês “instinct”.
Em alemão, o termo utilizado por Freud é “trieb”, que corresponde ao termo “pulsão” em português.
51
pensamentos sobre. Por exemplo, Freud (1900/1996) discute o sonho de uma paciente cujo
marido tecia constantes elogios a uma amiga, o que lhe despertou ciúmes. O mecanismo de
identificação aparece no sonho ao colocar-se no lugar da amiga que estaria ocupando seu lugar
junto ao marido, o que indica que ela desejaria tomar o lugar da amiga.
Dessa maneira, como sintetizam Laplanche e Pontalis (1982/2001): “Não havendo qual-
quer investimento sexual do outro, o sujeito pode todavia identificar-se com ele na medida em
que ambos têm em comum um elemento (desejo de ser amado, por exemplo); por deslocamento,
será um outro ponto que irá produzir-se a identificação (identificação histérica)” (p. 229). Essa
modalidade, no contexto da identificação histérica, aponta para aquilo que seria o traço básico
de todo movimento identificatório, como afirma Cunha (1992): a semelhança e a troca de papéis
em um contexto em que os limites entre eu e mundo não são claramente delimitados nas rela-
ções do eu com os objetos.
Assim, Freud (1921/1996) discute a concepção de identificação a partir de três modali-
dades: 1) forma original de laço emocional com um objeto, 2) na formação de sintomas na
neurose, pela introjeção do objeto no ego, e 3) a partir de algo partilhado com alguém que não
é objeto da pulsão sexual. Com as formulações freudianas que retomamos até aqui, gostaríamos
de destacar que a concepção de identificação em Freud envolve assimilação e transformação,
como afirma Stavrakakis (1999): a identificação é compreendida como processo pelo qual se
dá a assimilação de algum aspecto ou atributo do outro, que é transformado.
Identificação e escolha de objeto tomam parte nas formulações sobre o Complexo de
Édipo e sua dissolução. No Édipo em sua forma positiva, uma criança do sexo masculino de-
senvolve uma catexia objetal pela mãe e identifica-se com o pai. Com a intensificação dos
desejos sexuais pela mãe, o pai passa a ser visto como um obstáculo, o que introduz um ele-
mento hostil à identificação e origina o Complexo de Édipo. Sua dissolução envolve o aban-
dono da catexia objetal pela mãe, preenchida por uma identificação com a mãe ou por uma
intensificação da identificação com o pai.
Em “O ego e o id”, Freud (1923a/1996) indica que estamos habituados a esperar esse
segundo resultado, mas ambos são possíveis. O Complexo de Édipo em sua forma positiva
resultaria na identificação com o genitor do mesmo sexo e escolha objetal pelo sexo oposto,
enquanto o negativo produziria identificação com o genitor do sexo oposto e escolha objetal
pelo mesmo sexo. Quando este desfecho se apresenta, “a dissolução do complexo de Édipo
consolidaria a masculinidade no caráter de um menino” (FREUD, 1923a/1996, p. 45). Na me-
nina, o desfecho “pode ser uma intensificação de sua identificação com a mãe (ou a instalação

52
de tal identificação pela primeira vez) – resultado que fixará o caráter feminino da criança”
(FREUD, 1923a/1996, p. 45). Segundo seus termos:

Essas identificações não são o que esperaríamos, visto que não introduzem no ego o
objeto abandonado, mas este desfecho alternativo também pode ocorrer, sendo mais
fácil observá-lo em meninas do que em meninos. A análise muito amiúde mostra que
uma menininha, após ter de abandonar o pai como objeto de amor, colocará sua mas-
culinidade em proeminência e identificar-se-á com seu pai (isto é, com o objeto que
foi perdido), ao invés da mãe. Isso, é claro, dependerá de ser a masculinidade em sua
disposição – seja o que for em que isso possa consistir – suficientemente forte.
(FREUD, 1923a/1996, p. 45)

O desfecho do complexo de Édipo dependeria, então, das disposições sexuais masculina


e feminina e de sua “força relativa”, que levaria à identificação com o pai ou com a mãe, de
maneira que a bissexualidade estaria articulada às vicissitudes do complexo de Édipo. Freud
(1923a/1996) considera que as duas formas simples do Complexo de Édipo representam uma
simplificação. O mais comum seria, entre esses extremos, o Complexo de Édipo completo,
“dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança”
(FREUD, 1923a/1996, p. 45), com possibilidade de predominância de um dos componentes.
Além do fato de constituírem processos diferentes, Freud (1933b[1932]/1996) considera
que identificação e escolha objetal são independentes. Dessa maneira, fica aberta a possibili-
dade de que um menino se identifique com o pai e escolha um objeto masculino, por exemplo.
A psicanálise coloca a contingência, e Freud já percebia que as restrições eram produzidas na
esfera do social. Como veremos com Elliot (1991), no capítulo 3, só se pode falar em sexuali-
dade feminina como normativa.
Contudo, é importante mencionar um questionamento colocado por Molinier (2008) ao
destacar que o conceito de bissexualidade psíquica conserva a diferença, postulando a existên-
cia de moções masculinas e femininas em todos nós, e “a integração da bissexualidade psíquica
implica, para os psicanalistas, uma vitória ‘quantitativa’ do gênero ‘bom’ sobre o outro”46 (p.
168, tradução nossa). No capítulo 3, apresentaremos outras formulações freudianas no que se
refere aos regimes de normatividade em que a sexualidade se inscreve, e poderemos retomar
essa proposição.
Nesta seção, a retomada do percurso que acompanhamos em Freud revelou-se, então,
importante para nosso trabalho por estabelecer que as considerações freudianas já chamavam a
atenção para situar a discussão sobre sexualidade não no campo da normalidade versus

46
“[...] l’intégration de la bisexualité psychique implique, pour les psychanalystes, une victoire ‘quantitative’ du
‘bon’ genre sur l’autre” (MOLINIER, 2008, p. 168)

53
anormalidade, mas das normas estabelecidas culturalmente. Como vimos, em relação ao caso
da jovem homossexual, Freud coloca a homossexualidade não como anormalidade ou patolo-
gia, mas como “caminho proibido pela sociedade”. As vicissitudes da pulsão colocam as dife-
rentes escolhas de objeto como possíveis, porém algumas são aceitas e outras condenadas pela
sociedade, o que aponta para uma dimensão que desenvolveremos ao longo desta tese a partir
das realidades de opressão.
No que se refere ao que discutimos nesta seção, essa dimensão material da opressão
aparece a partir da restrição a determinadas formas de expressão no campo da sexualidade, e
sua consequente exclusão. Essa discussão aberta aqui será importante para situar, no capítulo
3, momentos da obra freudiana em que podemos encontrar tematizações da opressão vivida
pelas mulheres naquele momento histórico, sobretudo a partir das proposições da antropóloga
Gayle Rubin (1975/2017), que vê nos textos freudianos uma descrição da realidade da opressão
das mulheres.
Além desse aspecto de uma dimensão material da opressão, um outro ponto importante
desta seção é a formulação da identificação, que possibilita discutir a possibilidade ou não da
identidade na psicanálise. Na próxima seção, buscaremos articular a compreensão psicanalítica
de identificação com o objetivo de interrogar a própria conceituação de identidade.

1.1.2 A impossibilidade da identidade a partir da psicanálise

Tendo retomado, na seção anterior, formulações freudianas sobre a concepção de iden-


tificação, é importante situar que Cunha (1992) destaca o surgimento dessa noção no pensa-
mento psicanalítico em um contexto específico: a discussão sobre o desejo recalcado e os so-
nhos e sintomas que o realizam. A partir de 1914, uma transformação se introduz pela formu-
lação do narcisismo e, de acordo com o autor, a discussão sobre o eu não pode prescindir da
noção de narcisismo.
Um primeiro ponto importante a destacar é que, na seção 1.1.1, utilizamos o termo
“ego”, tal como aparece na versão brasileira das “Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud”, editada pela Imago. Nesta seção, utilizaremos o termo “eu”, que é utilizado pelos psi-
canalistas com os quais trabalharemos.
Na versão brasileira do “Vocabulário da Psicanálise” de Laplanche e Pontalis
(1982/2001), temos o verbete “ego ou eu”, com o destaque para os equivalente Ich, em alemão,
moi, em francês, e ego, em inglês. No Brasil, o termo “ego” acabou ficando muito vinculado à
vertente da “psicologia do ego” (ego psychology) – com sua crença em uma parte sadia do eu

54
na qual a análise deveria se apoiar, tendo o objetivo de fortalecê-lo. Algo que é questionado,
por exemplo, por Lacan, ao colocar em questão a autonomia do eu.
Não trabalharemos diretamente a partir de uma perspectiva lacaniana, mas é importante
situar alguns pontos que aparecem em formulações de psicanalistas com os quais trabalhare-
mos, sobretudo no que se refere às concepções de eu e de sujeito. O conceito de “sujeito” não
aparece em Freud, mas, a partir de uma leitura lacaniana de Freud, muitos psicanalistas recor-
rem a essa concepção proposta por Lacan com base em Freud.
É importante lembrar que Lacan situa uma concepção não substancial de sujeito, como
afirmam Baas e Zaloszyc (1996): “o sujeito, na experiência analítica, não é de forma alguma
prévio, mas suposto e assujeitado ao significante, onde encontra suas identificações e do qual é
um efeito. Isso equivale a dizer que esse sujeito não é uma substância” (p. 1). No texto “O
estádio do espelho como formador da função do eu” (LACAN, 1949/1998) – muito retomado
por psicanalistas para situar a impossibilidade da identidade na psicanálise – aparecem os ter-
mos “Je” e “moi”, que, como sintetizam Ruder e Brauer (2007), tratam da “estruturação de um
Je como posição simbólica do sujeito simultaneamente ao aparecimento de um moi como cons-
trução imaginária” (p. 516, grifos nossos).
Tendo traçado essas breves considerações sobre terminologias e concepções, iniciare-
mos com considerações sobre o narcisismo em Freud. No texto “Sobre o narcisismo: uma in-
trodução”, Freud (1914/1996) afirma que o eu não é originário: “uma unidade comparável ao
ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido” (p. 84). O
autoerotismo e a sexualidade perverso-polimorfa fazem com que a condição inicial do bebê seja
de fragmentação (pulsões auto-eróticas parciais), existindo no início da vida o narcisismo pri-
mário (investimento originário do ego, em que a criança investe toda a sua libido em si mesma),
do qual, posteriormente, parte será cedida aos objetos do mundo externo.
No entanto, esse investimento do ego persiste durante toda a vida47: “há uma catexia
libidinal original do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que funda-
mentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo de uma
ameba está relacionado com os pseudópodes que produz” (FREUD, 1914/1996, p. 83). Freud
(1914/1996) recorre, então, ao narcisismo secundário (retorno ao ego da libido retirada dos seus

47
Essa catexia do ego persiste porque, no plano econômico, os investimentos de objeto não suprimem os investi-
mentos do ego, e, no plano tópico, o ideal do ego é uma formação narcísica, nunca abandonada. De acordo com
Laplanche e Pontalis (1982/2001), o ideal do ego funciona como referência ao ego para avaliar suas realizações.
Tal avaliação é realizada de acordo com o que se projeta diante de si como ideal, o que decorre do narcisismo
perdido da infância.
55
investimentos objetais) não apenas para tratar de estados de regressão, mas o considerando
como estrutura permanente do eu.
Cunha (1992) destaca que a noção de narcisismo marca a formulação de que o eu não
está presente deste o início nem surge de um gradual processo adaptativo a partir das exigências
da realidade, mas resulta de uma “nova ação psíquica”. A partir das formulações freudianas
sobre identificação e sobre o eu, cabe questionar se uma experiência da ordem da identidade é
possível, lembrando que a origem do conceito de “identidade” na filosofia diz respeito à inte-
gridade e permanência no tempo (CUNHA, 2009).
Seria possível pensar essa integridade e permanência na psicanálise? Cunha (2000) lem-
bra que, a partir das formulações freudianas, temos “um sujeito dividido, governado por forças
que não controla, sujeito a desejos que não conhece e empurrado a atos e palavras em que
absolutamente não se reconhece” (p. 224), o que se contrapõe à ideia de que algo poderia per-
manecer íntegro. Se a concepção de identidade remete diretamente ao eu, e não ao sujeito, é
importante situar que “também o Eu tem a sua parcela inconsciente, e não é de modo algum
uma instância una, que está presente desde o primeiro momento – o Eu se produz, e não de uma
maneira linear, no jogo entre a pulsão e as demandas do mundo exterior, ou ainda, no confronto
entre o sujeito e a alteridade” (CUNHA, 2000, p. 224).
O psicanalista Joel Birman (2003), ao trabalhar a interlocução entre psicanálise e filo-
sofia, indica que a filosofia do sujeito, que o inscrevia no campo da consciência e do eu, foi
questionada pela proposição de descentramento do sujeito. No texto “Uma dificuldade no ca-
minho da psicanálise”, Freud (1917/1996) afirma que a psicanálise implica uma “ferida narcí-
sica” devido ao descentramento do psiquismo da consciência e do eu para o inconsciente.
Essa proposição condensada do descentramento do sujeito implica, como observa Bir-
man (1997), três descentramentos: 1) da consciência para o inconsciente, 2) do eu para o outro,
3) da consciência, do eu e do inconsciente para as pulsões. Nos dois primeiros, o descentra-
mento se empreende no campo da representação, enquanto no terceiro o descentramento se
funda fora da representação. Com isso, Freud colocou em questão os três registros em que o
cogito se fundava: a consciência, o eu e a representação.
O primeiro descentramento está apresentado desde a primeira tópica, em que o incons-
ciente é colocado como sistema psíquico em contraposição ao sistema pré-consciente/consci-
ência. Assim, a consciência perdeu seu lugar de destaque no psiquismo e a realidade psíquica
– centrada no inconsciente – ganhou autonomia, deixando de ser vista como mero reflexo da
realidade material (BIRMAN, 2003).

56
O segundo descentramento está enunciado em “Sobre o narcisismo: uma introdução”
(FREUD, 1914/1996), com a formulação de que o eu não seria originário, mas derivado do
investimento do outro. A partir da condição inicial de fragmentação, seria o outro quem pro-
moveria a unidade do eu e do corpo através de uma imagem, constituindo o narcisismo primá-
rio. O eu oscilaria entre se auto-investir e investir os objetos, de maneira que “a subjetividade
estaria sempre polarizada entre o eu e o outro, num reconhecimento difícil deste, pois a onipo-
tência que a fundaria estaria referida sempre ao outro” (BIRMAN, 2003, p. 67).
Apenas com o conceito de pulsão de morte – uma pulsão sem representação –, proposto
por Freud em “Além do princípio do prazer” (1920), o descentramento promovido pela psica-
nálise passou a ter a pulsão como referência, colocando em questão o registro da representação.
Para Birman (2003), o conceito de pulsão de morte foi sendo construído desde 1915, em “As
pulsões e seus destinos”, com a proposição da força pulsional como exigência de trabalho im-
posta ao psiquismo em função de sua inserção no corporal – portanto autônoma em relação ao
registro da representação.
Essa perspectiva do descentramento do sujeito coloca em questão os ideais de integri-
dade e permanência, que fundamentam a concepção de identidade, como afirma Cunha (2009).
O modo de enunciação de si inteiramente sob controle do eu é colocado em xeque pelo primeiro
descentramento, uma vez que o inconsciente traz a possibilidade de produção de sentidos e
modos singulares de subjetivação em que “o inesperado, o falho e o disruptor atuem no centro
da cena psíquica e da experiência subjetiva” (CUNHA, 2009, p. 68).
Com a formulação do narcisismo, o eu deixa de ser originário e perde a autonomia e
soberania sobre o psiquismo, devido à sua dependência em relação aos investimentos libidinais.
Por passar a ser sexualizado, fica submetido à força da pulsão, disperso e fragmentário. Com
isso, “a ideia de um inconsciente que pudesse ser ordenado em uma narrativa racional, obede-
cendo aos padrões vigentes de inteligibilidade a partir do trabalho de deciframento operado pelo
eu soberano também se torna cada vez menos viável” (CUNHA, 2009, p. 69).
A noção de pulsão de morte implica que o eixo da representação não pode integrar a
experiência na relação consigo mesmo e com o outro. Com isso, pode-se questionar a concep-
ção de uma narrativa do eu construída integralmente a partir da consciência. Com a noção de
inconsciente, “tal narrativa só seria possível a partir de uma permanente operação de exclusão
dos conteúdos inaceitáveis pelo eu, supressão de afetos e produção de angústia” (CUNHA,
2009, p. 67). Com a introdução da pulsão de morte, é problematizada a noção de representação
e, consequentemente, a ideia de uma narrativa que poderia “representar” o eu.

57
Assim, a autoidentidade, como narrativa construída pelo eu para garantir sua integridade
e permanência, pode ser desconstruída a partir dos três descentramentos: com o primeiro, tal
narrativa não seria possível senão pelo recalque das fantasias inconscientes; com o segundo, a
noção de um eu íntegro e contínuo, fundado na razão e consciência, perde o sentido; e com o
terceiro a própria ideia de narrativa é colocada em questão, pois com a pulsão de morte o eixo
da representação deixa de ser capaz de integrar a experiência do sujeito (CUNHA, 2009).
Da mesma maneira, a partir de uma perspectiva lacaniana, Stavrakakis (1999) considera
que a divisão e alienação do sujeito colocam a identidade como impossível. A concepção laca-
niana de sujeito estaria para além de uma noção essencialista de subjetividade, de organização
em torno de alguma essência positiva que seria transparente e poderia ser completamente re-
presentável. O autor considera que essa formulação está em continuidade com a centralidade
do inconsciente em Freud – que coloca em cena a divisão – e que, a partir de Lacan, a radicali-
dade da formulação do inconsciente está em romper com a identidade entre o sujeito e o eu.
Essa concepção de subjetividade remonta, na leitura de Stavrakakis (1999), à formula-
ção freudiana da divisão (Spaltung), a que Freud recorre para tratar da divisão da psique entre
os sistemas inconsciente, consciente e pré-consciente. Embora Freud nunca refira a concepção
de “sujeito”, Lacan recorre a Freud para propor uma subjetividade fundamentalmente dividida.
No entanto, justamente porque a simbolização nunca dá conta, tornando impossível qualquer
identidade, uma busca constante por cobrir a impossibilidade através da representação leva a
identificações – ou seja, é preciso se identificar porque não há identidade, o que coloca a im-
possibilidade da identidade e a centralidade da identificação (STAVRAKAKIS, 1999).
Como vimos na seção 1.1.1, a identificação deve sempre ser considerada em relação à
alteridade, e a contingência se coloca quando se trata de processos identificatórios. Se temos as
contribuições de Stavrakakis (1999), destacando a identificação como aquilo que coloca a im-
possibilidade da identidade, temos também as proposições de Chantal Mouffe (2010) – com as
quais trabalharemos no capítulo 4 –, para quem as identificações são sempre parciais e em
movimento, justamente porque não existe algo fixo como uma identidade. No sentido da ela-
boração de um projeto político, Mouffe (2010) trabalha a partir da concepção de pontos nodais
e fixações parciais, que possibilitariam a enunciação no campo político a partir de uma pers-
pectiva não essencialista.
A possibilidade de pensar a enunciação em torno de categorias identitárias a partir de
uma perspectiva não essencialista possibilitaria, de alguma maneira, interrogar a psicanálise em
sua formulação sobre a impossibilidade da identidade? Para iniciar a discussão sobre essa

58
questão, retomaremos, na próxima seção, conceituações de identidade estrangeiras à psicaná-
lise, fazendo recurso ao campo das ciências sociais.

1.2 Conceituações de “identidade” e a colocação em cena dos riscos de essencialismo e


de universalismo

Brubaker (2001) destaca a longa história do termo “identidade” na filosofia ocidental,


com suas origens remontando aos gregos antigos e chegando até a filosofia analítica contem-
porânea, para lidar com “questões filosóficas eternas: aquela da permanência na mudança ma-
nifesta, aquela da unidade na diversidade manifesta”48 (BRUBAKER, 2001, p. 67, tradução
nossa). No entanto, o autor afirma que o amplo uso sócio-analítico do termo é recente, e “o
‘discurso identitário’ – seja dentro ou fora do mundo acadêmico – continua a proliferar hoje”49
(BRUBAKER, 2001, p. 68, tradução nossa).
De acordo com Brubaker (2001), a introdução do termo “identidade” na análise social
aconteceu apenas nos anos 1960 (com alguns sinais já reconhecíveis na segunda metade da
década de 1950), nos Estados Unidos, e, a partir de então, começou a se disseminar tanto nas
ciências sociais quanto no discurso público. Nos anos 1980, as categorias raça, classe e divisão
dos sexos se tornam predominantes a partir dos “Estudos Culturais” (Cultural studies), aborda-
gem que apresentaremos logo a seguir.
Nesse processo em que a concepção de “identidade” foi ganhando importância na aná-
lise social, Brubaker (2001) destaca o trabalho – que encontrou grande popularização – do psi-
canalista Erik Erikson, com a ideia de “crise de identidade”, bem como a apropriação da noção
de identificação – extraída de seu contexto psicanalítico original – por outros campos do co-
nhecimento, passando a ser associado à etnicidade e à teoria sociológica dos papéis, entre ou-
tros.
No contexto deste trabalho, circunscreveremos nossa análise à compreensão da catego-
ria “identidade” tal como aparece nos movimentos sociais contemporâneos, e não a uma reto-
mada histórica ou análise detalhada dos sentidos dessa concepção ao longo do tempo. Para isso,
partimos da proposição de Voegtli (2010), que compreende as identidades no âmbito dos mo-
vimentos sociais como “resultante provisório de identificações e afiliações, resultante que, por

48
“[…] des questions philosophiques éternelles : celle de la permanence dans le changement manifeste, celle de
l’unité dans la diversité manifeste” (BRUBAKER, 2001, p. 67)
49
“[...] le ‘discours identitaire’ – que ce soit à l’intérieur ou à l’extérieur du monde académique – continue à
proliférer aujourd’hui” (BRUBAKER, 2001, p. 68)
59
sua vez, tem um impacto restritivo sobre as percepções e possibilidades de ações dos indivíduos
no interior dos grupos”50 (p. 206).
Destacamos essa proposição porque coloca uma inter-relação que nos parece fundamen-
tal para a análise de movimentos políticos. Mais do que tomar tal asserção como uma afirmação,
acreditamos ser mais interessante tomá-la, neste momento, como questão: identidade é um re-
sultante, algo da ordem da produção? Se a identidade é resultante (provisório, contingente) de
algo que se dá nos processos que agrupam pessoas em torno de um movimento, esse algo que
é produzido também restringe de alguma forma as possibilidades de seus membros, ou, em
outros termos, algo que é da ordem da produção tem efeitos na realidade?
Para iniciar essa discussão sobre a categoria “identidade” no âmbito dos movimentos
sociais contemporâneos, recorreremos a formulações no campo dos “Estudos culturais”, movi-
mento cujas primeiras manifestações iniciam na Inglaterra, no final dos anos 1950, e que se
constitui, de forma organizada, com o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), fun-
dado em 1964, ligado à Universidade de Birmingham. Seus estudos voltam-se para as relações
entre cultura contemporânea e sociedade, considerando formas e práticas culturais, instituições,
bem como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais (ESCOSTEGUY, 2010).
Voegtli (2010) delimita uma contraposição entre uma visão de “identidade” como subs-
tancial (algo que já estaria dado, que existiria independentemente dos processos que as produ-
zem) e outra que destaca a dimensão subjetiva, segundo a qual as identidades seriam produzidas
e desfeitas de acordo com as identificações dos atores sociais, o que pode estar relacionado a
uma instrumentalização política ou a um objetivo estratégico de luta política. Relembremos
aqui o conceito de “essencialismo estratégico” – proposto por Gayatri Spivak, que apresenta-
mos na introdução da tese – e a proposta de reconhecer sem essencializar uma categoria soci-
almente construída, em que se faz recurso ao essencialismo com objetivo tático e intencional,
em contextos específicos e bem definidos (BAHRI, 2010).
Tanto a diferenciação proposta por Voegtli (2010) quanto o conceito de “essencialismo
estratégico” remetem à tensão entre essencialismo e não essencialismo. Segundo Woodward
(2014), uma perspectiva essencialista se debruçaria sobre conjuntos de características que su-
postamente seriam “autênticas”, compartilhadas por todos os membros do grupo, e que não se
alterariam. Ao contrário, na perspectiva não essencialista destacar-se-ia o fato de que entre os

50
“[…] la résultante provisoire des identifications et des appartenances, résultante qui, à son tour, a un impact
contraignant sur les perceptions et les possibilités d’actions des individus à l’intérieur des groups” (VOEGTLI,
2010, p. 206)

60
membros do grupo existem semelhanças e diferenças, bem como características partilhadas
com outros grupos. Além disso, seriam assinaladas as transformações na definição do perten-
cimento ao grupo ao longo do tempo.
A abordagem proposta pelos “Estudos culturais” (Cultural Studies) vai no sentido da
delimitação de uma compreensão não essencialista da categoria “identidade”, apontando, como
afirma Woodward (2014), que a identidade é relacional, estabelecida por uma marcação sim-
bólica da diferença. Nesse processo, Woodward (2014) destaca a importância do que denomina
a “dimensão psíquica” relacionada a “por que as pessoas assumem suas posições de identidade
e se identificam com elas” (p. 15, grifos do autor) – ou seja, por que investem em posições de
identidade?
O trabalho de constituição de um “nós” passa pela definição de fronteiras em relação ao
que é tido como exterior, o que envolve mecanismos de inclusão e exclusão, designação de
adversários, solidariedade interna, entre outros (VOEGTLI, 2010). Por isso, a discussão sobre
identidade deve abarcar a dimensão simbólica – por meio de sistemas representacionais que
marcam diferenças e pelos quais práticas e relações sociais adquirem sentido, definindo perten-
cimento e exclusão (símbolos como a bandeira nacional, por exemplo) – bem como a dimensão
social e material (se um grupo é marcado como inimigo, será socialmente excluído, ou seja,
efeitos reais são produzidos) (WOODWARD, 2014).
No campo da psicanálise, o “narcisismo das pequenas diferenças” constitui uma possi-
bilidade para a discussão dessa marcação de pertencimento e exclusão. Apresentaremos essa
formulação, tal como proposta por Freud, mas ressaltamos que é preciso cautela quando nos
apropriamos de formulações freudianas para pensar o campo político no contexto contemporâ-
neo. Para evidenciar por que alertamos para esse cuidado, destacamos que, na França, um grupo
de psicanalistas recorreu justamente à formulação de “narcisismo das pequenas diferenças” para
questionar o pensamento decolonial51, visto como “particularismo identitário” que constituiria
uma “ameaça” nas universidades. Segundo esse grupo, “o pensamento decolonial reforça o
narcisismo de pequenas diferenças”52 (AYOUCH, 2019a, p. 2, tradução nossa). O psicanalista
Thamy Ayouch se contrapõe a este posicionamento e o problematiza, situando os riscos que se
colocam a partir de um pretenso universalismo e afirmando que “essa condenação ao silêncio
do pensamento decolonial e dos sujeitos racializados coloca aqui um verdadeiro problema

51
Uma análise detalhada do pensamento decolonial fugiria aos objetivos deste trabalho, mas destacamos que, de
acordo com Ayouch (2018), trata-se de uma corrente de pensamento, desenvolvida sobretudo por pesquisado-
res(as) nos Estados Unidos e na América Latina, que busca analisar a colonialidade, levando em conta a colonia-
lidade do poder, do conhecimento e de gênero.
52
“La pensée decoloniale renforce les narcissisme des petites différences” (AYOUCH, 2019a, p. 2)
61
epistemológico e ético para a psicanálise”53 (2019a, p. 4, tradução nossa). O autor questiona,
então, “por que ponto cego, por qual narcisismo defensivo um(a) analista evacua de sua escuta
os efeitos psíquicos dessas questões sociais e políticas?”54 (AYOUCH, 2019a, p. 5, tradução
nossa).
Atentos aos riscos que podem se colocar a partir da apropriação de tal formulação, pas-
semos aos desenvolvimentos freudianos. Para situar a concepção de “narcisismo das pequenas
diferenças”, é importante destacar que, como apresentamos na seção 1.1, o conceito de identi-
ficação nos remete à importância da alteridade na constituição do eu, o que possibilita articular
agressividade e rivalidade. Uma das possibilidades de discutir desdobramentos dessa formula-
ção no campo político aparece quando Freud (1930/1996) trata da identificação com o grupo,
discutindo a oposição entre o grupo cultural a que se pertence e os não pertencentes ao grupo.
O “narcisismo das pequenas diferenças” facilitaria a coesão entre os membros do grupo preci-
samente por causa da oposição àqueles que não fazem parte do grupo: “É sempre possível unir
um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem
as manifestações de sua agressividade” (FREUD, 1930/1996, p. 118-9).
O autor se refere ao fenômeno em que comunidades com territórios vizinhos, e que
também compartilham aspectos culturais, envolvem-se em rixas constantes, como os espanhóis
e os portugueses por exemplo. Para Freud (1930/1996), trata-se de uma maneira oferecida pela
própria cultura para dar vazão à tendência à agressividade, por meio da oposição em relação
àqueles que não pertencem ao grupo: “uma satisfação conveniente e relativamente inócua da
inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada
mais fácil” (p. 119). Freud (1930/1996) considera que os massacres de judeus em civilizações
dos países que os acolheram constituem exemplo desse fenômeno de intolerância em relação
àqueles que estão fora do grupo: “Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor universal
entre os homens como o fundamento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por
parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma consequência
inevitável” (p. 119).
Se Freud (1930/1996) recorre ao exemplo de rixas entre territórios vizinhos, que com-
partilham aspectos culturais, Woodward (2014), ao discutir a guerra na antiga Iugoslávia, relata
uma conversa entre Michael Ignatieff, escritor e radialista, e um soldado sérvio, quando é

53
“Cette condamnation au silence de la pensée décoloniale et des sujets racialisés pose alors ici un véritable pro-
blème épistémologique et éthique à la psychanalyse.” (AYOUCH, 2019a, p. 4)
54
“Par quel point aveugle, par quel narcissisme défensif un·e analyste évacue-t-il de son écoute les effets psychi-
ques de ces questions sociales et politiques?” (AYOUCH, 2019a, p. 5)
62
colocado um questionamento sobre a diferença em relação aos croatas. De acordo com Igna-
tieff, citado por Woodward (2014), o soldado pega um maço de cigarros e diz “são cigarros
sérvios. Do outro lado, eles fumam cigarros croatas” (p. 7).
Woodward (2014) considera que se trata de uma história sobre identidades que “adqui-
rem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representa-
das” (p. 8). Os povos sérvio e croata viveram juntos na antiga nação iugoslava, estudaram e
trabalharam juntos, mas o argumento é de que são diferentes até nos cigarros que fumam. Esse
ponto indica o caráter relacional da identidade, ou seja, a identidade deve sua existência a outra
identidade, àquilo que não se é mas que fornece suas condições de existência. Dessa maneira,
“A identidade sérvia se distingue por aquilo que ela não é. Ser um sérvio é ser um ‘não croata’.
A identidade é, assim, marcada pela diferença” (p. 9).
É importante ressaltar que os riscos que se colocam a partir do assinalamento da marca-
ção da identidade a partir da diferença referem-se a um suposto universalismo, como pontuamos
a partir de Ayouch (2019a) e como retomaremos mais à frente. Assim, é importante que situe-
mos articulações entre identidade e diferença atentos a esses riscos de universalismo, o que
consideramos possível a partir da análise traçada por Avtar Brah, ao propor conceituações da
diferença como experiência, relação social, subjetividade e identidade55. Neste último, ao arti-
cular identidade e diferença, a autora recorre às três primeiras formulações, articulando-as e
propondo, a nosso ver, uma interessante conceituação para a discussão da categoria “identi-
dade”.
Avtar Brah nasceu na Índia e sua vida foi marcada por experiências de deslocamento,
de acordo com sua própria descrição no site da Universidade de Londres56, onde atuou como
professora de Sociologia. Tendo vivido em quatro continentes (Ásia, África, América e Eu-
ropa), considera que tais experiências fizeram com que as questões relativas a diferença, soli-
dariedade e identidade se tornassem centrais em seu trabalho. Piscitelli (2008) destaca que, na
Inglaterra, a autora trabalhou a articulação entre gênero, raça, etnicidade e sexualidade no fe-
minismo negro e publicou, em 1996, “Cartographies of Diaspora”, livro que se tornou referên-
cia e que traz formulações inovadoras para as reflexões sobre o movimento feminista.

55
A apresentação dessas conceituações, nesta e nas páginas seguintes, acompanha a desenvolvida no artigo:
ZANA, A. R. O. e PERELSON, S. Diversidade, diferença e contradição performativa. Clínica & Cultura, v. 7,
n. 2, jul-dez 2018, p. 30-45. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/clinicaecultura/article/view/10977
56
http://www.bbk.ac.uk/about-us/fellows/avtar-brah
63
Piscitelli (2008) considera que a autora trabalha com a concepção de “diferença” como
categoria analítica, a partir da “análise de como as formas específicas de discursos sobre a di-
ferença se constituem, são contestados, reproduzidos e (re)significados” (p. 269).
Ao discutir diferença como experiência, coloca-se a questão dos sentidos diversos atri-
buídos a um mesmo evento por diferentes indivíduos. Brah (2006) retoma a ênfase às experi-
ências pessoais no âmbito do movimento feminista – tal como postulado no slogan “o pessoal
é político” – como resgate do cotidiano das relações sociais de gênero (trabalho doméstico,
remuneração no trabalho, dependência econômica, violência sexual e exclusão das esferas de
poder político e cultural).
Novos sentidos podem ser produzidos quando esse cotidiano é interrogado, uma vez que
o compartilhar (experiências, sentimentos pessoais, compreensões) aparece em um registro de
conscientização. Embora ciente das limitações da estratégia de conscientização, Brah (2006)
considera que essa perspectiva trouxe para o feminismo a concepção de experiência como cons-
trução cultural. A autora defende a concepção de “experiência” como “processo de significação
que é a condição mesma para a constituição daquilo a que chamamos ‘realidade’” (p. 360), ou
seja, não como algo que permitiria o acesso a alguma “verdade”, mas como uma prática de
atribuição de sentidos.
Brah (2006) compreende esse “sujeito da experiência” não como “já plenamente cons-
tituído a quem as ‘experiências acontecem’”, mas, ao contrário, “a experiência é o lugar da
formação do sujeito” (p. 360). A autora considera que, se não há essa compreensão e a “expe-
riência” é considerada do ponto de vista do senso comum, o resultado são discussões que fra-
cassam, especialmente ao se defrontarem com situações de contradição, como, por exemplo:

[...] como lidar com o racismo de uma feminista, a homofobia de alguém sujeito ao
racismo, ou até o racismo de um grupo racializado em relação a outro grupo raciali-
zado, cada um supostamente falando a partir do ponto de vista de sua experiência, se
toda experiência refletisse de maneira transparente uma dada “verdade”? (p. 361)

Uma outra perspectiva se abre se as categorias “eu” e “nós” que agem são consideradas
não como entidades unificadas e já existentes, mas em contínuo processo em que a experiência
aparece como “um espaço discursivo onde posições de sujeito e subjetividades diferentes e
diferenciais são inscritas, reiteradas ou repudiadas” (BRAH, 2006, p. 361).
Enquanto relação social, por sua vez, a concepção de diferença remete aos processos
pelos quais os grupos, no processo de construção de identidades, articulam circunstâncias ma-
teriais e práticas culturais, bem como às condições de constituição e organização da diferença
por meio de discursos econômicos, culturais, políticos e práticas institucionais. Perspectiva que

64
evidencia a “articulação historicamente variável de micro e macro regimes de poder, dentro dos
quais modos de diferenciação tais como gênero, classe ou racismo são instituídos em termos de
formações estruturadas” (BRAH, 2006, p. 363).
A produção de narrativas coletivas compartilhadas – articuladas a trajetórias históricas,
circunstâncias materiais e práticas culturais – é indissociável de sentimentos de comunidade57
que remetem a compartilhamento coletivo, um passado ou destino comum. As narrativas sobre
os legados da escravidão, do colonialismo ou do imperialismo, por exemplo, remetem à con-
cepção de diferença como relação social, de maneira que “um grupo geralmente mobiliza o
conceito de diferença neste sentido quando trata das genealogias históricas de sua experiência
coletiva” (BRAH, 2006, p. 362).
Essas duas dimensões – experiência e relação social – estão articuladas. Brah (2006)
exemplifica apontando que falar em “mulheres norte-africanas na França” implica relações so-
ciais de gênero na França e também a experiência cotidiana por parte dessas mulheres, ou seja,
diferença como relação social e como cotidiano da experiência vivida.
No que se refere à concepção de diferença como subjetividade, Brah (2006) relembra
a centralidade de questões sobre diferença para o debate teórico em torno da subjetividade. A
partir dos questionamentos à concepção de homem universal e em contraposição às concepções
de sujeito como origem, unificado, racional, centrado na consciência, determinadas correntes
no campo teórico e político destacam a “noção de que o sujeito não existe sempre como um
dado, mas é produzido no discurso” (p. 366).
Reconhecendo a importância dessas formulações sobre a produção do sujeito, Brah
(2006) considera, no entanto, que não dão conta, isoladamente, das questões da subjetividade,
por isso busca situar essa dimensão revisitando a psicanálise. Para Brah (2006), trata-se de um
campo teórico que coloca em questão a concepção de um eu unitário e racional, mas também
possibilita a compreensão de algum senso de continuidade, ao mesmo tempo em que, ao colocar
em cena o lugar do inconsciente, também abre a possibilidade de pensar efeitos imprevisíveis
sobre diversos aspectos da subjetividade.
O recurso à psicanálise possibilitaria pensar a assunção de posições específicas de su-
jeito nas inter-relações que situam os processos de formação da subjetividade como “ao mesmo
tempo sociais e subjetivos; que podem nos ajudar a entender os investimentos psíquicos que
fazemos ao assumir posições específicas de sujeito que são socialmente produzidas” (BRAH,
2006, p. 370).

57
A concepção de “comunidade” contempla tanto os encontros face a face quanto as “comunidades imaginadas”,
no sentido proposto por Benedict Anderson citada por Brah (2006).
65
Finalmente, a concepção de diferença como identidade é articulada por Brah (2006) a
questões de experiência, subjetividade e relações sociais. A autora destaca a inscrição da iden-
tidade a partir da experiência e das relações sociais e, no processo de dar sentido às relações
com o mundo, coloca-se a contingência.
Para a autora, não existe uma identidade fixa ou única, mas, ao contrário, diferentes
posições de sujeito constituem uma multiplicidade relacional em constante transformação.
Nesse processo, diante de contingências pessoais, sociais e históricas, as identidades assumem
determinados padrões. Brah (2006) compara esses padrões aos que se formam em um caleidos-
cópio, onde diferentes imagens se formam à medida em que o movimentamos. Mesmo que um
determinado padrão possa dar a impressão de permanência por um momento, isso não passa de
impressão, uma vez que, de fato, o padrão é localizado e provisório, intrinsecamente ligado à
posição do caleidoscópico no momento de sua aparição. A partir dessa analogia, Brah (2006)
propõe que:

[...] a identidade pode ser entendida como o próprio processo pelo qual a multiplici-
dade, contradição e instabilidade da subjetividade é significada como tendo coerência,
continuidade, estabilidade; como tendo um núcleo – um núcleo em constante mu-
dança, mas de qualquer maneira um núcleo – que a qualquer momento é enunciado
como o “eu”. (p. 371)

Nesse processo, a relação entre o pessoal e o coletivo é complexa e contraditória, uma


vez que a especificidade da experiência se articula com a experiência coletiva, o que resulta na
produção de trajetórias que não correspondem a um reflexo da experiência do grupo – por isso
não se pode reduzir identidades coletivas a um somatório de experiências individuais (BRAH,
2006).
Como algo localizado e provisório, temos que a afirmação de identidades é historica-
mente específica. A análise proposta por Brah (2006) nos parece fundamental por possibilitar
uma conceituação de identidade que considere as particularidades – colocadas em cena a partir
da experiência, das relações sociais específicas e da subjetividade – ao mesmo tempo em que
considera que tais particularidades não são fixas – ou seja, não são tomadas de maneira essen-
cialista. Com a metáfora do caleidoscópio, Brah (2006) evidencia que uma determinada identi-
dade pode dar a impressão de permanência, mas, de fato, trata-se de uma multiplicidade con-
traditória e instável. A nosso ver, essa leitura proposta pela autora possibilita levar em conta,
de uma maneira não essencialista, as particularidades, o que é fundamental para afastar os riscos
do “universalismo imaginário”, como veremos mais à frente a partir de Brubaker (2001).
Além disso, assim como a afirmação de identidades é historicamente específica, tam-
bém o são os discursos que circulam no âmbito dos movimentos sociais e das teorizações

66
acadêmicas. Esse ponto nos leva a um outro aspecto importante para nosso trabalho, a partir
das contribuições de Brah (2006): o cuidado para não reproduzir em nossas teorizações essen-
cialismos que podem aparecer nos processos sociais.
Para compreender essa formulação, retomemos que, como destacamos a partir de Brah
(2006), a conceituação de diferença como relação social remete a discursos de comunalidade/di-
ferença, que, em geral, apresentam alguma reconstrução da história coletiva (noções de “cul-
tura”, ou de circunstâncias econômicas e políticas compartilhadas, por exemplo). No entanto,
como podemos observar no caso da antiga Iugoslávia, as raízes das identidades nacionais re-
montam à história das comunidades que viviam no território, mas o conflito emergiu em um
momento específico. O recurso aos antecedentes históricos é uma das formas pela qual as iden-
tidades se estabelecem, mas esse recurso ao passado diz mais sobre “a nova posição-de-sujeito”
(WOODWARD, 2014, p. 11), ou seja, diz mais sobre o presente do que sobre um suposto pas-
sado: “essa redescoberta do passado é parte do processo de construção da identidade”
(WOODWARD, 2014, p. 12).
Esse ponto permite retomar a articulação estabelecida por Brah (2006), a partir da qual
ela conclui que o conceito de diferença “se refere à variedade de maneiras como discursos es-
pecíficos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados” (p. 374).
Dependendo dessas múltiplas construções da diferença, seus efeitos podem ser de “desigual-
dade, exploração e opressão” ou, ao contrário, remeter a “igualitarismo, diversidade e formas
democráticas de agência política” (BRAH, 2006, p. 374).
No entanto, Brah (2006) considera que na prática “nem sempre é fácil desemaranhar
esses diferentes movimentos do poder. Discursos nacionalistas podem servir a ambos os fins”
(p. 375). Da mesma maneira, Woodward (2014) pontua que, muitas vezes, fazem-se presentes
reivindicações essencialistas sobre o pertencimento ou não a determinado grupo identitário,
algumas vezes baseadas na natureza mas, mais frequentemente, com base na história e no pas-
sado, representados como verdades imutáveis.
Tanto no âmbito da prática intelectual quanto do processo social, podem acontecer pro-
cessos de reificação, pelos quais identidades supostas são cristalizadas, de maneira que algo
que é da ordem de uma ficção política passa a ser essencializado, como afirma Brubaker (2001):
“processos e mecanismos através dos quais o que tem sido chamado de ‘ficção política’ da
‘nação’ – ou ‘grupo étnico’, ‘raça’ ou outra ‘identidade’ putativa – pode cristalizar, às vezes,
uma realidade poderosa e irresistível”58 (p. 70, tradução nossa).

58
“[...] les mécanismes par le biais desquels ce que l’on a appelé la « fiction politique » de la « nation » – ou du
67
Essa possibilidade se coloca porque a concepção de “identidade” (assim como outras,
como “raça”, “nação”, “cidadania”, “classe”, “comunidade”, entre outras) constitui categoria
ao mesmo tempo de prática e de análise social e política. Brubaker (2001) especifica que com-
preende “categorias de prática” na perspectiva de Pierre Bourdieu, como categorias desenvol-
vidas por atores sociais em sua experiência social cotidiana. Seriam categorias “populares”, em
contraposição às categorias “científicas”, utilizadas por analistas, que muitas vezes se cons-
troem à distância da experiência.
Como categoria de prática, a categoria “identidade” é utilizada em situações do cotidi-
ano – o “discurso identitário”, que procura dar conta de si mesmo e do que se compartilha com
outros, bem como das diferenças – e no campo da luta política, por aqueles que buscam ser
compreendidos, ter seus interesses e dificuldades levados em conta, a partir do destaque do que
teriam em comum e de diferente em relação aos outros, na tentativa de canalizar a ação coletiva
em determinada direção, o que possibilita falar em “políticas identitárias” (BRUBAKER,
2001).
O autor chama a atenção para a importância de não reproduzir ou reforçar essa reificação
ao adotar categorias de prática como categorias de análise. É possível, por exemplo, estudar o
discurso ou a política nacionalista, racista ou identitário(a) sem supor a existência de “nação”,
“raça” ou “identidade” (BRUBAKER, 2001). Como existe sempre uma inter-relação entre ca-
tegorias de análise e categorias de prática, consideramos que cabe uma reflexividade sobre nos-
sas teorizações para que nos interroguemos sobre os riscos de reproduzir essencialismos ou
reificações, ou seja, de reproduzir realidades de opressão.
Essa discussão sobre a reprodução de situações de opressão perpassa toda a tese; neste
momento inicial gostaríamos apenas de destacar essa possibilidade e também de assinalar um
segundo ponto – que não deixa de estar relacionado a esse problema – no que se refere ao que
apreendemos com as formulações dos “Estudos culturais” e de Avtar Brah (2006), no sentido
de interrogar a psicanálise.
Como discutimos nesta seção, uma tensão que perpassa a conceituação de “identidade”
é a que se estabelece entre essencialismo e não essencialismo. Enquanto uma perspectiva es-
sencialista faria recurso a características supostamente “autênticas”, enfatizando seu caráter
compartilhado e supondo que não se alterariam, uma perspectiva não essencialista, por sua vez,
destacaria semelhanças e diferenças no interior do grupo, assim como características partilhadas
com outros, além de assinalar as transformações, como vimos com Woodward (2014).

« groupe ethnique », de la « race » ou d’une autre « identité » putative – peut se cristalliser, à certains moments,
en une réalité puissante et irrésistible” (BRUBAKER, 2001, p. 70).
68
A abordagem proposta pelos “Estudos culturais” (Cultural Studies) procura delimitar
uma compreensão não essencialista da categoria “identidade”. A partir dessa perspectiva aberta
pelos “Estudos culturais”, e também a partir da psicanálise, com o “narcisismo das pequenas
diferenças”, discutimos como o trabalho de constituição de um “nós” passa pela definição de
fronteiras em relação ao que é tido como exterior, o que envolve mecanismos de inclusão e
exclusão, designação de adversários, solidariedade interna, entre outros (VOEGTLI, 2010), de
maneira que a identidade é relacional, estabelecida por uma marcação simbólica da diferença.
A partir de uma articulação entre identidade e diferença, Avtar Brah (2006) propõe que
não existe uma identidade fixa ou única, mas, ao contrário, diferentes posições de sujeito, como
padrões em um caleidoscópio, localizados e provisórios, ligados à posição do caleidoscópico
no momento de sua produção. Se, no caleidoscópio, as imagens que se formam dependem da
posição do instrumento, no caso das identidades, diferentes posições se produzem diante de
contingências pessoais, sociais e históricas. Brah (2006) também faz referência à psicanálise
resgatando a problematização da concepção de um eu unitário e racional, bem como a possibi-
lidade de pensar efeitos imprevisíveis, a partir da centralidade do inconsciente.
O que pretendemos enfatizar é que, se a psicanálise destaca a impossibilidade da iden-
tidade a partir da concepção de identificação, em outros campos do conhecimento também se
coloca uma discussão sobre identidade que não circunscreve essa concepção ao campo da inte-
gridade e permanência. Com esse apontamento, não pretendemos fazer equivaler o que se dis-
cute na psicanálise com as teorizações de outros campos do conhecimento. A problematização
de integridade e permanência na perspectiva psicanalítica chama a atenção para aquilo que está
para além da representação, como discutimos na seção 1.1.2, enquanto abordagens a partir de
outros campos do conhecimento tendem a situar a discussão no âmbito da representação.
Novamente ressaltamos que não se trata de fazer equivaler perspectivas psicanalíticas e
outras estrangeiras à psicanálise, mas sim de discutir em que medida essas formulações pode-
riam interrogar as teorizações psicanalíticas. Para lançar essas interrogações, recorremos à pro-
posição de Jules Falquet (2014a), autora de filiação a perspectivas feministas materialistas, que
apresentaremos no capítulo 2, e que, a partir do trabalho de Norma Alarcón e de Gloria An-
zaldúa, situa a ideia de “sujeito unificado” como privilégio daqueles que ocupam posição de
dominação: “Se sentir como um sujeito unificado [...] é um privilégio das dominantes. Nesse
caso, as mulheres brancas de classe privilegiada pretendiam, por meio do feminismo liberal,
tornar-se tão privilegiadas como os homens brancos da classe dominante” (p. 255-6).
Falquet (2014a) faz essa afirmação partindo de formulações no âmbito de movimentos
feministas, o que evidencia a existência, no âmbito dos movimentos sociais, de uma
69
problematização da ideia de integridade e permanência associada à identidade. Os movimentos
sociais se deparam com os dilemas colocados pelo recurso a categorias unificadas, que também
precisam ser trabalhados do ponto de vista teórico. Como lembra Almeida (2006):

[...] mesmo no âmbito dos movimentos sociais tais categorias foram problematizadas
pela percepção de um mundo social marcado por múltiplas diferenças e desigualdades
– de classe, “raça”, etnia ou cultura, gênero, sexualidade, entre outros. Esta percepção
coloca novos dilemas para os movimentos sociais, mas também para a teoria de gê-
nero, para os estudos sobre raça e para a teoria social.” (p. 228)

Essas múltiplas diferenças e desigualdades foram tematizadas no âmbito dos movimen-


tos sociais a partir da interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe, cuja origem
remonta ao final dos anos 1970 com o movimento feminista negro nos Estados Unidos (“Black
Feminism”) e a problematização do feminismo branco, de classe média, heteronormativo
(HIRATA, 2014).
A interdependência entre diferentes sistemas de opressão foi tematizada, em 1979, no
manifesto do coletivo de feministas negras “Combahee River Collective” (1979), nos EUA. O
manifesto já se inicia pontuando o comprometimento “com a luta contra a opressão racial, se-
xual, heterossexual e de classe e [...] o desenvolvimento de análises e práticas integradas base-
adas no fato de que os principais sistemas de opressão são interligados. A síntese dessas opres-
sões cria as condições de nossas vidas”59 (p. 1). Ou seja, existe uma interdependência entre os
sistemas de opressão (racial, sexual, heterossexual e de classe, nos termos do manifesto), o que
exige uma perspectiva de articulação, tanto nas análises quanto nas práticas.
Sistematizando essa preocupação com a interdependência entre sistemas de dominação,
a jurista Kimberlé Crenshaw propõe, no final dos anos 1980, o termo “interseccionalidade”,
cuja origem remonta ao movimento Black Feminism (HIRATA, 2014). Tratava-se de conside-
rar as múltiplas identidades específicas, de maneira que “buscava nomear dilemas estratégicos
e identitários encontrados no espaço político norte-americano por certas categorias de pessoas
submetidas a formas combinadas de dominação, em particular as mulheres negras”60 (BERENI,
CHAUVIN, JAUNAIT, & REVILLARD, 2012, p. 280, tradução nossa).
De acordo com Crenshaw (2002), a concepção de “interseccionalidade” busca concei-
tuar a articulação de múltiplos sistemas de subordinação de maneira a considerar as

59
“[…] we are actively committed to struggling against racial, sexual, heterosexual, and class oppression, and see
as our particular task the development of integrated analysis and practice based upon the fact that the major systems
of oppression are interlocking. The synthesis of these oppressions creates the conditions of our lives.” (COMBA-
HEE RIVER COLLECTIVE, 1979, p. 1)
60
“[...] cherchait à donner un nom aux dilemmes stratégiques et identitaires rencontrés dans l'espace politique
étasunien par certaines catégories de personnes subissant des formes combinées de domination, en particulier les
femmes noires.” (BERENI, CHAUVIN, JAUNAIT, & REVILLARD, 2012, p. 280).
70
“consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação.”
(p. 177). Diversos eixos de poder – como raça, etnia, gênero e classe – frequentemente se so-
brepõem e se cruzam, sendo as intersecções caracterizadas pelo entrecruzamento entre dois ou
mais eixos. Mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões estão “po-
sicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas” (CRENSHAW,
2002, p. 177), sendo fundamental a atenção a vulnerabilidades interseccionais. Como afirma a
autora:

A garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da proteção


dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias formas
pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao modo
pelo qual essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de diferentes
grupos de mulheres. (CRENSHAW, 2002, p. 174)

Avtar Brah e Ann Phoenix (2004) fazem remontar ao século XIX essa preocupação com
o entrelaçamento de diferenças na produção de desigualdades sociais. As autoras pontuam que
uma “temática crítica do feminismo que é eternamente relevante é a importante questão do que
significa ser mulher em diferentes circunstâncias históricas”61 (BRAH & PHOENIX, 2004, p.
76, tradução nossa), preocupação que foi colocada em debate ao longo das décadas de 1970 e
1980. No entanto, as autoras consideram que essa preocupação já aparecia um século antes,
com feministas envolvidas em lutas contra a escravidão e pelo sufrágio feminino nos EUA,
quando “as inter-relações entre racismo, gênero, sexualidade e classe social estavam no centro
dessas disputas”62 (BRAH & PHOENIX, 2004, p. 76, tradução nossa).
Brah e Phoenix (2004) retomam o discurso de Sojourner Truth, em 1851, na Convenção
dos Direitos da Mulher (“Women's Rights Convention”) em Akron, Ohio, destacando seu
grande impacto na Convenção e o prenúncio de campanhas de feministas negras mais de um
século depois. As autoras lembram que Sojourner Truth foi uma mulher escravizada que fez
campanha pela abolição da escravidão e pela igualdade de direitos para as mulheres e, como
era iletrada, não existe registro formal do seu discurso, existindo duas versões diferentes dele,
sendo a de maior circulação a seguinte:

Aquele homem lá diz que uma mulher precisa ser ajudada ao entrar em carruagens, e
levantada sobre as valas, e ter o melhor lugar em qualquer lugar. Ninguém me ajuda
a um lugar melhor! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu
braço. Eu arei, eu plantei e eu recolhi tudo para os celeiros. E nenhum homem pôde
me auxiliar. E eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto

61
“One critical thematic of feminism that is perennially relevant is the important question of what it means to be
a woman under different historical circumstances.” (BRAH & PHOENIX, A., 2004, p. 76)
62
“[...] the interrelationships between racism, gender, sexuality, and social class were at the heart of these contes-
tations.” (BRAH & PHOENIX, A., 2004, p. 76)
71
quanto qualquer homem – quando eu conseguia isso – e suportar o chicote também!
E eu não sou uma mulher? Eu dei à luz a crianças e vi muitas delas serem vendidas
como escravas, e quando eu chorei com a dor de uma mãe, ninguém além de Jesus me
ouviu. E eu não sou uma mulher?63 (BRAH & PHOENIX, 2004, p. 77, tradução nossa)

Esse discurso impactante chama a atenção, como destacam Brah e Phoenix (2004), para
a “dor e violência subjetivas que os infligentes não desejam ouvir ou reconhecer”64 (BRAH &
PHOENIX, 2004, p. 77, tradução nossa), assim como possibilita a desconstrução de noções a-
históricas ou essencialistas sobre o que seria “mulher”, ao mesmo tempo em que estabelece
uma crítica dos processos sociopolíticos, econômicos e culturais de “alterização”. Brah e Pho-
enix (2004) consideram que Sojourner Truth “antecede em um século alguns dos nossos textos
feministas mais recentes sobre o assunto, como ‘Am I that name?’ de Denise Riley (2003/1988)
ou ‘Gender Trouble’ de Judith Butler (1990)”65 (p. 76), uma vez que estabelece uma concepção
relacional de identidade. De acordo com as autoras:

Identidade política aqui nunca é tomada como um dado, mas performada através de
retórica e narração. As reivindicações de identidade da Sojourner Truth são, portanto,
relacionais, construídas em relação às mulheres brancas e a todos os homens, e de-
monstram claramente que o que chamamos de “identidades” não são objetos, mas
processos constituídos nas e através das relações de poder.66 (BRAH & PHOENIX,
2004, p. 77, tradução nossa)

Retomando a proposição de Falquet (2014a), consideramos que o discurso de Sojourner


Truth possibilita situar a ideia de “sujeito unificado” como privilégio daqueles que ocupam
posição de dominação. O que aparece no discurso de Truth, ao assinalar os múltiplos atraves-
samentos – que apontam para uma interdependência entre escravidão, racismo, condição da
mulher, condição socioeconômica – não poderia ser mais distante de qualquer noção de unifi-
cação, integridade ou permanência. Assinala também as diferenças que se colocam entre mu-
lheres e que possibilitam problematizar uma categoria unificada “mulheres” como sujeito dos

63
“That man over there says that women need to be helped into carriages, and lifted over ditches, and to have the
best place everywhere. Nobody helps me any best place. And ain't I a woman? Look at me! Look at my arm. I
have plowed (sic), I have planted and I have gathered into barns. And no man could head me. And ain't I a woman?
I could work as much, and eat as much as any man – when I could get it – and bear the lash as well! And ain't I a
woman? I have borne children and seen most of them sold into slavery, and when I cried out with a mother's grief,
none but Jesus heard me. And ain't I a woman?” (BRAH & PHOENIX, A., 2004, p. 77)
64
“[…] subjective pain and violence that the inflictors do not often wish to hear about or acknowledge.” (BRAH
& PHOENIX, A., 2004, p. 77)
65
“It predates by a century some of our more recent feminist texts on the subject such as Denise Riley’s
(2003/1988) ‘Am I that name?’ or Judith Butler’s ‘Gender Trouble’ (Butler, 1990).” (BRAH & PHOENIX, A.,
2004, p. 76)
66
“Political identity here is never taken as a given but is performed through rhetoric and narration. Sojourner
Truth’s identity claims are thus relational, constructed in relation to white women and all men and clearly demon-
strate that what we call ‘identities’ are not objects but processes constituted in and through power relations.”
(BRAH & PHOENIX, A., 2004, p. 77)

72
feminismos. Afinal, se o direito ao trabalho fora de casa foi uma das pautas dos feminismos
feitos por mulheres brancas de classe privilegiada, Sojourner Truth coloca que sempre traba-
lhou – como um “homem”.
Embora Truth não faça uso do termo “identidade”, Brah e Phoenix (2004) consideram
que o que aparece em seu discurso é uma tematização da identidade em relação às mulheres
brancas e aos homens, o que evidencia as “identidades” como constituídas nas e através das
relações de poder. Temos, então, a partir da proposição da interdependência entre diferentes
sistemas de opressão, uma concepção não essencialista de identidade.
Em que essa concepção possibilita interrogar a psicanálise? Consideramos que a ênfase
na interdependência de diferenças na produção de desigualdades possibilita interrogar a con-
cepção de identidade enquanto integridade e permanência afastando-se da ideia de um univer-
sal, supostamente “neutro”. Acreditamos, também, que a perspectiva de uma interdependência
entre diferentes relações sociais possibilita articular a dimensão da materialidade às teorizações
psicanalíticas que propõem uma problematização das identidades, como discutiremos ao longo
da tese.
Como pontuamos na introdução desta tese, Alcoff (1988) situa a tendência dominante
no pensamento intelectual ocidental de insistência no universal, neutro, sem perspectiva. No
entanto, qualquer concepção de um universal só pode se produzir a partir de exclusões. Nova-
mente, remetemos ao discurso de Sojourner Truth, que, a nosso ver, denuncia os universais
“homem” e “mulher” precisamente ao colocar a questão “E eu não sou uma mulher?”. Se “mu-
lher” é mais fraca e não pode trabalhar como um “homem”, essa concepção de “mulher” só se
produz a partir da exclusão de mulheres como Truth.
No capítulo 2, trabalharemos com as formulações de Laura Lee Downs (1993), que pos-
sibilitam resgatar esse aspecto ao afirmar a importância das políticas de identidade por denun-
ciarem a estrutura branca e masculina, tomada como supostamente universal. Esse risco de um
“universalismo imaginário” é destacado por Brubaker (2001), que retoma a importância da te-
matização da identidade como algo que chamou a atenção para a temática da particularidade no
âmbito da análise social, e propõe que a problematização da categoria “identidade” não se faça
em detrimento da consideração das particularidades, que aparecem no âmbito das afiliações,
das relações e histórias, de problemas e dificuldades específicos. Retomemos um trecho que
sintetiza essas formulações:

Criticar o uso que a análise social faz de “identidade” não significa cegar-se à parti-
cularidade, mas buscar conceber de maneira mais diferenciada as reivindicações e
possibilidades que surgem de afinidades e afiliações particulares, de formas de comu-
nidade e de relações particulares, de histórias e auto-compreensões particulares, de
73
problemas e dificuldades particulares. A análise social foi sensibilizada maciça e du-
ravelmente para a peculiaridade ao longo das últimas décadas, e a produção científica
sobre identidade contribuiu muito para esse empreendimento. Agora é hora de ir além
da “identidade” – não em nome de um universalismo imaginário, mas em nome da
clareza conceitual que a análise social e a inteligência política exigem.67
(BRUBAKER, 2001, p. 85, tradução nossa)

Quando um grupo de psicanalistas questiona o pensamento decolonial por se tratar de


um “particularismo identitário” (AYOUCH, 2019a), não se trata precisamente dos riscos de um
“universalismo imaginário” que desconsidera as particularidades, como destaca Brubaker
(2001)? No capítulo 4, retomaremos essa questão e discutiremos, a partir das contribuições de
Ayouch (2018), os riscos de universalismo a partir da postura enunciativa pretensamente neutra
da psicanálise. Neste momento, recorremos à problematização proposta por Ayouch (2019a)
diante do questionamento do pensamento decolonial pelo referido grupo de psicanalistas. O
autor sublinha os riscos de universalismo pontuando que:

Em nome da “singularidade do indivíduo” ou de uma psicanálise apresentada como


“universalismo” e “humanismo”, trata-se aqui, nem mais nem menos, de uma verda-
deira operação de censura. As minorias políticas francesas racializadas, que não re-
produzem a única linguagem autorizada, aquela da qual os(as) autores(as) da tribuna
são os representantes, não têm nada a fazer na universidade ou no divã.68 (AYOUCH,
2019a, p. 2)

Tendo em vista esses riscos, a proposição de Brubaker (2001) nos parece fundamental:
a defesa de um “para além da identidade” não deve se fazer em nome de um “universalismo
imaginário”, mas da clareza conceitual, fundamental tanto para a análise social quanto no
campo do político. Essa consideração nos leva à última seção deste capítulo, em que interroga-
remos o problema das identidades a partir do debate redistribuição versus reconhecimento.
Consideramos que a posição de Nancy Fraser, uma das interlocutoras desse debate, situa uma
problematização das identidades que não se faz em nome de um universalismo, mas da “clareza
conceitual que a análise social e a inteligência política exigem”, como lembra Brubaker (2001).

67
“Critiquer l’usage que l’analyse sociale fait de l’« identité » ne veut pas dire s’aveugler sur la particularité, mais
plutôt chercher à concevoir d’une manière plus différenciée les revendications et les possibilités qui naissent des
affinités et des affiliations particulières, des formes de communauté et de relations particulières, des histoires et
des autocompréhensions particulières, des problèmes et des difficultés particuliers. L’analyse sociale a été sensi-
bilisée massivement et durablement à la particularité au cours des dernières décennies, et la production scientifique
sur l’identité a grandement contribué à cette entreprise. Il est temps maintenant d’aller au-delà de l’« identité » –
non pas au nom d’un universalisme imaginaire, mais au nom de la clarté conceptuelle que requièrent l’analyse
sociale et l’intelligence politique.” (BRUBAKER, 2001, p. 85).
68
“Au nom de « la singularité de l’individu » ou d’une psychanalyse présentée comme « universalisme » et « hu-
manisme », il s’agit ici, ni plus ni moins, d’une véritable opération de censure. Les minorités politiques françaises
racialisées, qui ne reproduisent pas le seul langage autorisé, celui dont les auteur·e·s de la tribune sont les repré-
sentant·e·s, n’ont rien à faire à l’université ou sur le divan.” (AYOUCH, 2019a, p. 2)
74
1.3 O debate redistribuição versus reconhecimento

Uma das possibilidades de leitura da discussão em torno da problemática da identidade


e de suas implicações no campo político passa pelo debate em torno das perspectivas do reco-
nhecimento e da redistribuição. Na introdução deste capítulo, apresentamos, a partir de Nancy
Fraser (2006) e Axel Honneth (2007), a configuração do cenário político contemporâneo ca-
racterizado por uma mudança de eixo da redistribuição para o reconhecimento. Se, da maneira
como movimentos sociais têm se organizado, o peso tem se deslocado da redistribuição para o
reconhecimento, isso não significa que necessariamente seja ou continuará sendo dessa forma,
nem que forçosamente exista um deslocamento ou substituição entre redistribuição e reconhe-
cimento – por isso a importância do debate em torno desses dois termos.
Um primeiro ponto importante, antes de passar ao debate em si, consiste em interrogar
por que tem havido um deslocamento da redistribuição para o reconhecimento no campo das
lutas políticas. No que se refere aos motivos para essa transformação, Honneth (2007) aponta
como explicações alternativas uma primeira hipótese articulada ao declínio do Estado de Bem-
Estar Social e um contexto de desilusão política, em que o objetivo de redistribuição teria pas-
sado a ser visto como inalcançável e teria dado lugar às demandas “mais concessivas” de reco-
nhecimento. Como hipótese alternativa, o autor destaca o aumento da sensibilidade moral de-
corrente da atuação de movimentos sociais que conferiram relevo ao problema do desrespeito
cultural. Em decorrência, teria aumentado nossa sensibilidade à importância do reconhecimento
da dignidade individual.
Fraser (2002), por sua vez, considera que tal transformação está articulada a uma das
características da atual ordem globalizada: a proeminência da cultura. Identidade e diferença
ganham nova ênfase, em um movimento caracterizado por novas configurações no âmbito da
cultura: maior visibilidade do “trabalho simbólico” em relação ao manual, declínio da centrali-
dade do trabalho na constituição de identidades coletivas, pluralismo cultural, difusão de ima-
gens pelas indústrias globais de publicidade e entretenimento etc.
Essa transformação acontece em um momento de permanência e até de exacerbação das
desigualdades materiais (desigualdades de renda e propriedade, de acesso a trabalho remune-
rado, educação, saúde e lazer etc.), o que leva Fraser (2006) a se perguntar sobre o porquê do
declínio das lutas orientadas pelo referencial socialista em torno das concepções de exploração
e redistribuição: “Essa virada representa um lapso de ‘falsa consciência’? Ou seria mais um
meio de compensar a cegueira cultural de um paradigma marxista posto em descrédito pelo
colapso do comunismo soviético?” (p. 231).
75
A autora se posiciona contrariamente a essas duas posições, por considerá-las ambas
abrangentes e sem nuances, e propõe que, ao invés de simplesmente desconsiderar as políticas
de identidade, deveríamos nos dedicar, tanto do ponto de vista acadêmico quanto político, a
discutir possibilidades no campo do reconhecimento. De acordo com Fraser (2006):

Ao invés de simplesmente endossar ou rejeitar o que é simplório na política da iden-


tidade, devíamos nos dar conta de que temos pela frente uma nova tarefa intelectual e
prática: a de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que identifique e as-
suma a defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que possam
ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade. (p. 231)

O que seria, então, uma “teoria crítica do reconhecimento”? No intuito de discutir uma
possibilidade crítica de repensar o reconhecimento, iniciaremos a apresentação do debate entre
Nancy Fraser e Axel Honneth, que ficou conhecido como “redistribuição versus reconheci-
mento”. Antes de passar à discussão dos posicionamentos de cada autor, é importante destacar,
como faz Amadeo (2017), que ambos partem da proliferação das lutas organizadas em torno da
categoria identidade e do correlato declínio das lutas de caráter econômico, que tiveram papel
proeminente durante grande parte da modernidade e hoje têm perdido espaço como demanda
social. A caracterização do cenário é, portanto, um ponto de convergência entre Nancy Fraser
e Axel Honneth, assim como a consideração de que existe uma relação a ser discutida entre
reconhecimento e redistribuição. Suas divergências se referem às relações estabelecidas, como
veremos adiante.
Amadeo (2017) considera que um dos momentos mais importantes desse debate foi a
publicação de “Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange”, publicado
em 2003, por Axel Honneth e Nancy Fraser. Neste livro, os autores apresentam uma introdução
conjunta intitulada, assim como o livro, “Redistribution or Recognition?” em que começam
traçando o panorama contemporâneo, apresentam os capítulos e, ao final, apontam que o diá-
logo entre eles ressalta as diferenças, mas também indica a preocupação compartilhada de arti-
cular níveis muitas vezes trabalhados separadamente no âmbito da filosofia moral, teoria social
e análise política.
No primeiro capítulo, “Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Re-
cognition and Participation”, Nancy Fraser (2003a) parte do cenário contemporâneo e discute
as demandas políticas considerando que algumas claramente se inserem em um dos dois para-
digmas (reconhecimento ou redistribuição), mas outras se apresentam nessas duas dimensões
simultaneamente, como é o caso do gênero, que discutiremos na seção 1.3.5. Em seguida, a
autora problematiza a articulação entre reconhecimento e redistribuição e propõe compreender

76
este último em termos de justiça, o que a leva à proposição de um outro modelo em termos de
status social e paridade de participação.
O segundo capítulo constitui, como o próprio título especifica, uma resposta a Nancy
Fraser. Em “Redistribution as Recognition: A Response to Nancy Fraser” (2003a), Axel Hon-
neth estabelece um diálogo com Nancy Fraser, apontando que a autora considera sua formula-
ção sobre a “luta por reconhecimento” como característica da “virada teórica do reconheci-
mento”69 e que ela teme que “a mudança dos conceitos-chave da teoria social crítica para uma
teoria do reconhecimento levará a negligenciar as demandas por redistribuição econômica que
já constituíram o coração normativo da tradição teórica que remonta a Marx”70 (HONNETH,
2003a, p. 111, tradução nossa). O autor contra-argumenta que “mesmo injustiças ligadas à dis-
tribuição devem ser entendidas como a expressão institucional de desrespeito social ou, melhor
dizendo, de relações não justificadas de reconhecimento”71 (HONNETH, 2003a, p. 114,
tradução nossa).
Seguem-se dois capítulos de réplica, “Distorted Beyond All Recognition: A Rejoinder
to Axel Honneth” (FRASER, 2003b) e “The Point of Recognition: A Rejoinder to the Rejoinder”
(HONNETH, 2003b), em que ambos reconhecem como pontos de convergência a caracteriza-
ção de grande parte dos movimentos sociais contemporâneos como articulados em torno de
demandas de reconhecimento da identidade e, considerando que se trata de um problema ao
mesmo tempo político e epistemológico, concordam que o conceito de reconhecimento é fun-
damental para a reconstrução da Teoria Crítica.
Destacadas essas aproximações, os autores reiteram os pontos de discordância, que pro-
curaremos discutir a partir das formulações de cada autor. Como afirma Amadeo (2017), ambos
discutem a relação entre demandas de reconhecimento e de redistribuição, partindo, portanto,
da consideração de que existe uma relação e esta deve ser problematizada. Tendo em vista esse
ponto de partida comum, as relações estabelecidas por cada um são diferentes.
Nas seções 1.3.3 e 1.3.4, discutiremos essas duas perspectivas, mas, antes disso, apre-
sentaremos brevemente as principais ideias de dois autores que são importantes para a compre-
ensão das formulações de Axel Honneth e Nancy Fraser em torno da questão da redistribuição
e reconhecimento: Hegel e Marx. Fowler (2009) analisa o debate

69
“recognition-theoretical turn” (HONNETH, 2003a, p. 111)
70
“[…] the shift away from key concepts of critical social theory towards a theory of recognition will lead to
neglect of the demands for economic redistribution that once constituted the normative heart of the theoretical
tradiction that goes back to Marx” (HONNETH, 2003a, p. 111)
71
“[...] even distributional injustices must be understood as the institutional expression of social disrespect – or,
better said, of unjustified relations of recognition” (HONNETH, 2003a, p. 114)

77
reconhecimento/redistribuição traçando um paralelo entre as proposições de Nancy Fraser e a
tradição marxista, bem como entre as formulações de Axel Honneth e a tradição hegeliana,
afirmando que “sua [de Axel Honneth] teoria do reconhecimento ainda é muito hegeliana. Fra-
ser, em contraste, é menos idealista. Nesse aspecto, ela está mais próxima de Marx, cujos es-
critos [...] giram em torno dos dois elementos irredutíveis: capital material (econômico) e reco-
nhecimento”72 (p. 146-7, tradução nossa).

1.3.1 Hegel e a dialética do senhor e do escravo

Embora o interesse acadêmico pelo tema do reconhecimento tenha ressurgido nos anos
1990, foi Hegel quem cunhou o termo “luta por reconhecimento” (Kampf um Anerkennung)
(GARRET, 2013a). Na “Fenomenologia do Espírito”, publicado em 1807, Hegel (1807/1992)
discute os processos de interação social e reconhecimento por meio da dialética do senhor e do
escravo.
Essa dialética está articulada ao confronto entre duas consciências-de-si, e, de acordo
com Safatle (2008), a concepção de consciência-de-si é relacional por destacar a experiência
de si como constituída na imbricação com o outro. Hegel (1807/1992) articula a consciência-
de-si a outra consciência-de-si que a legitima, ou seja, para ser consciência-de-si é preciso o
reconhecimento por outra consciência-de-si, o que estabelece o “movimento do reconheci-
mento” em que cada consciência-de-si se reconhece reconhecendo reciprocamente: “A consci-
ência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é
como algo reconhecido” (p. 126).
No entanto, Safatle (2008) considera que afirmar o aspecto relacional da consciência-
de-si em Hegel não é suficiente, uma vez que tal afirmação estaria restrita à circunscrição da
subjetividade em um contexto de relações intersubjetivas que a constituem. Para discutir esse
ponto, Safatle (2008) coloca em questão a compreensão dessa alteridade ao pontuar que:

Para tanto, precisaremos compreender melhor quem é este outro com o qual me rela-
ciono em experiências constitutivas que se dão no campo do trabalho da linguagem e
do desejo. Trata-se apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade mais
profunda que está para além do que determina uma individualidade como objeto de
representação mental, um para além que me coloca em confrontação com algo que,
do ponto de vista da consciência, é indeterminado? (p. 98)

72
“[…] his recognition theory is still too Hegelian. Fraser, in contrast, is less idealist. In this respect she is closer
to Marx, whose writings – from the Early Writings to the critique of the slave-like subdivision of labour in Capital
– revolve around the two irreducible elements: material (economic) capital and recognition” (FOWLER, 2009, p.
146-7)

78
Temos aqui um ponto fundamental na leitura hegeliana, introduzido por Safatle (2008):
a questão do desejo. Para compreender esse aspecto, é preciso localizar os dois momentos im-
plicados na dependência do reconhecimento, que determina um duplo movimento das duas
consciências-de-si. Num primeiro momento, em que ainda está excluído o outro, há o ser-para-
si simples, que, para se tornar consciência-de-si, precisa entrar em confronto com o outro, para
ser reconhecido, como afirma Hegel (1807/1992):

De início, a consciência-de-si é ser-para-si simples, igual a si mesma mediante o ex-


cluir de si todo o outro. [...] Mas o Outro é também uma consciência-de-si; um indi-
víduo se confronta com outro indivíduo. [...] Sem dúvida, cada uma está certa de si
mesma, mas não da outra; e assim sua própria certeza de si não tem verdade nenhuma.
(p. 128)

Se em um primeiro momento cada consciência-de-si apenas tem certeza de si, de ma-


neira que essa certeza não comporta nenhuma verdade, Hegel (1807/1992) formula que tanto o
desejo quanto a certeza de si só são adquiridos pela consciência-de-si na dependência do en-
contro e do confronto com a alteridade. Nas palavras do autor:

[...] a consciência-de-si é certa de si mesma, somente através do suprassumir desse


Outro, que se lhe apresenta como vida independente: a consciência-de-si é desejo. [...]
O desejo e a certeza de si mesma, alcançada na satisfação do desejo, são condiciona-
dos pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do suprassumir desse Outro; para que
haja suprassumir, esse Outro deve ser. (p. 124)

Quando dois desses desejos se confrontam, tem-se uma luta de puro prestígio, em que
se coloca a vida em risco para ser reconhecido, como afirma Hegel (1807/1992):

[...] a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal modo que elas se pro-
vam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou morte. Devem travar
essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de
ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]. (p. 128)

Entretanto, a morte seria o resultado se todos os homens se comportassem dessa forma.


Com a morte de um dos adversários, morre esse outro desejo e o sobrevivente não poderá ser
reconhecido pelo outro. Para que o reconhecimento seja possível, é necessário que ambos con-
tinuem vivos, e, para isso, um deles deve suprimir dialeticamente o outro, o que significa sub-
jugar, “suprimir conservando o que foi suprimido”, como afirma Kojève (2002, p. 20).
Se um dos adversários se recusa a arriscar a vida, abandonando seu desejo e satisfazendo
o desejo do outro, ou seja, aceitando reconhecer sem ser reconhecido, aquele que cedeu reco-
nhece o outro como senhor e se coloca como escravo do senhor. No entanto, o que se evidencia
é a desigualdade entre as duas consciências-de-si, uma que só reconhece e a outra que só é
reconhecida, de maneira que o resultado é “um reconhecimento unilateral e desigual” (HEGEL,
1807/1992, p. 131).
79
A relação entre senhor e escravo não é realmente de reconhecimento, porque “o indiví-
duo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a ver-
dade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente” (HEGEL, 1807/1992,
p. 129). O senhor não reconhece o escravo em sua realidade e dignidade humanas, ou seja, “ele
é reconhecido por alguém que ele não reconhece” (KOJÈVE, 2002, p. 23). Para o reconheci-
mento, falta o movimento dialético de operar sobre o outro o que o outro opera sobre si, como
afirma Hegel (1807/1992).: “para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em
que o senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o escravo faz sobre si
o que também faz sobre o Outro” (p. 131).
Para Kojève (2002), em sua leitura de Hegel, essa dialética é possível pela própria con-
dição do escravo. Como o senhor arriscou a vida para ser senhor, está fixado em sua condição,
diferentemente do escravo, que não se identifica com o que é, por isso está aberto à mudança.
O trabalho pode proporcionar a transformação, porque constitui ação que transforma a natureza,
negando-a. Ao dominar a natureza, o escravo liberta-se de sua própria natureza, da qual foi
escravo por se submeter ao senhor em nome de seu instinto de conservação. Assim, o trabalho
forçado, a serviço do outro, acaba por ser libertador.

1.3.2 Marx: a centralidade do trabalho e a luta de classes

Ao sustentar a relevância de Marx no século XXI, Hobsbawm (2011) afirma que a ace-
leração da globalização e da geração de riqueza não veio acompanhada de maior igualdade,
mas, ao contrário, “a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desi-
gualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao
ritmo cíclico básico da economia capitalista” (p. 21). Além disso, houve redução do poder e do
âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações, o que resulta também em
menor poder de ação “das políticas clássicas dos movimentos social-democratas, que se basea-
vam primordialmente em pressionar os governos nacionais em favor de reformas”
(HOBSBAWM, 2011, p. 20-1). Assim, continua contemporânea a formulação do capitalismo
como modo econômico historicamente temporário caracterizado por ser gerador de crises e
autotransformador, como afirma Garret (2013b) recorrendo a Hobsbawm.
Além disso, Hobsbawm (2011) destaca a importância do pensamento de Marx como
caracterizado pela articulação entre diferentes dimensões de análise, o que tornaria seu pensa-
mento relevante para todos e atual no século XXI. Como afirma o autor:

80
Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humani-
dade e não somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como ana-
lista econômico? Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendi-
mento da história humana? Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é
a abrangência universal de seu pensamento. Não se trata de um pensamento “interdis-
ciplinar” no sentido convencional, mas integra todas as disciplinas. Como escreveu
Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o homem em sua totalidade, mas ele foi
o primeiro a apreender o mundo como um todo que é, ao mesmo tempo, político,
econômico, científico e filosófico”. (HOBSBAWM, 2011, p. 21)

Destacada a importância do pensamento de Marx na contemporaneidade, é importante


pontuar a existência de um elemento de transformação nas proposições de Marx que possibilita
uma referência a Hegel. No entanto, como afirma Martins (2013), os teóricos do marxismo se
dividem no que se refere às relações entre Hegel e Marx. Discutir aproximações e distancia-
mentos entre esses dois autores foge ao escopo de nosso trabalho, mas é importante destacar
que Marx estabelece um diálogo com Hegel, detalhado em “Crítica da dialética e da filosofia
hegelianas em geral”, nos “Manuscritos econômico-filosóficos” (1844/2008).
Ranieri (2008) considera que a concepção de atividade em Hegel se mostra importante
nas formulações de Marx, uma vez que se coloca um jogo de contradições em que “o núcleo da
própria realidade se movimenta em termos de forte oposição e alteridade (basta pensar nos
conflitos entre senhor e escravo, Estado e riqueza, existência e consciência)” (p. 13). Marx se
fundamenta nesse princípio da contradição para discutir o capitalismo, colocando ênfase na
contradição interna da propriedade privada, em uma perspectiva materialista que, para Ranieri
(2008), é “ao mesmo tempo crítica e incorporadora de aspectos do sistema hegeliano” (p. 15).
Nessa perspectiva de movimento e destacando as contradições internas ao próprio sis-
tema econômico, a análise marxista situa o capitalismo como modo de produção historicamente
específico, o que aparece de forma bastante clara quando, em “O Capital”, Marx (1890/1988)
aponta a contradição que se estabelece entre aqueles que detêm os meios de produção (matérias-
primas, instrumentos de trabalho etc.) e aqueles que, desprovidos desses meios de produção,
têm de vender sua própria força de trabalho. A existência de detentores e despossuídos dos
meios de produção não é dada pela natureza nem se apresenta em todos os contextos históricos,
como afirma Marx (1890/1988):

A Natureza não produz de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, do


outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Essa relação não faz parte
da história natural nem tampouco é social, comum todos os períodos históricos. Ela
mesma é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o pro-
duto de muitas revoluções econômicas, da decadência de toda uma série de formações
mais antigas de produção social. (p. 136)

81
Justamente porque alguns (capitalistas) detêm os meios de produção e outros (trabalha-
dores) têm de vender sua força de trabalho para os primeiros, é possível haver uma diferença
entre o valor pelo qual as mercadorias produzidas são vendidas e o valor pago ao trabalhador.
Essa diferença entre o valor pelo qual as mercadorias produzidas são vendidas e o valor pago
ao trabalhador constitui a mais-valia, que é apropriada pelo capitalista. É interessante destacar,
nos “Manuscritos”, uma definição muito precisa de “capital”, que corresponde à “propriedade
privada dos produtos do trabalho alheio” (MARX, 1844/2008, p. 39), ou, como explica Ranieri
(2006), o capital corresponde à apropriação do trabalho acumulado.
A centralidade da contradição capital versus trabalho, compreendida de modo dialético,
é característica da tradição marxista, uma vez que tal contradição é vista como “fundamental
para apreender a dinâmica da sociedade capitalista e os conflitos que se desenvolvem em seu
interior” (GALVÃO, 2011, p. 123). A compreensão dos movimentos sociais aparece então ar-
ticulada à oposição de classes, uma vez que “a exploração e a dominação de classe delimitam
um campo de interesses, que vai ser construído na luta de classes” (GALVÃO, 2011, p. 110).
Com vistas à consecução dos objetivos desta tese, destacaremos nesta seção as formu-
lações de Marx mais diretamente relacionadas à discussão dos movimentos sociais, uma vez
que, como afirma Ranieri (2006):

[...] qualquer debate que tenha como horizonte as lutas emancipatórias da classe tra-
balhadora não pode deixar de lado a contribuição de Marx a esta questão, e muito
menos ignorar o lugar dessa contribuição nas possíveis orientações políticas que po-
derão ser incorporadas por aqueles embates. (p. 1)

Na tradição marxista, a própria concepção de movimento social aparece articulada à


condição de classe operária no contexto da luta entre capital e trabalho, uma vez que “o movi-
mento operário era o movimento social por excelência” (GALVÃO, 2011, p. 107). Essa pers-
pectiva começa a ser interrogada a partir do surgimento dos denominados “novos movimentos
sociais”, nos anos 1960, bem como das teorias elaboradas na tentativa de explicar tais movi-
mentos. Para Galvão (2011), dentre essas teorias, muitas das que se tornaram dominantes, so-
bretudo nos anos 1980, colocam-se em contraposição ao marxismo, negando a relevância da
dimensão de classe e a centralidade da luta de classes, enquanto afirmam a mobilização a partir
de fatores culturais ou “pós-materialistas” (tais como valores, identidades, reconhecimento). É
importante destacar que Galvão (2011) inclui nessas abordagens a teoria do reconhecimento,
que será discutida neste trabalho na seção 1.3.3.
Galvão (2011) procura então resgatar elementos que caracterizam uma leitura marxista
dos movimentos sociais. Consideramos que suas proposições são fundamentais tanto no sentido

82
de caracterizar a tradição marxista quanto de ressaltar determinados pontos que se contrapõem
a outras leituras, elementos que serão importantes para a compreensão das seções seguintes
(1.3.3 e 1.3.4).
É importante destacar que, na perspectiva marxista, como lembra Galvão (2011), o con-
ceito de classe não está circunscrito à renda ou dimensão ocupacional, por isso a autora propõe
a utilização do termo “classes trabalhadoras”, que compreende o operariado, a pequena burgue-
sia, o campesinato e as classes médias, o que caracteriza uma heterogeneidade em relação ao
tipo de trabalho, às condições de venda da força de trabalho e ao tipo de vínculo com a pequena
propriedade.
No que se refere à luta política, Galvão (2011) estabelece uma distinção entre posição
de classe (posição na estrutura econômica, no processo produtivo) e posicionamento de classe
(comportamento político, como a classe se posiciona na luta política) por considerar que o com-
portamento político não pode ser visto como mero reflexo da posição de classe, ou seja, não
existe uma relação mecânica entre posição de classe e posicionamento de classe. Tal afirmação
não significa desconsiderar a importância das relações existentes, ou seja, “se por um lado não
é possível extrair automaticamente o comportamento político da localização na estrutura pro-
dutiva, por outro lado esta é importante para compreender a possibilidade de uma ação de
classe” (p. 109).
A consideração de que não se trata de um determinismo unilateral, mas de uma multi-
determinação, remete à concepção de Poulantzas, citado por Galvão (2011), que considera si-
multaneamente os níveis econômico, político e ideológico no conceito de classe, ou seja, no
que se refere às classes sociais, deve-se buscar as determinações principalmente, mas não ex-
clusivamente, em seu lugar no processo de produção.
Galvão (2011) recorre a Bensaïd para destacar uma definição de classe como uma rela-
ção. Na tradição marxista, a noção de classe não se circunscreve a atributos cujos membros
seriam portadores nem a um somatório dessas unidades. Classe social não é uma coleção de
indivíduos, mas sim algo que se constitui na relação conflitual com outras classes.
Assim, a leitura marxista circunscreve os movimentos sociais a modos de contestação
contra as diferentes formas de exploração e dominação, considerando que tais movimentos são,
por um lado, “expressão das contradições de classes e, de outro, contribuem para a constituição
das classes (já que elas se constituem na luta, não estão dadas automaticamente pela posição na
estrutura produtiva)” (GALVÃO, 2011, p. 123).

83
Tendo apresentado algumas concepções fundamentais de Hegel e Marx, passaremos à
formulação do reconhecimento em Axel Honneth, na seção 1.3.3, e, na seção 1.3.4, apresenta-
remos as interrogações de Nancy Fraser a partir da perspectiva da redistribuição.

1.3.3 Reconhecimento em Axel Honneth

Axel Honneth foi assistente de Jürgen Habermas no Instituto de Filosofia da Universi-


dade de Frankfurt, e o livro “Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais”
é sua tese de livre docência. Nobre (2003) afirma que seu pensamento se vincula à “Teoria
Crítica”, que designa um campo teórico mais amplo do que a configuração histórica que ficou
conhecida como “Escola de Frankfurt”73. No sentido dado originalmente por Horkheimer, em
seu texto de 1937, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, a expressão designava o campo teórico
do marxismo. Posteriormente, passou a designar também a tradição de pensamento que tomou
por referência as formulações de 1937.
A Teoria Crítica pretende compreender a sociedade a partir de uma orientação para a
emancipação da dominação – possível mas bloqueada pela lógica da organização social vigente.
A mera “descrição” das relações sociais, numa concepção tradicional de ciência, acaba enco-
brindo possibilidades inscritas na realidade social. É preciso, então, que a teoria expresse um
comportamento crítico relativamente ao próprio conhecimento produzido. Para Nobre (2003),
esses são os dois princípios fundamentais da Teoria Crítica, herdados de Marx.
Essa referência aos princípios fundamentais permanece constante, o que, segundo No-
bre (2003), permite falar na “Teoria Crítica” como vertente intelectual duradoura, embora
Horkheimer e Adorno, a partir da década de 1940, e Jürgen Habermas, desde meados da década
de 1960, tenham se distanciando do diagnóstico e soluções propostos por Marx.
Nobre (2003) considera, também, que Hegel é a primeira e principal referência para
Honneth em “Luta por reconhecimento”, e seu interesse são os “conflitos que se originam de
uma experiência de desrespeito social, de um ataque a identidade pessoal ou coletiva, capaz de
suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou justamente de-
senvolvê-las num nível evolutivo superior” (NOBRE, 2003, p. 18).

73
Em 1924, Max Horkheimer, Felix Weil e Friedrich Pollock fundaram na Universidade de Frankfurt o Instituto
de Pesquisa Social, que teve sua sede deslocada sucessivamente durante o regime nazista. A expressão “Escola de
Frankfurt” surgiu após o Instituto retornar à Alemanha, sendo que Horkheimer foi a figura central da Escola, e a
seu lado estava Theodor Adorno. De acordo com Nobre (2003), a “Escola de Frankfurt” teve um importante papel
no debate público alemão do pós-guerra.
84
Axel Honneth retoma a noção de reconhecimento formulada por Hegel, destacando que
este autor propõe que existiram pré-condições intersubjetivas para o surgimento da autocons-
ciência individual, que passariam pela experiência de reconhecimento social. Esse processo é
articulado a uma inter-relação dinâmica de lutas intersubjetivas em que “os sujeitos tentam
ganhar aceitação para reivindicações a respeito de sua própria identidade” (HONNETH, 2007,
p. 83), ou seja, a formação da autoconsciência se dá nas relações de interação mediadas por
lutas intersubjetivas.
A referência a essas lutas intersubjetivas aparece no título do livro “Luta por reconhe-
cimento: a gramática moral dos conflitos sociais”, em que o termo “reconhecimento” é definido
por Honneth (2003c) como “aquele passo cognitivo que uma consciência já constituída ‘ideal-
mente’ em totalidade efetua no momento em que ela ‘se reconhece como a si mesma em uma
outra totalidade, em uma outra consciência’” (p. 63).
Um primeiro ponto importante para compreender a formulação sobre o reconhecimento
é a explicação pelo autor de sua contrapartida, ou seja, daquilo que constitui a experiência de
não reconhecimento. Honneth (2007) traça uma diferenciação entre os problemas de reconhe-
cimento e algo que seria da ordem do infortúnio, explicitando que, por exemplo, nem toda
injúria física constitui injúria moral. Se existe uma ação intencional de desprezo ao bem-estar
da vítima, é possível identificar um aspecto de reconhecimento negado ou recusado. A tortura
e o estupro correspondem a exemplos de humilhação física porque “privam os seres humanos
da manifestação corporal de sua autonomia em relação a si mesmos e, portanto, de uma parte
de sua confiança elementar no seu mundo” (HONNETH, 2007, p. 85).
Esse primeiro apontamento sobre o não reconhecimento evidencia que a experiência de
reconhecimento (ou de sua ausência) se dá na intersubjetividade. Para Honneth (2007), dife-
rentes esferas de relações tomam parte nesse processo, desde a relação de amor e atenção entre
mãe e filho, o respeito recíproco em relação a todos, assim como “as formas pelas quais outras
maneiras de vida passam a ser estimadas” (p. 82).
Essas diferentes relações são sistematizadas pelo autor a partir da formulação hegeliana
sobre o reconhecimento a partir das relações intersubjetivas em três esferas da sociabilidade:
relações afetivas, relações jurídicas e relações de estima. As lutas intersubjetivas seriam trava-
das em cada uma dessas esferas e possibilitariam o reconhecimento nas diferentes esferas, como
destaca Honneth (2007): “a transição entre esses vários domínios do reconhecimento é alcan-
çada através de uma luta, travada entre os sujeitos” (p. 84).
Spinelli (2016) afirma que alguns comentadores definem amor, direito e estima social
como “atitudes de reconhecimento”, considerando que, nessa perspectiva, “reconhecer”
85
significa tratar alguém como pessoa, enquanto dotada de individualidade e personalidade, en-
quanto ser moral e jurídico e enquanto membro de um grupo. Reconhecimento e cidadania
aparecem, portanto, articulados, como destaca Honneth (2007): “Consideradas juntas, as esfe-
ras do reconhecimento então estabelecidas foram a rede de pressuposições normativas que têm
de sustentar as sociedades liberais modernas para facilitar o surgimento de cidadãos envolvidos
e conscientes de sua liberdade civil” (p. 84).
Passemos, então, inicialmente, ao detalhamento dos processos envolvidos em cada uma
das esferas. As relações primárias estão associadas ao desenvolvimento da autoconfiança, e a
ausência de reconhecimento nessa esfera provoca danos à integridade física (maus tratos e vi-
olação). As relações jurídicas (direitos) estão associadas ao autorrespeito, e o não reconheci-
mento nessa esfera repercute na integridade social, via privação de direitos e exclusão. Já a
terceira esfera se refere à comunidade de valores (solidariedade), ligada à autoestima, e os pro-
blemas de reconhecimento neste âmbito (degradação e ofensa) têm consequências na honra e
dignidade (HONNETH, 2003c).
Ao tratar da esfera afetiva (amor), que se refere ao domínio familiar, Honneth (2003c)
se fundamenta na teoria psicanalítica das relações de objeto para destacar o valor psíquico das
experiências interativas na primeira infância. O autor parte da concepção de Winnicott sobre a
cooperação intersubjetiva de mãe e filho para propor que a confiança em si mesmo se desen-
volve a partir dos cuidados relativos às necessidades físicas e afetivas, que proporcionam a
experiência de satisfação, de sensação de que houve uma resposta às suas necessidades. Fica
evidente que, como lembra Honneth (2007), o reconhecimento depende, então, da “existência
física dos Outros concretos” (p. 85).
Quando a mãe já não pode estar à disposição, inicia-se um processo de desilusão que
implica que a mãe – fantasiada até então como parte de seu mundo subjetivo – escapa gradati-
vamente ao controle onipotente. Em resposta à percepção gradual de que a realidade resiste a
estar disponível, o bebê tende a atos agressivos, o que leva Honneth (2003c) a traçar um paralelo
com a “luta por reconhecimento” de Hegel.
Spinelli (2016) explica que Honneth coloca em relevo a dialética dependência/autono-
mia nas relações afetivas para discutir o desenvolvimento psíquico da personalidade. O recurso
à Winnicott possibilita a distinção de dois momentos básicos: um primeiro momento de depen-
dência absoluta e um segundo momento que remete à retomada da rotina cotidiana pela mãe,
que não se restringe aos cuidados com o bebê. Esse processo possibilita à criança perceber a
mãe como diferente, o que abre caminho para que também passe a se perceber como ser inde-
pendente, em um processo pautado pelo conflito. Se tudo corre bem, desenvolve-se a
86
autoconfiança e a segurança emocional, processo que é possibilitado pela experiência de acei-
tação das necessidades, como afirma Honneth (2007):

A atitude positiva em relação a si próprio que surge desse reconhecimento afetivo é o


de confiança em si mesmo. Ela se refere à camada fundamental de autoconfiança
emocional e corporal na expressão das necessidades e sentimentos do indivíduo que
forma as pré-condições psicológicas para o desenvolvimento de todos os outros as-
pectos do auto-respeito. (HONNETH, 2007, p. 86)

Enquanto a primeira esfera se refere ao âmbito da família, as outras duas esferas se


referem à vida em sociedade e ao âmbito do Estado, em que a ética constitui uma forma de
reconhecimento articulada à valorização das qualidades que contribuem para a reprodução da
vida social (HONNETH, 2007).
Nessa perspectiva, uma segunda esfera corresponde ao reconhecimento jurídico, que
envolve o domínio dos direitos e implica uma generalização do reconhecimento, antes restrito
ao domínio familiar: “As relações legalmente fundamentadas, em contraste com as relações de
reconhecimento dentro dos relacionamentos primários, permitem a generalização de seu ambi-
ente característico de reconhecimento, nas duas direções da extensão material e social dos di-
reitos” (HONNETH, 2007, p. 86)
Essa segunda esfera de reconhecimento está ligada ao autorrespeito, que, para Honneth
(2003c), repousa sobre o “reconhecimento cognitivo do fato de tratar-se, quanto ao outro, de
um ser com propriedades pessoais” (p. 185). O respeito a si próprio depende de se perceber
como merecedor do respeito de todos os outros, dimensão que está articulada à garantia de
direitos básicos universais e à percepção de que os direitos não são atribuídos de maneira díspar,
mas de maneira igualitária a todos (HONNETH, 2003c).
Assim, a concessão dos mesmos direitos a todos os outros membros é fundamental,
como afirma Honneth (2007): “o reconhecimento recíproco através do qual os indivíduos pas-
sam a se considerar como portadores iguais dos direitos a partir da perspectiva de seus compa-
nheiros” (p. 86). O autorrespeito é para a relação jurídica o que a autoconfiança era para a
relação amorosa:

[...] assim como, no caso do amor, a criança adquire a confiança para manifestar es-
pontaneamente suas carências mediante a experiência contínua da dedicação materna,
o sujeito adulto obtém a possibilidade de conceber sua ação como uma manifestação
da própria autonomia, respeitada por todos os outros, mediante a experiência do reco-
nhecimento jurídico. (HONNETH, 2003c, p. 194)

Enquanto a segunda esfera articula-se ao direito e ao que é universal, a terceira esfera


do reconhecimento refere-se à estima social, que se aplica às propriedades particulares que ca-
racterizam os seres humanos em suas diferenças pessoais. As capacidades e realizações são

87
julgadas intersubjetivamente de acordo com valores culturalmente definidos, o que articula a
estima social a um contexto de vida social em uma comunidade de valores, como afirma Hon-
neth (2003c): “os sujeitos humanos precisam ainda, além da experiência da dedicação afetiva e
do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a
suas propriedades e capacidades concretas” (p. 198).
O reconhecimento articulado à dimensão afetiva da solidariedade está relacionado, por-
tanto, à experiência de se sentir estimado por suas qualidades específicas, à aprovação inter-
subjetiva da experiência de cada um como pessoa única. Nas palavras de Honneth (2007):
“aceitação e encorajamento mútuo de sua individualidade, enquanto indivíduos formados por
suas próprias experiências de vida” (p. 87). A estima social propicia como atitude positiva em
relação a si mesmo a autoestima, enquanto o desrespeito nessa esfera está ligado a “desvalori-
zação dos feitos ou formas específicas de vida” (HONNETH, 2007, p. 87).
Assim, no que se refere às esferas segunda e terceira, o direito e a estima social se refe-
rem à vida em comunidade, sendo que, no âmbito do direito, o reconhecimento deve se dar de
modo igualitário, abrangendo todos os membros da sociedade sem privilégios ou exceções,
enquanto que nas relações de estima a ênfase são as diferenças entre os indivíduos. Esta última
abrange tudo que não é pautado ou excede o âmbito jurídico, portanto relaciona-se às particu-
laridades dos indivíduos. A formação da identidade individual depende do reconhecimento nes-
sas três esferas de relações intersubjetivas, o que constitui um modelo identitário do reconheci-
mento. Cada forma de reconhecimento está articulada a aspectos diferentes mas igualmente
importantes para o desenvolvimento da identidade (SPINELLI, 2016).
Tendo apresentado a teorização do reconhecimento em Axel Honneth, é importante des-
tacar que sua argumentação sugere uma aproximação entre reconhecimento – a concepção de
tratamento igualitário a todos e de que cada um seja estimado por seus feitos individuais – e
redistribuição. Honneth (2007) propõe uma correspondência entre estima social e distribuição
justa e afirma que “as regras que organizam a distribuição dos bens materiais derivam do grau
de estima social desfrutado pelos grupos sociais, de acordo com as hierarquias institucionaliza-
das de valor ou uma ordem normativa” (p. 92).
A partir da consideração de que o que se espera da sociedade, é, sobretudo, reconheci-
mento de demandas de identidade, o autor considera que “mesmo injustiças ligadas à distribui-
ção devem ser entendidas como a expressão institucional de desrespeito social ou, melhor

88
dizendo, de relações não justificadas de reconhecimento”74 (HONNETH, 2003a, p. 114,
tradução nossa), como apontamos na introdução da seção 1.3.
Esse ponto é questionado tanto por Nancy Fraser quanto por Vladimir Safatle (2015), o
qual considera que Honneth busca, com essa proposição, assimilar até mesmo o problema da
redistribuição de riquezas a um quadro de discussão referente ao reconhecimento. As lutas po-
líticas, mesmo aquelas organizadas a partir de demandas de redistribuição econômica, teriam
por objetivo, em última instância, garantir as condições concretas para a formação da identidade
pessoal. Passaremos, na seção seguinte, a discutir a problematização da abordagem de Honneth
proposta por Nancy Fraser.

1.3.4 A crítica de Nancy Fraser

Os anos 1990 são marcados pelo fim do socialismo e pelos processos de globalização,
ao mesmo tempo em que as identidades, no âmbito dos movimentos sociais, ganham ainda mais
visibilidade política. Almeida (2006) destaca que, em decorrência dessas transformações, a te-
oria política se voltou para a análise de outras formas de desigualdade social para além das
classes, e Nancy Fraser se insere nessa discussão teórica.
Almeida (2006), em uma apresentação ao trabalho de Nancy Fraser, destaca sua atuação
como professora de Ciência Política na New School em Nova Iorque, tanto nas áreas de teoria
social quanto de política e teoria feminista. A autora considera duas influências importantes em
seu trabalho: a Teoria Crítica – mais especificamente no que se refere à análise sobre participa-
ção política, democracia, justiça, sociedade civil e esfera pública – e, por outro lado, a teoria
feminista e de gênero pós-estruturalista. No que se refere à Teoria Crítica, Mendonça (2007)
situa as origens do pensamento de Fraser na tradição neomarxista e um posterior afastamento e
aproximação à teoria crítica contemporânea em “um longo percurso que a conduz de suas raízes
neomarxistas ao campo da teoria crítica mais contemporânea” (p. 173). Com relação às teorias
pós-estruturalistas, Almeida (2006) destaca a ênfase na interrogação sobre os riscos de essen-
cialização de identidades, que aparece nas reflexões sobre gênero nos EUA, em autoras como
Judith Butler, com quem Fraser estabelece um diálogo.
No que se refere à interlocução de Nancy Fraser com Axel Honneth, Amadeo (2017)
destaca que ambos partem da consideração de que, para compreender a concepção de justiça, é

74
“[...] even distributional injustices must be understood as the institutional expression of social disrespect – or,
better said, of unjustified relations of recognition” (HONNETH, 2003a, p. 114)

89
necessário levar em consideração as questões ligadas às lutas pela distribuição dos bens econô-
micos e também as vinculadas às lutas por reconhecimento. Os próprios autores reconhecem
algumas aproximações, mas é bastante marcada a diferença entre as abordagens.
Em sua crítica à Axel Honneth, Fraser (2000) destaca que a abordagem do reconheci-
mento a partir do “modelo de identidade” parte da ideia hegeliana de construção dialógica da
identidade por meio de um processo de reconhecimento mútuo que toma a relação intersubje-
tiva como constitutiva da subjetividade – que se constituiria ao reconhecer e ser reconhecida
por outro sujeito. Esse esquema de reconhecimento hegeliano é transposto para o campo cultu-
ral e político pelos proponentes do modelo de identidade, para quem a desvalorização de deter-
minados grupos pela cultura dominante constitui um problema de reconhecimento. Fraser
(2003b) considera que a abordagem de Honneth recai em um psicologismo ao analisar psicolo-
gicamente os problemas de reconhecimento e que essa abordagem reduziria a problemática da
sociedade capitalista à esfera do reconhecimento.
É importante destacar que Fraser (2002), ao tratar do reconhecimento em termos de
identidade, admite que “é indubitável que este modelo identitário contém algumas ideias ver-
dadeiramente esclarecedoras a respeito dos efeitos psicológicos do racismo, sexismo, coloniza-
ção e imperialismo cultural” (p. 15). No entanto, a autora considera que o modelo do reconhe-
cimento enquanto identidade comporta alguns riscos, uma vez que pode conduzir à reificação
e ao separatismo.
A afirmação de uma identidade coletiva estaria articulada a uma pressão de conformi-
dade dos membros à cultura do grupo. Com a ênfase em uma identidade coletiva autêntica
articulada pelo grupo e afirmativa do grupo, estabelece-se uma pressão sobre os membros in-
dividuais e se desencoraja a dissidência e a experimentação cultural. Essa pressão se exerce,
portanto, em detrimento das singularidades dos membros, e também das divisões internas ao
grupo (como classe, gênero e raça). Como resultado, “o efeito geral é impor uma identidade de
grupo única e drasticamente simplificada, que nega a complexidade da vida das pessoas, a mul-
tiplicidade de suas identificações e os entrecruzamentos de suas várias afiliações”75 (FRASER,
2000, p. 112, tradução nossa).
Essa tendência a reificar as identidades de grupo pode levar a uma recolocação em cena
de determinados estereótipos de grupos, ou seja, “recicla frequentemente estereótipos relativos
a grupos” (FRASER, 2002, p. 15). Essa forma de reconhecimento vinculado à identidade pode

75
“The overall effect is to impose a single, drastically simplified group-identity which denies the complexity of
people’s lives, the multiplicity of their identifications and the cross-pulls of their various affiliations” (FRASER,
2000, p. 112)
90
acabar funcionando, então, de maneira a essencializar identidades, no sentido de fixar e manter
padrões identitários, e, por isso, “se presta muito facilmente a formas repressivas de comunita-
rismo, promovendo o conformismo, a intolerância e o patriarcalismo”76 (FRASER, 2000, p.
112, tradução nossa).
Com o relevo na identidade grupal, e não nas singularidades, haveria, então, uma pres-
são de conformidade que levaria os membros do grupo a se limitarem a essa identidade única.
Em consequência da formação de uma associação homogênea, ocorreria uma simplificação da
dinâmica interna do grupo, de maneira que os conflitos e lutas internos ao grupo não ganhariam
relevo. No que se refere às relações entre os grupos, a consequência seria a promoção do sepa-
ratismo e isolamento ao invés da interação entre grupos (SPINELLI, 2016).
Contudo, é importante destacar que a ênfase a este problema da reificação não significa
que a autora rechace as lutas por reconhecimento. Dentre as políticas de reconhecimento, Fraser
(2000) considera que algumas representam respostas genuinamente emancipatórias a injustiças
que não podem ser combatidas apenas pela redistribuição. Por considerar que a cultura constitui
terreno de luta legítimo e necessário – além de lugar de injustiças, muitas vezes imbricadas com
a desigualdade econômica –, Fraser (2000) acredita que, dependendo da concepção e de como
se aproxima a questão do reconhecimento, lutas por reconhecimento podem contribuir para a
redistribuição de poder e riqueza. A questão problematizada pela autora refere-se justamente
aos casos em que haveria um deslocamento das lutas por redistribuição para as lutas por reco-
nhecimento.
O reconhecimento em termos de identidade tenderia a ocultar eixos entrecruzados de
subordinação ao tratar os problemas de reconhecimento como problema cultural independente,
ocultando suas relações com a má distribuição (FRASER, 2002), o que produz o deslocamento
do paradigma da redistribuição. A autora procura evidenciar os termos pelos quais se dá esse
deslocamento e propõe que essas duas perspectivas – reconhecimento e redistribuição – não
sejam subsumidas uma a outra, mas, ao contrário, busca “desenvolver uma abordagem do re-
conhecimento que possa acomodar toda a complexidade das identidades sociais, ao invés de
uma que promova a reificação e o separatismo”77 (FRASER, 2000, p. 109, tradução nossa).
Evidenciando a contraposição entre o modelo atual e o da luta de classes, Fraser (2002)
acrescenta que o paradigma dos conflitos identitários coincide historicamente com a

76
“The identity model thus lends itself all too easily to repressive forms of communitarianism, promoting con-
formism, intolerance and patriarchalism” (FRASER, 2000, p. 112)
77
“[…] developing an account of recognition that can accommodate the full complexity of social identities, instead
of one that promotes reification and separatism” (FRASER, 2000, p. 109)
91
exacerbação das desigualdades econômicas no capitalismo globalizante, de maneira que a tran-
sição para o reconhecimento encaixou-se perfeitamente à tendência de repressão da memória
do igualitarismo socialista pelo neoliberalismo econômico. Nesse contexto, as lutas pelo reco-
nhecimento não contribuem para complexificar e enriquecer as lutas pela redistribuição, mas
para as eclipsar e substituir, constituindo o problema da substituição (FRASER, 2002): a subs-
tituição das lutas por redistribuição pelas lutas por reconhecimento.
Com o objetivo de evidenciar que tal substituição é contingente, Fraser (2002) procura
traçar uma distinção entre esses dois campos. O primeiro estaria delimitado pela injustiça eco-
nômica, que inclui exploração (expropriação do fruto do próprio trabalho), marginalização (ser
obrigado a um trabalho indesejável e mal remunerado ou não ter acesso a trabalho remunerado)
e privação (não ter acesso a um padrão de vida material adequado), ou seja, desigualdades ba-
seadas na estrutura econômica. A natureza dessas injustiças socioeconômicas foi conceituada a
partir da teoria de Karl Marx sobre a exploração capitalista, e a luta contra tais injustiças passa
pela reestruturação político-econômica, podendo envolver redistribuição de renda, reorganiza-
ção da divisão do trabalho, transformação de estruturas econômicas básicas – transformações
às quais Fraser (2006) se refere recorrendo ao termo redistribuição.
A segunda maneira de compreender a injustiça seria articulando-a ao campo cultural ou
simbólico, como estando ligada aos padrões sociais de representação, interpretação e comuni-
cação, como a dominação cultural (submissão a padrões de interpretação e comunicação asso-
ciados a outra cultura), o ocultamento (tornar-se invisível por efeito das práticas comunicativas,
interpretativas e representacionais) e o desrespeito (ser desqualificado nas representações cul-
turais públicas estereotipadas e/ou nas interações da vida cotidiana) (FRASER, 2006). Em ou-
tras palavras, nesse caso a injustiça aparece articulada a hierarquias institucionalizadas de valor
cultural que produzem o falso reconhecimento (FRASER, 2002).
Para combater a injustiça cultural, é preciso alguma espécie de mudança cultural ou
simbólica, ou seja, reconhecimento, o que pode envolver a revalorização das identidades des-
respeitadas, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural. Ou, “mais radi-
calmente ainda, pode envolver uma transformação abrangente dos padrões sociais de represen-
tação, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas”
(FRASER, 2006, p. 232, grifos da autora). Nesse último caso, trata-se da tentativa de transfor-
mação da ordem simbólica por meio da desconstrução dos termos que estão subjacentes às
diferenciações produzidas (FRASER, 2002).
Portanto, para cada esfera de injustiça, uma forma específica de combate, sendo que os
processos não são excludentes. Para Fraser (2002), “a ameaça de substituição surge quando as
92
duas perspectivas da justiça são consideradas mutuamente incompatíveis. Nesse caso, as rei-
vindicações de reconhecimento desligam-se das reivindicações de redistribuição, acabando por
as eclipsar” (p. 12). A autora identifica duas correntes que, por diferentes caminhos, conduzem
a esse deslocamento.
Uma primeira corrente articularia os problemas de reconhecimento eminentemente à
depreciação cultural (representações pejorativas, por exemplo), obscurecendo a matriz institu-
cional do não-reconhecimento e seu entrelaçamento com a injustiça distributiva. Por exemplo,
existem relações entre normas androcêntricas que desvalorizam atividades consideradas “femi-
ninas” e a discrepância de salários entre homens e mulheres. Essas normas e padrões instituci-
onalizados não são articuladas aos fenômenos de depreciação nessa primeira corrente e, com
isso, perde-se a fundamentação social na qual estão inscritas as articulações entre esses padrões
e os fenômenos de depreciação (FRASER, 2000).
Uma segunda corrente, na leitura de Fraser (2000), estabeleceria relação entre questões
relativas à injustiça cultural e à redistribuição econômica, mas não problematizaria adequada-
mente essa ligação. A partir de uma teoria “culturalista”, a má distribuição nessa perspectiva é
vista como efeito secundário do falso reconhecimento, sendo as desigualdades econômicas ex-
pressões de hierarquias culturais. A opressão de classe, por exemplo, seria efeito da desvalori-
zação cultural da identidade proletária, de maneira que as questões de distribuição poderiam ser
combatidas via política de reconhecimento e de valorização das identidades depreciadas.
Diante desse quadro de duas formas de injustiça, a autora questiona qual seria a relação
entre lutas por reconhecimento – voltadas para combater a injustiça cultural – e lutas por redis-
tribuição – voltadas para compensar a injustiça econômica. As lutas por reconhecimento fre-
quentemente “buscam chamar a atenção para a presumida especificidade de algum grupo – ou
mesmo de criá-la performativamente – e, portanto, afirmar seu valor” (FRASER, 2006, p. 233),
promovendo a diferenciação do grupo. Diferentemente, lutas de redistribuição têm por objetivo
“abolir os arranjos econômicos que embasam a especificidade do grupo”, por isso tendem a
“promover a desdiferenciação do grupo” (FRASER, 2006, p. 233). Um exemplo desse segundo
modelo oferecido por Fraser (2006) seriam as demandas feministas por abolição da divisão do
trabalho segundo o gênero.
Assim, com frequência, a política do reconhecimento e a da redistribuição parecem ter
objetivos mutuamente contraditórios: “Enquanto a primeira tende a promover a diferenciação
do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la” (FRASER, 2006, p. 233, grifos nossos). No en-
tanto, é importante reforçar que a autora reconhece a importância dessas lutas e, nesse sentido,
destacamos uma passagem em que sintetiza suas considerações a esse respeito:
93
Por um lado, a viragem para o reconhecimento representa um alargamento da contes-
tação política e um novo entendimento da justiça social. Já não restrita ao eixo da
classe, a contestação abarca agora outros eixos de subordinação, incluindo a diferença
sexual, a “raça”, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade. Isto constitui
um claro avanço relativamente aos restritivos paradigmas fordistas que marginaliza-
vam tal contestação. Para além disso, a justiça social já́ não se cinge só́ a questões de
distribuição, abrangendo agora também questões de representação, identidade e dife-
rença. Também neste aspecto constitui um avanço positivo relativamente aos reduto-
res paradigmas economicistas que tinham dificuldade em conceitualizar males cuja
origem reside, não na economia política, mas nas hierarquias institucionalizadas de
valor. (FRASER, 2002, p. 9)

Não se trata, portanto, de rechaçar as lutas por reconhecimento, mas sim de procurar
evidenciar os termos pelos quais o reconhecimento segundo o modelo da identidade deslocaria
o paradigma da redistribuição e conduziria à reificação. Como afirma Fraser (2000): “Ao equi-
parar as políticas de reconhecimento com políticas de identidade, encoraja tanto a reificação
das identidades de grupo quanto o deslocamento da redistribuição”78 (p. 110, tradução nossa).
Assim, um primeiro ponto a destacar é que Nancy Fraser (2000) não faz equivaler reco-
nhecimento e identidade. Quando essa equivalência se estabelece – ou seja, quando as políticas
de reconhecimento se fazem pelo modelo da identidade – colocam-se os riscos de reificação e
de deslocamento da redistribuição. Deslocamento que tende a acontecer quando “as duas pers-
pectivas da justiça são consideradas mutuamente incompatíveis” (FRASER, 2002, p. 12), como
já destacamos. O desafio seria, então, articular reconhecimento e redistribuição.
No entanto, uma tensão se coloca porque pode haver uma interferência entre esses dois
tipos de luta, e eles podem acabar por agir um contra o outro. Por isso, Fraser (2006) propõe
discutir essa questão como “dilema da redistribuição-reconhecimento” (p. 233) e questiona se
o resultado não poderia ser contraproducente no contexto atual do capitalismo:

Por outro lado, não é absolutamente nada evidente que as atuais lutas pelo reconheci-
mento estejam a contribuir para complementar e aprofundar as lutas pela redistribui-
ção igualitária. Antes pelo contrário: no contexto de um neoliberalismo em ascensão,
podem estar a contribuir para deslocar as últimas. Se assim for, os recentes ganhos no
nosso entendimento da justiça podem estar entrelaçados com uma perda trágica. Em
vez de chegarmos a um paradigma mais amplo e rico, capaz de abarcar tanto a redis-
tribuição como o reconhecimento, estaremos a trocar um paradigma truncado por ou-
tro: um economicismo truncado por um culturalismo igualmente truncado. (FRASER,
2002, p. 9)

Até aqui, Fraser (2006) associa, por um lado, medidas no âmbito da redistribuição a
uma dissolução ou desestabilização da diferenciação e, por outro, lutas por reconhecimento à
valorização da especificidade de determinado grupo, o que, como a própria autora indica,

78
“By equating the politics of recognition with identity politics, it encourages both the reification of group identi-
ties and the displacement of redistribution.” (FRASER, 2000, p. 110)
94
tornaria difícil a busca por esses dois objetivos – redistribuição e reconhecimento – ao mesmo
tempo. Avançando para o final do texto, Fraser (2006) afirma que pretende “complicar essas
posições” (p. 236) e, para isso, procura diferenciar duas grandes abordagens na busca por justiça
– “afirmação” e “transformação” – e delinear como elas operam em relação à redistribuição e
ao reconhecimento.
A distinção entre afirmação e transformação é descrita pela autora pontuando que a pri-
meira perspectiva busca corrigir efeitos desiguais sem transformar a estrutura que os produz,
enquanto a segunda busca essa correção por meio da transformação da estrutura.
No que se refere à injustiça cultural, a busca de reparar tais injustiças via afirmação
remete à tentativa de compensação via revalorização das identidades desvalorizadas, sem pro-
blematizar os conteúdos dessas identidades e as diferenciações subjacentes. A perspectiva de
transformação, por sua vez, aparece frequentemente associada à desconstrução, buscando
transformar a estrutura cultural-valorativa, de maneira que, “desestabilizando as identidades e
diferenciações grupais existentes, esses remédios não somente elevariam a auto-estima dos
membros de grupos presentemente desrespeitados; eles transformariam o sentido do eu de to-
dos” (FRASER, 2006, p. 237, grifos da autora).
A autora recorre a um exemplo a partir das injustiças relacionadas à sexualidade (ho-
mofobia e heterossexismo). A perspectiva de afirmação é associada com a política de identi-
dade gay, que busca revalorizar a identidade gay e lésbica, enquanto a de transformação à
política queer, com a desconstrução da dicotomia entre homo e heterosexualidade.
Na leitura de Fraser (2006), a “política de identidade gay trata a homossexualidade como
uma positividade cultural, com seu próprio conteúdo substantivo [...] necessitando somente de
reconhecimento adicional” (p. 237), enquanto a “política queer, em contraste, trata a homosse-
xualidade como um correlato construído e desvalorizado da heterossexualidade” (p. 237), de
maneira que o objetivo transformativo passa por desconstruir a dicotomia homo-hetero, não em
nome de um suposto humano único e universal, mas de “campo sexual de diferenças múltiplas,
não-binárias, fluidas, sempre em movimento” (p. 237).
Dessa maneira, no âmbito do reconhecimento, podem existir estratégias que valorizam
a especificidade do grupo e outras que desestabilizam diferenças, como afirma Fraser (2006):
“Enquanto os remédios de reconhecimento afirmativos tendem a promover as diferenciações
de grupo existentes, os remédios de reconhecimento transformativos tendem, no longo prazo,
a desestabilizá-las, a fim de abrir espaço para futuros reagrupamentos” (p. 237).
Esse ponto é particularmente importante porque revela que, para Fraser (2006), reco-
nhecimento não é necessariamente sinônimo de políticas identitárias. Se temos um
95
deslocamento da redistribuição para o reconhecimento, uma leitura superficial de Nancy Fraser
poderia levar à conclusão de que a proposta da autora iria no sentido contrário, ou seja, a defesa
da redistribuição como prioritária em relação ao reconhecimento. Tal suposição não se sustenta
considerando o conjunto da obra de Nancy Fraser: o esforço da autora vai no sentido de buscar
articulações e de propor uma compreensão do reconhecimento em termos não-identitários, que
começamos a apresentar aqui e que retomaremos no capítulo 4.
Retomando a exposição da autora, o mesmo raciocínio discutido no âmbito do reconhe-
cimento vale para as estratégias de luta contra a injustiça econômica. No âmbito da afirmação,
temos as tentativas de “compensar a má distribuição terminal, enquanto deixam intacta a maior
parte da estrutura econômico-política subjacente” (p. 237). Ou seja, trata-se de uma atuação
que enfatiza o âmbito do consumo, buscando aumentar as possibilidades de consumo de grupos
economicamente desfavorecidos, sem visar a uma reestruturação do sistema de produção, o que
aparece historicamente associado ao Estado de bem-estar liberal. Em contraste, o âmbito da
transformação aparece associado historicamente ao socialismo, em uma perspectiva de trans-
formar a estrutura econômico-política, reestruturando as relações de produção e a divisão social
do trabalho, de maneira que envolveria a transformação das condições de existência de todos.
A autora exemplifica a abordagem afirmativa da redistribuição com programas de as-
sistência pública que oferecem auxílios “focalizados” a desempregados e subempregados, por
exemplo. Trata-se de uma abordagem que, por meio de realocações superficiais, busca com-
pensar a injustiça econômica sem alterar as estruturas que a produzem. Como sintetiza Fraser
(2006):

Longe de abolirem a divisão de classes per se, esses remédios afirmativos sustentam-
na e moldam-na. [...] Programas de assistência pública “focalizam” os pobres não só
por auxílio, mas por hostilidade. Tais remédios, com certeza, oferecem a ajuda mate-
rial necessitada. Mas também criam diferenciações de grupo fortemente antagônicas.
(p. 238)

A partir desses antagonismos produzidos, pode surgir hostilidade em relação aos grupos
que se beneficiam dos auxílios, de maneira que uma estratégia de redistribuição pode levar a
problemas de reconhecimento, como destaca Fraser (2006):

O resultado é marcar a classe mais desprivilegiada como inerentemente deficiente e


insaciável, sempre necessitando mais e mais. Com o tempo essa classe pode mesmo
aparecer como privilegiada, recebedora de tratamento especial e generosidade imere-
cida. Assim, uma abordagem voltada para compensar injustiças de distribuição pode
acabar criando injustiças de reconhecimento. (p. 238)

Diferentemente, uma perspectiva de transformação para as injustiças distributivas de


classe buscam garantir a todos o acesso ao emprego ao mesmo tempo em que buscam

96
desvincular do emprego as necessidades básicas de consumo por meio de “programas univer-
salistas de bem-estar social, impostos elevados, políticas macroeconômicas voltadas para criar
pleno emprego, um vasto setor público não-mercantil, propriedades públicas e/ou coletivas sig-
nificativas, e decisões democráticas quanto às prioridades socioeconômicas básicas”
(FRASER, 2006, p. 238).
Nessa abordagem, busca-se a redução da desigualdade social, mas “sem criar classes
estigmatizadas de pessoas vulneráveis vistas como beneficiárias de uma generosidade especial”
(FRASER, 2006, p. 238), o que tende a promover maior reciprocidade e solidariedade nas re-
lações de reconhecimento. Ou seja, “uma abordagem voltada a compensar injustiças de distri-
buição pode ajudar também a compensar (algumas) injustiças de reconhecimento” (FRASER,
2006, p. 238).
Dessa maneira, Nancy Fraser considera os riscos do reconhecimento a partir de uma
perspectiva identitária, assim como o risco de que a perspectiva da redistribuição acabe sendo
eclipsada pela do reconhecimento. Considerando que esse deslocamento tende a acontecer
quando reconhecimento e redistribuição são analisados em uma lógica de um ou outro, o es-
forço da autora é de procurar uma possibilidade de articulação.
Em sua argumentação, inicia considerando que as lutas por reconhecimento tenderiam
a chamar a atenção para as diferenças enquanto as lutas por redistribuição tenderiam a desesta-
bilizar diferenças, mas, em seguida, busca complexificar esse raciocínio e faz uma exposição
que evidencia que lutas por reconhecimento podem desestabilizar diferenças e lutas por redis-
tribuição podem enfatizar diferenças.
O que nos parece ser o ponto comum entre as perspectivas afirmativas de reconheci-
mento e redistribuição é justamente a organização a partir de um modelo identitário, enquanto
as perspectivas transformativas – tanto no âmbito do reconhecimento quanto da redistribuição
– buscam desconstruir dicotomias (nos exemplos citados pela autora, a dicotomia homo-hetero,
no âmbito do reconhecimento, e a dicotomia que se estabelece a partir de classe social, no caso
da redistribuição), mas “não em nome de um suposto humano único e universal” e sim de um
campo de “diferenças múltiplas, não-binárias, fluidas, sempre em movimento” (FRASER,
2006, p. 237).
Importante destacar que, no âmbito das perspectivas transformativas de redistribuição,
Fraser (2006) destaca políticas universalistas, termo que aparece aqui em contraposição a polí-
ticas focalizadas. Essa discussão foge ao escopo desta tese, mas é importante pontuar aqui que
políticas universalistas são voltadas a todos – diferentemente das políticas focalizadas, voltadas
a determinado(s) grupo(s) –, mas todos são considerados em suas particularidades.
97
Por exemplo, Fraser (2006) fala da importância de impostos elevados – afinal, impostos
são fundamentais para o financiamento dos gastos do governo. No entanto, se a distribuição de
renda é desigual e se todos pagassem a mesma quantidade de impostos – desconsiderando,
portanto, as particularidades relacionadas à classe socioeconômica – o resultado seria reforçar
as desigualdades. Com isso, o que pretendemos pontuar é que pensar políticas para todos não
significa desconsiderar particularidades: todos pagam impostos, mas uma perspectiva de justiça
redistributiva deve considerar que os mais ricos devem pagar mais impostos.
No que se refere à temática da identidade, a consideração dos riscos associados a iden-
tidades e particularidades – riscos de essencialização, de separatismo, entre outros que discuti-
mos ao longo deste capítulo – pode levar a um outro risco: o “universalismo imaginário”, nos
termos de Brubaker (2001), como trabalhamos na seção 1.2, com o discurso de Sojourner Truth.
Consideramos importantes as formulações de Nancy Fraser por se afastarem de um uni-
versalismo e apontarem para a importância da consideração das particularidades de afiliações,
de relações e histórias, de problemas e dificuldades específicos, como apontamos a partir de
Brubaker (2001), e como Nancy Fraser trabalha a partir das injustiças de reconhecimento e
redistribuição.
É fundamental, também, destacar que tanto injustiças de redistribuição quanto de reco-
nhecimento são materiais, na perspectiva adotada por Nancy Fraser. Esse ponto fica claro na
argumentação da autora e é explicitado em um texto com o qual trabalharemos no capítulo 2,
em que Fraser estabelece um diálogo com Butler. Fraser (1997/2017) afirma considerar as in-
justiças de reconhecimento tão materiais quanto as de redistribuição, pontuando que as injusti-
ças de redistribuição referem-se ao âmbito econômico e as injustiças de reconhecimento refe-
rem-se ao cultural, mas ambas são materiais.
Esse ponto é fundamental por possibilitar a ênfase na materialidade da opressão, o que
constitui um dos fios condutores que retomaremos ao longo de toda a tese. No que se refere
mais especificamente à nossa temática, Nancy Fraser (2003a) situa a existência de opressões
gênero-específicas, discussão que iniciaremos na próxima seção e exploraremos ao longo da
tese.
Antes de passar à tematização de opressões gênero-específicas, gostaríamos de ressaltar,
a título de conclusão sobre as contribuições de Nancy Fraser, que o dilema redistribuição versus
reconhecimento, assim como denominado, pode dar a impressão de se tratar de uma dicotomia:
um dilema que implica “escolher” ou “enfatizar” um ou outro. Entretanto, não é essa a aborda-
gem que sustenta Nancy Fraser; ao contrário, a autora recoloca esse debate evidenciando que
precisamos de redistribuição e reconhecimento. Nas palavras da autora:
98
Tudo isso sugere um meio de reformular o dilema da redistribuição-reconhecimento.
A pergunta que pode ficar é: no que diz respeito aos grupos submetidos aos dois tipos
de injustiças, qual será combinação de remédios que funciona melhor para minimizar,
senão para eliminar de vez, as interferências mútuas que surgem quando se busca re-
distribuição e reconhecimento ao mesmo tempo? (FRASER, 2006, p. 239)

Nessa reformulação, o problema da redistribuição-reconhecimento é discutida pela au-


tora a partir de uma abordagem que se denomina paridade de participação, a qual apresentare-
mos no capítulo 4. Consideramos que é importante trilhar um percurso ao longo da tese para
colocar essa perspectiva, que poderemos então situar a partir do que trabalhamos na tese.
Nesse momento, gostaríamos de destacar que uma outra perspectiva de reformulação
do problema da redistribuição-reconhecimento, no âmbito da teorização psicanalítica, é a pro-
posta por Vladimir Safatle, que propõe uma crítica a Honneth a partir de articulações com a
psicanálise e focalizando a concepção de sujeito. No livro “Grande hotel abismo: Por uma re-
construção da teoria do reconhecimento”, Safatle (2012) afirma que tem dois grandes objetivos:
promover uma leitura alternativa do sujeito moderno, baseada em Hegel, e buscar uma recons-
trução da teoria do reconhecimento. A proposição de discutir a subjetividade sem um pensa-
mento da identidade situa a proposta de Vladimir Safatle (2012) de uma reconstrução da teoria
do econhecimento.
Safatle (2012) parte da consideração de que teorias do reconhecimento estão fundadas
em teorias da socialização e da individuação e indica que a teoria do reconhecimento de Axel
Honneth se baseia em teóricos das relações de objeto. O autor afirma que uma antropologia
aparece de maneira implícita, baseada na psicologia do desenvolvimento de Piaget e Kohlberg
e na teoria da maturação de Winnicott, para fundamentar o processo de aquisição das capaci-
dades cognitivas, judicativas e desejantes. Para Safatle (2012), trata-se de uma antropologia
normativa, pois a psicologia do desenvolvimento está associada a uma teoria do progresso, das
“condições que asseguram o homem em sua humanidade” (p. 4). Com isso ficaria definido, de
maneira normativa, o que seria um reconhecimento bem-sucedido, assim como o fracasso e
sofrimento nos déficits de reconhecimento, a partir do que Safatle (2012) considera uma “redu-
ção egológica do sujeito” (p. 5).
Diferentemente, aponta para outro caminho por considerar que a psicanálise lacaniana
pode fornecer uma compreensão radicalmente distinta dos processos de socialização e indivi-
duação, como aparece destacado em:

[...] não apenas da dinâmica de socialização dos desejos e pulsões, mas das conse-
quências políticas do conceito de reconhecimento. Pois tal reflexão pode fornecer uma
base empírica e material para a ideia de que sujeitos procuram ser reconhecidos em

99
um campo político fora dos processos culturais de produção de identidades.
(SAFATLE, 2013, p. 195).

É interessante notar que tanto Honneth quanto Safatle partem das formulações de Hegel,
apropriando-se delas de maneiras diferentes. Honneth (2003c) focaliza a Dialética do Senhor e
do Escravo em sua dimensão de reconhecimento intersubjetivo, apontando a necessidade do
reconhecimento confirmador por parte dos outros. Já Safatle (2012) recorre a Hegel em sua
dialética apontando que a noção de consciência-de-si não se refere a uma subjetividade delimi-
tada em relação ao que lhe é exterior. Safatle (2012) não considera a alteridade referida apenas
a outro indivíduo, mas também uma outra dimensão, que se aproxima da experiência do estra-
nho e que implica abandonar a crença de que a experiência de ipseidade está fundada na iden-
tidade e unidade.
Safatle (2012) considera, então, uma outra dimensão da alteridade, que se aproxima da
experiência do estranho79 em Freud. Vejamos seu questionamento sobre esse ponto:

[é preciso] compreender melhor quem é esse outro com o qual me relaciono em ex-
periências constitutivas que se dão no campo do trabalho, da linguagem e do desejo.
Trata-se apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade mais profunda,
que está para além do que determina uma individualidade como objeto de representa-
ção mental, um para além que me coloca em confrontação com algo que, do ponto de
vista da consciência, é indeterminado? (SAFATLE, 2012, p. 23)

A partir dessa outra dimensão da alteridade, Safatle (2012) propõe uma releitura do
problema do reconhecimento a partir da não-identidade, do estranho:

[...] não através da possibilidade de reconhecer outro sistema de desejos e aspirações


individuais, mas através da capacidade de reconhecer um nível de alteridade que não
se deixa pensar a partir da figura de um outro indivíduo, de uma outra identidade
individual com seu sistema de interesses. Daí porque Lacan deve indicá-lo com uma
palavra como das Ding – maneira de lembrar que se trata de algo que não se submete
imediatamente à figura do indivíduo. Uma alteridade que não é exatamente presença
do outro, mas a-normatividade, resistência de submissão à gramática da norma. (p.
240)

A partir de Hegel, Safatle (2012) procura pensar uma experiência de outra ordem, que
busca sustentar o princípio da subjetividade sem um pensamento da identidade. “Sujeito” não
deve ser compreendido como entidade substancial, idêntico a si mesmo e capaz de se

79
Freud (1919/1996) define a experiência do estranho como “categoria do assustador que remete ao que é conhe-
cido e há muito familiar” (p. 238). Questiona, então, em que circunstâncias o familiar pode se tornar estranho, e
propõe que o que amedronta é algo reprimido que retorna, e essa categoria de coisas assustadoras construiria o
estranho: “[...] esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na
mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão” Freud (FREUD, 1919/1996, p. 258). Esse
texto é anterior à formulação freudiana sobre a pulsão de morte e, por isso, o estranho aparece como retorno do
recalcado. Porém, há elementos no texto de Freud que permitem uma releitura do estranho como o não represen-
tado, elementos aos quais Lacan se refere com o conceito de das Ding.

100
autodeterminar, mas, ao contrário, deve ser visto a partir da não-identidade e da clivagem. A
não identidade, como negatividade fundamental para a estruturação da subjetividade, “encontra
seu espaço privilegiado na confrontação com experiências de despersonalização que se mani-
festam, principalmente, nas dimensões do desejo, do corpo e da sexualidade” (SAFATLE,
2012, p. 13).
O encontro com o estranho estaria ligado a experiências da ordem da não-identidade.
É importante destacar que Safatle (2006) não defende o abandono da categoria de sujeito, mas
sim a possibilidade de pensar “um sujeito capaz de formalizar experiências de não-identidade”
(SAFATLE, 2006, p. 219). Reproduzimos aqui uma passagem que sintetiza muito bem os prin-
cipais pontos:

Os homens só são humanos quando eles se reconhecem naquilo que não tem os con-
tornos auto-idênticos de um eu. Pois só há sujeito lá onde há a possibilidade de reco-
nhecer uma experiência interna de não-identidade. Uma experiência cujo espaço pri-
vilegiado não parece mais ser a relação intersubjetiva da consciência de si, mas a con-
frontação traumática entre sujeito e objeto. (SAFATLE, 2006, p. 220)

A proposta de discutir a subjetividade sem um pensamento da identidade, a partir do


encontro com o estranho, circunscreve experiências de não-identidade ao âmbito daquilo que
está para além da representação. A nosso ver, no âmbito da psicanálise, o risco é se enfatizar
exclusivamente o “para além da representação”, em detrimento de outras dimensões – a mate-
rialidade e o discurso (ou o campo da representação) – que aparecem como algo que se “consi-
dera sem considerar”, ou seja, cuja existência é reconhecida, mas supõe-se que a psicanálise
vai tratar de outra coisa. Do nosso ponto de vista, não se trata de negar a dimensão do “para
além da representação”, mas de considerar que são igualmente importantes as dimensões da
representação e da materialidade, bem como as mediações que se estabelecem entre estas duas
últimas.
Além disso, consideramos que não existe apenas uma possibilidade única de trabalhar
com a concepção de identidade e que o enfoque a partir das realidades de opressão – tais como
apontamos com o discurso de Sojourner Truth – coloca uma especificidade na maneira de tra-
balhar com essa concepção. A perspectiva que enfatiza a interdependência de diferentes rela-
ções de opressão possibilita interrogar a concepção de identidade ao mesmo tempo em que se
afasta de um “universalismo imaginário”. O que buscamos sustentar ao longo da tese é que não
existe nada que definiria “mulheres” senão a própria realidade da opressão. Para iniciar esse
percurso, finalizamos este capítulo com as contribuições de uma formulação de Nancy Fraser

101
no âmbito da controvérsia redistribuição-reconhecimento, em que a autora localiza especifici-
dades a partir da colocação do gênero em questão.

1.3.5 Uma leitura do dilema redistribuição-reconhecimento a partir de um re-


corte específico: gênero

Para iniciar a abordagem de Nancy Fraser sobre gênero, é importante lembrar que a
distinção estabelecida pela autora entre redistribuição e reconhecimento não é entre material e
cultural, mas sim entre econômico e cultural – ambos materiais. Para Fraser (2003a), gênero “é
uma diferenciação social bidimensional. Nem simplesmente uma classe nem simplesmente um
grupo de status, gênero é uma categoria híbrida enraizada simultaneamente na estrutura econô-
mica e na ordem de status da sociedade”80 (p. 19, tradução nossa).
Na perspectiva da distribuição, funciona como princípio organizador da estrutura eco-
nômica na sociedade capitalista, sendo que, por um lado, estrutura a divisão entre trabalho “pro-
dutivo” remunerado e trabalho “reprodutivo” e doméstico não-remunerado, cuja responsabili-
dade é atribuída primordialmente às mulheres. Por outro, no âmbito do trabalho remunerado o
gênero estrutura a divisão entre ocupações de remuneração mais alta, em que predominam os
homens, e ocupações que Fraser (2003a) denomina de “colarinho rosa” (p. 20) e de serviços
domésticos, com baixa remuneração e predominância das mulheres.
A estrutura econômica, então, produz formas de injustiça distributiva que são “gênero-
específicas” (FRASER, 2003a), com modos de exploração, marginalização e privação articu-
lados ao gênero, o que faz com que tal categoria apresente certas características semelhantes à
de classe (FRASER, 2006). Nesse aspecto, o “gênero aparece como uma diferenciação de classe
que está enraizada na estrutura econômica da sociedade”81 (FRASER, 2003a, p. 20, tradução
nossa). Para eliminar essa injustiça, é preciso “abolir a divisão do trabalho segundo o gênero
(gender division of labor), tanto a divisão generificada (gendered division) entre trabalho re-
munerado e não-remunerado quanto as divisões de gênero no interior do trabalho remune-
rado”82 (FRASER, 2003a, p. 20, tradução nossa).

80
“Gender, I contend, is a two-dimensional social differentiation. Neither simply a class nor simply a status group,
gender is a hybrid category rooted simultaneously in the economic structure and the status order of society”
(FRASER, 2003a, p. 19)
81
“[…] gender appears as a class-like differentiation that is rooted in the economic structure of society” (FRASER,
2003a, p. 20)
82
“[…] abolishing the gender division of labor – both the gendered division between paid and unpaid labor and
the gender divisions within paid labor” (FRASER, 2003a, p. 20)
102
Entretanto, a explicação das injustiças ligadas ao gênero não se resume ao gênero en-
quanto diferenciação econômico-política. É preciso considerar também a diferenciação de va-
loração cultural, o que remete à dimensão do reconhecimento. Nesse sentido, deve-se levar em
conta o androcentrismo como padrão institucionalizado que privilegia o que é associado à mas-
culinidade bem como a contrapartida de desqualificação do que é tido como “feminino”, o que
inclui mas não se resume a “mulheres”, como afirma Fraser (2003a): “não apenas mulheres,
mas todos os grupos de baixo status correm o risco de feminização e, portanto, depreciação”83
(p. 20, tradução nossa).
Em decorrência de padrões de interpretação e avaliação androcêntricos, as mulheres
“sofrem formas gênero-específicas de subordinação de status”84 (FRASER, 2003a, p. 21,
tradução nossa), e a autora articula a essa desvalorização situações como: violência e explora-
ção sexual e doméstica, representações objetificadoras na mídia, assédio e a desqualificação na
vida cotidiana, exclusão ou marginalização das esferas públicas e processos decisórios etc.
Essas injustiças de reconhecimento são “relativamente independentes da economia po-
lítica e não são meramente ‘superestruturais’. Por isso, não podem ser superados apenas pela
redistribuição, mas exigem adicionalmente medidas independentes reconhecimento”85
(FRASER, 2003a, p. 21, tradução nossa). Seu enfrentamento exige transformação de valores
culturais, descentramento de normas androcêntricas, reconhecimento positivo a um grupo de-
preciado e padrões que expressem igual respeito às mulheres.
Existem inter-relações entre as duas esferas de injustiça, uma vez que as normas cultu-
rais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas e a desvantagem econômica das mulhe-
res restringe sua “voz”. No entanto, dilemas podem se colocar porque redistribuição e reconhe-
cimento podem apontar para direções opostas, como explica Fraser (2006):

Enquanto a lógica da redistribuição é acabar com esse negócio de gênero, a lógica do


reconhecimento é valorizar a especificidade de gênero. Eis, então, a versão feminista
do dilema da redistribuição-reconhecimento: como as feministas podem lutar ao
mesmo tempo para abolir a diferenciação de gênero e para valorizar a especificidade
de gênero? (p. 235)

Aqui consideramos importante destacar que, na seção anterior, pontuamos que Fraser
(2006) mobiliza as concepções de “afirmação” e “transformação” para evidenciar que lutas por
reconhecimento podem desestabilizar diferenças e que lutas por redistribuição podem enfatizar

83
“[…] not just women but all low-status groups risk feminization ad thus depreciation” (FRASER, 2003a, p. 20)
84
“[…] suffer gender-specific forms of status subordination” (FRASER, 2003a, p. 21)
85
“[…] relatively independent of political economy and are not merely ‘superestructural’. Thus, they cannot be
overcome by redistribution alone but require additional, independent remedies of recognition” (FRASER, 2003a,
p. 21)
103
diferenças. Essas nuances não aparecem aqui, no momento do texto em que a autora discute as
injustiças gênero-específicas, embora não deixe de haver a referência a gênero no final do texto,
momento em que “complexifica” as posições. A nosso ver, embora Nancy Fraser destaque as
nuances – fundamentais para que não tomemos determinadas articulações como necessárias –,
no âmbito dos movimentos sociais e de relações sociais específicas, coloca-se frequentemente
a “versão feminista do dilema da redistribuição-reconhecimento”.
Como veremos, a questão sobre “como as feministas podem lutar ao mesmo tempo para
abolir a diferenciação de gênero e para valorizar a especificidade de gênero?” (FRASER, 2006,
p. 235) é mobilizada por diferentes teóricas feministas. As nuances apontadas por Fraser (2006)
talvez possibilitem justamente pensar possíveis saídas para um dilema que existe – a existência
de uma interferência entre os âmbitos da redistribuição e do reconhecimento, que podem acabar
por agir um contra o outro.
Essa “versão feminista do dilema da redistribuição-reconhecimento”, como propõe
Nancy Fraser, encontra paralelo nas contribuições de Joan Scott (1998) em “La citoyenne pa-
radoxale: Les féministes françaises et les droits de l’homme”, em que a autora discute a difi-
culdade que se coloca o falar enquanto “mulher(es)” no âmbito do(s) movimento(s) feminista(s)
em nome de uma defesa da igualdade tendo que recorrer à diferença:

Seu objetivo era eliminar a “diferença sexual” da política, mas ele tinha que fazê-lo
em nome de “mulheres” (que são produzidas no discurso da “diferença sexual”). E na
medida em que ele favorecia as “mulheres”, o feminismo reproduzia a “diferença se-
xual” que ele estava tentando erradicar. Toda a sua história como movimento político
baseia-se nesse paradoxo: a necessidade de, ao mesmo tempo, afirmar e recusar a
“diferença sexual”.86 (p. 20, tradução nossa)

O movimento, ao protestar contra a discriminação das mulheres, promove uma campa-


nha voltada a elas. Ao agir em favor delas, o feminismo acaba por produzir a diferença sexual
que buscava eliminar, pois chama a atenção exatamente para o que que pretendia eliminar, o
que produz uma espécie de paradoxo como propõe Scott (2005):

[...] os termos do protesto contra a discriminação tanto recusam quanto aceitam as


identidades de grupo sobre as quais a discriminação está baseada. De outro modo,
podemos dizer que as demandas pela igualdade necessariamente evocam e repudiam
as diferenças que num primeiro momento não permitiram a igualdade. (p. 20)

86
“Son but était d’éliminer la « différence sexuelle » de la politique et pourtant il devait le faire au nom de
« femmes » (qui sont eles-mêmes un produit dans le discours de la « différence sexuelle »). Et dans la mesure où
il œuvrait en faveur des « femmes », le féminisme reproduisait cette « différence sexuelle » qu’il tentait d’éradi-
quer. Toute son histoire en tant que mouvement politique repose sur ce paradoxe: la necessité d’affirmer et de
refuser à la fois la « différence sexuelle »” (SCOTT J. , 1998, p. 20)
104
Entretanto, se levada às últimas consequências, essa crítica também pode promover,
como pontua Costa (2002), um “feminismo sem mulheres” (p. 69), articulado a uma perspectiva
nominalista. Como apontamos na introdução da tese, uma tal perspectiva pode acabar por invi-
sibilizar o gênero. Nos termos de Alcoff (1988):

Se gênero é simplesmente um construto social, a necessidade e mesmo a possibilidade


de uma política feminista se torna imediatamente problemática. O que podemos exigir
em nome das mulheres se “mulheres” não existem e as exigências em seu nome sim-
plesmente reforçam o mito de que elas existem? De que forma podemos falar aberta-
mente contra o sexismo como sendo prejudicial aos interesses das mulheres se tal
categoria é uma ficção? Como podemos exigir o aborto legal, creches adequadas ou
salários compatíveis sem que se invoque um conceito de “mulher”?87 (p. 420, tradução
nossa)

A existência de opressões gênero-específicas organizou e organiza demandas no âmbito


dos movimentos feministas, ou seja, existe uma articulação entre a identificação de formas es-
pecíficas de opressão e as demandas que se articulam por e em nome de “mulheres”. Brubaker
(2001) lembra a denúncia de formas do universalismo como a categoria marxista do “trabalha-
dor” – que aparece como homem – ou do “cidadão” – que é sempre branco –, bem como a
situação em que movimentos afro-americanos foram criticados por não considerarem interesses
específicos das mulheres afro-americanas, assim como movimentos feministas acusados de se
interessarem apenas pelas questões das mulheres brancas de classe média.
Não se trata, portanto, de uma discussão meramente conceitual, uma vez que tais con-
cepções orientam posições que produzem implicações políticas. Um exemplo de paradoxo das
identidades no campo da luta política foi discutido em aula pela professora Jules Falquet88, que
recorreu a um exemplo de reunião restrita a homens negros. Uma mulher negra poderia questi-
onar por que mulheres não podem participar, mas, ao colocar em questão a participação restrita
a homens, abre-se espaço para o questionamento da participação restrita a negros.
Esse nos parece um exemplo que coloca um paradoxo para o qual não há respostas
prontas, a nosso ver. Por isso, finalizaremos este capítulo abrindo algumas questões que pre-
tendemos discutir ao longo da tese. Partiremos de algumas situações do cotidiano que nos co-
locam interrogações sobre a tensão discutida neste capítulo do ponto de vista teórico.

87
“If gender is simply a social construct, the need and even the possibility of a feminist politics becomes immedi-
ately problematic. What can we demand in the name of women if “women” do not exist and the demands in their
name simply reinforce the myth that they do? How can we speak out against sexism as detrimental to the interests
of women if the category is a fiction? How can we demand legal abortions, adequate child care, or wages based
on comparable worth without invoking a concept of ‘woman’?” (ALCOFF, 1988, p. 420)
88
Conferência de Jules Falquet, no dia 22 de fevereiro de 2019, no âmbito do ciclo “Feminisme Genre & Sexua-
lité”, realizado na Universidade Paris Diderot.
105
Como primeira questão, destacamos uma polêmica envolvendo uma ativista norte-ame-
ricana, em 2017, que colocou de uma maneira inusitada os termos dessa questão. Rachel Dole-
zal, ativista em prol da igualdade racial e dos direitos dos negros americanos, sempre se des-
creveu como afrodescendente. No entanto, seus pais biológicos revelaram em uma entrevista
que ela teria origem alemã e tcheca. A revelação teve grande repercussão, levando a acusações
de que ela teria mentido e obtido vantagens profissionais por isso. Dolezal replicou que sempre
se sentiu pertencendo à comunidade negra e que se considera “transracial”, colocando então a
seguinte questão: “A ideia de raça é uma mentira, então como você pode mentir sobre uma
mentira?”89.
A pergunta repousa sobre um ponto interessante e, de certa forma, paradoxal: a consi-
deração de que a categoria “negros” é um construto social, algo que não tem existência “natu-
ral”, constitui-se como da ordem da ficção, da fabricação/produção. Se a ideia de raça é uma
produção, se a categoria “negros” é uma construção identitária e não algo que se justifica pela
biologia, essa categoria, contudo, opera, produz efeitos de sentido. Quais as consequências
disso?
De maneira geral, o debate em torno dos direitos das minorias na atualidade aceita que
não há nada de natural em categorias como “as mulheres” ou “os negros”. No entanto, consi-
dera-se que são produções culturais e, nesse sentido, operam na realidade, embora sua existên-
cia não seja natural. Considera-se, por exemplo, que mulheres são socializadas de maneira di-
ferente dos homens e daí decorrem interesses diferentes, e não de diferenças biológicas. O que
cabe refletir é se, ao enfatizar as especificidades do grupo, mesmo colocando o relevo na cultura
e não na natureza, não corremos o risco de naturalizar supostas diferenças culturais.
Nesse sentido, destacamos uma segunda questão a partir da discussão realizada pela
historiadora Joan Scott sobre uma situação que considera ter sido uma “lição” para o movi-
mento feminista, e que ficou conhecido como “caso Sears”. Em 1979, a Equal Employment
Opportunities Commission (EEOC) moveu uma ação contra a Sears, empresa varejista, por
discriminação sexual em sua política de contratação para o setor de vendas por comissão –
dentre os mais bem remunerados da empresa. O processo foi a julgamento entre 1984 e 1985 e
duas historiadoras foram convocadas como testemunhas por seus conhecimentos de história da
divisão sexual do trabalho: Alice Kessler-Haris, pela acusação, e Rosalind Rosemberg, pela
defesa (PIERUCCI, 1990).

89
“‘Ideia de raça é uma mentira’: americana branca que se passou por negra se diz ‘transracial’”. BBC, 28 de
março de 2017. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39413853. Acesso em 25 de maio
de 2018.
106
Os advogados de defesa da Sears construíram o argumento de que os interesses de ho-
mens e mulheres por postos de trabalho diferem, e que essas diferenças são decorrentes da
cultura, ou seja, padrões de socialização levavam à falta de interesse das mulheres por determi-
nados cargos. Nesse sentido, os padrões de contratação da Sears seriam explicados por tais
diferenças, e não por discriminação (SCOTT, 1988).
A acusação buscou demonstrar que, quando os empregadores oferecem oportunidade,
as mulheres assumem empregos tradicionalmente não femininos. Porém, a defesa contra-argu-
mentou recorrendo a trabalhos publicados por Kessler-Harris, que haviam destacado diferenças
entre trabalhadores homens e mulheres, apontando serem as mulheres mais orientadas domes-
ticamente e menos individualistas (SCOTT, 1988).
A linha de argumentação centrada na existência de diferenças entre homens e mulheres
– diferenças que seriam culturais e não naturais – saiu vitoriosa. A decisão judicial foi favorável
à Sears, considerando que a distribuição de homens e mulheres na empresa poderia ser expli-
cada pelas diferenças entre eles (PIERUCCI, 1990).
Seria esse um caso de injustiça distributiva (relacionada à estrutura econômica) “gênero-
específica”, nos termos de Fraser (2003a), e, por isso, seu enfrentamento exigiria “acabar com
esse negócio de gênero” ao invés de “valorizar a especificidade de gênero”? Diante do “caso
Sears”, Pierucci (1990) aponta que a diferença deixou de ser vista como natural ou biológica
para ser vista como cultural ou historicamente produzida, porém a diferença é afirmada. Seria,
então, a produção da diferença sexual que se buscava eliminar, nos termos de Scott (2005)? O
caminho seria desconstruir papéis de gênero? Deixar de destacar diferenças e buscar uma sub-
versão de identidades?
Seria possível, então, falar como e/ou em nome de “mulher(es)”? Se categorias identi-
tárias não existem e as demandas em torno de identidades recolocam o mito de sua existência,
estaríamos “mentindo sobre uma mentira”? Diversas questões se colocam, portanto, na articu-
lação entre diferença e identidade, ao mesmo tempo em que se abrem possibilidades e riscos,
os quais interrogaremos, no próximo capítulo, a partir de teóricas feministas materialistas e
queer.

107
CAPÍTULO 2. O que permanece após desestabilizar identidades? Diálogos entre perspec-
tivas materialistas e queer

Diferentes conceituações acerca da categoria “identidade” possibilitam problematizar


noções – como integridade e permanência – associadas à identidade em perspectivas essencia-
listas. Estudos no âmbito da psicanálise e em outros campos do conhecimento evidenciam que
“identidade” é uma espécie de unificação imaginária, como discutimos no capítulo 1. Em teo-
rizações psicanalíticas, a impossibilidade da identidade se coloca a partir daquilo que está para
além da representação; a partir dos “Estudos Culturais” e das Ciências Sociais, concepções
relacionais situam articulações entre identidade e diferença; com o movimento feminista negro,
articula-se uma perspectiva que enfatiza a interdependência de diferentes relações de opressão.
A partir dessas diferentes perspectivas, buscamos problematizar a concepção de identi-
dade ao mesmo tempo em que procuramos nos afastar de um “universalismo imaginário”, como
indicamos no capítulo 1. Fundamentando-nos na concepção de qualquer universalismo só se
produz a partir de exclusões, situamos que a interdependência entre diferentes sistemas de
opressão coloca a impossibilidade de uma identidade “unificada” e anunciamos que pretende-
mos sustentar que não existe nada que definiria “mulheres” senão a própria realidade da opres-
são.
A luta contra opressões gênero-específicas organiza demandas que se articulam por e
em nome de “mulheres”. Essa categoria pode ser compreendida em termos de identidade ou em
outros termos – como performatividade e posições nas relações sociais, como apresentaremos
neste capítulo 2. Antes de passar a essas formulações, gostaríamos de destacar que a organiza-
ção de movimentos sociais em torno de categorias identitarias nos interroga desde o mestrado90.
Naquele momento, trabalhamos a partir da perspectiva de Freud e Lacan, no âmbito da psica-
nálise, e procuramos estabelecer interlocuções om os estudos de Judith Butler. Trabalhamos
com a oposição entre o que, naquele momento, denominamos duas ordens de reconhecimento,
como resgataremos brevemente a seguir.
Em termos psicanalíticos, propusemos que o reconhecimento da alteridade não seria o
reconhecimento de outra identidade, outra individualidade, mas sim da não-identidade, do

90
ZANA, A. R. O. Identidade e diferença na relação com a alteridade. Dissertação de Mestrado (Teoria Psicana-
lítica). Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: UFRJ/IP, 2013

108
estranho. Um primeiro ponto que procuramos distinguir foram as concepções de diversidade e
diferença, partindo da problematização sobre a conceituação de diferença no campo da psica-
nálise. Considerando que a tendência primária do aparelho psíquico é perceber o objeto da pri-
meira experiência de satisfação de maneira alucinatória (identidade perceptiva) e que a realiza-
ção do desejo é o reencontro, no plano perceptivo, do objeto de satisfação, não há inicialmente
distinção entre realidade e ilusão (FREUD, 1900/1996) – o que coloca a constituição da dife-
rença como questão.
O pensamento se interpõe entre o desejo e a satisfação alucinatória, dando lugar à pri-
meira experiência de consideração da diferença. Quando a representação-percepção coincide
apenas parcialmente com a representação-lembrança, inicia-se um processo de julgamento
quanto à identidade ou não entre elas, e o complexo perceptual pode ser decomposto em uma
parte que permanece constante – denominada a coisa (das Ding) – e outra que é variável e
constitui os atributos ou predicados (FREUD, 1895c/1996).
A proposição freudiana de das Ding é relida por diferentes autores de maneira a apro-
ximá-la da noção de estranho e da ausência de representação. Para Lacan (1959-60/1997), na
experiência do Nebenmensch91, o Ding é o elemento originalmente isolado pelo sujeito como
sendo estranho. Safatle (2006) também articula o conceito de estranho àquilo que permanece
inassimilável à representação.
A partir dessas considerações, propusemos que a coisa (das Ding) refere-se àquilo que,
no Nebenmensch, aparece para o sujeito como pura presença, não como representação. En-
quanto os atributos possibilitam o estabelecimento de semelhanças e diferenças, das Ding se
refere àquilo que o sujeito não sabe se é semelhante ou diferente, não consegue associar nem
dissociar com nada, e, por isso, aparece como estranho.
Como afirma Lacan (1959-60/1997), das Ding não é uma representação, mas aquilo do
objeto sobre o qual o sujeito não conseguiu constituir uma representação, é o “fora-do-signifi-
cado” (p. 71). Por estar fora do campo da representação, coloca-se a possibilidade da não cir-
cunscrição ao regime da identidade, o que colocaria a possibilidade de pensar o sujeito e a
relação de reconhecimento a partir do estranho e da não-identidade.
Em seguida, introduzimos as operações lacanianas de alienação e separação, partindo
do narcisismo e estádio do espelho. Buscamos articular essas formulações com nossa temática

91
O termo “Nebenmensch” aparece no “Projeto para uma psicologia científica”, quando Freud (1895c/1996) dis-
cute a experiência de satisfação e analisa o que acontece quando o objeto da percepção é um outro ser humano,
enunciando o complexo do próximo (Nebenmensch). Como complexo perceptual, o complexo de Nebenmensch
se divide em duas partes, uma variável e compreensível – os atributos – e outra constante e não compreensível –
a coisa, o Ding.
109
sobre a identidade circunscrevendo que a identidade do eu, que é imaginária, vem do outro,
enquanto o sujeito não tem identidade própria, é determinado pelos significantes do Outro, re-
presentado por um significante para outro significante. Porém, há alguns significantes que se
impõem, têm força de determinação. São significantes com os quais o sujeito se identifica,
mortificando-se, o que corresponde ao conceito lacaniano de alienação: o sujeito não é aquilo
que o Outro aponta para ele, mas encontra-se alienado a esses significantes. A separação, por
sua vez, é o encontro com a falta do desejo quando se dá lugar ao fato de que também ao Outro
falta alguma coisa.
A partir dessas formulações da psicanálise, procuramos distinguir duas ordens de reco-
nhecimento: por um lado, o do outro indivíduo ou identidade e, por outro, o do estranho, da
não-identidade, em um registro que não pode ser reduzido ao princípio da identidade. Propuse-
mos que a primeira dimensão, ligada ao reconhecimento do outro indivíduo, estaria muito as-
sociada à luta por direitos civis. Honneth (2003c) trata do reconhecimento intersubjetivo, con-
siderando a formação da identidade em um contexto de relações de reconhecimento. Já a for-
mulação do reconhecimento do estranho exigiria que se colocasse em questão a própria cate-
goria da identidade.
Na colocação dessa categoria em questão, traçamos aproximações entre as proposições
da psicanálise e da teoria queer, uma vez que, para Butler (1990/2013), coerência e continui-
dade não são características lógicas da personalidade, mas sim normas de inteligibilidade soci-
almente instituídas, o que a leva a propor uma desconstrução das categorias de sujeito e identi-
dade a partir da consideração da dimensão histórica e política envolvida em sua construção. No
que se refere ao reconhecimento, Butler (2010) trata da tendência a recorrer ao já conhecido,
mas também da possibilidade de rompimento com esse padrão.
Nesse sentido, caminhamos para a discussão de uma segunda ordem de reconhecimento
– não circunscrita ao reconhecimento entre indivíduos –, na perspectiva psicanalítica, a partir
das leituras de Birman (1997; 2003), Cunha (2009) e Safatle (2012), baseadas em uma proble-
matização da noção de identidade.
Birman (1997; 2003) e Cunha (2009) partem da formulação do descentramento do su-
jeito em Freud, enquanto Safatle (2012) parte de Hegel para sustentar um princípio da subjeti-
vidade sem um pensamento da identidade. Por caminhos diferentes, temos que, para esses au-
tores, “sujeito” não deve ser compreendido como entidade substancial, idêntica a si mesmo e
capaz de se autodeterminar. Isso nos permitiria pensar a relação com a alteridade não apenas
como relação intersubjetiva, entre indivíduos ou identidades, mas como abertura para o não-

110
idêntico, não inteligível, o estranho. Nesse sentido, o questionamento da categoria de identi-
dade a partir da psicanálise se encontraria com as formulações de Butler.
A primeira perspectiva do reconhecimento – entre indivíduos – apareceria associada à
luta por direitos fundamentada na categoria da identidade. Entretanto, a partir de uma leitura
psicanalítica, tratar do reconhecimento entre indivíduos significa tratar a questão da alteridade
pela via do imaginário, o que traz alguns riscos, uma vez que a relação imaginária ao outro é
uma relação narcísica. A segunda perspectiva – reconhecimento do estranho, da não-identidade
– parte do questionamento da própria categoria da identidade e propõe o reconhecimento do
estranho, a possibilidade de outro princípio que não o da identidade. Essa perspectiva encontra
ressonância na psicanálise, como procuramos trabalhar ao longo de toda a dissertação.
No momento da dissertação de mestrado, ficamos com a questão sobre como conciliar
essas duas ordens de reconhecimento. Se reconhecíamos a importância da luta por direitos e da
esfera do reconhecimento intersubjetivo, acabávamos caindo, por mais que procurássemos evi-
tar, em uma postura que hoje nos parece um tanto condescendente de reconhecer a importância
dessas lutas, assim como do reconhecimento, ao mesmo tempo em que considerávamos que a
psicanálise tratava de outra coisa. E ficávamos sem resposta quando pensávamos se aquilo de
que trata a psicanálise encontrava alguma ressonância ou articulação com o que aparece no
âmbito dos movimentos sociais. Hoje nos voltamos para o que produzimos em nossa disserta-
ção de mestrado com olhar crítico, embora continuemos considerando a importância das for-
mulações de Butler e da psicanálise sobre o risco de essencialização quando se trata de catego-
rias identitárias.
No momento do mestrado, trabalhamos a categoria “identidade” sem circunscrever ne-
nhum campo específico. No doutorado, delimitamos inicialmente o campo do gênero, com o
objetivo de interrogar o que o gênero nos possibilitaria pensar sobre a identidade. Ao longo do
percurso, percebemos a necessidade de um recorte, uma vez que “gênero” ainda constitui um
vasto campo de estudos, que abarca identidades de gênero excluídas, as identidades trans, os
feminismos, entre outros. Posicionamo-nos no sentido de delimitar as questões relativas a mu-
lheres e feminismos como nosso objeto de estudo – o que não prescinde das discussões sobre
gênero.
Neste capítulo, pretendemos nos debruçar sobre autores estrangeiros ao campo da psi-
canálise para interrogar a dimensão da materialidade da opressão. Trabalharemos com perspec-
tivas feministas a partir de Nancy Fraser, já apresentada no capítulo 1, bem como de Danièle
Kergoat e Jules de Falquet, que apresentaremos neste capítulo. Trabalharemos também com
Judith Butler, tanto em “Problemas de gênero” – texto que aparece como referência obrigatória
111
nos trabalhos que discutem psicanálise e teoria queer –, mas também a partir de uma interlocu-
ção com Nancy Fraser que revela uma Judith Butler surpreendentemente materialista, muito
diferente daquela “desconstrucionista” que costuma aparecer nos trabalhos de psicanalistas.
Tendo em vista a importância dos diálogos que vêm sendo estabelecidos entre as pro-
posições de Butler e a psicanálise, iniciaremos o capítulo apresentando, na seção 2.1, como
alguns psicanalistas recorrem a Butler e situaremos alguns riscos que, a nosso ver, são coloca-
dos na aproximação que se faz entre esses dois campos do conhecimento. Se a psicanálise
chama a atenção para a singularidade e para a dimensão do “para além da representação”, con-
sideramos que o desafio é tomar o que seria específico da psicanálise sem deixar de levar em
conta as dimensões da materialidade e discurso.
No sentido de buscar delinear possibilidades de articulação entre materialidade e dis-
curso, iniciaremos resgatando, na seção 2.2, contribuições importantes das Ciências Sociais no
que se refere à conceituação de gênero. Pretendemos destacar que, nas teorizações sobre o pro-
cesso de socialização de gênero, existe a consideração da singularidade – tendo como referência
o âmbito da representação e da consciência –, bem como discutir limitações das perspectivas
da socialização, o que faremos a partir de formulações da sociológa Margaret Andersen (1993).
A autora recorre ao “caso Sears”, que apresentamos no final do capítulo 1, para indicar que o
processo de socialização explica como os indivíduos se tornam pessoas generificadas (gendered
persons), mas não explica as origens sociais estruturais da desigualdade de gênero, as bases
institucionais dessas origens.
Esse assinalamento de uma dimensão estrutural, fundamentada em bases institucionais,
possibilita articular a segunda dimensão proposta por Davids e Driel (2003), como veremos: a
dimensão estrutural ou institucional, que possibilita inscrever o que é do âmbito da representa-
ção em práticas socialmente institucionalizadas. Buscaremos, neste capítulo, recorrer a teoriza-
ções que colocam em cena essa dimensão, no campo da filosofia e das ciências sociais, para,
no próximo capítulo, trazer as contribuições da psicanálise e discutir as incidências dessas lei-
turas.
Na seção 2.3, apresentaremos algumas contribuições a partir de historiadoras que traba-
lharam a categoria gênero. Retomaremos formulações fundamentais de Joan Scott (1990) e as
interrogaremos a partir de problematizações propostas por Laura Lee Downs (1993). Como
apontamos no capítulo 1, as políticas de identidade revelam que a estrutura branca e masculina,
tomada como universal, na verdade só se produz a partir de exclusões. Downs (1993) considera
que também as estratégias desconstrucionistas, como a de Joan Scott, são importantes por evi-
denciarem que supostos universalismos e uma concepção de “neutralidade” são produzidos por
112
meio de exclusões. No entanto, Downs (1993) considera esse esforço de desestabilização de
categorias é necessário, mas não suficiente.
Essas interrogações lançadas por Downs (1993) ao trabalho de Joan Scott são particu-
larmente importantes para nosso trabalho por apontar o risco de que estratégias voltadas para a
desconstrução acabem ficando restritas à dimensão das representações, que buscam descons-
truir, mas sem articular essa dimensão à materialidade que se coloca a partir de uma dimensão
estrutural e suas bases institucionais. Daremos continuidade a essa discussão na seção 2.4, com
a apresentação das formulações de Judith Butler em “Problemas de gênero”, sobretudo no que
se refere à performatividade. A partir da consideração de condições de eficácia para que enun-
ciações sejam performativas, como formula Bourdieu (1982), e da análise sobre instituições e
discursos normativos, proposta por Rosemary Hennessy (1994), buscaremos situar uma com-
preensão em termos de performance que articule as relações sociais que a tornam possível.
Nessa perspectiva de levar em conta as mediações que fazem com que os discursos te-
nham efeito de produção, bem como as condições sociais de produção e reprodução dos dife-
rentes discursos, consideramos importante articular a dimensão da materialidade, tal como
abordado por perspectivas feministas materialistas. Importante destacar que, no âmbito da psi-
canálise, quando se fala em “materialidade”, a primeira impressão muitas vezes é de se tratar
da materialidade do corpo. Não é esse aspecto que pretendemos destacar, mas sim o aspecto
econômico, social, instituições e práticas sociais institucionalizadas etc. São esses aspectos que
buscamos colocar em cena na seção 2.5, a partir das perspectivas materialistas de Jules Falquet
e Danièle Kergoat, e, na seção 2.6, de um diálogo entre Judith Butler e Nancy Fraser, que se
revela pautado pelo materialismo.

2.1 O que corre o risco de ficar excluído em algumas teorizações psicanalíticas?

No campo das teorizações psicanalíticas, há uma tendência a considerar que as constru-


ções identitárias estão fundamentadas no registro imaginário, enquanto a psicanálise lida com
o Real, de tal maneira que Zizek (2016), por exemplo, censura Butler por não levar em conta
essa dimensão. O autor pontua que “a diferença sexual é o Real de um antagonismo, e não o
simbólico de uma oposição diferencial” (p. 291), ou seja, não se trata de uma oposição que
atribui uma identidade positiva, em oposição ao outro sexo, mas “é uma perda comum em razão
da qual uma mulher nunca é plenamente uma mulher e um homem nunca é plenamente um
homem” (p. 291). Por ser a diferença sexual da ordem do Real/impossível, é não binária, assim
como situada nem no domínio da biologia nem da cultura, como explicita Zizek (2016):
113
[...] a diferença sexual indica o domínio enigmático que se encontra no meio, nem a
biologia nem ainda o espaço da construção sociossimbólica [...] o modo como simbo-
lizamos a sexualidade não é determinado pela natureza, ele é o resultado de uma com-
plexa e contingente luta de poder sociossimbólica; no entanto, esse espaço de sociali-
zação contingente, essa lacuna entre o real e sua simbolização, deve ser sustentado
por um corte, e ‘castração simbólica’ é o nome lacaniano para esse corte. (p. 294)

De maneira semelhante, Saez (2004), autor de “Teoria Queer y psicoanálisis”, pontua


que, no Seminário 20, Lacan trabalha diretamente o tema da sexualidade e que suas proposições
conduzem a pensar a sexualidade fora dos termos de gênero, uma vez que o desejo não está
determinado pelo gênero do objeto eleito, mas pelo objeto a, que é independente do gênero.
Haveria, assim, uma vinculação entre as identidades sexuais, ou de gênero, e o registro do ima-
ginário, e, por outro lado, a dimensão Real da sexualidade, de maneira que, para o autor, o
discurso queer denuncia a construção do sexo em seus aspectos imaginários e discursivos, en-
quanto Lacan situa o sexo com relação ao Real.
Do ponto de vista lacaniano, qualquer relação binária é imaginária, no sentido de que
está construída por relações de identificação e oposição, de um a um. Teorizar sobre a sexuali-
dade em termos imaginários – como faz Butler, na leitura do autor – supõe conceitualizar a
sexualidade de forma binária, ainda que não se pretenda (SAEZ, 2004).
Outra tendência nos estudos que buscam o diálogo entre a psicanálise e os estudos de
gênero é enfatizar como único ponto de convergência a problematização das identidades. Essa
perspectiva aparece de maneira bastante interessante no debate entre os psicanalistas Marcus
do Rio Teixeira, de um lado, e Christian Dunker e Rafael Kalaf Cossi, de outro. Enquanto os
últimos procuram estabelecer um diálogo, com aproximações e distanciamentos, entre as for-
mulações de Butler e a psicanálise, o primeiro mostra-se reticente em relação à possibilidade
de apropriação das ideias de Butler pela psicanálise, como explicita ao declarar que: “Penso
que procurar ler a teoria e a prática da psicanálise pela perspectiva de programas declarada-
mente ideológicos produz um efeito de empobrecimento do empreendimento teórico de Lacan
e da própria transmissão da psicanálise” (TEIXEIRA, 2017, p. 13).
Cossi e Dunker (2017) retomam as proposições de Butler no sentido de desnaturalização
de identidades, que operam uma desconstrução na suposta coerência da identidade de gênero
ao propor que não há essência em que se baseie o gênero. A expressão repetida de palavras,
gestos e atos criariam a realidade dos gêneros, de maneira que, para os autores, Butler defende
“uma política pós-identitária e desconstrucionista do gênero” (COSSI & DUNKER, 2017, p.
2).

114
Os autores procuram, então, estabelecer uma aproximação entre as ideias de Butler e de
Lacan, pontuando que “o que Butler percebe com menos clareza é que há em Lacan, desde seu
início, uma crítica dos excessos da experiência identidade” (COSSI & DUNKER, 2017, p. 4).
Essa perspectiva de “crítica dos excessos da experiência identidade” estaria presente, para os
autores, desde a formulação do eu proposta por Lacan em “O estádio do espelho como formador
da função do eu”, que Cossi e Dunker (2017) articulam, por um lado, ao caráter imaginário da
identidade, e, por outro, à não-identidade do objeto a.
Nas formulações sobre a sexuação, nos seminários mais tardios de Lacan, o confronto
entre o sexual e o Real colocaria a diferença sexual como não passível de ser simbolizada em
uma norma simbólica que fixa a identidade sexual, de maneira que “a diferença sexual deixa
de ser uma duplicação da diferença significante e passa a ser referida a uma experiência não-
identitária de gozo” (COSSI & DUNKER, 2017, p. 5). Na visão dos autores, Butler não teria
levado isso em conta.
O psicanalista Marcus do Rio Teixeira (2017) discute o texto de Christian Dunker e
Rafael Kalaf Cossi (2017), concordando com os autores no que se refere a aspectos da teoria
lacaniana dos quais Butler teria se apropriado de maneira equivocada, mas discordando da apre-
sentação das formulações sobre a sexuação como ponto de aproximação entre Butler e Lacan.
Teixeira (2017) explica sua discordância resgatando pontos importantes da argumentação de-
senvolvida por Cossi e Dunker. Estes retomariam as fórmulas da sexuação, para Teixeira
(2017):

[...] como comprovação de uma suposta dissolução das identidades sexuais definida
teoricamente pelo próprio Lacan. Esta dissolução ou desconstrução das identidades
sexuais seria supostamente impulsionada pela prevalência dos conceitos de Real e
gozo na teoria lacaniana dos anos 70 (p. 3)

Cossi e Dunker (2017) propõem que os termos “homem” e “mulher” nas fórmulas da
sexuação correspondem a “semblantes imaginários ou dêixicos performativos, exatamente
como quer Butler” (p. 6). Teixeira (2017) rebate os autores retomando o Seminário 18, quando
Lacan circunscreve o semblante ao parecer, como recurso para se apresentar ao pequeno outro,
como homem ou mulher. O “parecer-homem” teria como correlato evidenciar à parceira que se
é homem, algo circunscrito ao imaginário e que Lacan aproxima ao comportamento animal (a
exibição), submetido à ordem simbólica, por ser veiculado em um discurso. Teixeira afirma
que “esta noção pode ser aproximada do gênero, tal como definido por Butler, como estrita-
mente performativo. O próprio Lacan o aproximou da identidade de gênero, tal como definida
por R. Stoller” (TEIXEIRA, 2017, p. 5). Ou seja, o autor destaca que a formulação lacaniana

115
de semblante pode ser aproximada à de gênero em Butler, mas pontua que essa noção não se
aplica aos termos “homem” e “mulher” que aparecem nas fórmulas da sexuação.
Teixeira (2017) destaca ainda que Cossi e Dunker (2017) reiteram o argumento das
identidades de gozo como não-identidades, considerando a referência ao gozo nas fórmulas da
sexuação para sustentar a não constituição de nenhuma identidade. Cossi e Dunker (2017) afir-
mam que “para os semblantes homem e mulher, alocam-se heterossexuais, homossexuais,
místicos, psicóticos, travestis, etc. É porque a diferença sexual é real que ela não se fixa em
identidades, que existem indeterminadas manifestações da sexualidade” (p. 7).
Esse argumento de que não há identidades sexuais em decorrência das múltiplas mani-
festações da sexualidade é questionado por Teixeira (2017), que pontua a necessidade de dife-
renciar sexuação e sexualidade, assim como identidade de gozo e escolha de objeto. O autor
destaca que as fórmulas da sexuação fazem referência ao que ele próprio denomina “identidades
de gozo” e não a escolhas de objeto, enquanto “os exemplos listados pelos autores juntam no
mesmo grupo escolhas de objeto, posição de gozo, estrutura clínica, jogos com o semblante...
Listar essa diversidade para questionar o aspecto identitário das fórmulas não me parece um
argumento sólido” (TEIXEIRA, 2017, p. 10).
Em nossa leitura do texto de Cossi e Dunker (2017), parece-nos que os autores conside-
ram que existe uma aproximação entre Butler e Lacan precisamente na problematização das
identidades – e que Butler critica Lacan porque não se deu conta desse ponto. O mesmo afirma
Teixeira (2017), ao destacar que:

[...] é perceptível sob a argumentação teórica o entusiasmo ao apresentar as teses do


ensino de Lacan nos anos 70 não como uma comprovação dos equívocos da teoria de
Butler, mas, ao contrário, como uma confirmação de suas teses. No fundo, parecem
dizer os autores, as críticas de Butler a Lacan seriam injustas, pois se ela lesse atenta-
mente o Lacan dos anos 70 veria que ele é... butleriano! (p. 2)

Tendo em vista a ironia e também que Butler escreveu depois de Lacan, essa crítica de
Teixeira (2017) parece coincidir com nossa percepção de que Cossi e Dunker (2017) defendem
uma aproximação, mas afirmando algo como “sim, Butler está certa nesses pontos em que ela
fala do que Lacan já disse e que ela não compreendeu”. Concordamos, portanto, com essa crí-
tica que Teixeira (2017) faz a Cossi e Dunker (2017), embora discordemos de seu posiciona-
mento mais geral e de sua afirmação sobre não ser produtivo o diálogo com a teoria queer.
É interessante notar que esses dois textos partem de perspectivas completamente dife-
rentes e chegam a conclusões igualmente diferentes. Teixeira (2017) conclui afirmando que
Lacan partiria de uma concepção da diferença sexual como posicionamentos diante do falo, que
não constituiriam identidades, para chegar mais tardiamente às identidades sexuais enquanto

116
identidades de gozo. Por isso, considera que existe um distanciamento entre esse momento do
ensino de Lacan e as proposições de Butler, e não uma aproximação como postulam Cossi e
Dunker (2017). Nas palavras do autor:

Butler não se equivocou ao limitar as suas referências às teses do início do ensino de


Lacan. Isso porque ela não encontraria nas formulações dos últimos anos do ensino
elementos que pudessem lhe servir para sustentar a sua teoria do gênero como tran-
sitório, impermanente e performativo. (TEIXEIRA, 2017, p. 11)

Cossi e Dunker (2017), por sua vez, finalizam o texto exaltando as possibilidades de
diálogo e as contribuições que a psicanálise teria para os feminismos. A partir de Drucilla Cor-
nell, ressaltam a importância de questionar a construção do que se compreende por “mulher” a
partir de imagens ou fantasias, e que a psicanálise lacaniana é útil nessa crítica, por “ir além das
fantasias ou imagens associadas à mulher” (p. 7). Consequentemente, defendem uma “desiden-
tificação”, postulando que “deve-se ir contra a proposta do fortalecimento da identidade femi-
nina” (p. 7). Os autores sintetizam da seguinte maneira seu posicionamento:

O aforismo lacaniano “A mulher não existe” é interessante por fornecer o aporte


teórico para essa empreitada. Não há o significante d’A mulher fixado na ordem
simbólica. Nenhuma representação da mulher abarca o que sejam as mulheres, pois
elas não se estabilizam como significante. A mulher surge como uma categoria intrin-
secamente crítica da lógica da identidade, como queria Butler. Ficamos então entre as
múltiplas identificações em Butler e nenhuma identificação em Lacan. A mulher
como gênero-categórico deve ser refutada. Mulher é uma construção normativa que
promove a ilusão de uma identidade de que tanto Butler quanto Lacan denunciam a
precariedade. (COSSI & DUNKER, 2017, p. 7)

Parece-nos que, apesar do reiterado reforço de que os termos “homem” e “mulher” nas
fórmulas da sexuação não se referem aos “pequenos outros” “homens” e “mulheres”, muito
rapidamente se escorrega para afirmações que dizem sim respeito a esses “homens” e “mulhe-
res”. De fato, quando os autores afirmam que “Nenhuma representação da mulher abarca o que
sejam as mulheres”, esse é um ponto que se encontra quase textualmente em Butler, como ve-
remos, e constitui uma reflexão importante para pensar os movimentos sociais. No entanto,
quando os autores afirmam que “A mulher surge como uma categoria intrinsecamente crítica
da lógica da identidade, como queria Butler”, é necessário perguntarmos: de que “mulher” se
fala aqui – do termo “mulher” nas fórmulas da sexuação ou dos “pequenos outros” “mulheres”?
Além disso, os autores finalizam a asserção com “como queria Butler”. Parece-nos que
Butler parte de uma perspectiva de desnaturalização das identidades ao postular que não há
identidade por trás do gênero, mas isso para “mulheres”, “homens” ou qualquer outra suposta
identidade de gênero. Nesse sentido, quando os autores afirmam que “Mulher é uma construção

117
normativa que promove a ilusão de uma identidade”, é necessário perguntarmos: mas e “ho-
mem” não é igualmente uma “construção normativa que promove a ilusão de uma identidade”?
A própria Butler (2018), em diálogo com a psicanalista Drucilla Cornell – que é citada
por Cossi e Dunker (2017) –, discute a ideia da “impossibilidade” do feminino sustentada por
Cornell. Butler (2018) coloca a seguinte questão: “O que é considerado identidade ‘inteligível’,
e será só o ‘feminino’ que opera dentro do terreno simbólico como sinal de seu limite e impos-
sibilidade?” (p. 212). Em seguida, Butler (2018) afirma que “nem o ‘masculino’ nem o ‘femi-
nino’ podem ser mantidos sem a pressuposição da assimetria estrutural da heterossexualidade”
(p. 212).
Também Fraser (2018b), referindo-se à maneira como as formulações de Butler são
lidas no sentido de que “mulher” não pode ser definido, interroga se suas proposições estariam
circunscritas apenas à “mulher” como signo da diferença e não identidade: “Por que ‘mulher’
ou ‘mulheres’ deveria ser o signo do não-idêntico? Tudo o que Butler diz sobre ‘mulheres’ não
será válido para ‘homens’, ‘trabalhadores’, ‘pessoas de cor’, ‘chicanos’ ou qualquer outra no-
minação coletiva?” (p. 112).
Finalmente, um último ponto que gostaríamos de interrogar a partir do texto de Cossi e
Dunker (2017): quando os autores afirmam que “tanto Butler quanto Lacan denunciam a pre-
cariedade” (em “Mulher é uma construção normativa que promove a ilusão de uma identidade
de que tanto Butler quanto Lacan denunciam a precariedade”, p. 7), trata-se de uma tentativa
de aproximação entre as formulações de Butler e a psicanálise pelo assinalamento do caráter
normativo e ilusório de identidades. Será esse o único ponto de aproximação entre essas teorias?
Será produtivo estabelecer uma aproximação unicamente a partir desse ponto? O que fica de
fora?
Consideramos que fica de fora uma dimensão que Laura Lee Downs (1993) sintetiza
brilhantemente no título de seu artigo intitulado “Se ‘mulher’ é apenas uma categoria sem con-
teúdo, por que tenho medo de andar sozinha à noite?” (“If ‘Woman’ is Just an Empty Category,
Then Why Am I Afraid to Walk Alone at Night?”): a materialidade da opressão vivenciada pelas
mulheres. Se, de fato, não é possível encontrar uma única representação para “mulheres”, tam-
bém não deixa de ser fato que existem opressões gênero-específicas, como discutimos a partir
de Nancy Fraser (2003a), no capítulo 1, com suas formulações sobre injustiças de distribuição
e de reconhecimento gênero-específicas.
Como nosso objetivo geral é pensar a categoria “mulheres” como constituída em virtude
de sua opressão, de maneira a lançar interrogações à psicanálise, o recorte que fizemos partiu
de perspectivas feministas que nos interrogam e que nos ajudam a pensar essa opressão inscrita
118
em uma materialidade, discursivamente mediada, ao mesmo tempo em que existe algo que falha
nas normas que operam – tal como enunciamos na introdução da tese ao circunscrever objetivos
geral e específicos.
Não pretendemos fazer uma cartografia de todas as perspectivas feministas nem esgotar
as perspectivas com as quais trabalhamos, mas apenas recuperar pontos que, a nosso ver, pro-
duzem interrogações à psicanálise no que se refere à temática e aos objetivos de nosso trabalho.
Muitas autoras ficaram de fora, e consideramos que uma das limitações deste trabalho é ter
ficado muito restrito a autoras dos contextos francês e norte-americano. Em nosso percurso
pelas teóricas feministas, deparamo-nos com uma profusão de produção intelectual, uma diver-
sidade de correntes e abordagens teóricas, encantamo-nos pelas perspectivas decoloniais e pós-
coloniais, mas percebemos que não conseguiríamos dar conta de tudo, sob o risco inclusive de
cometer injustiças às autoras por apresentar uma leitura apressada, que não faria jus a toda a
sua profundidade teórica.
Chegar a nosso recorte passou por uma reflexão sobre a quem se endereça este trabalho,
e, nesse percurso, posicionamo-nos no sentido de que nosso endereçamento é aos psicanalistas,
a interrogar a psicanálise. Chegar a essa delimitação não foi tarefa fácil, e passou por reconhecer
o desconforto produzido em nós por autores que, ao propor um diálogo, na realidade endere-
çam-se a outros campos do saber, interrogando esses outros campos a partir da psicanálise,
como parece-nos ser o caso de Cossi e Dunker (2017), que, no final do texto, afirmam que:

Lacan pode ser útil ao feminismo porque seus aportes teóricos apontam para o reco-
nhecimento das diferenças entre as mulheres, legitimando-as. Ele pode servir para
rebater críticas feitas pelas próprias feministas a elas mesmas de que certas teorias se
orientam na norma heterossexual, branca, classe média, tendo dificuldade de abarcar
outros referentes, como raça, por exemplo, nas categorizações de mulher. (p. 7)

A psicanálise “serviria”, então, para “rebater” críticas feitas pelas feministas? Essa po-
sição parece-nos muito próxima do discurso do mestre, numa perspectiva de considerar que a
psicanálise seria detentora de alguma verdade e levaria essa verdade às feministas. Ao contrá-
rio, consideramos que, ao falar enquanto psicanalistas, é mais produtivo interrogar a psicaná-
lise. Nossa posição, portanto, foi de trazer para este capítulo autoras que nos fizeram pensar a
psicanálise. Não pretendemos apresentar exaustiva ou integralmente suas teorizações, mas tra-
zer para a cena os pontos que lançaram interrogações.
Teorizações psicanalíticas tendem a destacar a dimensão de um “para além da represen-
tação”, como aquilo que caracterizaria a especificidade da psicanálise. Não há dúvidas de que
essa dimensão é fundamental e deve ser levada em conta. Porém, se consideramos que “mulher”

119
não é uma categoria sem conteúdo e que mulheres têm “medo de andar sozinha à noite”, outras
dimensões se revelam igualmente importantes. Que dimensões seriam essas?
Davids e Driel (2003) apontam que uma primeira dimensão seria a simbólica, referente
às representações de masculinidade e feminilidade que muitas vezes se cristalizam nos discur-
sos. Envolve símbolos, representações, imagens, estereótipos, por exemplo a ideia de que mu-
lheres são mais emotivas e homens mais racionais. Nessa dimensão, as diferenças tendem a ser
apresentadas de maneira dicotômica e com poucos nuances, como diferenças entre “o” homem
e “a” mulher.
A segunda dimensão seria estrutural ou institucional, que “inscreve o simbólico no co-
ração de uma prática socialmente institucionalizada”92 (DAVIDS & DRIEL, 2003, p. 76,
tradução nossa), como divisão do trabalho, educação, saúde, casamento. Por exemplo, a repre-
sentação do homem como provedor da família se constitui pela divisão do trabalho, legislação
e instituições como o casamento. Davids e Driel (2003) exemplificam que, nos Países Baixos,
existe a categoria “mãe dependente de prestações sociais” (“bijstandsmoeder”) mas não “pai
dependente de prestações sociais” (“bijstandsvader”).
A terceira dimensão faria referência às posições de sujeito que dependem de um espaço
de negociação, que não é delimitado apenas por posições estruturais ou pela atribuição simbó-
lica de sentidos, mas por contribuições pessoais, embora essa margem de manobra possa en-
contrar limites nos discursos cristalizados (DAVIDS & DRIEL, 2003). Aqui teríamos a singu-
laridade que se coloca a partir de posições de sujeito. Porém, como destacam Davids e Driel
(2003), se essas posições de sujeito não são determinadas por posições estruturais ou por sen-
tidos atribuídos simbolicamente, elas também encontram limites nos discursos cristalizados.
Qual a importância de considerar essas diferentes dimensões? Para iniciar um percurso
no sentido de delimitar essa importância, relembremos que, no capítulo 1, quando apresentamos
as formulações de Nancy Fraser (2000), apontamos duas correntes que a autora afirma condu-
zirem a um deslocamento da redistribuição para o reconhecimento. Uma primeira abordaria os
problemas de reconhecimento obscurecendo a matriz institucional do não-reconhecimento e
suas imbricações com a injustiça distributiva. Procurando articular as contribuições de Fraser
(2000) com a diferenciação proposta por Davids e Driel (2003), consideramos que essa corrente
focalizaria a primeira dimensão – simbólica, referente às representações –, sem buscar articu-
lações com a segunda dimensão – estrutural ou institucional.

92
“[…] inscrit le symbolique au coeur d’une pratique institutionalisée socialement” (DAVIDS & DRIEL, 2003,
p. 76)

120
Uma segunda corrente, na leitura de Fraser (2000), partiria de uma teoria “culturalista”
para compreender a má distribuição como efeito do falso reconhecimento, ou seja, as desigual-
dades econômicas seriam expressões de hierarquias culturais. Nesse caso, considerando as di-
mensões propostas por Davids e Driel (2003), existe uma articulação entre a primeira e a se-
gunda dimensões, porém estabelece-se uma causalidade e direcionalidade únicas, com primazia
da dimensão simbólica, referente às representações. Por exemplo, quando Honneth (2003a)
afirma que “mesmo injustiças ligadas à distribuição devem ser entendidas como a expressão
institucional de desrespeito social ou, melhor dizendo, de relações não justificadas de reconhe-
cimento”93 (p. 114, tradução nossa), a injustiça econômica é compreendida como “expressão
institucional” do reconhecimento. Existe uma articulação, porém uma articulação que coloca
toda a ênfase na dimensão ligada às representações – o reconhecimento – e esvazia a dimensão
articulada a algo de ordem estrutural ou institucional, reduzida a “expressão institucional” dos
problemas de reconhecimento.
Tendo em vista os riscos que se colocam a partir de análises que não articulam essas
diferentes dimensões, iniciaremos nosso percurso, no sentido de buscar estabelecer tais articu-
lações, resgatando contribuições das Ciências Sociais, na próxima seção. A partir de limitações
colocadas pelas perspectivas da socialização de gênero, veremos que Andersen (1993) já coloca
em cena um primeiro elemento que perpassará toda a tese: padrões de desigualdade de gênero
institucionalizados, o que aponta para as bases institucionais dessa desigualdade.

2.2 Gênero: algumas contribuições a partir da Sociologia e da Antropologia

O uso do termo “gênero” está associado historicamente aos movimentos sociais de luta
por direitos realizados por mulheres, feministas, homossexuais, entre outros grupos. No caso
dos movimentos feministas, é importante situar brevemente uma categorização em termos de
“ondas”, para, em seguida, articular o recurso ao termo “gênero”. A “primeira onda” é associada
aos movimentos por igualdade jurídica, nos âmbitos civil e político, entre homens e mulheres,
que emergiram nos países ocidentais desde a segunda metade do século XIX. A “segunda onda”
é articulada a um período de renovação, nos anos 1960-70, caracterizado por novas estratégias
de ação e pelo assinalamento do caráter político de aspectos considerados, até então, de âmbito
“privado” (como contracepção, aborto, sexualidade etc.), que se organizou em torno do slogan

93
“[...] even distributional injustices must be understood as the institutional expression of social disrespect – or,
better said, of unjustified relations of recognition” (HONNETH, 2003a, p. 114)

121
“o pessoal é político”. Uma “terceira onda” foi evocada para caracterizar a emergência de mo-
vimentos, a partir da segunda metade dos anos 1990, em torno de novos princípios de organi-
zação e de novas temáticas, como queer, trans, interseccionalidade, entre outras (BERENI,
CHAUVIN, JAUNAIT, & REVILLARD, 2012).
Malbois (2002), propõe que as duas primeiras ondas do feminismo ocidental podem ser
conceitualizadas, respectivamente, em torno dos paradigmas da igualdade/diferença e do
sexo/gênero. O primeiro surge com a Revolução Francesa e está articulado ao contexto de emer-
gência do feminismo. Malbois (2002) articula a formação das democracias liberais com base
em dois universalismos: direitos políticos individuais (direitos do homem à igualdade e liber-
dade) e universalismo da diferença sexual, isto é, a diferença entre mulheres e homens vista
como natural. Com base nesses dois universalismos, a Revolução Francesa proclama a univer-
salidade dos direitos políticos enraizada no “indivíduo abstrato”, de maneira que as mulheres
são excluídas da cidadania. Como as mulheres são concebidas como diferentes dos homens por
natureza, o indivíduo abstrato representa apenas o indivíduo do sexo masculino. O paradigma
da igualdade/diferença é, portanto, “configurado pela igualdade entre os homens e desigualdade
entre os sexos”94 (MALBOIS, 2002, p. 92, tradução nossa).
Esse paradigma é, então, constituído por essa representação particular da diferença dos
sexos, o que deixou as feministas com três possíveis soluções. Elas poderiam afirmar sua dife-
rença em relação aos homens, fazendo disso condição para sua equivalência, ou negá-la reivin-
dicando seu pertencimento ao gênero humano, ou ainda recorrer a ambas as estratégias. Malbois
(2002) aponta que a segunda opção marcou, por exemplo, o discurso de Madeleine Pelletier,
no início do século XX, defendendo a ideia de “ser homens socialmente”, vestindo-se como
homens e adotando uma “virilização”. Nessa perspectiva, a diferença entre mulheres e homens
foi pensada com base na existência de um sexo biológico preeminente e irredutível.
Para Malbois (2002), “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, contribuiu para trans-
formar a questão feminista ao colocar o paradigma do sexo/gênero. O sufrágio feminino é de-
cretado na França, em 1944, e Beauvoir se interroga sobre o fato de que a cidadania não leva à
igualdade: se as mulheres agora podem votar (cidadania conquistada) seria de se esperar igual-
dade, porém isso não aconteceu.
Malbois (2002) destaca que Simone de Beauvoir retoma a dialética hegeliana do senhor
e escravo para argumentar que se trata de uma concepção “generificada” (“genré”) da relação
social: o homem, em sua relação com a mulher, ocupa o lugar do senhor, mas não é o lugar de

94
“[...] configuré par l’égalité entre les hommes et l’inégalité entre les sexes” (MALBOIS, 2002, p. 92).
122
escravo que define a posição da mulher. As mulheres permanecem estrangeiras ao processo de
reconhecimento, a relação entre os sexos se caracterizaria como não-dialética, não recíproca, e
a especificidade da opressão das mulheres se constituiria nessa não-reciprocidade.
Essa não-reciprocidade é articulada por Beauvoir ao papel da mulher na reprodução e a
determinadas características considerados na época como estabelecidas cientificamente, como
maior fraqueza física, menor capacidade respiratória, instabilidade emocional. Embora se apro-
xime de uma concepção naturalista da diferença dos sexos, para Beauvoir a realidade de uma
diferença biológica entre mulheres e homens não conduz, por si só, à subordinação das mulhe-
res. Como o ser humano é histórico, “os fatos naturais assumem seus significados em situação,
isto é, em contextos históricos, sociais e econômicos. Beauvoir não concebe a natureza como
um dado imutável, mas como uma realidade cujo valor varia de acordo com o modo como as
culturas a apreendem”95 (MALBOIS, 2002, p. 90, grifos da autora, tradução nossa).
Assim, Malbois (2002) considera que “O Segundo Sexo” recoloca a diferença biológica
entre os sexos, herança do Iluminismo, mas afirma que esta diferença não tem sentido em si.
Ao trazer a questão da interpretação por parte das sociedades, abre caminho para pensar o gê-
nero antes do sexo, para historicizar a diferença dos sexos. Além disso, ao interpretar a dialética
do senhor e do escravo como “generificada” (“genré”), Beauvoir caracteriza a relação entre
mulher e homem como uma relação social desigual, marcada pela opressão. Essa realidade da
opressão constitui situação compartilhada por todas as mulheres, coletiva, que possibilita con-
siderar as mulheres como um grupo cuja definição é o fruto da história, como ressalta Malbois
(2002).
O livro “O Segundo Sexo”, publicado em 1949, inspirou as feministas dos anos 1970,
sobretudo por sua influência na desnaturalização dos sexos que marca as teorias feministas
construtivistas, de maneira que Malbois (2002) propõe o paradigma do sexo/gênero como ca-
racterístico dos anos 1970. O modelo do Iluminismo será questionado pelos movimentos de
libertação das mulheres (MLFs), principalmente sua tendência radical. Com organização carac-
terizada como “não-mista” (“non-mixité”) e distribuição horizontal de poder, esses movimentos
possibilitaram a constituição do sujeito coletivo “nós, mulheres” como um grupo com interesses
próprios e capaz de nomear a opressão.
As feministas dos anos 1970 recorreram aos “grupos de tomada de consciência”, sobre
os quais Malbois (2002) traz um relato no contexto francês: na discussão sobre o tema do

95
“[…] les faits naturels prennent leur signification en situation, c’est-à-dire dans des contextes historiques, so-
ciaux et économiques. Beauvoir ne conçoit donc pas la nature comme un donné immuable, mais comme une réalité
dont la valeur varie selon la façon dont les cultures l’appréhendent.” (MALBOIS, 2002, p. 90, grifos da autora)
123
isolamento entre mulheres, emergem relatos sobre pais que incentivavam a rivalidade em rela-
ção a outras mulheres para atrair a atenção dos homens, testemunhos de raiva por ser ridicula-
rizada e objeto de fofocas por parte de supostas amigas etc. A partir dos relatos individuais,
busca-se extrair generalizações, como, por exemplo, que, desde muito cedo, as mulheres são
ensinadas a competir com outras mulheres. Com isso é possível observar que a opressão assume
formas semelhantes, embora cada experiência seja singular.
Nessa perspectiva, mulheres e homens, antes concebidos como grupos definidos biolo-
gicamente, foram tomados pelas feministas revolucionárias dos anos 1970 como dois grupos
sociais, em uma relação cuja opressão consiste em naturalizar mulheres. Nesse paradigma, o
gênero precede o sexo, dada a inscrição da diferença dos sexos na ordem social, como afirma
Malbois (2002).
Uma outra característica importante do movimento feminista nos anos 1970, destacada
por Picq (2010), é que a questão da identidade se coloca no movimento. A partir de maio de
1968, começa-se a pensar em termos de movimento social e luta coletiva, de maneira que não
se tratava mais de escapar do destino das mulheres individualmente. Como destacamos no ca-
pítulo 1, a partir do movimento Black Panthers, no final dos anos 1960, nos EUA, outros mo-
vimentos começam a se organizar em torno de categorias identitárias.
Também no capítulo 1, situamos o movimento feminista negro nos Estados Unidos
(“Black Feminism”), no final dos anos 1970, com a problematização do feminismo branco, de
classe média, heteronormativo. Como corrente de pensamento político, tendo como represen-
tantes Angela Davis, bell hooks96, Patricia Hill Collins, Audre Lorde, entre outras, o “Black
feminism” propôs pensar as intersecções entre diferentes formas de dominação, de maneira a
não tomar a dominação de gênero isolada de outras relações de poder (BERENI, CHAUVIN,
JAUNAIT, & REVILLARD, 2012).
Nos anos 1980, o feminismo norte-americano distingue o sexo biológico do gênero so-
cialmente construído. De acordo com Picq (2010), essa distinção foi introduzida em 1972 por
Anne Oakley, que diferencia “sexo” biológico (em referência aos órgãos genitais e seus corre-
latos de em termos funções reprodutivas) e “gênero”, contingente e circunscrito aos papéis so-
ciais, atributos psicológicos e identidades de homens e mulheres.

96
Vale destacar que o nome e sobrenome grafado com iniciais em letras minúsculas corresponde ao pseudônimo,
inspirado pela bisavó da autora, Bell Blair Hooks, como homenagem ao legado de mulheres e grafado em letras
minúsculas “para deslocar o foco da figura autoral para suas ideias”, tal como explicitado na contracapa do livro
publicado pela autora e traduzido para o português “O feminismo é para todo mundo” (2019). Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos.
124
Nos anos 1990, desde a publicação de “Problemas de gênero”, de Judith Butler, com a
ideia de que sexo e gênero são construções ficcionais, a subversão das identidades se coloca no
âmbito dos estudos queer, a partir de uma crítica do essencialismo das identidades coletivas
(PICQ, 2010), que abordaremos mais detalhamente neste capítulo.
Assim, o recurso à concepção de “gênero”, ao invés de “sexo”, estava relacionado à
afirmação de que as diferenças entre homens e mulheres não estavam referidas a um dado bi-
ológico, mas, ao contrário, encontravam sua explicação na cultura (PEDRO, 2005). Entre as
feministas, a utilização de “gênero” para se referir à organização social da relação entre os sexos
tem sua aparição inicial entre norte-americanas que rejeitavam o determinismo biológico e bus-
cavam “enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (SCOTT,
1990, p. 72).
No campo da psicanálise, “a noção de gênero foi introduzida [...] pela via medical”97
(LAUFER, 2014b, p. 193, tradução nossa). De acordo com Laplanche (2014c), o termo “gê-
nero” foi introduzido pelo psicólogo e sexólogo John Money em 1955 e retomado em 1968,
pelo psiquiatra e psicanalista Robert Stoller, que “integra o termo gênero no pensamento pro-
priamente psicanalítico”98 (p. 157, tradução nossa). John Money concebeu o termo “gênero”
para diferenciar “sexo biológico” e “sexo social” e designou a dimensão social da identidade
sexual como “papel de gênero” (LAUFER, 2014b). Stoller utilizou o termo “gênero” no sentido
de diferenciação em relação a “sexo”, no contexto da discussão sobre “intersexos” e “transexu-
ais” e da realização de intervenções cirúrgicas para promover a “adaptação” entre a anatomia
genital – associada por Stoller a “sexo” – e a identidade sexual – considerada como “gênero” –
, quando o “gênero” não coincidia com o “sexo”. O autor procurou circunscrever a identidade
de gênero como o “sentimento de ser mulher”/“sentimento de ser homem”, considerado por ele
mais importante que as características anatômicas (PEDRO, 2005).
Para Zaidman (2003), o psicanalista Stoller foi o precursor do conceito, no campo psi,
desde os anos 1960, recorrendo a “gênero” para distinguir biológico e psicológico, mas a pri-
meira formalização do uso sistemático da categoria “gênero” (gender) acontece na década de
1970, nos EUA, quando sociólogas feministas apontam a ausência das mulheres tanto como
sujeito quanto como objeto no campo científico. A obra de Ann Oakley, “Sex, gender and so-
ciety”, de 1972, é considerada referência no rompimento de uma visão biológica das diferenças

97
“La notion de genre a été introduite dans le champ de la psychanalyse par la voie médicale.” (LAUFER, 2014b,
p. 193)
98
“Il intègre ainsi le terme de genre dans la réflexion proprement psychanalytique” (LAPLANCHE, 2014c, p.
157).
125
de comportamento entre homens e mulheres. Zaidman (2003) considera que Oakley amplia a
perspectiva para o cultural e social, distinguindo “sexo” como referido a diferenças biológicas
entre machos e fêmeas, e gênero como classificação social em masculino e feminino.
No campo das Ciências Sociais, a aprendizagem de papéis é enfatizada nos termos do
processo de socialização, cujos agentes são os familiares, professores, pares, mídia, entre ou-
tros. Nos termos de Andersen (1993), “os sociólogos usam o termo socialização para se referir
ao processo pelo qual os papéis sociais são aprendidos”99 (p. 35, grifos da autora, tradução
nossa). No caso dos papéis de gênero, no processo de socialização existiria uma pressão social
para adotar comportamentos “sexo-apropriados” (“sex-appropriate behaviors”) por meio do
encorajamento e desencorajamento de determinados comportamentos com base em expectati-
vas sociais sobre o que seria propriamente masculino ou feminino. Como explica Andersen
(1993):

A socialização de gênero refere-se ao processo pelo qual as expectativas de gênero


na sociedade são aprendidas – tanto por mulheres quanto por homens. É através do
processo de socialização que adquirimos uma identidade baseada no gênero. A pers-
pectiva da socialização enfatiza que nosso gênero é socialmente construído, embora,
como estrutura, esteja inserido no tecido institucional da sociedade.100 (p. 35, grifos
da autora, tradução nossa)

O estudo da socialização de gênero não nega diferenças individuais, mas procura indicar
como meninas e meninos, em seu processo de tornarem-se mulheres e homens, compartilham
experiências que evidenciam que não se trata de um ambiente neutro do ponto de vista do gê-
nero (“gender-neutral environment”). Não se concebe, portanto, uma determinação, no sentido
de que seríamos mero reflexo do social. Como pontua Andersen (1993):

Embora provavelmente nenhum de nós se torne exatamente o que o ideal cultural


prescreve, nossos papéis nas instituições sociais são condicionados pelas relações de
gênero que aprendemos em nosso desenvolvimento social [...] Até certo ponto, pro-
vavelmente todos nós resistimos às expectativas que a sociedade tem sobre nós. Nossa
singularidade como indivíduos decorre, em parte, dessa resistência, bem como das
variações nas experiências sociais que temos.101 (p. 35-6, tradução nossa)

99
“Sociologists use the term socialization to refer to the process by which social roles are learned.” (ANDERSEN,
1993, p. 35, grifos da autora)
100
“Gender socialization refers to the process by which gender expectations in the society are learned – by both
women and men. It is trhough the socialization process that we acquire an identity based on gender. The sociali-
zation perspective emphasizes that our gender is socially constructed, even though, as a structure, it is embedded
in the institucional fabric of society.” (ANDERSEN, 1993, p. 35, grifos da autora)
101
“Athough probably none of us becomes exactly what the cultural ideal prescribes, our roles in social institutions
are conditioned by the gender relations we learn in our social development. […] To some extent, we probably all
resist the expectations society has on us. Our uniqueness as individuals stems in part from this resistance, as well
as from variations in the social experiences we have.” (ANDERSEN, 1993, p. 35-6)

126
Até aqui, gostaríamos de destacar dois aspectos para nosso diálogo com a psicanálise e
a teoria queer. Um primeiro ponto é que, por mais que, a partir desses dois campos, nós possa-
mos desestabilizar as concepções do que seria “homem” ou “mulher”, não deixa de ser fato que
meninas e meninos são socializados diferentemente no que se refere a gênero. Existe um senso
comum do que seria “homem” ou “mulher” e os agentes do processo de socialização buscam
fazer com que meninas e meninos ajam de acordo. Um menino não é orientado a sentar com as
pernas fechadas; um homem adulto em uma entrevista de emprego não é questionado sobre
quem ficará com seus filhos enquanto ele trabalha.
Um segundo ponto consiste em algo que consideramos ser uma importante contribuição
da psicanálise e que discutiremos no capítulo 3, sobretudo a partir das formulações do psicana-
lista Jean Laplanche (2014a; 2014b; 2014c). As Ciências Sociais destacam a possibilidade de
“resistência” no sentido de algo deliberado, consciente. Temos aqui, a nosso ver, uma articula-
ção da terceira dimensão proposta por Davids e Driel (2003), que faz referência a posições de
sujeito e a um espaço de negociação. Existe a consideração da singularidade na teorização dos
processos de socialização, mas essa singularidade é articulada ao âmbito daquilo que tem re-
presentação: o processo de socialização de gênero não apaga as diferenças porque existe a va-
riabilidade das experiências de cada um e a maneira como cada um “resiste” às expectativas.
Consideramos que esses processos – referidos ao âmbito da representação e da consci-
ência – tomam parte, mas também consideramos que a psicanálise traz uma contribuição im-
portante ao destacar a dimensão daquilo que é transmitido de maneira “comprometida”. No
capítulo 3, abordaremos essa dimensão ao discutir o “tornar-se mulher” a partir de normas que
operam e falham, e situaremos que essa falha se coloca justamente porque existe algo de recal-
cado, de impossível de dizer.
Retomando a exposição de Andersen, a autora apresenta algumas perspectivas que bus-
cam explicar como se daria a socialização de gênero. Uma primeira perspectiva seria o que
Andersen (1993) denomina “teoria da identificação” (“Identification theory”, p. 44), que des-
tacaria a identificação com o genitor do mesmo sexo a partir da teorização freudiana. A autora
insere a formulação de Nancy Chodorow nessa perspectiva, a partir da teoria das relações ob-
jetais e destacando uma estrutura assimétrica de parentalidade na família, em que a mulher é
responsável pela maternagem. Como o pai é mais ausente e a mãe tem papel mais presente no
âmbito familiar, meninos, que se identificam com o pai, tenderiam a ser mais desapegados e a
reprimir necessidades emocionais e vínculos com os outros, enquanto meninas, que se identifi-
cam com a mãe, teriam uma tendência a ser mais orientadas para os outros, apresentar caracte-
rísticas mais voltadas à vinculação emocional. Andersen (1993) destaca que Chodorow mantém
127
a ênfase nos processos inconscientes, mas também traz essa dimensão da divisão do trabalho
no âmbito da família, o que é importante por trazer essa conexão com a estrutura familiar em
sociedades capitalistas ocidentais, mas, ao mesmo tempo, críticas também repousam sobre esse
ponto, ou seja, “se sua teoria vale apenas para famílias nucleares brancas de classe média”102
(p. 45, tradução nossa).
Uma outra perspectiva teórica é a teoria da aprendizagem social (“social learning the-
ory”, p. 46), que enfatiza o ambiente na explicação da socialização de gênero a partir de uma
orientação comportamentalista de que respostas consideradas socialmente apropriadas são re-
forçadas enquanto as inapropriadas são punidas (ANDERSEN, 1993).
Uma terceira perspectiva, destacada por Andersen (1993), seria a cognitivo-desenvolvi-
mentista (“cognitive-developmental theory”, p. 46), baseada nas formulações de Jean Piaget
sobre a emergência de esquemas mentais através das interações. Kohlberg afirma que as crian-
ças, a partir da descoberta da divisão entre dois sexos, chegariam a conhecer seu próprio sexo
e categorizariam as pessoas e, em seguida, categorizariam comportamentos como apropriados
ou não. Assim, Kohlberg resgata as formulações de Piaget para propor que gênero se torna um
esquema de organização. Andersen (1993) destaca que essas três abordagens foram desenvol-
vidas inicialmente no âmbito da psicologia, mas a terceira está relacionada com a perspectiva
sociológica do interacionismo simbólico (“symbolic interationism”, p. 48), pela qual passaría-
mos a nos ver como somos vistos pelos outros.
Em seguida, a autora discute limitações das perspectivas da socialização e, para isso,
recorre ao “caso Sears”, que apresentamos no final do capítulo 1. A autora lembra que a EEOC
apresentou extensos dados quantitativos evidenciando as desigualdades entre homens e mulhe-
res. A Sears não negou esses dados, mas os justificou pela diferença de qualificação e interesses
entre homens e mulheres: os homens estariam mais interessados em empregos no setor de ven-
das em comissão, em parte porque seriam mais dispostos a aceitar riscos. Não se trataria, por-
tanto, de discriminação, mas de um reflexo das preferências de emprego das mulheres
(ANDERSEN, 1993).
Andersen (1993) questiona, então, se “existem diferenças entre os sexos e, se existem,
elas são realmente preferências aprendidas ou refletem apenas práticas institucionalizadas de
discriminação de gênero?” e, em seguida, apresenta sua resposta: “A resposta, é claro, está em

102
“[…] whether her theory holds only for white, middle-class nuclear families” (ANDERSEN, 1993, p. 45)
128
ambas, embora, no contexto das políticas públicas, haja pouco espaço para essa nuance”103 (p.
49, tradução nossa). A autora explica que nossa cultura, onde se dá o processo de socialização,
está estruturada pela desigualdade de gênero, cujas origens, de fato, são explicadas pela socia-
lização. No entanto, a socialização explica também como essa desigualdade é reproduzida. Por
isso, “se nos limitássemos a pensar nas diferenças de gênero apenas como uma questão de es-
colha aprendida, ignoraríamos os padrões de desigualdade de gênero institucionalizados que
permeiam essa sociedade”104 (p.49).
A partir dessas considerações, Andersen (1993) introduz um ponto que consideramos
fundamental para o que pretendemos desenvolver neste capítulo:

Embora o processo de socialização mostre como os indivíduos se tornam pessoas ge-


nerificadas (gendered persons), ele não explica as origens sociais estruturais da desi-
gualdade de gênero. Compreender a socialização nos ajuda a ver que as expectativas
de gênero têm sua origem fora do indivíduo, mas as teorias da socialização não expli-
cam as bases institucionais dessas origens e, portanto, não são teorias causais do status
da mulher na sociedade.105 (p. 49)

Destacamos a partir da citação da autora: “origens sociais estruturais da desigualdade


de gênero”. Da mesma maneira que Andersen (1993) aponta que essa dimensão é desconside-
rada nas perspectivas da socialização, consideramos que muitas abordagens psicanalíticas tam-
bém a deixam de fora. Quando se afirma que “não existe definitivamente homem ou mulher”,
“não se é plenamente homem ou mulher”, como faz Zizek (2016) e como é tão comum ouvir,
sobretudo nos círculos lacanianos, é evidente que existe algo de fundamental, algo que aponta
para a divisão, o conflito, que marcam a leitura da subjetividade em uma perspectiva psicana-
lítica. Porém, “Se ‘mulher’ é apenas uma categoria sem conteúdo, por que tenho medo de andar
sozinha à noite?”, nos termos do tão significativo título escolhido por Laura Lee Downs (1993).
Se “mulher” não existe enquanto uma essência, seja da ordem da anatomia ou da cultura,
se não é possível definir uma região de algo “especificamente” ou “autenticamente” “feminino”
– como trabalhamos no capítulo 1, a partir da psicanálise e de outros campos do conhecimento
–, não deixa de ser verdade uma vulnerabilidade diferenciada: o “medo de andar sozinha à

103
“Do differences between sexes exist and, if so, are they actually learned preferences or do they only reflect
institutionalized practices of gender discrimination? The answer, of course, lies on both, although, in the context
of public policy, there is little room for such nuance.” (ANDERSEN, 1993, p. 49)
104
“If we limit ourselves to thinking of gender diferences as only a matter of learned choice, we would overlook
the patterns of institutionalized gender inequality that pervade this society.” (ANDERSEN, 1993, p. 49)
105
“Although the socialization process shows how the individuals become gendered persons, it does not explain
the social structural origins of gender inequality. Understanding socialization helps us to see that gender expecta-
tions have their origin outside the individual, but socialization theories dos not explain the institutional bases of
those origins, and, therefore, they are not causal theories of women’s status in society.” (ANDERSEN, 1993, p.
49)

129
noite”, por exemplo. Neste capítulo, buscaremos discutir as dimensões da materialidade e do
discurso – que, a nosso ver, fazem com que “mulher” não seja “apenas uma categoria sem
conteúdo” – a partir da concepção de performatividade, situando a importância de considerar
as relações sociais que tornaram possíveis determinadas performances, e da formulação de po-
sições nas relações sociais. A partir dessas contribuições, pretendemos sustentar que existem
possibilidades de trabalhar com a categoria “mulheres” evitando essencialismos e afastando-se
da noção de uma “identidade feminina”.
Antes de passar a essas teorizações, é importante situar que a própria concepção de uma
“identidade feminina”, enquanto uma vivência psíquica do “ser mulher”, é localizada histori-
camente, caracterizando justamente o modo como sociedades ocidentais concebem aquilo que
seria da ordem de uma “identidade de gênero”, circunscrita a uma vivência psico-sociológica.
De maneira a situar a especificidade da compreensão de “identidade de gênero” que
predomina em nossa cultura, recorreremos às proposições de Nicole-Claude Mathieu sobre a
existência de três modos de conceitualização das relações entre sexo e gênero. A partir da con-
sideração de diferentes arranjos, em diferentes contextos históricos e culturais, no que se refere
à tríade identidade sexual/sexuada/de sexo, as formulações de Mathieu (1991/2013) desnatura-
lizam a maneira como tendemos a enxergar o que diz respeito a “identidade de gênero”, por
evidenciar que nossa maneira de conceber o que denomina “identidade sexual”, como algo vi-
venciado individualmente, é apenas um modo possível de conceituação.
Jules Falquet (2014b) destaca que Nicole-Claude Mathieu “tem uma dupla ancoragem
disciplinar, na Antropologia e na Sociologia” (p. 10), e que é uma das fundadoras e principais
teóricas do feminismo materialista, mais especificamente em seu componente francófono, fruto
de uma prática política coletiva que se cristalizou em torno da revista “Questions féministes”,
na França. No artigo, Mathieu (1991/2013) indica que seu ponto de partida para o texto foi uma
apresentação no X Congresso Mundial de Sociologia, em 1982, e que, naquele momento, mo-
vimentos sociais de mulheres e certos movimentos homossexuais masculinos traziam uma teo-
rização da noção de sexo, a partir da colocação em questão das relações ente homens e mulhe-
res, e, portanto, também do sentido habitual desses termos. No âmbito das ciências sociais,
Mathieu (1991/2013) afirma que essa teorização não existia nos anos 1970.
Um primeiro modo de conceitualização do sexo seria o que Mathieu (1991/2013) deno-
mina “identidade sexual” (l’identité “sexuelle”), circunscrita à vivência psico-sociológica, de
um ponto de vista da consciência individual. Esse modo é o mais comum nas sociedades oci-
dentais e o mais naturalista, uma vez que trata da adequação – bem como de inadequações –
entre características pessoais psicossociais e biológicas, de maneira que o sexo biológico é visto
130
como determinado. A referência é uma bipartição do sexo e a heterossexualidade é concebida
como expressão da natureza ou de uma ordem de mundo fixa. A autora sintetiza as caracterís-
ticas desse modelo: “O gênero traduz o sexo. Entre sexo e gênero, estabelece-se uma corres-
pondência homológica, e a diferença entre os sexos é concebida como fundadora da identidade
pessoal, da ordem social e da ordem simbólica”106 (p. 214).
A ideia de uma “identidade feminina” como vivência psíquica é, portanto, característica
desse primeiro modo de conceitualização, segundo o qual a “identidade sexual” estaria circuns-
crita à vivência psico-sociológica. Essa concepção de uma experiência subjetiva articulada à
identidade não faz sentido no segundo modo de conceitualização proposto por Mathieu
(1991/2013), tanto que a autora não utiliza a expressão “identidade sexual” (l’identité “se-
xuelle”), mas sim “identidade sexuada” (l’identité sexuée).
Esse segundo modo – “identidade sexuada” (l’identité sexuée) – marca o reconheci-
mento de uma ação feita pelo social que faz um corte, que divide a categoria do sexo (du sexe)
em duas categorias sociais de sexo (de sexe). A consciência de grupo se sobrepõe ao sentimento
individual em relação ao sexo biológico, havendo imposição de comportamentos com base no
sexo biológico. Como explica a autora:

O sexo não é mais apenas vivido, como no Modo I, como um destino anatômico indi-
vidual a ser seguido pela identidade de gênero conforme, mas o gênero é sentido como
uma espécie de modo de vida coletivo. O gênero simboliza o sexo (e às vezes vice-
versa). Entre sexo e gênero é estabelecida uma correspondência analógica.107
(MATHIEU, 1991/2013, p. 220).

Mathieu (1991/2013) considera que esse modelo aparece em certa tendência de “femi-
nismo cultural”, que busca contestar a ordem social mas mantém a referência a uma bipartição
biológica. Nessa perspectiva, os discursos situam que as mulheres não são valorizadas ou reco-
nhecidas, que são socializadas de maneira injusta, o que remete a uma essência, a “cultura fe-
minina”. Também pode ser observado, para Mathieu (1991/2013), em certas abordagens femi-
nistas socialistas ou marxistas que defendem mudanças no status de homens e mulheres, igual-
dade de papéis, mudança de “mentalidades”, visibilizar a cultura etc.
Também nesse segundo modo Mathieu (1991/2013) situa a maior parte das sociedades
ditas “tradicionais” em que o indivíduo se pensa como “homem no grupo de homens” ou

106
“Le genre traduit le sexe. Entre sexe et genre, est établie une correspondance homologique, La différence des
sexes est conçue comme fondactrice de l'identité personelle, de l'ordre social et de l'ordre symbolique.”
(MATHIEU, 1991/2013, p. 214)
107
“Le sexe n'est plus seulement vécu, comme dans le mode I, comme un destin individuel anatomique à suivre à
travers l'identité de genre conforme, mais le genre est ressenti comme une sorte de mode de vie collectif. Le genre
symbolise le sexe (et parfois inversement). Entre sexe et genre s'établit une correspondance analogique.”
(MATHIEU, 1991/2013, p. 220)
131
“mulher no grupo de mulheres” a partir de ritos, o que circunscreve uma “identidade sexuada”
(l’identité sexuée), e não uma experiência subjetiva de “identidade sexual” (l’identité “se-
xuelle”). Nesse caso, a bipartição é tida menos como “natural” ou fundada em uma ordem de
mundo (como no modelo I), mas como necessária para o bom funcionamento social, o que
possibilita arranjos culturais variados.
Mathieu (1991/2013) aborda, por exemplo, a instituição do casamento entre mulheres
em certas sociedades africanas, que não implica relações homossexuais mas se estabelece sob
o primado da função de procriação, para garantir a continuidade da linhagem na ausência de
um homem (falecido ou não existente). Uma mulher, como “marido fêmea” (female husband),
casa-se com outra, que terá filhos com um homem – que não é visto como pai nem tem qualquer
direito sobre a prole. A diferenciação de tarefas e funções sociais se estabelece da mesma forma,
tendo o “marido fêmea” as prerrogativas de um homem.
A noção de gênero, que constitui a principal referência da identidade sexuada nesse
segundo modo, não coloca em causa a bipartição da sociedade em dois grupos de sexo. Dife-
rentemente, no terceiro modo, a bipartição do gênero é vista como estrangeira a uma suposta
“realidade” biológica. A partir da ideia de heterogeneidade entre sexo e gênero, considera-se
que a diferença de sexos não é traduzida (como no primeiro modo) ou simbolizada (segundo
modo) pelo gênero, mas, ao contrário, que “o gênero constrói o sexo” (MATHIEU, 1991/2013,
p. 235, tradução nossa)108. Nessa perspectiva, é estabelecida uma correspondência sociológica
e política, que possibilita uma análise materialista das relações sociais de sexo, colocando a
ênfase nas relações sociais e no aspecto dinâmico, como explica Mathieu (1991/2013):

Às noções de “desigualdade” ou “hierarquia” entre os sexos ou “dominância” dos


homens – noções estáticas – presentes nos modos I e II, são substituídas no modo III
pelas de dominação, opressão e exploração – noções dinâmicas – de mulheres por
homens. E precisamente a questão que se coloca é quem (ou melhor o que) são essas
“mulheres” e esses “homens” que pareciam tão óbvios no modo I e tão flutuantes no
modo II...109 (p. 235, tradução nossa)

Mathieu (1991/2013) considera que esse terceiro modo coloca em cena a politização da
anatomia (la politisation de l’anatomie), em contraposição a uma anatomização do político
(l’anatomisation du politique). Consideramos que essa politização da anatomia, fundamentada
na heterogeneidade entre sexo e gênero, só é possível a partir da consideração de que não existe

108
“[…] le genre construit le sexe” (MATHIEU, 1991/2013, p. 235)
109
“Aux notions d’« inegalité » ou de « hiérarchie » entre les sexes ou de « dominance » des hommes – notions
statiques – présentes dans les modes I et II, se substituent dans le mode III celles de domination, d'opression et
d'exploitation – notions dynamiques – des femmes par les hommes. Et justement la question est posée de savoir
qui (ou plutôt que) sont ces « femmes » et ces « hommes » qui semblaient si évidents dans le mode I et si fluctuants
dans le mode II...” (MATHIEU, 1991/2013, p. 235)
132
apenas uma maneira – a concepção ocidental dominante atualmente – de conceber a articulação
entre sexo, gênero e sexualidade. Se a própria concepção de “identidade de gênero” como uma
vivência individual é historicamente específica, e se vivemos nessa cultura que a concebe desta
maneira, é fundamental conhecer outras possibilidades e situar a nossa concepção como espe-
cífica para que possamos desnaturalizar nosso olhar.
Se tomamos a afirmação de Zizek (2016), tal como destacamos na seção 2.1, de que
“uma mulher nunca é plenamente uma mulher e um homem nunca é plenamente um homem”
(p. 291), essa proposição faz sentido se considerarmos o primeiro modo de conceituação, que
circunscreve “identidade de gênero” como uma vivência psíquica. A proposição do autor se
inscreve, a nosso ver, como uma problematização que faz sentido como crítica ao primeiro
modo de conceituação, mas que não faria sentido no segundo. Nesse segundo modo, a consci-
ência de grupo se sobrepõe ao sentimento individual, de maneira que alguém é “homem no
grupo de homens” ou “mulher no grupo de mulheres”, o que não necessariamente tem a ver
com a anatomia, como Mathieu (1991/2013) exemplifica a partir do “marido fêmea” (female
husband), que tem todas as prerrogativas de um homem.
Se, por um lado, “homem” e “mulher” não existem como identidades, por outro, em
determinadas culturas, existem “homens no grupo de homens” ou “mulheres no grupo de mu-
lheres”, como uma posição a partir de uma ação feita pelo social. Nessas culturas, existe sim
“homem no grupo de homens” e “mulher no grupo de mulheres”, não faria sentido a problema-
tização de que “uma mulher nunca é plenamente uma mulher e um homem nunca é plenamente
um homem”.
Colocam-se, portanto, outras possibilidades de conceituação, que possibilitam um apro-
ximação ao terceiro modo de conceituação proposto por Mathieu (1991/2013), a partir da ideia
de heterogeneidade entre sexo e gênero: podemos falar de homens e mulheres em termos de
identidades, mas também de performatividade e de posições nas relações sociais. Discutiremos
essas possibilidades a partir das formulações de Judith Butler e de perspectivas feministas ma-
terialistas.

2.3 “Se ‘mulher’ é apenas uma categoria sem conteúdo, por que tenho medo de andar
sozinha à noite?”110

110
“If ‘Woman’ is Just an Empty Category, Then Why Am I Afraid to Walk Alone at Night?”, texto de Laura Lee
Downs publicado em 1993 na revista Comparative Studies in Society and History.
133
No capítulo 1, apresentamos a discussão de Joan Scott (1998), em “La citoyenne para-
doxale: Les féministes françaises et les droits de l’homme”, sobre a dificuldade que se coloca
o falar enquanto “mulher(es)” no âmbito do(s) movimento(s) feminista(s) em nome de uma
defesa da igualdade tendo que recorrer à diferença. Além desse texto, também se destaca
“Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, trabalho muito importante porque o recurso
à categoria de análise “gênero” aparece entre as historiadoras que escreviam sobre história das
mulheres, inspiradas por esse livro de Joan Wallach Scott (1990).
A historiadora retoma a diferença entre sexo e gênero, empregada na década de 1960
por Stoller, mas propõe que o gênero é constituído no interior de relações de poder e que “sig-
nifica o saber a respeito das diferenças sexuais” (SCOTT, 1994, p. 12). Nessa perspectiva,
“gênero é a organização social da diferença sexual” (SCOTT, 1994, p. 13), de maneira que não
reflete diferenças físicas ou naturais entre homens e mulheres, mas estabelece significados para
as diferenças corporais, situados historicamente.
Para Scott (1990), a partir do recurso do movimento feminista à concepção de gênero,
esta se torna uma maneira de indicar construções culturais, diferenciando prática sexual e papéis
sexuais atribuídos a homens e mulheres, bem como indicando as origens sociais das identidades
subjetivas de homens e mulheres. Nessa utilização, o termo “gênero” sublinha que as relações
entre os sexos são sociais, mas, para Scott (1990) não explica as razões pelas quais são cons-
truídas de determinada maneira, nem como funcionam ou se transformam.
Em seu percurso teórico, Joan Scott propõe que o gênero é constituído no interior de
relações de poder, por relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Ao
tematizar gênero como “saber a respeito das diferenças sexuais”, Scott (1994) especifica que
recorre ao termo “saber” seguindo Michel Foucault, no sentido de “compreensão produzida
pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações entre homens e mu-
lheres” (p. 12). Nessa acepção, saber não é sinônimo de ideias, mas refere-se a instituições e
estruturas, práticas cotidianas, relações sociais. Constitui uma forma de ordenar o mundo, sendo
indissociável da organização social, e não anterior a ela.
Esse saber se caracteriza por ser relativo, constituído por uma produção histórica que se
dá de maneira complexa. Nesse sentido, remete a relações de poder. Como afirma Scott (1994):
“Seus usos e significados nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações
de poder – de dominação e de subordinação – são construídas” (p. 12).
É a partir dessa perspectiva que “gênero é a organização social da diferença sexual”
(SCOTT, 1994, p. 13), estabelecendo significados que variam entre culturas e no tempo.

134
Acompanhando essas formulações, Scott (1994) chega ao conceito de gênero como “saber his-
toricamente específico sobre a diferença sexual” (p. 25).
Downs (1993) considera que Joan Scott procura definir uma abordagem feminista da
história, de maneira a possibilitar avançar a causa de uma igualdade fundada na diferença, e
destaca a importância de sua formulação sobre a construção discursiva das categorias de mas-
culino e feminino. As identidades sociais seriam estabelecidas por um processo de diferencia-
ção em que a identidade positiva – no caso, dos dominantes – apenas se estabelece a partir da
contraposição em relação a “outros” que são marcados pela negatividade (classe baixa, não
brancos, não homens).
O apelo à autenticidade da experiência, nas políticas de identidade, ocultaria o fato de
que a existência dos dominados seria marcada pela designação à condição de diferença a partir
do dominador, de maneira que o dominado estaria condenado à vontade do dominador, que
atribui a ele a posição de “outro”. Essa atenção a fenômenos de alterização indica, para Downs
(1993), que as consequências das políticas de identidade interrogam Scott, o que a conduz à
consideração de que identidade e experiência se fundamentam sobre ficções discursivamente
produzidas: a verdade e o sujeito coerente e autocentrado.
A consideração de que a existência dos dominados seria marcada por sua alterização,
nos termos do dominador, leva Scott a interrogar se o fato de conferir visibilidade a essa expe-
riência não seria incompatível com o desvelamento desse sistema que atribui ao dominado a
condição de “outro”. Tendo em vista a construção discursiva dessas categorias, Joan Scott re-
corre à desconstrução como ferramenta de análise crítica e coloca em prática essa estratégia a
partir da análise de peças históricas, buscando articular gênero, história, política e políticas da
história (DOWNS, 1993).
A estratégia desconstrucionista de Scott buscaria, então, desvelar o processo por meio
do qual essa diferença é constituída (DOWNS, 1993). No caso da concepção de feminilidade,
a importância da desconstrução evidencia-se pela articulação dos conteúdos articulados à cate-
goria “mulher” definidos nos termos daqueles que perpetuam a dominação. Como pontua a
autora:

Há, afinal, um aspecto libertador no argumento de que categorias como mulher são
vasos vazios, preenchidos à vontade por aqueles que controlam os fluxos discursivos.
Se a realidade dessa categoria é apenas uma ficção útil construída para se adequar aos
interesses dos poderosos, então certamente a resistência consiste em desmascarar im-
placavelmente a mentira.111 (DOWNS, 1993, p. 435, tradução nossa)

111
“There is, after all, a liberating aspect to the argument that categories like woman are empty vessels, filled at
will by those who control the discursive floodgates. If the reality of woman is merely a useful fiction constructed
135
Downs (1993) concorda que as políticas de identidade colocam um problema epistemo-
lógico, como destaca Scott, mas considera que outras abordagens são possíveis. A autora afirma
que Ann Snitow aponta um problema recorrente nas políticas feministas: partir da identidade
“mulheres”, com o objetivo de sua liberação, sem cair em um essencialismo. A autora coloca a
questão nos seguintes termos: “Como as mulheres poderiam transformar a representação de
mulher, que por séculos permaneceu como justificativa para sua opressão, em fundamento da
liberdade social e política e igualdade econômica?”112 (DOWNS, 1993, p. 416, tradução nossa).
Para Downs (1993), essa questão se coloca para Joan Scott como problema de lingua-
gem, que busca soluções linguísticas para o dilema – construído pelo discurso – a partir da
análise da categoria “mulher”, pela via da desconstrução. Diferentemente, Downs (1993) con-
sidera que é a centralidade mesma dessa categoria – que alguns buscam desconstruir e outros
apreender a partir das diversas encarnações nas imagens de mulheres – que deve ser interrogada.
Se é problemática a base epistemológica das políticas de identidade – afinal, quanto
mais se classifica seres humanos em tipologias políticas, mais as categorias da diferença são
reificadas –, também é fundamental reconhecer que as políticas de identidade possibilitaram a
grupos oprimidos a organização de potentes movimentos políticos, mostrando-se eficazes em
revelar as múltiplas opressões (DOWNS, 1993).
Para a autora, é importante a maneira como Scott articula gênero e história ao político,
a partir da consideração de que todo conhecimento é produzido, em contraposição à ideia de
neutralidade axiológica. Nesse mesmo sentido, as políticas de identidade revelam-se importan-
tes por denunciarem a estrutura branca e masculina, revestida de universal (DOWNS, 1993).
Relembremos os riscos de um “universalismo imaginário”, destacados, no capítulo 1, a partir
de Brubaker (2001) e do discurso de Sojourner Truth, tal como apresentado por Brah e Phoenix
(2004).
Downs (1993) chama a atenção para o destaque conferido às representações pelas pers-
pectivas filosóficas pós-modernas, representações concebidas como condição de possibilidade
da produção de verdades. Questiona-se a ideia de uma verdade transcendente que se pretenderia
exterior ao sistema em que está situada e que ocultaria as vozes de numerosos “outros”. A
unidade e estabilidade aparentes de uma verdade absoluta só se produz se outras significações

to suit the interests of the powerful, then surely resistance consists in relentlessly unmasking the falsehood.”
(DOWNS, 1993, p. 435)
112
“How are women to transform the idea of woman, which has for centuries stood as the justification for their
oppression, into a basis for political freedom and social and economic equality?” (DOWNS, 1993, p. 416).

136
são ocultadas, como, por exemplo, a “verdade” da identidade masculina, que repousa sobre
representações negativas sobre a mulher como “outro”. Novamente, cabe retomar o que abor-
damos no capítulo 1 com o discurso de Sojourner Truth: uma concepção unificada de “mulher”
só se produz a partir da exclusão de mulheres como Truth.
A estratégia desconstrutivista de Joan Scott recusa a ideia de uma verdade transcendente
e absoluta, denunciando que a filosofia, ao excluir diferenças, oposições, antagonismos, parti-
cipa, de fato, da constituição dessas exclusões. Uma perspectiva diferente se abre, portanto,
quando esses antagonismos são colocados em primeiro plano. Porém, tais antagonismos podem
ser considerados textuais ou sociais, como fariam Derrida e Marx, respectivamente, na leitura
de Downs (1993).
As proposições de Downs (1993) vão no sentido de considerar esses antagonismos como
sociais, e não apenas textuais, ou seja, não se trata apenas de um problema de linguagem, “ainda
que a linguagem esteja profundamente implicada tanto na forma assumida por esse problema
quanto na busca por solução”113 (p. 419, tradução nossa). Dessa maneira, a autora destaca a
importância de abordagens desconstrutivistas, como a de Joan Scott, por evidenciarem que su-
postos universalismos e neutralidades são produzidos por meio de exclusões, mas considera
esse esforço de desestabilização de categorias é necessário, mas não suficiente: “o esforço des-
construcionista de resgatar a política de identidade pela desestabilização das categorias existen-
tes é, por si só, insuficiente”114 (p. 420, tradução nossa). Como afirma Downs (1993):

Não há dúvida de que a descoberta de Derrida da indeterminação e indecidibilidade


no texto oferece uma arma maravilhosa para questionar as ideias recebidas e as ordens
filosóficas e ontológicas pretensamente estáveis em que repousa a verdade transcen-
dental. No entanto, a fragmentação do sujeito e do conhecimento, assim como o con-
comitante colapso das relações sociais em relações textuais, desvia nossa atenção da
operação do poder na esfera social e fixa nosso olhar sobre suas manifestações meta-
fóricas no texto.115 (DOWNS, 1993, p. 420, tradução nossa)

Reconhecendo, portanto, a importância da desconstrução, Downs (1993) também


aponta limitações da via desconstrucionista, uma vez que existe algo da ordem da atribuição,
mas também da imposição (diríamos também da opressão) e da experiência vivida, os dilemas
vivenciados por indivíduos concretos, que habitam o mundo concreto organizado em categorias

113
“[…] though language is deeply implicated both in the form assumed by this problem and in the search for
solution” (DOWNS, 1993, p. 419)
114
“[…] the deconstructionist effort to rescue identity politics by de-stabilizing existing categories is, by itself,
insufficient” (DOWNS, 1993, p. 420)
115
“There is no doubt that Derrida's discovery of indeterminacy and undecidability in the text offers a marvelous
weapon for debunking received wisdom and the notionally stable philosophic and ontological orders on which
transcendent truth rests. However, the fragmentation of both subject and knowledge, as well as the concomitant
collapse of social relations into textual ones, diverts our attention from the operation of power in the social sphere
and fixes our gaze upon its metaphorical manifestations in the text.” (DOWNS, 1993, p. 420)
137
de gênero – o que coloca a condição paradoxal de habitar tais categorias mesmo em se preten-
dendo desconstrui-las. Como afirma a autora:

A resistência via desconstrução pode, portanto, dar-nos apenas metade de uma estra-
tégia, uma que descentraliza a categoria mulher como construção textual e social, mas
deixa de lado os dilemas de mulheres, que devem viver como sujeitos no tempo. Esse
ponto não é negligenciável, pois, como Denise Riley aponta, a categoria mulher sem-
pre confunde o que é atribuído às mulheres com o que lhes é imposto e com o vivido.
Para aqueles que vivem em sociedade, a diferença sexual não é algo que pode sim-
plesmente ser discutido em um canto e depois deixado para trás. Em vez disso, os
indivíduos devem habitar essas categorias generificadas, mesmo quando se esforçam
para desfazê-las.116 (DOWNS, 1993, p. 436, tradução nossa)

Esse ponto destacado por Downs (1993) nos parece fundamental: mesmo se nos esfor-
çamos por desfazer ou subverter categorias generificadas, habitamos essas categorias. Embora
a autora não remeta ao título, acreditamos que aqui podemos compreender o título do texto: “Se
‘mulher’ é apenas uma categoria vazia, por que eu tenho medo de andar sozinha à noite” (“If
‘Woman’ is Just an Empty Category, Then Why Am I Afraid to Walk Alone at Night?”).
Tendo apresentado as problematizações colocadas por Downs (1993), gostaríamos de
pontuar que nosso objetivo é partir dessas discussões para interrogar a psicanálise. Não temos
um percurso de leitura da obra de Joan Scott como um todo, de maneira que foge ao escopo
deste trabalho analisar se as críticas de Downs (1993) a Scott são ou não pertinentes, conside-
rando o conjunto de sua obra. O que nos parece pertinente é interrogar se determinadas teori-
zações psicanalíticas, ao fazerem recurso ao campo dos estudos de gênero, não acabam caindo
em uma consideração da esfera das representações sem uma articulação a outras dimensões.
Apenas para tecer um breve comentário sobre Scott, é importante lembrar que, ao tema-
tizar gênero como “saber a respeito das diferenças sexuais”, esse termo “saber” é tomado por
Scott (1994) fundamentada em Michel Foucault. Dessa maneira, “saber” não se refere a ideias,
mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas, relações sociais, o que apontaria para uma
dimensão estrutural que leva em conta práticas institucionalizadas, e não apenas a esfera das
representações. Talvez, Joan Scott enfatize a dimensão das representações, o que não necessa-
riamente significa que ela desconsidere outras dimensões.
O que nos interessa, para nossos objetivos neste trabalho, é apontar os riscos de consi-
derar a dimensão das representações sem articulá-la a uma dimensão da materialidade. Tendo

116
“Resistance via deconstruction can therefore give us only half a strategy, one which de-centers woman as a
textual and social construct, but leaves aside the dilemmas of women, who must live as subjects in time. This is
no small oversight, for as Denise Riley points out, the category woman always conflates the attributed with the
imposed and the lived. For those who live in society, sexual difference is not something which can simply be
argued into a corner and then left behind. Rather, individuals must inhabit those gendered categories, even as they
strive to unmake them.” (DOWNS, 1993, p. 436)
138
iniciado essa discussão nesta seção, daremos continuidade, na seção seguinte, com as formula-
ções de Judith Butler, que também são questionadas por autores que vêem em suas teorizações
uma estratégia desconstrucionista referida à dimensão das representações.

2.4 O gênero como performativo e a importância de articular relações sociais que tor-
nam possíveis determinadas performances

A concepção de gênero como um saber que organiza a diferença sexual, proposta por
Joan Scott tal como apresentamos na seção anterior, remete-nos às formulações de Butler
(1990/2013) em “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”. A importância
deste livro é destacada por Perelson (2004) ao afirmar que a autora revela os modos como são
“naturalizadas e reificadas noções construídas culturalmente, como também aponta uma nova
direção, renovando o ânimo que tem nos faltado, para retornarmos ao campo hoje tão despre-
zado da ação política” (p. 159).
Judith Butler é filósofa norte-americana, professora de retórica e literatura comparada
na Universidade de Berkeley, uma das expoentes da teoria queer. O termo que passou a deno-
minar essa teoria significa “estranho” em inglês, sendo utilizado como insulto contra pessoas
dissidentes das normas de gênero. Foi apropriado para a criação do movimento político queer,
no final dos anos 1980, início dos 1990, década em que a crítica queer ganha força, inclusive
no meio acadêmico, com a proposta de, a partir de identidades minoritárias, problematizar as
normas majoritárias (BERENI, CHAUVIN, JAUNAIT, & REVILLARD, 2012).
Em nossa tese, trabalhamos com perspectivas feministas, de maneira que caberia per-
guntar se as formulações de Butler poderiam ser consideradas nessa perspectiva. No que se
refere a esse ponto, nada melhor do que a explicação da própria Butler (2005), no prefácio à
segunda edição do livro, dez anos após sua primeira publicação:

Quando escrevi [o livro “Problemas de gênero”], imaginei-me em conflito e em opo-


sição a certas formas de feminismo, mesmo que eu o visse como um livro feminista.
Eu o escrevi com o espírito de crítica imanente, que procura examinar criticamente o
vocabulário básico do movimento de pensamento ao qual ele pertence. Havia, e ainda
existem, boas razões para empreender esse tipo de crítica e distinguir a autocrítica –
que promete uma vida mais democrática e inclusiva para esse movimento de pensa-
mento – das críticas que buscam miná-lo do interior.117 (p. 16, tradução nossa)

117
“Quand je l’ai écrit, je m’imaginais être en conflit et en opposition avec certaines formes de féminisme, même
si je voyais ce livre comme un livre féministe. Je l’ai écrit dans l’esprit de la critique immanente qui cherche à
faire l’examen critique du vocabulaire de base du mouvement de pensée auquel il appartient. Il y avait, et il y a
toujours, de bonnes raisons pour entreprendre ce genre de critique et pour distinguer l’autocritique – qui promet
une vie plus démocratique et inclusive pour ce mouvement de pensée – de la critique qui cherche à le miner de
l’intérieur.” (BUTLER, 2005, p. 16)
139
Butler (2005) deixa claro que se coloca em oposição a certas perspectivas no âmbito dos
feminismos, mas que o livro “Problemas de gênero” é um livro feminista que busca analisar
criticamente o “movimento de pensamento ao qual ele pertence”. De fato, em “Problemas de
gênero”, Butler coloca em questão perspectivas essencialistas e naturalistas, contrapondo-se a
determinadas abordagens no campo dos feminismos para propor uma autocrítica, ou seja, uma
crítica “de dentro” do movimento em que se insere.
Iniciando, então, a apresentação de formulações apresentadas em “Problemas de gê-
nero” que são importantes para nosso trabalho, consideramos importante especificar que a au-
tora recorre à concepção de discurso fundamentada em Foucault, enfatizando seu caráter pro-
dutivo. Como podemos observar em um texto mais recente, em que Butler (2018), no debate
com outras teóricas feministas, procura esclarecer alguns pontos sobre seu pensamento, a autora
sintetiza da seguinte maneira a compreensão de “discurso”:

Discurso não são meramente palavras faladas, mas uma noção de significação relaci-
onada não somente com o modo como alguns significantes passam a ter o significado
que têm, como também de que maneira algumas formas discursivas articulam objetos
e sujeitos em sua inteligibilidade. Nesse sentido, “discurso” não é usado no sentido
ordinário, mas extraído do trabalho de Foucault. O discurso não apenas representa ou
relata práticas e relações preexistentes, mas entra em sua articulação e é, assim, pro-
dutivo. (p. 206)

Nessa perspectiva, portanto, o discurso não representa ou expressa algo que já existia
ou já estava dado, mas, ao contrário, participa de sua articulação, produz aquilo que nomeia.
Tal formulação é importante para que possamos situar o questionamento de Butler de que exis-
tiria um sexo biológico, pré-discursivo, e, posteriormente, o gênero construído culturalmente.
Ao contrário, como explica Perelson (2004), “a construção do caráter natural do sexo, a produ-
ção da natureza sexuada como anterior à cultura é, de fato, uma maneira de assegurar a manu-
tenção da estrutura binária dos gêneros” (p. 157).
A ideia de uma suposta coerência da identidade de gênero é questionada a partir da
consideração de que não há uma essência sobre a qual o gênero se apoiaria. Este é produzido a
partir da repetição de palavras, gestos, atos – performativamente, como propõe Butler
(1990/2013). Em um texto mais recente, publicado no livro “Debates feministas”, Butler (2018)
especifica que utiliza o termo “performatividade” fundamentada nas formulações de J. L. Aus-
tin em “How to do things with words” e a partir de uma leitura de Derrida.

140
O conceito de performatividade aponta para a diferenciação entre proposições de lin-
guagem que simplesmente descrevem ações/situações e outras que fazem com que algo acon-
teça, se efetive, se realize ao serem pronunciadas. Um exemplo de proposição performativa
seria a fala “Eu vos declaro marido e mulher”. No entanto, muitas sentenças descritivas acabam
funcionando como performativas por sua repetição. Silva (2014) exemplifica recorrendo à pro-
posição “João é pouco inteligente”, cuja “repetida enunciação pode acabar produzindo o ‘fato’
que supostamente apenas deveria descrever” (p. 93).
É justamente esse efeito produtivo que Butler (2018) sublinha na definição de ato per-
formático como “aquele que cria ou interpreta aquilo que nomeia, marcando assim o poder
constitutivo ou produtivo do discurso” (p. 199). No caso do gênero, Butler (1990/2013) analisa
a produção da identidade como questão de performatividade, o que apenas opera por meio da
repetição pela qual o sujeito seria compelido a repetir as normas pelas quais é produzido. Em
decorrência, Butler coloca em cena o caráter artificial de uma identidade substancial. Como
afirma Perelson (2004):

[...] o eu de gênero permanente define-se por um estilo, por atos repetidos que cons-
troem a ficção de uma identidade substancial. [...] não há identidade de gênero por
trás das expressões do gênero; os atributos do gênero não são expressivos mas perfor-
máticos, isto é, constituintes da identidade que pretensamente revelam. (p. 158)

Para a performatividade, é importante a característica do signo de ser repetível, e essa


repetibilidade da linguagem possibilita a citacionalidade – categoria trabalhada por Derrida de
que se vale a autora –, que se refere ao fato de que a linguagem pode ser retirada de um contexto
e inserida em outro diferente (SILVA, 2014). Butler (2018) destaca que Derrida articula a con-
cepção de performatividade à citação e à repetição de maneira a enfatizar que “não se trata da
intenção de um indivíduo, mas um resultado das convenções linguísticas historicamente sedi-
mentadas” (p. 200, grifos da autora).
Assim, Butler (2000) recorre ao conceito de citacionalidade para definir performativi-
dade “não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa
e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (p. 154). Com essa formu-
lação, Butler (2018) pretende destacar que, ao afirmar que o sujeito é performativamente cons-
tituído, não existe um praticante “atrás” do ato: “Ser constituído pela linguagem é ser produzido
dentro de uma dada cadeia de poder/discurso que está aberta à ressignificação [...] Se um sujeito
fosse constituído de uma vez por todas, não haveria possibilidade de uma reiteração dessas
convenções ou normas constitutivas” (p. 201).

141
Como afirma Perelson (2004), a leitura de Butler coloca em causa “a própria noção de
uma identidade como fundamentada na divisão do gênero e, mais ainda, como fundamento do
gênero” (p. 158). Butler (1990/2013) parte da consideração que a distinção entre sexo e gênero
foi introduzida para problematizar explicações baseadas em um suposto destino biológico, afir-
mando o gênero como culturalmente construído. No entanto, essa distinção entre corpos sexu-
ados e gêneros culturalmente construídos acaba reproduzindo uma dicotomia natureza-cultura
e a ideia de que, se o gênero é uma construção social, haveria uma natureza anterior – o sexo –
, sobre a qual se construiria o gênero.
A autora segue questionando o que seria o “sexo”, interrogando se a definição seria
natural, anatômica, cromossômica ou hormonal, bem como os diversos discursos científicos
que estabeleceriam alguma verdade sobre o sexo. Numa perspectiva de historicizar esses dis-
cursos sobre o sexo, Butler (1990/2013) se pergunta sobre a construção do sexo e chega à pro-
posição de que não existiria uma essência ou algo pré-discursivo que fundamentaria o gênero;
ao contrário, são ambos – sexo e gênero – construídos culturalmente. Como explica a autora:
“Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado ‘sexo’ seja
tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero,
de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (BUTLER,
1990/2013, p. 25).
Fundamentada no pensamento de Foucault, a autora critica as categorias de gênero es-
tabelecidas como uma relação binária homem-mulher. Butler (1990/2013) considera que a teo-
ria feminista presume a existência de uma identidade definida, a categoria “mulheres”, que
constituiria o sujeito em nome de quem a representação é almejada. Por considerar a condição
cultural em que havia pouca ou nenhuma representação das mulheres, a teoria feminista buscou
desenvolver uma linguagem capaz de representá-las.
Porém, a representação constitui, por um lado, um termo operativo com o objetivo de
conferir visibilidade e legitimidade para as mulheres, e, por outro, a função normativa da lin-
guagem. A autora recorre a Foucault para destacar que os sistemas jurídicos produzem os su-
jeitos que passam a representar, de maneira que “o sujeito feminista se revela discursivamente
constituído – e pelo próprio sistema político que supostamente deveria facilitar sua emancipa-
ção” (BUTLER, 1990/2013, p. 19).
Assim, o poder jurídico produz o sujeito que alega meramente representar, e a constru-
ção política desse sujeito passa por procedimentos de legitimação e exclusão que, por estarem
naturalizados, não aparecem. Esse aspecto revela a dimensão produtiva do poder, de maneira
que a representação não apenas descreve, mas produz a realidade. Nesse sentido, a identidade
142
seria um efeito de práticas discursivas, proposição que se contrapõe à noção de constituição da
“identidade pessoal” a partir de características internas que garantiriam a continuidade ou auto-
identidade de alguém ao longo do tempo (BUTLER, 1990/2013).
Butler (1990/2013) questiona o pressuposto de que a identidade estaria baseada na per-
manência e persistência no tempo, como algo unificado e internamente coerente: “O que pode
então significar ‘identidade’, e o que alicerça a pressuposição de que as identidades são idênti-
cas a si mesmas, persistentes ao longo do tempo, unificadas e internamente coerentes?” (p. 37).
Para Butler (1990/2013), coerência e continuidade não são características lógicas da
personalidade, mas sim normas de inteligibilidade socialmente instituídas. Sendo historica-
mente construído, o conceito de identidade não designaria uma categoria natural, mas norma-
tiva: “Em que medida é a ‘identidade’ um ideal normativo, ao invés de uma característica des-
critiva da experiência?” (p. 38).
A partir desses critérios de inteligibilidade que definem padrões reconhecíveis, as pes-
soas são classificadas em gêneros. Na matriz de inteligibilidade, os gêneros “inteligíveis” são
aqueles que garantem alguma coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, como se
houvesse alguma “verdade” do sexo – o que é criticado por Foucault ao denunciar as práticas
regulatórias que produzem identidades coerentes (BUTLER, 1990/2013).
Butler (1990/2013) localiza essa matriz de inteligibilidade em um sistema de heterosse-
xualidade compulsória que resulta num modelo binário: “modelo substancial do gênero como
sendo uma relação binária entre dois termos positivos e representáveis” (BUTLER, 1990/2013,
p. 40). A “heterossexualização” do desejo implica que a matriz cultural pela qual a identidade
de gênero se torna inteligível requer que determinados tipos de identidade não possam existir.
Por não se conformarem à lógica de inteligibilidade cultural, são vistos como impossibilidades
lógicas (BUTLER, 1990/2013).
Ao denunciar o não-lugar daqueles que não se encaixam nos padrões de inteligibilidade
socialmente instituídos, o objetivo da autora é buscar dar um lugar de dignidade e legitimidade
àqueles que se situam fora do campo do inteligível e, por isso, são marginalizados. Butler
(2010) trata do reconhecimento e da tendência de recorrer ao já conhecido, mas também da
possibilidade de rompimento com esse padrão:

O reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o


outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade. Mas o reconheci-
mento também pode ser o lugar onde os campos existentes de inteligibilidade são
transformados. (p. 168)

143
Em outros termos, o indivíduo pode dizer “não quero ser reconhecido por meio de ne-
nhum dos termos que você tem”, ou seja, é possível pedir para ser reconhecido de uma maneira
que, pelo menos inicialmente, é ininteligível, o que permite revisar e expandir o campo da in-
teligibilidade, de modo que uma nova forma de reconhecimento seja possível (BUTLER &
KNUDSEN, 2010).
Dessa maneira, para Butler (1990/2013), a tarefa não é recusar a política representacio-
nal – mesmo porque, em sua concepção, não poderíamos fazê-lo. As estruturas jurídicas da
linguagem e da política constituem o campo do poder, portanto não há posição fora dele. O
horizonte seria a criação de novos inteligíveis, na tentativa de uma ampliação do campo de
inteligibilidade, buscando incluir aqueles que hoje se encontram excluídos das normas de inte-
ligibilidade socialmente instituídas, ou seja, expandir o campo das representações possíveis.
As representações fundantes de uma política da identidade restringiriam e fixariam “os
próprios ‘sujeitos’ que esperam representar e libertar” (BUTLER, 1990/2013, p. 213). Um des-
locamento desse padrão que toma as identidades como fixas produziria uma nova configuração
política. Como afirma Butler (1990/2013):

Se as identidades deixassem de ser fixas, como premissas de um silogismo político, e


se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas
dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração
política surgiria certamente das ruínas da antiga. (p. 213)

Assim, as formulações de Butler (1990/2013) evidenciam um trabalho de desconstrução


da identidade, a partir da consideração de que normas de inteligibilidade socialmente instituídas
evidenciam o caráter normativo de categorias identitárias. Nos termos da autora: “A descons-
trução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como
políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada” (p. 213).
No campo da política, a consideração de que não é possível recusar a política represen-
tacional situaria a análise de Butler – e as possíveis alternativas apontadas – ao campo das
representações? As considerações tecidas por Downs (1993) sobre a teorização de Joan Scott
também seriam importantes para situar a perspectiva adotada por Butler em “Problemas de
gênero” – ou seja, a ênfase recairia no âmbito do discurso, das representações, assim como as
possíveis soluções se situariam no campo representacional?
Para discutir esse aspecto, consideramos importante situar a teorização de Butler, e en-
contramos uma contribuição interessante nesse sentido em Adkins (2002), que retoma uma tese
que tem sido influente na Sociologia contemporânea: a da reflexividade e modernidade/moder-
nização reflexiva, associada a teóricos como Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash.

144
Adkins (2002) pontua que existem grandes diferenças entre as abordagens, mas destaca três
pontos de convergência entre esses autores: reflexividade como característica da vida social
contemporêanea, destradicionalização do social e individualização.
No que se refere à reflexividade, existiria uma dimensão estrutural segundo a qual,
quanto mais as sociedades se modernizam, maior seria a capacidade de reflexão sobre as con-
dições sociais, bem como uma dimensão de auto-reflexividade e auto-monitoramento, o que
leva Giddens a propor o eu como projeto reflexivo. Nesse sentido, a identidade seria constituída
por auto-narrativas a partir de um ordenamento reflexivo. A reflexividade estaria associada à
destradicionalização, em um contexto de desintegração das formas de organização tradicionais
e de maior liberdade em relação a regras e formas de autoridade associadas à modernidade. O
declínio da autoridade externa seria correlato de um papel aumentado do individual, de uma
autoridade interna diante de um contexto de desorganização e contingência, o que levaria à
teorização sobre a individualização, no sentido de auto-invenção de si, de construção de modos
de vida próprios. Bauman, citado por Adkins (2002) afirma que a identidade está deixando de
ser um dado para se tornar uma tarefa, de maneira que cada um tem a responsabilidade de
performar essa tarefa e lidar com as consequências.
A ênfase na reflexividade marca uma virada “de coisas para palavras” – “from things to
words”, de acordo com Barret citado por Adkins (2002) – ou “do social para o cultural” – “from
the social to the cultural”, segundo Adkins e Lury, citados por Adkins (2002). No campo das
discussões sobre gênero e sexualidade, bem como sobre feminismo, a questão que se coloca é
se teorizações como a de Butler – que enfatizam a performatividade nas análises sobre gênero
como constituído na repetição de convenções discursivas e destacam a possibilidade de trans-
gressão dessas normas via reapropriação – conseguiriam dar conta da história, do social e do
econômico. Também no sentido de considerar que a leitura de Butler seria marcada por essa
virada “de coisas para palavras”, Nancy Fraser (1997/2017) – em debate com Butler, que apre-
sentaremos na seção 2.6 – considera que a teorização sobre performatividade, bem como as
saídas que Butler propõe, acabariam caindo em uma abstração trans-histórica.
No sentido de destacar que a linguagem não se faz na abstração de enunciados que afir-
mam em ato o que realizam, sem um conjunto de práticas sociais e instituições reais, conside-
ramos fundamentais as proposições de Bourdieu (1982). O autor destaca a existência de condi-
ções de eficácia para que enunciações sejam performativas – ou seja, que não apenas descreva
um estado de coisas mas execute uma ação, como propõe Austin. Entre essas condições, é ne-
cessário um porta-voz que concentra capital simbólico, em cuja posição se investe o poder de

145
falar em nome de alguém ou da sociedade, assim como também é fundamental a adequação do
discurso que pronuncia.
Para exemplificar, podemos considerar que um padre ou o responsável pelo casamento
civil é investido do poder de declarar que duas pessoas estão casadas, o que produz uma reali-
dade que não existia antes. Isso depende do poder que é investido nesses representantes, da
mesma maneira que o enunciado só poderá ser performativo se for adequado ao poder que é
investido. Em nossa cultura, um padre pode declarar casamento, mas não separação, por exem-
plo, de maneira que se um padre declarasse que um casal está separado, esse discurso não teria
efeitos de produção de realidade. Nos termos de Bourdieu (1982):

[...] um enunciado performativo está fadado ao fracasso sempre que não for pronun-
ciado por uma pessoa com o “poder” de pronunciá-lo ou, de maneira mais geral, sem-
pre que “a pessoa ou circunstância em particular” não forem “as apropriadas para que
possamos invocar o procedimento em questão”, enfim, sempre que o locutor não tiver
autoridade para emitir as palavras que enuncia.118 (BOURDIEU, 1982, p. 109,
tradução nossa)

Assim, para que um enunciado seja performativo, o locutor tem de ser investido de po-
der e aquilo que se enuncia tem de ser adequado a esse poder do qual é investido. Além disso,
como destaca o sociólogo, essa autoridade do locutor para emitir determinado enunciado não é
algo que depende do locutor em si, de sua pessoa, mas da instituição que o autoriza a se pro-
nunciar, ou seja, o discurso depende do “poder residindo na realidade nas condições institucio-
nais de sua produção e recepção”119 (BOURDIEU, 1982, p. 111).
Nem mesmo ser compreendido é condição para que um enunciado seja performativo. O
que é fundamental é que o enunciado seja reconhecido: “não é suficiente que seja compreendido
(pode, em alguns casos, não ser entendido sem perder o poder), não exerce seu próprio efeito
se não for reconhecido como tal”120 (BOURDIEU, 1982, p. 111, grifos do autor), ou seja, de-
pende das condições sociais de produção e reprodução. Os discursos performativos não se re-
duzem ao universo das representações, mas dependem de um mundo de relações interindividu-
ais121.

118
“[...] un énoncé performatif est voué à l'échec toutes les fois qu'il n'est pas prononcé par une personne ayant le
‘pouvoir’ de le prononcer, ou, plus généralement, toutes les fois que ‘les personnes ou circonstances particulières’
ne sont pas ‘celles qui conviennent pour qu'on puisse invoquer la procédure en question’, bref tout les fois que le
locuteur n'a pas láutorité pour émettre les mots qu'il énonce.” (BOURDIEU, 1982, p. 109)
119
“[…] pouvoir résidant en réalité dans les conditions institutionnelles de leur production et de leur récéption”
(BOURDIEU, 1982, p. 111)
120
“[...] il ne suffit pas qu'il soit compris (il peut même en certain cas ne pas l'être sans perdre son pouvoir), et qu'il
n'exerce son effet propre qu'à condition d'être reconnu comme tel.” (BOURDIEU, 1982, p. 111, grifos do autor)
121
Destacamos que Bourdieu usa o termo relations sociales, não rapports sociaux (p. 119).
146
No caso da performatividade de gênero em Butler, parece-nos importante pensar as me-
diações que fazem com que os discursos tenham efeito de produção, isto é, quais são as condi-
ções sociais de produção e reprodução desses discursos. Sem isso, corremos o risco de cair na
abstração dos discursos e perder a especificidade das realidades de opressão.
No que se refere a essa abstração dos discursos, Adkins (2002) afirma que o questiona-
mento de que a teoria da performatividade de alguma forma ignora o histórico e o social foi
apontado por diversos sociológos que trabalham sobre gênero e sexualidade. Por exemplo, Stevi
Jackson considera que, quando Butler busca alcançar uma noção de mundo socialmente orde-
nado, o social escapa de sua compreensão, Tim Edwards pondera que a ênfase no nível do
discurso tende a não levar em conta seu significado como prática social institucionalizada, Ste-
ven Seidman aponta o abandono de uma análise institucional e a ênfase em um culturalismo
que acaba por reduzir o social ao discursivo.
Adkins (2002) considera, no entanto, que algo fica de fora das análises propostas por
esses três autores. Em primeiro lugar, aponta que a primazia do social e a noção sobre o que
seria esse “social” são de alguma maneira pressupostas. Além disso, ao argumentar a primazia
do social sobre o cultural, perde-se a articulação entre esses dois níveis.
Um análise mais detalhada sobre as relações entre social e cultural poderia ser encon-
trada, para Adkins (2002), nos trabalhos de Rosemary Hennessy, que, em sua leitura sobre Bu-
tler, destaca que a identidade seria compreendida apenas em termos de representação. Mesmo
em “Bodies that matter”, texto em que Butler busca analisar a materialidade, haveria uma equi-
valência entre materialidade e discurso.
Hennessy (1994) problematiza essa equivalência que, a seu ver, estaria presente nas
análises de Butler, afirmando que “ao explicar a materialidade exclusivamente em termos de
práticas discursivas, Butler efetivamente reduz a materialidade do social à cultura”122 (p. 39,
tradução nossa). Por exemplo, Hennessy (1994) aponta que Butler se refere à heterossexuali-
dade como instituição e como norma, mas não estabelece articulações – diferenças ou relações
– entre essas duas concepções, de maneira que pode parecer que instituições e discursos nor-
mativos são equivalentes. Nos termos da autora:

Embora frequentemente se refira à heterossexualidade como instituição ou norma, ela


[Butler] nunca explica as diferenças ou relações materiais entre instituições e discur-
sos normativos. Eles são o mesmo? Instituições como a família, as forças armadas ou
as escolas organizam e dependem de mais do que discursos: aspectos da vida como
trabalho e riqueza, ou recursos sociais como saúde e assistência médica, distribuição
de alimentos e abrigo? Todos esses aspectos da vida social são, é claro, mediados e

122
“[...] by explaining materiality so exclusively in terms of discursive practices, Butler effectively conflates the
materiality of the social into culture.” (HENNESSY, 1994, p. 39)
147
regulados discursivamente, mas ao mesmo tempo sua materialidade não é simples-
mente discursiva.123 (HENNESSY, 1994, p. 39, tradução nossa)

Por considerar que tais aspectos da vida social são discursivamente mediados, mas sua
materialidade não é meramente discursiva, Hennessy (1994) se contrapõe a leituras em que
“linguagem, discurso ou prática cultural é [...] considerada a única arena da vida social”124 (p.
33, tradução nossa), ou, em outros termos, leituras que reduzem o social à cultura ou ao dis-
curso. A autora adota essa perspectiva por considerar que “reduzir a materialidade apenas ao
discurso tem o efeito de obscurecer grande parte da vida social”125 (HENNESSY, 1994, p. 39,
tradução nossa).
Dessa maneira, a leitura proposta por Hennessy (1994) parte da consideração de que
instituições e discursos normativos não são a mesma coisa: instituições como família, exército
e escola se organizam com base em mais do que discursos, existem aspectos da vida material –
como trabalho, saúde e seguridade social – que devem ser levados em conta. Embora todos
esses aspectos sejam discursivamente mediados, sua materialidade não é simplesmente discur-
siva, de maneira que se coloca a necessidade de estabelecer articulações entre instituições e a
esfera das representações e discursos.
A materialidade da vida social é analisada por Hennessy (1994) a partir de um conjunto
de práticas – dinâmicas, caracterizadas por relações de interdependência – que incluem aspectos
da divisão do trabalho, de arranjos no âmbito do Estado e de organizações ideológicas. Segundo
a autora:

[...] a materialidade da vida social consiste de um conjunto de práticas humanas cujas


complexas relações interdeterminadas entre si variam historicamente. Essas práticas
incluem divisões econômicas do trabalho e da riqueza, arranjos políticos de Estado e
nação e organizações ideológicas de criação de significado e valor.126 (HENNESSY,
1994, p. 33, tradução nossa)

123
“While she frequently refers to heterosexuality as an institution or a norm, she never explains the material
differences or relations between institutions and normative discourses. Are they one and the same? Do institutions
like the family, the military, or schools organize and rely on more than discourses: aspects of life like labor and
wealth, or social resources like health and health care, the distribution of food and shelter? All of these aspects of
social life are, of course, discursively mediated and regulated, but at the same time their materiality is not simply
discursive.” (HENNESSY, 1994, p. 39)
124
“[...] language, discourse, or cultural practice is often taken to be the only arena of social life.” (HENNESSY,
1994, p. 33)
125
“[...] reducing materiality to discourse alone has the effect of obscuring much of social life.” (HENNESSY,
1994, p. 39).
126
“[...] the materiality of social life consists of an ensemble of human practices whose complex interdeterminate
relations to one another vary historically. These practices include economic divisions of labor and wealth, political
arrangements of state and nation, and ideological organizations of meaning-making and value.” (HENNESSY,
1994, p. 33)

148
A partir dessa análise, Hennessy (1994) propõe que os discursos de identidade e de luta
por direitos na esfera da sexualidade apenas se tornaram possíveis em determinadas condições
históricas, assim como determinadas performances são possíveis, não só porque certos discur-
sos sobre a sexualidade estão disponíveis, mas também porque existem determinadas configu-
rações de produção, troca e consumo. Nesse sentido, a análise em termos de performance de-
veria levar em conta as relações sociais que tornaram possível tal performance, por isso Hen-
nessy (1994) propõe uma “re-narração” da teoria queer:

Embora muitas formulações da teoria queer e identidade sejam limitadas a meu ver,
não se segue que a viabilidade do “queer” como símbolo de uma história e ação cole-
tivas deva ser descartada. Ao invés disso, eu argumentaria por uma re-narração da
crítica queer como investigação do conjunto de processos-sistemas sociais de explo-
ração e regimes de estado e poder cultural – através dos quais as sexualidades são
produzidas.127 (HENNESSY, 1994, p. 34-5, tradução nossa)

Nessa proposta de uma “re-narração” da teoria queer e a partir da consideração de que


determinadas configurações de produção, troca e consumo tornam possíveis determinadas per-
formances, Hennessy (1994) associa a ideia de identidades performadas à de construção de si
(do próprio corpo, roupas e estilo, preferências sexuais etc) numa sociedade de consumo, em
que esses marcadores da individualidade seriam adquiridos via bens de consumo. Hennessy
(1994) recorre ao “estilo” como “marcador cada vez mais crucial do valor social e da identi-
dade”128 (p. 57, tradução nossa) para afirmar que:

O “estilo de vida” obscurece essas hierarquias sociais, promovendo a individualidade


e a auto-expressão, mas também uma concepção mais porosa do eu como uma iden-
tidade “estilizada”. A publicidade, principalmente, defende uma altamente codificada
autoconsciência da construção estilizada de quase todos os aspectos da vida cotidiana:
corpo, roupas, discurso, atividades de lazer, alimentação, bebida e preferências sexu-
ais. Todos são considerados indicadores de individualidade e estilo, e todos podem
ser adquiridos com algumas compras.129 (HENNESSY, 1994, p. 58, tradução nossa)

Em relação a esse ponto, discordamos da análise de Hennessy (1994) e consideramos


questionável a leitura que a autora faz de Butler, como se a ideia de performatividade signifi-
casse a liberdade de “comprar” determinada “identidade”. Tal análise nos parece um tanto nor-
mativa e impregnada de juízos de valor, e nos remeteu a uma afirmação feita pela psicanalista

127
“Even though many formulations of queer theory and identity are to my mind limited, it do not follow that the
viability of ‘queer’ as a sign of collective history and action is to be dismissed. Instead, I would argue for a renar-
ration of queer critique as inquiry into the ensemble of social processes-systems of exploitation and regimes of
state and cultural power – through which sexualities are produced” (HENNESSY, 1994, p. 34-5)
128
“[...] ‘style’ becomes an increasingly crucial marker of social value and identity” (HENNESSY, 1994, p. 57)
129
“‘Lifestyle’ obscures these social hierarchies by promoting individuality and self-expression but also a more
porous conception of the self as a ‘fashioned’ identity. Advertising, especially, champions a highly coded self-
consciousness of the stylized construction of almost every aspect of one's everyday life: one's body, clothes,
speech, leisure activities, eating, drinking, and sexual preferences. All are regarded as indicators of individuality
and style, and all can be acquired with a few purchases” (HENNESSY, 1994, p. 58)
149
Ana Laura Prates (2018), que, referindo-se a pessoas trans, afirma que a psicanálise deve tomar
a singularidade de cada caso, mas não deve deixar de problematizar o que considera um “sin-
toma social”. Recorre a um depoimento publicado em uma revista em que uma pessoa trans
afirma ter se sentido “aliviada e limpa” após a cirurgia de redesignação e que pode então “entrar
num shopping e tomar um café”. A autora afirma: “Apesar da inegável relevância dessa inclu-
são social, não podemos deixar de questionar, em contrapartida, o laço social que inclui o su-
jeito pela via do consumo (shopping) e da higiene sexual (limpa)” (p. 60).
Será que a psicanalista faria essa mesma consideração em relação a pessoas cisgênero?
No Brasil, pessoas cis podem tranquilamente tomar seu café no shopping, o que não necessari-
amente acontece com pessoas trans. Continuamos a tomar nosso café no shopping enquanto
questionamos que outros desejem assim fazer? Que autoridade temos para decidir o que é legí-
timo ou não?
Consideramos questionáveis essas formulações de Rosemary Hennessy (1994) e de Ana
Laura Prates (2018) por seu aspecto normativo, que em nada corresponde à análise proposta
por Butler (1990/2013) ao denunciar regimes de normatividade que produzem exclusões dos
que não se encaixam em padrões de inteligibilidade socialmente instituídos. No prefácio à se-
gunda edição de “Problemas de gênero”, Butler (2005) afirma: “Longe de mim prescrever uma
nova maneira de viver o gênero que poderia servir de modelo para os leitores e leitoras deste
texto. Meu objetivo ao escrever este livro era abrir o campo de possíveis em matéria de gênero
sem ditar o que deveria ser feito”130 (p. 17).
Retomando, então, a formulação de Rosemary Hennessy (1994), consideramos bastante
problemática a articulação entre performatividade e consumo. No entanto, o que nos parece
bastante interessante na análise proposta pela autora é a mediação de relações sociais, práticas
institucionalizadas. Concordamos, portanto, com as formulações da autora no que se refere à
ênfase nas relações sociais que tornam possíveis determinadas performances, mas, quando Hen-
nessy (1994) procura discutir quais seriam essas relações sociais articulando configurações de
produção, troca e consumo, discordamos da posição da autora em associar a ideia de performa-
tividade a uma “construção de si” via bens de consumo.
Se encontramos em Hennessy (1994) o apontamento da importância da mediação de
relações sociais e práticas institucionalizadas, não encontramos uma teorização que nos ajude
a pensar essas relações sociais. No intuito de iniciar uma reflexão sobre como compreendemos

130
“Loin de moi l’idée de prescrire une nouvelle façon de vivre le genre qui pourrait alors servir de modèle pour
les lecteurs et lectrices de ce texte. Mon but en écrivant ce livre était d’ouvrir le champ des possibles en matière
de genre sans dicter ce qu’il fallait réaliser.” (BUTLER, 2005, p. 17)
150
essa mediação, recorreremos ao filme brasileiro “Que horas ela volta?”131 e à legislação sobre
trabalhadores domésticos no contexto brasileiro. O filme ilustra a relação entre “patrões” que,
na esfera do discurso, tratam a funcionária como “quase da família”, e que vem articulado a
uma série de explorações, como o trabalho noturno, por exemplo – já que, se alguém é “da
família”, estaria à disposição a qualquer momento. Muito diferente da perspectiva que consi-
dera que um trabalhador tem uma jornada determinada de trabalho e que, caso seja solicitado
fora dos horários estabelecidos, deve receber hora extra, por exemplo. A questão da mediação
nos parece fundamental – nesse caso, o fato de que, apenas em 2015, os empregados domésticos
passaram a ter os mesmos direitos trabalhistas garantidos por lei a todos os trabalhadores132. A
linguagem, o discurso que situa a empregada doméstica como “quase da família” não se faz na
abstração, sem um conjunto de práticas sociais e instituições reais.
Assim, com Bourdieu (1982) e as condições de eficácia para que enunciações sejam
performativas e com Rosemary Hennessy (1994) e a análise sobre instituições e discursos nor-
mativos, buscaremos situar uma compreensão em termos de performance que articule as medi-
ações que tornam possível tal performance, que considere práticas sociais e instituições reais
que participam da mediação entre discurso e efeitos produzidos pelo discurso. Consideramos
que existem elementos a partir das próprias formulações de Judith Butler que nos ajudam a
pensar essas mediações, sobretudo considerando diferentes produções e momentos da sua obra,
como apresentaremos na seção 2.6.
É importante destacar que Judith Butler é uma autora contemporânea, que continua pro-
duzindo e (re)pensando as próprias formulações. No já mencionado prefácio à segunda edição
do livro, Butler (2005) afirma que tem se dedicado a revisar e a expandir a teoria da performa-
tividade de gênero, e que já se mostra difícil para ela explicar como compreendia a concepção
de performatividade em “Problemas de gênero”, porque sua concepção mudou com o tempo,
graças a críticas que recebeu: “É difícil dar uma definição exata, não apenas porque a ideia que
eu fazia de ‘performatividade’ mudou com o tempo – muitas vezes por causa das excelentes
críticas que me foram feitas – mas também porque essa noção foi retomada e reformulada por
muitos autores e autoras”133 (p. 25-6, tradução nossa).

131
Filme brasileiro de 2015, direção de Anna Muylaert, com Regina Casé como a protagonista Val, empregada
doméstica em uma casa de classe alta. O filme coloca em cena os conflitos na relação com os patrões e as injustiças
da sociedade brasileira, sobretudo a partir do olhar de Jéssica, filha de Val.
132
Foram realizadas mudanças na Constituição em 2013, mas apenas com a regulamentação, em 2015 “ficaram
garantidos para as domésticas todos os direitos dos demais trabalhadores”, de acordo com texto informativo pu-
blicado na página oficial da Câmara dos deputados. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/460723-
sancionada-lei-que-regulamenta-novos-direitos-de-empregados-domesticos/
133
“Il m’est difficile d’en donner une définition exacte, non seulement parce que l’idée que je me faisais de ‘la
performativité’ a changé avec le temps – très souvent suite aux excellentes critiques qu’on m’a adressées –, mais
151
Butler (2005) explica que partiu de formulações de Derrida para pensar se, no caso do
gênero, a ideia de uma suposta essência interior que poderia ser revelada acabaria produzindo
uma essência de gênero, ou seja, a expectativa acabaria produzindo precisamente o que está
colocado como esperado. Isso não se produz por um ato isolado, mas por meio de uma repetição
que produz seus efeitos através de um processo de naturalização “sustentado na e pela cul-
tura”134 (BUTLER, 2005, p. 26, tradução nossa). Em relação a esse aspecto da cultura, Butler
(2005) faz referência a Pierre Bourdieu, com a ideia da dimensão ritual da performatividade,
que afirma ter percebido apenas após escrever o livro.
Dez anos depois da publicação de “Problemas de gênero”, Butler (2005) faz referência
às críticas que recebeu e às contribuições de Bourdieu sobre performatividade. Foram precisa-
mente essas contribuições que apresentamos no intuito de pensar práticas sociais e instituições
reais que participam da mediação no caso da performatividade: no que se refere a discursos que
produzem aquilo que nomeiam, devemos levar em conta as mediações que inscrevem o campo
das representações em práticas socialmente institucionalizadas.
No sentido de pensar essa mediação, consideramos que perspectivas feministas materi-
alistas trazem contribuições sobre como compreender relações sociais e práticas institucionali-
zadas que possibilitam pensar a opressão das mulheres. Como pontuamos, encontramos em
Hennessy (1994) o assinalamento da importância da mediação que possibilita determinadas
performances, mas, por outro lado, as formulações da autora não nos ajudam a pensar mais
especificamente essa mediação, uma vez que, no que se refere a esse aspecto, a autora segue
por um caminho que articula performatividade e consumo, que consideramos problemático.
Começamos a indicar como compreendemos essa mediação a partir do filme “Que horas ela
volta?” e, na próxima seção, apresentaremos perspectivas feministas materialistas para poder,
então, retomar a questão da mediação e delinear articulações entre materialidade e discurso.

2.5 Relações interindividuais135 e relações sociais136 : contribuições de perspectivas fe-


ministas materialistas

Nesta seção, apresentaremos uma perspectiva materialista, que abre a possibilidade de


se pensar em termos de posições nas relações sociais, e não de identidades. Nessa leitura, pensar

aussi parce que cette notion a été reprise et reformulée par de nombreux auteurs et auteures.” (BUTLER, 2005, p.
25-6)
134
“[...] soutenue dans et par la culture” (BUTLER, 2005, p. 26)
135
Relations sociales
136
Rapports sociaux
152
as questões relativas às mulheres não passa por pensar se sou “feminina”, se há autenticidade,
o que caracteriza “ser mulher” etc. A questão passa a ser como essas relações se organizam, em
uma leitura que interroga a organização social.
Antes de apresentar teorizações feministas em uma perspectiva materialista, é impor-
tante circunscrever a compreensão de “materialismo”. Freccero (1992), no dicionário “Femi-
nism and Psychoanalysis: A Critical Dictionary”, destaca a longa história, com múltiplos sig-
nificados, do conceito filosófico “materialismo”. Reduzido a seus termos mais simples, o ma-
terialismo filosófico moderno sustenta a origem física e causalidade natural da vida humana e
organização social, sendo importante destacar que “físico” e “natural” aparecem em contrapo-
sição a explicações teológicas ou espirituais. Karl Marx também se contrapõe a explicações
teológicas ou espirituais, mas reconhece o agente humano como principal força, propondo o
materialismo histórico. A partir da concepção de Marx de atividade humana de produção, Frie-
drich Engels se afasta de um determinismo natural com a concepção de materialismo dialético.
Aprofundar todas essas definições não caberia no âmbito desta tese, nosso objetivo é
resgatar formulações fundamentais para compreender as perspectivas feministas materialistas
com as quais trabalharemos. Nesse sentido, é importante sublinhar que o materialismo em Marx
contrasta com o idealismo, particularmente em Hegel, concepção que coloca a ênfase na esfera
das ideias. Como apontamos no capítulo 1, Martins (2013) aponta a divisão entre teóricos do
marxismo no que se refere às relações entre Hegel e Marx, de maneira que discutir as relações
entre esses dois autores foge ao escopo de nosso trabalho. Porém, é importante pontuar que,
como destaca Freccero (1992), Marx faz referência a Hegel, em “A ideologia alemã”, e afirma
que ideias são apenas a expressão de relações materiais dominantes, de maneira que não seria
a consciência que determinaria a vida material, mas a vida material que determinaria a consci-
ência.
Teorizações mais recentes buscaram articular às contribuições de Marx uma teoria da
linguagem e do sujeito, bem como o papel da ideologia, com influência de teorizações freudi-
anas, segundo Freccero (1992). No âmbito dos feminismos, Wayne (1992) agrupa sob a deno-
minação “crítica feminista materialista” (“materialist feminist criticism”) teóricas cujas formu-
lações divergem – inclusive do ponto de vista de em que medida o marxismo contribui para a
análise feminista –, mas que seriam caracterizada pela consideração da importância de condi-
ções sociais, raciais, sexuais e econômicas nas experiências das mulheres.
Nessa perspectiva de uma “crítica feminista materialista”, as diferenças entre as mulhe-
res são articuladas a essas condições. Segundo Wayne (1992): “elas veem as diferenças entre
as mulheres como produzidas pelas condições materiais em que as mulheres estão
153
posicionadas”137 (p. 249). Trata-se de uma abordagem anti-essencialista e anti-idealista, que
problematiza categorias universais como “mulher” ou “patriarcado”, por considerar que as mu-
lheres não são iguais em diferentes culturas e nem mesmo em uma determinada cultura
(WAYNE, 1992).
De fato, a consideração de condições sociais, raciais, sexuais e econômicas é uma ca-
racterística das perspectivas feministas materialistas que abordaremos. Uma das autoras com
que trabalharemos nesta seção, Jules Falquet (2016), especifica que “[seu] uso do qualificador
‘materialista’ pretende esclarecer uma posição no campo feminista, e não no campo mar-
xista”138 (p. 4, tradução nossa). A autora circunscreve uma concepção materialista como aquela
que coloca em cena a centralidade da materialidade e da produção dialética das classes de mu-
lheres e homens. Como explica Falquet (2016), sua análise é:

[...] centrada nas dimensões materiais e estruturais da situação social de mulheres e


homens como indivíduos, mas principalmente como classes de sexo, situações vistas
como dialeticamente produzidas uma pela outra, ou mais precisamente produzidas
pelas relações sociais ... de sexo.139 (p. 4, tradução nossa).

Para situar essa leitura, é importante retomar que a perspectiva aberta pelas feministas
negras nos Estados Unidos, tal como apresentamos no capítulo 1, aponta a existência de diver-
sas relações sociais (de sexo, classe e raça) de igual importância e intimamente imbricadas, o
que exige que sejam analisadas juntas, conferindo a mesma importância a todas, tanto do ponto
de vista teórico, quanto político e metodológico. Não se pode pensar que uma dessas dimensões
seria a principal e que as outras poderiam ser apenas “acrescentadas”140 (FALQUET, 2016).
A crítica à perspectiva branca, ocidental e burguesa que dominava os estudos sobre as
mulheres e o feminismo, sobretudo por mulheres negras, lança o debate sobre a categoria “mu-
lheres” como não homogênea. O “ser mulher” passa a estar associado não apenas a gênero, mas
a outros marcadores, como raça e classe, entre outros, como explicam Davids e Driel (2003):

A crítica da perspectiva ocidental e burguesa do feminismo consistia sobretudo em


dizer que ser mulher sempre esteve ligada a questões de gênero, mas não

137
“[...] they view the differences among women as produced by the material conditions in which women are
placed.” (WAYNE, 1992, p. 249)
138
“Mon usage du qualificatif ‘matérialiste’ a plus vocation à expliciter une position dans le champ féministe, que
dans le champ marxiste.” (FALQUET, 2016, p. 4)
139
“[...] une analyse centrée sur les dimensions matérielles et structurelles de la situation sociale des femmes et
des hommes comme individus, mais surtout comme classes de sexe, situations vues comme dialectiquement pro-
duites l'une par l'autre, ou plus précisément produites par des rapports sociaux... de sexe.” (FALQUET, 2016, p.
4)
140
Falquet (2016) pontua que prefere essa perspectiva de imbricação das relações sociais (“l’imbrication des rap-
ports sociaux”) à concepção de interseccionalidade, ponto que não aprofundaremos aqui. Mas é importante desta-
car que o que se considera é que as relações de sexo, raça e classe já são imbricadas, não se trata de “adicionar
variáveis”.
154
exclusivamente. O gênero também é composto de etnia, classe, religião, orientação
sexual, para citar alguns marcadores. Para deixar aparecer esses marcadores, e fazer
justiça às diferenças e diversidade de mulheres, o gênero é utilizado como conceito
em estratos141.142 (DAVIDS & DRIEL, 2003, p. 75, tradução nossa)

Galvão (2011), a partir das formulações de Mouriaux, afirma que por isso se fala em
feminismos, não em feminismo no singular. Na sociedade capitalista, as mulheres são objeto
de uma opressão específica, articulada aos diversos pertencimentos de classe. As diversas mu-
lheres não veem da mesma maneira o que seria sua emancipação, uma vez que suas origens
sociais são diferentes. Segundo Miliband, citada por Galvão (2011), o posicionamento na es-
trutura social é determinante para as maneiras pelas quais as pessoas vivenciam a opressão, em
conformidade com o que apresentamos a partir de Wayne (1992) sobre a “crítica feminista
materialista”.
Galvão (2011) considera que esses pertencimentos de classe são trabalhados por autoras
como Helena Hirata, que revela a indissociabilidade entre exploração no trabalho assalariado e
opressão de sexo, Danièle Kergoat, com a análise sobre as relações sociais de sexo e a divisão
sexual do trabalho, e Jules Falquet, que, fazendo referência às formulações de Kergoat, aborda
as relações de poder (relações sociais de sexo, de “raça” e de classe) como sobrepostas. Nesta
seção, trabalharemos a partir das contribuições de Danièle Kergoat e de Jules Falquet, sobre as
quais situaremos uma breve apresentação antes de passar às suas formulações.
Danièle Kergoat é socióloga, diretora de pesquisa emérita em sociologia no “Centre
national de la recherche scientifique” (CNRS) (KERGOAT, 2009). Reconhecida internacio-
nalmente por estudos sobre a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo, “conceitos
importantes para as ciências sociais de uma forma geral e, para a sociologia das relações de
gênero, em particular” (LOMBARDI, 2011, p. 319), por situarem a indissociabilidade entre
relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. Kergoat (2010b) afirma que a experiência
vivida “como militante feminista e sindicalista tornou impossível [...] separar ou hierarquizar
os efeitos das relações de classe e de gênero” (p. 93). Segundo Lombardi (2011), “Danièle
inovou o pensamento sociológico ao considerar que as relações sociais de sexo identificam uma

141
Davids e Driel (2003) consideram que o termo “estratos” implica uma conotação hierárquica, por isso preferem
o termo “dimensões”, tendo em vista que as dimensões do gênero são diferenciadas para análise, mas na prática
se entrelaçam em uma interação dinâmica.
142
“La critique de la perspective occidentale et bourgeoise du féminisme consistait surtout à dire qu’être femme
était toujours lié à des questions de genre, mais pas exclusivement. Le genre se compose aussi de l’éthnicité, de la
classe, de la religion, des orientations sexuelles, pour ne citer que quelques marqueurs. Pour laisser apparaître ces
marqueurs, et pour rendre justice aux différences et à la diversité des femmes, le genre est utilisé comme un concept
à strates. ” (DAVIDS & DRIEL, 2003, p. 75)

155
tensão entre os grupos de homens e mulheres que atravessa todo o campo social e que se revela
permanente, quando se trata do trabalho e da sua divisão social” (p. 319-20).
Jules Falquet, tendo estudado Ciência Política, Sociologia e Antropologia, é pesquisa-
dora na área de Ciências Sociais, ativista feminista, professora da Universidade Paris Diderot,
onde integra como pesquisadora o “Centro de Documentação, Pesquisa e Estudos Feministas”
(CEDREF). Em entrevista com Mirla Cisne e Telma Gurgel, Falquet (2014a) conta sobre seu
percurso de pesquisa e ativismo, bem como as dificuldades de conciliar essas duas atividades.
No mestrado, desenvolveu sua pesquisa no México, junto às mulheres indígenas de Chiapas,
depois morou em El Salvador para desenvolver pesquisa de doutorado sobre a participação das
mulheres no processo revolucionário armado.
Jules Falquet (2014a) situa a abordagem feminista materialista na França desde o final
dos anos 1970 e destaca como expoentes Christine Delphy, Colette Guillaumin, Nicole-Claude
Mathieu, Monique Wittig, Monique Plaza, entre outras. Essa perspectiva, de acordo com Fal-
quet (2016), recorre a ferramentas materialistas e a uma perspectiva histórica143 para evidenciar
as relações sociais do sexo (“rapports sociaux de sexe”). É importante destacar que Jules Fal-
quet (2014a) se situa entre as teóricas materialistas e se posiciona no sentido de indicar sua
filiação a essa corrente, que considera ainda pouco conhecida, como afirma no seguinte trecho
da entrevista:

Tristemente, as pensadoras francesas mais conhecidas, ainda bem que elas não se rei-
vindicaram como feministas, são as diferencialistas-essencialistas que acreditam que
existe tal diferença natural dos sexos, como Irigaray, Cixous e Kristeva. O pensa-
mento materialista e antinaturalista de Mathieu, Wittig, Guillaumin, Delphy, entre
outras, não é muito conhecido ainda, apesar de suas contribuições para a análise das
raízes da opressão das mulheres. (p. 250-1)

No que se refere às relações entre homens e mulheres, Kergoat (2010a) considera que
diferentes terminologias podem ser utilizadas para tratar dessas relações: relações sociais de
sexo (“rapports sociaux de sexe”), gênero ou relações de gênero. Antes de conceituar “relações
sociais de sexo” (“rapports sociaux de sexe”), faremos um percurso explicitando o conceito de
relações sociais (“rapports sociaux”) e a diferenciação entre esta concepção e “relações inte-
rindividuais” (“relations sociales”).

143
A autora destaca que não se trata de uma perspectiva estritamente marxista e aponta a diversidade de correntes
materialistas, marxistas e socialistas no âmbito do feminismo (FALQUET, 2016). Detalhar essas vertentes foge
ao escopo deste trabalho, sendo pertinente destacar que não pretendemos fazer uma apresentação exaustiva, mas
nos restringir aos autores que delimitamos como objeto de estudo e que não dão conta da totalidade do campo
teórico.
156
No que tange à definição de “relações sociais” (“rapports sociaux”), Kergoat (2010b)
estabelece que: “Uma relação social é uma relação antagônica entre dois grupos sociais, instau-
rada em torno de uma disputa [enjeu]” (p. 94). Considerando que se trata de “uma tensão que
atravessa o campo social” (KERGOAT, 2009, p. 71), a autora sublinha que “relação social”
não é algo passível de reificação. Uma tensão atravessa a sociedade e se cristaliza em questões
em torno das quais os seres humanos se confrontam para produzir e reproduzir a sociedade,
bem como para produzir novas maneiras de pensar e agir. Nos termos da autora: “Essa tensão
produz certos fenômenos sociais e, em torno do que neles está em jogo, constituem-se grupos
de interesses antagônicos” (KERGOAT, 2009, p. 71).
Destacamos que o termo em francês a que se refere Kergoat (2010a) é “enjeu”, e colo-
camos a citação original em nota devido a questões de tradução. Na perspectiva adotada, “en-
jeu” poderia ser compreendido como algo entre “questão” e “o que está em jogo”, no sentido
de enfatizar relações de poder e de força características das tensões que acabam se cristalizando
em torno de algo144. Uma nota de rodapé, no texto de Kergoat (2009) traduzido para o portu-
guês, destaca que “enjeu” refere-se a “o que está em jogo, em disputa, o desafio” (p. 71).
Nem as questões nem os grupos sociais estão constituídos previamente; os grupos se
constituem em torno de uma questão (“enjeu”), na dinâmica das relações sociais, que são múl-
tiplas e imbricadas, o que leva a autora a recorrer à concepção de “consubstancialidade” para
se referir à imbricação das relações sociais de sexo, de raça e de classe:

São essas questões que são constitutivas dos grupos sociais. Estes não estão dados
previamente, eles se criam em torno dessas questões pela dinâmica das relações so-
ciais. Finalmente, as relações sociais são múltiplas e nenhuma delas determina a tota-
lidade do campo que estrutura. É o conjunto que elas tecem a trama da sociedade e
impulsionam sua dinâmica: são consubstanciais. (KERGOAT, 2010a, p. 62, tradução
nossa)

Retomaremos mais à frente a concepção de “consubstancialidade”, elaborada por


Danièle Kergoat, no final dos anos 1970 (HIRATA, 2014). Nesse momento importa destacar
que, na leitura de Kergoat, as relações sociais são múltiplas e imbricadas, por isso Falquet
(2016) especifica que essa corrente materialista mostra-se crítica a perspectivas marxistas “or-
todoxas”, que tendem a centrar as discussões em torno das relações de classe – sendo esse termo
circunscrito a “burguesia-proletariado” – e a “adicionar” as questões relativas a mulheres, sexo
ou raça, sem conferir a mesma importância nem buscar compreender como se articulam. Dife-
rentemente, Falquet (2016) considera que a leitura centrada na imbricação entre relações sociais

144
“[…] le rapport social peut être assimilé à une « tension » qui traverse la société ; cette tension se cristallise peu
à peu en enjeux autour desquels, pour produire de la société, pour la reproduire ou « pour inventer de nouvelles
façons de penser et d’agir », les êtres humains sont en confrontation permanente.” (KERGOAT, 2010a, p. 62)
157
(“rapports sociaux”) caracteriza essa perspectiva materialista e a diferencia das abordagens
marxistas “ortodoxas”.
Além disso, Falquet (2016) considera que muitas análises marxistas perdem a dimensão
das relações sociais ao buscar trabalhar as relações de classe em termos marxistas e o que diz
respeito a sexo-gênero a partir de outras categorias (cultural, ideológica, identitária). Para a
autora, recorrer à categoria de gênero isoladamente, sem estar articulada à teoria das relações
sociais de sexo, promove uma despolitização por deixar permanecer uma falsa simetria entre
os “dois gêneros”.
Tendo apresentado uma primeira delimitação da concepção de relações sociais (“rap-
ports sociaux”), é importante situar que esta difere de “relações interindividuais” (“relations
sociales”). Para compreender essa diferenciação, consideramos interessante partir de uma aná-
lise traçada por Falquet (2016), que diferencia as perspectivas materialistas do sistema sexo-
gênero e também da abordagem proposta por Butler.
A autora especifica que o sistema de sexo e gênero postula a existência de um substrato
natural (sexo, biologia, procriação) sobre o qual seria construído o gênero (FALQUET, 2016).
Como apresentamos na seção 2.2, a concepção de sistema sexo/gênero, proposta pela socióloga
Ann Oakley, nos anos 1970, situava o gênero como um conjunto arbitrário de papéis sociais,
mas mantinha a ideia de que o sexo era natural, o que, para Falquet (2014a), significava somente
deslocar o problema. Nessa leitura, o gênero seria “social”, mas Falquet (2016) especifica que
o termo “social” nessa abordagem aparece no sentido de “cultural”, como efeito da introjeção
de “papéis sexuais”, que aparecem renomeados como “normas de gênero” ou “identidade”. Ao
contrário, o “social” no sentido de “rapports sociaux” é algo que Falquet (2016) considera que
essa corrente falha em compreender.
Esse é um ponto importante e que tem implicações inclusive do ponto de vista da tradu-
ção do termo “rapports sociaux”. Em francês, existem os termos “relations sociales” e “rap-
ports sociaux”, que Falquet (2016) especifica que se referem, respectivamente, aos níveis micro
e macro, interindividuais e estruturais. Os correspondentes desses dois termos não existem em
idiomas como inglês, espanhol ou português, como pontua Falquet (2014b) em uma citação que
sintetiza essa diferença entre os termos:

[...] existe em inglês, espanhol ou português um só termo em vez de dois, para desig-
nar de uma vez os rapports sociais e as relações sociais, o que leva a confundir os
níveis micro (relações sociais, interações entre indivíduos, mais facilmente nego-
ciáveis e modificáveis) e macro (rapports sociais, invisíveis à olho nu e muito estáveis
fora das lutas coletivas). (FALQUET, 2014b, p. 12-3)

158
Em português, optamos por traduzir por “relações interindividuais” (“relations socia-
les”) e “relações sociais” (“rapports sociaux”), mas, de fato, existe um sentido dessas categorias
no francês que a língua portuguesa não permite exatamente captar. É interessante notar que
Falquet (2016) traça essa diferenciação em um momento da entrevista em que comenta justa-
mente que talvez não seja coincidência que as teorias sexo-gênero tenham surgido em países
em que essa distinção é menos clara do que na língua francesa.
Falquet (2016) indica que a teoria do sistema sexo-gênero foi criticada por Butler, porém
“quase 20 anos após os primeiros trabalhos de Mathieu e em uma base muito mais fraca”145 (p.
4, tradução nossa). A autora concorda com a crítica de Butler à ideia de uma construção do
gênero a partir do sexo, mas pontua que uma perspectiva diferente dessa concepção do gênero
construído a partir do sexo já estava presente nas perspectivas materialistas francesas dos anos
1970. Nas palavras de Falquet (2014a):

Isso foi criticado nos anos 1990 por Judith Butler, com muita razão, quando ela afir-
mou que o gênero estava construído sobre uma base, na verdade, inexistente (falando
que o gênero é apenas um discurso reiterado que não tem base real). Mas acho que as
feministas materialistas, muitos anos antes, já anteciparam esse problema – melhor
dizendo, tinham evitado a apropriação da lógica “do gênero social construído na base
natural do sexo” para conceber, numa perspectiva puramente social, os rapports so-
ciaux de sexe como o que cria as mulheres e os homens. (p. 250)

O conceito de “rapports sociaux” é fundamental para nossa pesquisa, uma vez que nos
parece que a centralidade da dimensão material possibilita uma análise que coloca outas possi-
bilidades de leitura no que se refere ao problema da opressão das mulheres. Parece-nos que esse
primeiro ponto, a diferenciação entre “relations sociales” e “rapports sociaux”, já indica uma
diferença de ênfase. Falquet (2014a) concorda com Butler, mas chama a atenção para a dimen-
são material e estrutural que não recebe ênfase em sua leitura: “as reflexões de Butler, que são
antinaturalistas e se apoiam parcialmente em Wittig, são mais tardias e bem menos radicais que
as análises materialistas francófonas, porque se situam num plano bem mais individual, inter-
pessoal e interacionista” (p. 251).
A leitura de Butler seria, portanto, mais voltada para o nível das relações interindividu-
ais (“relations sociales”), enquanto a perspectiva materialista à qual se filia Jules Falquet (2016)
chama a atenção também para a dimensão estrutural das relações sociais (“rapports sociaux”),
que são mais difíceis de mudar, como afirma a autora: “Um dos pontos fundamentais da abor-
dagem materialista é, portanto, ser antinaturalista e distinguir claramente as relações interindi-
viduais das relações sociais, estruturais e muito mais difíceis de ‘perturbar’, sobretudo

145
“[...] justement critiquée par Butler, mais presque 20 ans après les premiers travaux de Mathieu et sur des bases
bien plus faibles” (FALQUET, 2016, p. 4)
159
individualmente”146 (p. 5, tradução nossa). Retomando a já citada afirmação de Falquet (2014b,
p. 12-3) para reforçar esse ponto: nos níveis micro (interações entre indivíduos) é mais fácil
haver possibilidades de negociação e modificação, enquanto o nível macro (rapports sociais) é
muito difícil de modificar, e as possibilidades de alterações são circunscritas pela autora ao
âmbito das lutas coletivas.
Uma vez delimitadas as concepções de relações sociais (“rapports sociaux”) e relações
interindividuais (“relations sociales”), trabalharemos o conceito de “relações sociais de sexo”
(rapports sociaux de sexe), destacado por Falquet (2014a) como característico da perspectiva
materialista com que ela trabalha. Em 1971, Nicole-Claude Mathieu sublinhava a importância
do estudo não apenas sobre as mulheres isoladamente, mas de “se pensar as mulheres e os
homens de forma relacional, dialética, ou seja, social, como classes de sexo” (p. 250). Em 1978,
Colette Guillaumin propôs o conceito de “sexagem” para tratar das “relações sociais de apro-
priação individual e coletiva das mulheres como classe de sexo, pelos homens como classe de
sexo” (FALQUET, 2014a, p. 249). Vejamos o que se delineia na perspectiva aberta por essas
autoras, na leitura de Falquet (2016):

[...] homens e mulheres eram o produto – como indivíduos e como grupos – das rela-
ções sociais. Elas não procuraram saber se eram homens, mulheres, intersexos: a ques-
tão estava em outro lugar. Além disso, elas também não colocam a perspectiva de
papéis ou identidades no centro da análise. O cerne da análise é que existe uma orga-
nização do trabalho, uma divisão do trabalho que constitui a questão (enjeu) das rela-
ções sociais de sexo e é isso que a faz com que alguém seja gradualmente constru-
ído(a) e colocado(a) em uma posição de homem ou de mulher.147 (FALQUET, 2016,
p. 5, tradução nossa).

Procuremos detalhar as principais formulações condensadas nessa citação. Falquet


(2014a) especifica que, nessa abordagem, a partir de uma análise no plano estrutural e coletivo,
a definição de “mulheres” e “homens” parte da posição na organização do trabalho, em sua
lógica de exploração do trabalho de um grupo por outro. Segundo seus termos: “Nessa pers-
pectiva, as mulheres e os homens não são definidos numa base biológica, mas, sim, pela sua
posição na organização do trabalho, especificamente na divisão sexual do trabalho” (p. 250).

146
“L'un des points fondamentaux de la démarche matérialiste, c’est donc d’être anti-naturaliste et de distinguer
clairement les relations sociales (interindividuelles) des rapports sociaux, structurels et bien plus difficiles à « trou-
bler », surtout individuellement.” (FALQUET, 2016, p. 5)
147
“[...] hommes et femmes étaient le produit – en tant qu’individus et en tant que groupes – de rapports sociaux.
Elles ne cherchaient aucunement à savoir s’il s’agissait de mâles, de femelles, d’intersexes : la question était ail-
leurs. Du coup, elles ne situent pas non plus la perspective des rôles ou des identités au cœur de l’analyse. Le cœur
de l’analyse, c’est qu’il existe une organisation du travail, une division du travail qui constitue l’enjeu des rapports
sociaux de sexe et c’est cela qui fait qu’on est progressivement construit-e et placé-e dans une position d’homme
ou de femme.” (FALQUET, 2016, p. 5)
160
Recorreremos às formulações de Jules Falquet e de Danièle Kergoat para especificar
como as autoras compreendem essa análise que parte da centralidade do trabalho, mas, antes
disso, é importante alertar que o termo “posição” pode dar a impressão de algo fixo. Como
veremos, nas perspectivas materialistas com as quais trabalharemos, esse termo não é associado
à fixidez. Kergoat (2010b) formula esse aspecto de maneira bastante precisa ao pontuar que:
“não há propriamente ‘posições’ ou, mais especificamente, estas não são fixas; por estarem
inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação” (p. 95). Assim,
quando falamos em “posições nas relações sociais”, trata-se de um entrecruzamento dinâmico
de relações sociais múltiplas e imbricadas, como detalharemos a seguir.
É importante enfatizar que a concepção de “relações sociais de sexo” (rapports sociaux
de sexe) não faz referência a um destino biológico. Os grupos sexuais são construtos sociais,
produzidos por tensão, oposição, antagonismo, em torno de uma questão (enjeu). Essa questão,
no quadro da perspectiva adotada por Kergoat (2010a), é a do trabalho. A autora lembra que
existe uma base material, mesmo que também haja uma base ideal, e aqui remete a Foucault
para pontuar que todo poder requer um saber, no caso o naturalismo que funciona como ideo-
logia da legitimação.
Existem elementos corporais – tidos como símbolos de masculinidade ou feminilidade
– sobre os quais essa organização do trabalho se apoia, mas de maneira imperfeita e arbitrária.
Falquet (2016) estabelece uma comparação entre as categorias de sexo e raça no que se refere
à arbitrariedade dessas construções e afirma que “os elementos fenotípicos do sexo ou da raça
têm uma materialidade, é claro, mas sua realidade intelectual se deve a uma construção ideoló-
gica, a construção de uma diferença”148 (p. 5, tradução nossa).
Quando as autoras propõem a questão do trabalho no cerne da problemática das relações
sociais de sexo, não se trata de trabalho assalariado ou profissional, mas sendo esse termo com-
preendido em sentido amplo (incluindo trabalho considerado como produtivo, reprodutivo, pro-
criativo, sexual, emocional etc.) (FALQUET, 2014a). Kergoat (2010a) propõe que se trata de
trabalho como “produção do viver” (“production du vivre”, expressão de Hirata et Zarifian,
retomada pela autora). Inclui, portanto, o trabalho doméstico, compreendido não apenas como
tarefas domésticas, mas o cuidado (corporal e afetivo) com os filhos, acompanhamento de sua
escolarização, gestação dos filhos. Em nível individual, o trabalho é produção de si, uma vez
que, como propõe Dejours citado por Kergoat (2010a), não se trata apenas de transformar o

148
“[...] les éléments phénotypiques du sexe ou de la race ont une matérialité, bien sûr, mais leur réalité intellec-
tuelle est due à une construction idéologique, la construction d’une différence” (FALQUET, 2016, p. 5)

161
mundo, mas também a si mesmo, de maneira que trabalho e subjetividade devem ser pensados
juntos.
Kergoat (2009) propõe que a divisão sexual do trabalho – marcada pela presença pre-
dominante de mulheres na esfera reprodutiva e de homens na esfera produtiva e em funções a
que se confere maior valor social (políticas, religiosas, militares etc.) – tem como princípios
organizadores: “o da separação (existem trabalhos de homens e outros de mulheres) e o da
hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um de mulher)” (p. 67). A aplicação
desses princípios depende do já referido processo de legitimação pela ideologia naturalista, que
obscurece o fato de que as diferenças entre as atividades – de homens e mulheres – são cons-
truções sociais, e não deccorrentes de uma causalidade biológica.
Na perspectiva adotada por Kergoat (2009), “a divisão sexual do trabalho tem o status
de enjeu das relações sociais de sexo” (p.71). Em torno dessa questão (enjeu), constituem-se os
grupos sociais homens e mulheres, sendo a relação entre eles antagônica e hierárquica, de ma-
neira que se trata de uma relação de poder, de dominação. Para Kergoat (2009), “essa cons-
trução social tem uma base material e não é unicamente ideológica; em outros termos, a ‘mu-
dança de mentalidades’ jamais acontecerá de forma espontânea, se estiver desconectada da di-
visão de trabalho concreta” (p. 71).
Muitas vezes, a dimensão de relações sociais (rapports sociaux) é negligenciada e pro-
duzem-se análises “em termos de ‘dupla jornada’, de ‘acumulação’ ou de ‘conciliação de tare-
fas’, como se fosse somente um apêndice do trabalho assalariado” (KERGOAT, 2009, p. 70).
Kergoat (2009) faz referência à diferenciação entre relações interindividuais (“relations soci-
ais”) e relações sociais (“rapports sociaux”), para pontuar que:

A noção de rapport social aborda a tensão antagônica que se desenrola, em particular,


em torno da questão da divisão sexual do trabalho e que termina na criação de grupos
sociais com interesses contraditórios. A denominação relations sociais remete às re-
lações concretas que os grupos e indivíduos mantêm. (p. 72)

De maneira a exemplificar a importância da consideração desses dois níveis, Kergoat


(2010b) recorre ao sentimento de mulheres, sobretudo jovens, de que a igualdade estaria garan-
tida e a divisão das tarefas seria “um problema de negociação entre os indivíduos que compõem
um casal, uma questão de simples ‘boa vontade’” (p. 94). A autora aponta que tal sentimento
não corresponde à realidade nem às estatísticas, constituindo uma ilusão decorrente da confusão
entre os dois níveis distintos de realidade, o das relações interindividuais e o das relações soci-
ais. Segundo a autora:

162
A distinção entre relação intersubjetiva e relação social permite compreender que, se
a situação mudou de fato em matéria de relações intersubjetivas entre os sexos e nos
casais, as relações sociais, porém, continuam a operar e a se manifestar sob suas três
formas canônicas: exploração, dominação e opressão (que podem ser ilustradas pelas
diferenças salariais, pela maior vulnerabilidade e maior risco de ser vítima de vi-
olências). (KERGOAT, 2010b, p. 95)

Nesse quadro de análise, as formas sociais “casal” ou “família” devem ser compreendi-
dos a partir desses dois níveis de análise, ou seja, considerando o trabalho como questão (enjeu)
em torno da qual se constituem grupos entre os quais a relação é antagônica e hierárquica, e
também considerando as relações interindividuais concretas, onde há um espaço de negociação.
Nos termos de Kergoat (2009), essas formas sociais “são ao mesmo tempo expressão das re-
lações (rapports) sociais de sexo configuradas por um sistema patriarcal e também espaços de
interação social que vão, eles mesmos, recriar o social e dinamizar parcialmente o processo de
sexuação do social” (p. 72). Destaquemos que a autora sublinha dinamizar parcialmente, uma
vez que, como afirma Falquet (2014b), no nível de interações entre indivíduos é mais fácil haver
negociação e modificação, diferentemente do nível dos rapports sociais, onde se coloca maior
dificuldade de modificação.
Para empreender análises que articulem esses dois níveis, Kergoat (2009) faz referência
a Joan Scott para afirmar ser necessário “compreender historicamente como as relações sociais
tomaram corpo nas instituições e legislações (o casal, a família, a filiação, o trabalho, o Código
Civil etc.) que têm por função cristalizar tudo, legitimando o estado das relações de força entre
os grupos num momento dado” (p. 73). Esse aspecto destacado pela autora é importante porque
procuramos enfatizar a mediação que faz com que a linguagem não se faça na abstração dos
discursos, e aqui Kergoat (2009) destaca instituições e legislações como elementos dessa me-
diação.
Ao mesmo tempo, é preciso levar em conta elementos dinâmicos que poderiam intro-
duzir movimento naquilo que está cristalizado. Nos termos da autora, devemos “expor as novas
tensões geradas na sociedade, procurando compreender como elas deslocam as questões e per-
mitem potencialmente deslegitimar as regras, normas e representações que apresentam como
grupos ‘naturais’ os grupos sociais constituídos em torno dessas questões” (KERGOAT, 2009,
p. 73).
Finalmente, Kergoat (2009) coloca a seguinte questão: “É necessário centrar a reflexão
somente sobre as relações sociais de sexo ou, ao contrário, tentar pensar o conjunto das relações
sociais em sua simultaneidade?” (p. 73). Destacamos, nesta seção, que a leitura de Kergoat
enfatiza a interdependência das relações sociais. Porém, como teorizar essa interdependência?
Kergoat (2010b) atribui ao feminismo negro o mérito de desconstruir o universalismo, mas

163
coloca alguns questionamentos à noção de interseccionalidade, tal como definida por Kimberlé
Crenshaw, como apresentado no capítulo 1. A autora recorre a Elsa Dorlin para sublinhar que
a concepção de interseccionalidade toma as relações de maneira fixa – e não dinâmica – e re-
toma o discurso dominante que estabelece categorizações a partir de identidades previamente
definidas.
A leitura proposta por Kergoat (2010b) considera as relações sociais como múltiplas e
imbricadas e, com o conceito de “consubstancialidade”, procura analisar práticas sociais
móveis, ambíguas e ambivalentes, a partir do “entrecruzamento dinâmico e complexo do con-
junto de relações sociais, cada uma imprimindo sua marca nas outras, ajustando-se às outras e
construindo-se de maneira recíproca” (p. 100).
Existe, portanto, uma discussão em torno das concepções de “consubstancialidade” e
“interseccionalidade”, sobre a qual não nos estenderemos aqui149. Destacamos apenas que Jules
Falquet e Danièle Kergoat não trabalham a partir de categorias identitárias, por isso a perspec-
tiva da consubstancialidade nos parece mais alinhada ao que sustentamos em nosso trabalho.
Como discutimos, a formulação de relações sociais (“rapports sociaux”) não toma como dados
previamente nem as questões nem os grupos sociais; os grupos se constituem em torno de uma
questão (enjeu), de maneira dinâmica, nas múltiplas relações sociais. Nosso objetivo é enfatizar
a imbricação das relações sociais e destacar as contribuições de Kergoat (2010b) no sentido de
sustentar o dinamismo e a co-produção das relações sociais de classe, gênero e “raça”.
Essa imbricação é evidenciada por Falquet (2008) ao discutir o momento atual do capi-
talismo e como se configuram as relações de poder (relações sociais de sexo, de “raça” e de
classe) a partir do “trabalho considerado feminino”, que abarca tarefas geralmente destinadas
às mulheres: o trabalho sexual, de manutenção dos membros do grupo familiar e de criação das
crianças, que envolvem uma combinação de trabalho “doméstico” e emocional. Às mulheres
são atribuídas funções com baixa remuneração, como, por exemplo, o trabalho doméstico e o
cuidado de crianças transferido para babás, articulado à ideia de “amor maternal” como uma
característica supostamente “natural” das mulheres.
Em um contexto de crise do Estado de Bem-Estar Social – que produz o efeito, sobre-
tudo a partir dos anos 1990, de transferir uma sobrecarga de trabalho para o setor privado e para
a família –, a classe dos homens transfere esse trabalho à das mulheres, e estas, tanto as mulhe-
res dos países ricos quanto as privilegiadas dos países mais pobres, transferem esse trabalho

149
A esse respeito, ver, por exemplo, HIRATA, H. Gênero, classe e raça : Interseccionalidade e consubstanciali-
dade das relações sociais. Tempo social, São Paulo , v. 26, n. 1, p. 61-73, jun. 2014. Disponível em :
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702014000100005.
164
para outras pessoas, sobretudo mulheres imigrantes. Falquet (2008) sintetiza como as relações
de poder (relações sociais de sexo, de “raça” e de classe), a partir do “trabalho considerado
feminino”, possibilitam a continuidade do sistema:

De fato, não se trata somente de constatar que as mulheres são margem de manobra
sonhada pelo sistema, amortecendo a crise por meio de seu sobretrabalho mal-pago
[...] mas de saber como o sexo, a “raça” e a classe são mobilizadas e reorganizadas
para construir uma nova divisão social do trabalho ao nível da família, de cada Estado
e do conjunto do globo. (p. 128)

Falquet (2008) resgata o trabalho de Evelyn Nakano Glenn sobre articulações entre
“raça”, gênero e inserção no mercado de trabalho, destacando como historicamente, desde a
escravidão, categorias da população, como as mulheres e o(a)s negro(a)s, são destinados ao
trabalho de cuidado (care) e como essas categorias são privadas de direitos e de cidadania pelo
Estado e pela lei.
No contexto brasileiro, temos a já citada tão recente aprovação dos direitos para os em-
pregados domésticos. Assim, “o igualitarismo da social-democracia dos chamados países de-
senvolvidos beneficia, pois, uma minoria de mulheres, que encontram substitutas para o traba-
lho considerado feminino, e uma maioria de homens” (GALVÃO, 2011, p. 120).
Por isso, Falquet (2014a) considera que a ênfase na questão da normatividade não dá
conta da complexidade do problema, uma vez que existe uma dimensão estrutural que deve ser
levada em conta. Por exemplo, ao tratar do aceso das mulheres ao mercado de trabalho, a autora
afirma que “tal igualdade não é verdade, sobretudo, para aquelas mulheres que não têm pri-
vilégio de raça e de classe” (p. 258). Ela refere um exemplo brasileiro: a maioria composta por
mulheres negras entre as empregadas domésticas e brancas entre as empregadoras. Nesse sen-
tido, o real problema é a organização do trabalho injusta e desigual, ou seja, a sua divisão com
base na lógica de sexo, de raça e de classe. Nas palavras de Falquet (2014a):

[...] o problema principal atrás das normas, que são as estruturas. As lógicas estruturais
são a razão das normas. Portanto, acho que o problema não são as normas, as normas
mudam o tempo todo: o importante é lutar contra as causas estruturais da situação.
Nesse caso, contra a divisão sexual, a divisão racial e a divisão social do trabalho. (p.
256)

A análise da opressão das mulheres articulada à centralidade do trabalho constitui, por-


tanto, uma característica importante da perspectiva feminista materialista proposta por Jules
Falquet. Mas é interessante pontuar que essa mesma ênfase ao trabalho é destacada pela psica-
nalista Pascale Molinier (2008), autora que será uma referência fundamental no capítulo 3. Em
artigo que propõe uma leitura crítica das formulações de “inveja do pênis” e “complexo de

165
masculinidade”, Molinier (2008) afirma que “o trabalho é pelo menos tão central quanto a se-
xualidade”150 (p. 173, tradução nossa). Segundo a autora:

[...] o desaparecimento da divisão sexual do trabalho transformaria completamente a


ideia que se faz de identidades de gênero, para todos os seres humanos e independen-
temente de suas sexualidades. Este desaparecimento não está na ordem do dia. A prin-
cipal resistência é que os homens não têm uma vagina na cabeça e não estão prontos
para ter uma, não tendo no momento nenhum interesse em investir as profissões fe-
minizadas (em particular as profissões do cuidado), mal remuneradas, pouco valori-
zadas.151 (MOLINIER, 2008, p. 174, tradução nossa)

Tendo apresentado contribuições de perspectivas feministas materialistas, a partir de


Danièle Kergoat e de Jules Falquet, consideramos necessário pontuar uma ressalva. A antropó-
loga Gayle Rubin (1975/2017), em “The Traffic in Women: Notes on the ‘political economy’ of
sex”, ao discutir aproximações entre marxismo e feminismo, coloca um questionamento que
nos parece pertinente. É importante ressaltar que esse trabalho é anterior ao de Falquet, portanto
não se trata de um diálogo teórico entre ambas, mas parece-nos que há considerações relevantes
para pensar o que foi aqui apresentado.
Rubin (1975/2017) lança interrogações a trabalhos que buscam localizar a opressão das
mulheres na própria dinâmica capitalista, a partir da relação entre o trabalho doméstico e a
reprodução do trabalho, de maneira a colocar a própria definição da categoria “mulheres” na
definição de capitalismo. Considerando as formulações de Marx sobre a necessidade da repro-
dução da força de trabalho para a manutenção do sistema, a autora pontua que Marx circuns-
creve os bens (alimentos, vestimenta, abrigo etc.) necessários para manter a saúde do trabalha-
dor, de maneira que possa continuar trabalhando. No entanto, Rubin (1975/2017) lembra que
ainda existe a necessidade de trabalho para que esses bens sejam úteis (cozinhar os alimentos,
lavar as roupas, limpar a casa etc.), de maneira que o trabalho doméstico é essencial para a
reprodução do trabalhador. Como em geral esse trabalho é desempenhado pelas mulheres, estas
aparecem como condição do capitalismo, e, além disso, como esse trabalho muitas vezes não é
remunerado, contribui para a quantia final de mais-valia apropriada pelo capitalista.
Entretanto, Rubin (1975/2017) destaca que existe uma diferença entre afirmar a utili-
dade das mulheres para o capitalismo e sustentar que essa utilidade explica a gênese da opressão
da mulher. A autora lembra que a literatura etnográfica está repleta de descrições de práticas

150
“[...] le travail est au moins aussi central que la sexualité” (MOLINIER, 2008, p. 173)
151
“[...] la disparition de la division sexuelle du travail bouleverserait complètement l’idée que l’on se fait des
identités de genre, pour tous les êtres humains et quelles que soient leurs sexualités. Cette disparition n’est pas à
l’ordre du jour. La résistance principale est que les hommes n’ont pas de vagin dans la tête et ne sont pas prêts à
en avoir un, n’ayant pour l’instant aucun intérêt à investir les métiers féminisés (en particulier les métiers du care),
peu payés, peu valorisés” (MOLINIER, 2008, p. 174)
166
que revelam a opressão das mulheres em sociedades que não podem ser descritas como capita-
listas, destacando exemplos como estupro coletivo de mulheres em culturas do vale do Ama-
zonas e nas terras altas da Nova Guiné e o sexismo na Europa feudal pré-capitalista.
Não nos parece ser esta a intenção de Danièle Kergoat e de Jules Falquet, mas, de todo
modo, a análise que coloca a categoria trabalho no cerne da opressão das mulheres de fato situa
um limiar tênue, que pode levar à conclusão de que é o capitalismo que produz a opressão das
mulheres. Apesar dessa ressalva, consideramos as formulações de Danièle Kergoat e de Jules
Falquet importantes para nossa pesquisa porque nosso objetivo é chamar a atenção para a ma-
terialidade da opressão das mulheres, e a análise proposta pelas autoras nos ajuda a pensar essa
opressão no nosso momento histórico, na atual configuração do sistema capitalista.
Em entrevista com Judith Butler, Gayle Rubin (2003) aborda as condições de produção
de dois de seus principais textos e afirma que o público a quem ele se endereça faz parte dessas
condições. A autora destaca que “The Traffic in Women” foi produzido no início da segunda
onda do feminismo, quando a tradição marxista era forte, e endereçado a um público filiado a
essa corrente teórica. Como explicita:

“Traffic” foi, em larga medida, endereçado a um público encharcado de marxismo e


pode facilmente ser mal compreendido numa época em que as preocupações são tão
diferentes. Acho o atual descaso com o marxismo uma tragédia, e espero assistir a um
revival do interesse pela obra de Marx. Marx era um brilhante pensador social, e acho
que a análise política e social tem se debilitado por deixar de incorporar temas impor-
tantes do pensamento marxista. (RUBIN & BUTLER, 2003, p. 196)

A autora pontua, portanto, a quem se endereçava para, em seguida, afirmar a importân-


cia de Marx: se essa perspectiva foi alvo de suas críticas naquele momento, Gayle Rubin con-
sidera que, em outro momento e contexto, seria válido resgatar Marx. Da mesma maneira, em
nosso trabalho, pretendemos interrogar a psicanálise, por isso recorremos a autores que nos
fazem pensar e colocam questões que consideramos pertinentes. Assim como Gayle Rubin vê
em Marx pontos problemáticos e pontos consistentes, da mesma maneira nos situamos em re-
lação aos autores que trazemos para nosso trabalho.
Se nosso endereçamento fosse outro, os aspectos que enfatizamos dos autores seria di-
ferente. Se nosso objetivo fosse interrogar as perspectivas feministas materialistas, seria perti-
nente que nos detivéssemos sobre possíveis limitações dessas teorias. Mas nosso objetivo é
recolher dessas perspectivas elementos que nos fazem pensar, de maneira a interrogar a psica-
nálise, o que será desenvolvido nos capítulos 3 e 4. Ressalvas feitas, parece-nos que as propo-
sições de Danièle Kergoat e de Jules Falquet trazem contribuições importantes para pensar o
nosso momento histórico e a “utilidade” das mulheres nesse momento para o sistema capitalista

167
– e acreditamos que Gayle Rubin não discordaria dessa formulação, circunscrita a um momento
histórico específico.
Ainda sobre Jules Falquet, destacamos que a autora se situa em uma perspectiva crítica
em relação à categoria “identidade” e procura deslocar o foco da discussão, por considerar que
o mais importante não é trabalhar sobre os sujeitos do feminismo ou sua “identidade”, mas sim
pensar o feminismo como projeto político e o posicionamento social e ético de seus atores,
como destaca. Para Falquet (2014a): “o feminismo é um projeto político, isso é o que tem que
se debater, não sobre a ‘identidade’ de quem o constrói, mas sobre o projeto político e a posição
social (dominante ou não) e a ética de quem o constrói, muito mais do que sobre a ‘identidade’
dessas pessoas” (p. 254).
Essa crítica à identidade como mobilizador da luta política é articulada por Falquet
(2016) a dificuldades que podem ser ocasionadas pela compreensão em termos de interseccio-
nalidade. Segundo seus termos: “por vezes, sob a influência de uma compreensão redutora da
interseccionalidade, tendemos a pensar em termos de superposição ou adição de identidades, e
achamos difícil fazer alianças, porque elas assumem uma forma de justaposição e de múltiplas
contradições”152 (p. 16, tradução nossa). Em uma perspectiva de imbricação das relações soci-
ais, Falquet (2016) sustenta um projeto comum, que passaria pela tentativa de ultrapassar o
conjunto dessas relações sociais. De acordo com a autora:

Enquanto, na realidade, paradoxalmente, a maneira de nos organizarmos para lutas


efetivas talvez não seja partir de nossas respectivas posições nas relações sociais (com
todas as suas contradições internas e interindividuais), mas sobretudo buscar um pro-
jeto comum – de ultrapassamento de conjunto das relações sociais – que pode nos
unir. Ao invés de tentar mudar de lugar nos vasos comunicantes ou fazer circular di-
ferentemente os fluxos, o objetivo é destruir os recipientes e, assim, o conteúdo. Na
minha opinião, este é o melhor ponto de encontro, que torna possível uma união mais
ampla – pelo menos se aderimos à ideia de imbricação das relações sociais, e me
parece que é precisamente isso o que o coletivo Combahee River Collective propôs há
trinta e sete anos.153 (FALQUET, 2016, p. 16, tradução nossa)

152
“[...] parfois sous l’influence d’une compréhension réductrice de l’intersectionnalité, on a tendance à penser en
termes de superposition ou d’addition d’identités, et on a du mal à faire des alliances, car elles prennent une forme
de juxtaposition et de contradictions multiples.” (FALQUET, 2016, p. 16)
153
“Alors qu’en réalité, paradoxalement, la manière de s’organiser pour des luttes efficaces n’est peut-être pas de
partir de nos positions respectives dans les rapports sociaux (avec toutes leurs contradictions internes et interindi-
viduelles), mais plutôt de chercher le projet commun – de dépassement de l’ensemble des rapports sociaux – qui
peut nous unir. Au lieu de chercher à changer de place dans les vases communicants ou à y faire circuler autrement
les flux, le but est de détruire les contenants et ce faisant, le contenu. À mon avis, c’est le meilleur point de ral-
liement, qui rend possible une union très large – en tout cas si l’on adhère à l’idée de l’imbrication des rapports
sociaux, et il me semble que c’est précisément ce que proposait le Combahee River Collective il y a à peine trente-
sept ans.” (FALQUET, 2016, p. 16)

168
A discussão que Falquet (2014a) considera de fato importante é “o que significa ser
sujeito dependendo da posição que se tem na sociedade” (p. 255). Fazendo referência ao traba-
lho de Norma Alarcón e de Gloria Anzaldúa sobre as chicanas no âmbito do racismo na socie-
dade dos EUA, Falquet destaca uma divisão da subjetividade entre diferentes culturas e reali-
dades, o que envolve também questão da classe, das práticas sexuais, entre outras. Essa análise
possibilita questionar a própria concepção de sujeito e situa a ideia de “sujeito unificado” como
privilégio daqueles que ocupam posição de dominação. Para Falquet (2014a):

Nesse sentido, elas [Norma Alarcón e Gloria Anzaldúa] fizeram uma crítica da ideia
de que o sujeito é algo simples, necessariamente unitário, monolítico, não pro-
blemático. Se sentir como um sujeito unificado, elas disseram, é um privilégio das
dominantes. Nesse caso, as mulheres brancas de classe privilegiada pretendiam, por
meio do feminismo liberal, se tornar tão privilegiadas como os homens brancos da
classe dominante, sem pensar um só instante nas outras mulheres (nem nos homens
proletarizados e/ou racializados). (p. 255-6)

Também no sentido de articular unidade e auto-identidade a uma posição de privilégio,


Haraway (2009), ao discutir os “saberes situados” e pontuar que a categoria “não marcada” é,
na realidade, masculina e branca – como apresentamos na introdução desta tese – afirma que:
“Apenas aqueles que ocupam as posições de dominadores são auto-idênticos, não marcados,
incorpóreos, não mediados, transcendentes, renascidos” (p. 27).
A partir dessa proposição de que a ideia de “sujeito unificado” e “auto-idêntico” cons-
titui privilégio daqueles que ocupam posição de dominação, nos termos de Falquet (2014a) e
de Haraway (2009), podemos retomar a crítica ao “universalismo imaginário” que apresenta-
mos no capítulo 1: o “sujeito unificado” e supostamente “universal” seria homem, branco, he-
terossexual, cisgênero, de classe privilegiada. Esse “sujeito universal” não precisa da linguagem
das identidades ou das posições nas relações sociais – afinal ele encarna o supostamente uni-
versal. Ao contrário, aqueles que não ocupam lugar de privilégio não têm essa experiência de
unidade; seus múltiplos pertencimentos (imbricação das relações sociais) rompem qualquer
possibilidade de unidade.
A perspectiva de imbricação das relações sociais, aberta pelas abordagens feministas
materialistas, com as quais trabalhamos nesta seção, possibilitam pensar a opressão das mulhe-
res a partir da materialidade que se apresenta em relações sociais (rapports sociaux) difíceis de
mudar. A centralidade é conferida ao trabalho, de maneira que a opressão das mulheres é com-
preendida a partir de uma dimensão estrutural caracterizada pela organização injusta e desigual
do trabalho, com base na lógica de sexo, de raça e de classe.
Retomando as dimensões propostas por Davids e Driel (2003), a primeira dimensão –
simbólica, referente às representações – aparece de maneira mais evidente na análise de Butler
169
em “Problemas de gênero”, enquanto a segunda – estrutural ou institucional –, nas perspectivas
feministas materialistas. Tomando essas análises – de Butler e de perspectivas feministas ma-
terialistas – separadamente, talvez fique a impressão de que a esfera da materialidade estaria
articulada apenas à segunda dimensão, e não à primeira. O que pretendemos na próxima seção
é evidenciar a materialidade articulada a essas duas dimensões. Em um debate com Judith Bu-
tler – em torno de perspectivas materialistas –, Nancy Fraser explicita concepções de sua for-
mulação sobre reconhecimento e redistribuição, que apresentamos no capítulo 1, sublinhando
que injustiças de reconhecimento e de redistribuição são, ambas, materiais.

2.6 A materialidade da opressão em Judith Butler e Nancy Fraser

Nesta última seção, apresentaremos um debate entre Judith Butler e Nancy Fraser que
evidencia a discussão sobre a materialidade da opressão. Fizemos a opção de cotejar os argu-
mentos de Butler e Fraser, apresentando os principais argumentos de Butler seguidos pela con-
tra-argumentação de Fraser e, ao final, estabeleceremos algumas aproximações e distanciamen-
tos a partir do problema que orienta nossa pesquisa.
É importante situar que o texto “Meramente cultural” (“Merely Cultural”), de Judith
Butler, foi apresentado como conferência no evento “Repensando o marxismo”, em 1996, tendo
sido o artigo publicado no ano seguinte pela na revista Social Text. No mesmo volume, aparece
a réplica de Nancy Fraser às críticas que Butler lhe endereça, intitulada “Heterossexismo, falso
reconhecimento e capitalismo: uma resposta a Judith Butler” (“Heterosexism, Misrecognition
and Capitalism: A Response to Judith Butler”) (BRETAS, 2017).
Bretas (2017) destaca que ambas concordam quanto à importância de alternativas trans-
formadoras para resistir aos dispositivos de normalização institucionalizados, bem como quanto
à importância do resgate de formulações do marxismo e do feminismo socialista dos anos 1970,
a partir de paradigmas mais recentes, mas discordam no que se refere à maneira de realizar
esse projeto comum.
No debate entre Nancy Fraser e Judith Butler, esta considera que o paradigma redistri-
buição/reconhecimento revelaria uma tendência de pensamento de esquerda que localizaria de-
terminadas opressões como articuladas à esfera econômica e outras como “meramente cultu-
rais”, situando as lutas gays e lésbica nesse extremo. Para Butler, haveria uma articulação entre,
por um lado, redistribuição e classe e, por outro, reconhecimento e sexualidade, sendo as lutas
relacionadas à sexualidade vistas como “triviais” (ADKINS, 2002).

170
Butler procura interrogar essa articulação – redistribuição-classe e reconhecimento-se-
xualidade – retomando feministas socialistas e propondo uma economia política da sexualidade
que circunscreve a heterossexualidade normativa como necessária para o modo de produção
capitalista, uma vez que este, para seu funcionamento, depende da procriação, que acontece no
âmbito da família heterossexual. Fraser discorda de Butler, por considerar que a autora apre-
senta uma visão da sociedade capitalista como um sistema totalizante de estruturas de opressão
que se reforçariam umas às outras (ADKINS, 2002).
No entanto, Nancy Fraser parece concordar com Butler no que se refere a uma vertente
de “marxistas neoconservadores” que, de fato, considerariam questões relativas às lutas por
direitos no âmbito da sexualidade como de menor importância ou “meramente culturais”. Fraser
procura se diferenciar dessa vertente, pontuando que o texto de Butler poderia levar o leitor “à
conclusão errônea de que compartilho com o ‘neomarxismo conservador’ a desqualificação da
opressão de gays e lésbicas como ‘meramente culturais, e, portanto, como secundárias, deriva-
das ou mesmo triviais” ou “até concluir que considero os movimentos gay e lésbico como par-
ticularismos injustificados que dividiram a esquerda e aos quais desejo forçosamente impor
uma unidade” (FRASER, 1997/2017, p. 278).
Passando, então, aos textos propriamente ditos, Butler (1996/2017) destaca uma tendên-
cia a circunscrever os novos movimentos sociais ao âmbito da cultura – desqualificando-os
como “meramente culturais” –, além da associação a um identitarismo e particularismo, que
acabam por marginalizar determinadas formas de ativismo político. Nessa leitura, as lutas de
classe e de raça seriam articuladas ao econômico, as lutas feministas seriam tomadas por vezes
como econômicas, outras vezes como culturais, e as lutas queer seriam compreendidas como
características da forma “meramente cultural” assumida pelos movimentos sociais contem-
porâneos.
No que se refere aos movimentos sociais, Butler (1996/2017) pontua que, embora “con-
corde que uma construção estreitamente identitária de tais movimentos possa levar a um estrei-
tamento do campo político, não há razão para presumir que tais movimentos sociais são re-
dutíveis a suas formações identitárias” (p. 234). A autora explica afirmando que esses movi-
mentos não se colocam uns em relação aos outros como se fossem isolados, mas, ao contrário,
existem sobreposições, de maneira que há momentos em que um movimento pode encontrar
suas próprias condições de possibilidade em outro – coloca-se, portanto, a possibilidade de
ruptura, de conflito, que possibilitam fundamentos não identitários para esses movimentos.
Nesse ponto, temos uma contribuição muito interessante para pensar a questão da dife-
rença, quando Butler (1996/2017) pontua que a diferença pode ser vista como algo “que emerge
171
entre uma identidade e outra” (p. 235, grifos da autora) – nesse sentido, haveria criação de
facções, de exclusão de outras identidades de maneira a fortalecer sua própria unidade e co-
erência. Por outro lado, a diferença pode ser vista também como a condição mesma de possibi-
lidade da identidade, assim como seu limite: “o que torna sua articulação possível é, ao mesmo
tempo, aquilo que torna qualquer articulação final ou fechada impossível” (BUTLER,
1996/2017, p. 235).
Assim, Butler (1996/2017) considera que a organização de movimentos sociais de ma-
neira “estreitamente identitária” coloca riscos, mas parece circunscrever esses riscos a uma
concepção de “identidade” como algo “que emerge entre uma identidade e outra”, que produz
exclusões. Por outro lado, se a diferença é vista como condição e limite constitutivos da iden-
tidade e se os movimentos sociais não são isolados, podendo encontrar suas próprias condições
de possibilidade em outros, é possível pensar fundamentos não identitários para esses movi-
mentos. Além disso, a afirmação de que se trata de “particularismos” não leva em conta que a
categoria de “universal” só se torna possível por meio de apagamentos e exclusões, como indi-
camos no capítulo 1 e retomamos neste capítulo.
No início do texto, Butler (1996/2017) afirma que não citará os nomes daqueles com
quem está dialogando e, mais a frente, pontua que o único nome a que fará referência será o de
Nancy Fraser, justificando que encontra em suas formulações aspectos que a preocupam, mas
que acredita que entre elas pode haver uma interlocução produtiva, destacando ainda que suas
“concepções não são de modo algum ortodoxas”, referindo-se a ela como alguém que “pelo
contrário, tem buscado encontrar caminhos para oferecer um quadro referencial abrangente para
a compreensão das relações interligadas entre os vários tipos de lutas emancipatórias” (p. 237).
Butler (1996/2017) resgata as formulações de Nancy Fraser sobre redistribuição e reco-
nhecimento, tal como apresentamos no capítulo 1, para afirmar que estas reproduzem a divisão
que associa determinadas opressões ao âmbito econômico e outras ao exclusivamente cultural,
situando as lutas lésbicas e gays neste último polo, articulados às injustiças de reconhecimento.
Butler (1996/2017) problematiza a articulação entre, por um lado, redistribuição e a esfera do
econômico, e, por outro, reconhecimento e a esfera do cultural, recorrendo a formulações de
Marx e Engels sobre a produção (de meios de existência, alimento, vestimentas, abrigo, ferra-
mentas etc.) e reprodução da vida (produção dos próprios seres humanos) como fatores deter-
minantes da história, em uma concepção materialista.
A perspectiva adotada por Butler (1996/2017) no texto “Meramente cultural” encontra
ressonância nas correntes feministas que articulam a concepção de família ao modo de produ-
ção capitalista, considerando que a produção do gênero não está desvinculada da
172
reprodução/procriação em um regime de normatividade heterossexual. Como explica Butler
(1996/2017):

[...] muitos dos argumentos feministas durante este período procuraram não apenas
identificar a família como parte do modo de produção, mas também mostrar como a
própria produção do gênero tinha que ser entendida como parte da “produção de seres
humanos”, em conformidade com as normas que reproduziam a família heterossexu-
almente normativa. (p. 239)

Nos anos 1970 e 1980, a pesquisa e a posição feminista-socialista enfatizam que não há
nada de natural na família; trata-se de um arranjo social específico, historicamente contingente.
A reprodução sexual faz parte das condições materiais da vida, e a marcação de pessoas pelo
gênero, de “homens” e “mulheres”, não é desvinculada da regulação social da família, da re-
produção da família heterossexual. A reprodução normativa do gênero aparece como condição
para a reprodução da heterossexualidade e da família, de maneira que “a divisão sexual do
trabalho não podia ser entendida separadamente da reprodução de pessoas marcadas pelo
gênero” (BUTLER, 1996/2017, p. 240).
A regulação da sexualidade está articulada ao modo de produção, por ser condição para
o funcionamento da economia, ou seja, a normatividade de gênero garante a normatividade da
família, que, por sua vez, garante a “produção de seres humanos” e mantém o modo de produção
capitalista. Dessa maneira, “a reprodução de pessoas e a regulação social da sexualidade faziam
parte do próprio processo de produção e, deste modo, da ‘concepção materialista’ da economia
política” (BUTLER, 1996/2017, p. 241).
No que tange ao argumento butleriano que coloca a família como parte do modo de
produção – de maneira que o funcionamento da economia dependeria da regulação heterosse-
xual –, Fraser (1997/2017) considera que este argumento perde a especificidade da sociedade
capitalista como forma de organização social. Nesta sociedade, as relações econômicas seriam
relativamente dissociadas das de parentesco, de maneira que, comparativamente às organiza-
ções pré-capitalistas, a articulação entre regulação sexual e relações econômicas seria atenuada
na sociedade capitalista contemporânea.
Retomando a exposição de Butler (1996/2017), em decorrência da articulação entre fa-
mília e modo de produção, a autora argumenta que as lutas contemporâneas de gays e lésbicas
ameaçariam o sistema capitalista. A supressão de formas não heterossexuais seria essencial para
a operação da normatividade prévia. Além disso, considera que a opressão de gays e lésbicas
não deve ser conceituada apenas na esfera do reconhecimento, porque eles também experien-
ciam danos econômicos.

173
Para Butler (1996/2017), a esfera da reprodução coloca o “gênero” dentro da economia
política, por meio de exclusões que tornam a esfera da reprodução delimitada e naturalizada. A
heterossexualidade normativa – assim como a produção como sexualidade “abjeta” da homos-
sexualidade, da bissexualidade e do transgênero – não pode ser compreendida sem levar em
conta o modo de produção que produz o mecanismo social de regulação. Por isso Butler
(1996/2017) considera que, como a esfera econômica está ligada à reprodução da heterossexu-
alidade, “seria um erro entender tais produções como ‘meramente culturais’ se elas são essen-
ciais para o funcionamento da ordem sexual da economia política – isto é, se constituem uma
ameaça fundamental à sua própria viabilidade” (p. 243).
Fraser (1997/2017) contra-argumenta afirmando que o que se observa na realidade é
que os opositores aos direitos de gays e lésbicas são os conservadores no âmbito da religião e
da cultura, e não as corporações empresariais, tanto que algumas multinacionais inclusive ins-
tituíram políticas favoráveis a esses grupos. A autora explica que, por ser a sociedade capitalista
contemporânea altamente diferenciada, com lacunas entre as ordens econômica e de parentesco,
é possível que um número de pessoas viva fora do modelo de família heterossexual sem que
isso constitua uma ameaça ao sistema.
Na visão de Fraser (1997/2017), o argumento de Butler resgata a “visão totalizadora da
sociedade capitalista como um ‘sistema’ monolítico de estruturas entrelaçadas de opressão que
se reforçam umas às outras sem quebras. Essa vertente não considera as lacunas” (p. 289),
constituindo, na visão da autora, um dos aspectos negativos do marxismo e do feminismo dos
anos 1970. O argumento de Fraser aqui nos remete ao de Rubin (1975/2017), apresentado na
seção 2.5, segundo o qual a tentativa de localizar a opressão das mulheres na própria dinâmica
capitalista pode acabar por estabelecer uma confusão entre afirmar a utilidade das mulheres
para o capitalismo e sustentar que essa utilidade explica a gênese da opressão da mulher.
Consideramos importante também destacar uma contribuição trazida por Fraser
(1997/2017) no que se refere aos movimentos sociais. A autora resgata uma das formulações
de Butler – a de que gays e lésbicas também experienciam danos econômicos e suas lutas não
deveriam ser conceituada apenas na esfera do reconhecimento – para pontuar que colocar os
movimentos pela luta de direitos sexuais como econômicos apaga as diferenças entre esses
movimentos e aqueles de luta contra a exploração econômica. Ao invés de pressupor que essa
sinergia já está dada, o desafio para a luta política é construir essa sinergia, ou seja, partir das
diferenças – e não de seu apagamento – para construir algo. Como indica Fraser (1997/2017):

Simplesmente chamando os dois tipos de lutas de “econômicas”, arrisca-se a fazer as


diferenças entrarem em colapso, criando a impressão equivocada de que elas vão

174
entrar em sinergia automaticamente e embotando nossa capacidade de colocar, e de
responder, questões políticas difíceis mas prementes sobre como fazê-las entrar em
sinergia, quando, de fato, elas divergem ou estão em conflito. (p. 287, grifos da autora)

Voltemos ao texto de Butler (1996/2017). Para apresentar um último argumento, a au-


tora problematiza a redução da sexualidade à esfera do “meramente cultural” e acrescenta um
questionamento sobre a própria distinção entre material e cultural. Recorrendo a Marx, quando
este retoma as formações econômicas pré-capitalistas, Butler (1996/2017) procura evidenciar
que a constituição do cultural e do econômico como esferas separadas é característica do capi-
talismo. Como afirma: “O próprio Marx estava consciente de que tais distinções são o efeito e
a culminação da divisão do trabalho, não podendo, portanto, ser excluídas de sua estrutura” (p.
244). Considerando a articulação entre regimes de normatividade e modo de produção, Butler
(1996/2017) afirma que “mesmo se a homofobia fosse concebida somente como uma atitude
cultural, esta atitude ainda deveria ser localizada no aparato e na prática de sua institucionali-
zação, isto é, em sua dimensão material” (p. 244).
No que se refere à distinção entre material e cultural, Fraser (1997/2017) considera que
sua contraposição entre redistribuição e reconhecimento é lida por Butler como uma distinção
entre material e cultural. A autora reforça que considera as injustiças de reconhecimento tão
materiais quanto as de redistribuição e diferencia as categorias “econômico” e “material”, pon-
tuando que estabelece sim uma correlação com as dimensões econômica e cultural. Ou seja, os
termos “econômico” e “material” não são sinônimos, de maneira que as injustiças de redistri-
buição referem-se ao âmbito econômico e as injustiças de reconhecimento referem-se ao cultu-
ral, mas ambas são materiais.
Fraser (1997/2017) recupera os exemplos destacados por Butler de sociedades pré-ca-
pitalistas em que, de acordo com Mauss e Lévi-Strauss, o parentesco regia as relações sociais,
organizando o casamento, a divisão do trabalho e distribuição dos bens, as relações de autori-
dade, as hierarquias simbólicas de status e prestígio etc., de maneira que não havia relações
caracteristicamente econômicas ou culturais, ou seja, a distinção econômico/cultural não estava
presente. Ao contrário, tal diferenciação entre econômico e cultural está presente na sociedade
capitalista, de maneira que Fraser (1997/2017) considera que não se trata de “desestabilizar”
essa distinção, como propõe Butler, mas de historicizá-la, evidenciando a especificidade histó-
rica do capitalismo.
Para a autora, a historicização “longe de tornar as distinções instáveis, permite que sua
utilização seja mais precisa” (p. 291), possibilitando uma análise historicamente específica da
sociedade contemporânea, no caso em questão. Essa leitura possibilitaria compreender as

175
lacunas, as contradições, a transformação “não em uma propriedade abstrata e trans-histórica
da linguagem, como ‘ressignificação’ ou ‘performatividade’, senão no efetivo contraditório das
relações sociais específicas” (p. 292).
Assim, a autora defende a historicização em contraposição à desconstrução: “a histori-
cização representa uma abordagem melhor da teoria social do que a desestabilização ou des-
construção” (FRASER, 1997/2017, p. 292). No entanto, apesar da crítica à desconstrução, Fra-
ser (1997/2017) especifica que prefere a abordagem do reconhecimento pela via da desconstru-
ção comparativamente à política da identidade, já que “uma política do reconhecimento des-
construtiva é transformativa, não afirmativa de identidades e diferenciações de grupo existen-
tes” (p. 292).
Para compreender essa afirmação de Fraser (1997/2017), precisamos retomar sua con-
cepção de perspectivas afirmativas e transformativas, tanto no âmbito da redistribuição quanto
do reconhecimento, como apresentamos na seção 1.3.4 do capítulo 1. Fraser (2006) considera
a desconstrução como uma perspectiva transformativa, no âmbito do reconhecimento, enquanto
políticas identitárias corresponderiam a uma perspectiva afirmativa. No debate com Butler, Fra-
ser (1997/2017) retoma a ideia de que a abordagem do reconhecimento pela via da desconstru-
ção é transformativa, para pontuar o que considera ser uma vantagem em relação a uma pers-
pectiva identitária afirmativa. No entanto, se Fraser (1997/2017) considera esse aspecto posi-
tivo da desconstrução, também considera que tal perspectiva pode cair em uma visão “abstrata
e trans-histórica da linguagem”, o que se aproxima da discussão que apresentamos na seção
2.4, quando situamos, a partir de Bourdieu (1982) e de Hennessy (1994), a importância de con-
siderar práticas sociais e instituições reais que tornam possíveis determinadas performances.
No que se refere a essa argumentação de Nancy Fraser (1997/2017), parece-nos que
aqui ela faz alusão não ao texto “Meramente cultural” isoladamente, mas ao conjunto maior da
obra de Butler. Fraser (1997/2017) critica o caráter abstrato da noção de performatividade, por
não levar em conta relações sociais específicas, mas esse argumento parece mais um diálogo
com “Problemas de gênero” do que especificamente com o texto “Meramente cultural”.
No texto “Meramente cultural”, Butler (1996/2017) sustenta que as lutas de mulheres,
gays e lésbicas não podem ser compreendidas sem uma articulação com a dimensão material,
por exemplo na já destacada afirmação de que “mesmo se a homofobia fosse concebida somente
como uma atitude cultural, esta atitude ainda deveria ser localizada no aparato e na prática de
sua institucionalização, isto é, em sua dimensão material” (p. 244). Não nos parece que, neste
texto, Butler (1996/2017) deixe de levar em conta relações sociais específicas, por isso

176
consideramos que o argumento de Fraser (1997/2017), no que se refere a esse ponto, direciona-
se ao conjunto da obra de Butler e não especificamente ao texto “Meramente cultural”.
A consideração de que, no texto “Meramente cultural”, Butler (1996/2017) analisa re-
lações sociais específicas nos leva a um último aspecto que gostaríamos de destacar para os
propósitos de nosso trabalho. Neste texto, Butler (1996/2017) se revela materialista, sendo cri-
ticada por sustentar posições totalizadoras, crítica tecida por Nancy Fraser, que também se filia
a uma perspectiva teórica materialista. Butler (1996/2017) cita explicitamente Marx, retoma as
teóricas feministas de orientação materialista dos anos 1970 e organiza sua tese em função do
argumento da articulação entre família e modo de produção capitalista, além de indicar reitera-
damente a dimensão material das lutas de mulheres, gays e lésbicas. Uma Judith Butler bem
diferente daquela que costuma aparecer nas teorizações de psicanalistas.
A própria Nancy Fraser (1997/2017) finaliza o texto apontando que, ressaltadas suas
divergências em relação a Butler, existem aproximações entre elas na medida em que ambas
consideram importante a perspectiva aberta por Marx, perspectiva que deveria inclusive ser
retomada. Fraser (1997/2017) observa uma divisão entre uma esquerda socialista ou social-
democrata orientada pela luta por redistribuição e correntes multiculturalistas que colocam a
ênfase no reconhecimento. Para a autora, as reivindicações de ambas são legítimas e a justiça
social depende de que ambas as reivindicações – redistribuição e reconhecimento – sejam al-
cançadas. Em relação a esse ponto, afirma que acredita que Butler concordaria e finaliza o texto
com a seguinte afirmação sobre as aproximações e distanciamentos entre sua perspectiva e a
butleriana:

[...] nós duas estamos comprometidas em recuperar os melhores elementos da política


socialista e em integrá-los com os melhores elementos dos “novos movimentos soci-
ais”. Do mesmo modo, nós duas estamos empenhadas em reabilitar as vertentes ge-
nuinamente valiosas da crítica neomarxiana do capitalismo e em integrá-las com as
vertentes mais perspicazes da teoria crítica pós-marxiana. O mérito do artigo de Bu-
tler, e espero que do meu próprio livro também, é ter colocado este projeto novamente
em pauta. (FRASER, 1997/2017, p. 293)

Tendo nos deparado com esse debate tão produtivo, retornamos agora ao livro “Proble-
mas de gênero” com a seguinte questão: o que Butler apresenta em “Meramente Cultural”, texto
de 1997, é incompatível com as teorizações apresentadas em “Problemas de gênero”, de 1990?
Não nos parece que haja uma incompatibilidade, mas sim que as ênfases são muito diferentes
porque os problemas sobre os quais Butler se debruça também o são.
Nos diálogos entre psicanálise e teoria queer, muitas vezes Butler é retomada a partir de
sua teorização sobre os gêneros ininteligíveis, mas é importante lembrar que o livro “Problemas
de gênero” se inicia com uma reflexão sobre as mulheres, mais especificamente, sobre a
177
categoria “mulheres” como sujeito dos feminismos. A autora parte da consideração de que há
uma fragmentação expressa pela oposição ao feminismo por parte de mulheres que o movi-
mento diz representar. Isso seria contraproducente, não contribuiria para o objetivo de ampliar
as reivindicações de representação.
Primeiramente, é importante pontuar que representação é um dos possíveis objetivos
das lutas feministas, mas não o único. Se pensarmos nos termos de Nancy Fraser, justiça social
seria um objetivo, que pode ou não estar articulado a uma ampliação da representação. Ou seja,
pode ser que, de fato, seja necessário ampliar a representação para conquistar justiça social,
mas também é possível que, por vezes, esses dois objetivos se mostrem contraditórios. Com
isso, pretendemos pontuar que a argumentação de Butler (1990/2013) em “Problemas de gê-
nero” coloca ênfase no âmbito da representação tanto no que seria o “diagnóstico do problema”
quanto no encaminhamento de possíveis soluções.
Dito isso, outro ponto importante é considerar o que seria essa fragmentação que produz
efeitos na representação almejada. Butler (1990/2013) parte da consideração de que a questão
evidenciada pela enunciação em torno da categoria “mulheres” coloca em cena uma fragmen-
tação porque existe uma intersecção entre gênero, raça, classe, entre outros:

[...] o gênero estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, se-
xuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou
impossível separar a noção de ‘gênero’ das intersecções políticas e culturais em que
ela invariavelmente é produzida e mantida. (p. 20)

Por isso, nos debates contemporâneos sobre uma suposta universalidade da “identidade
feminina” surgem “críticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria ‘mulheres’ nor-
mativa e excludente, invocada enquanto as dimensões não marcadas do privilégio de classe e
de raça permanecem intactas” (BUTLER, 1990/2013, p. 34-5). A categoria “mulheres” como
sujeito dos feminismos remeteria a uma universalidade que não dá conta dessas intersecções,
ou seja, “a insistência sobre a coerência e unidade da categoria das mulheres rejeitou efetiva-
mente a multiplicidade das intersecções culturais, sociais e políticas em que é construído o
espectro concreto das ‘mulheres’” (BUTLER, 1990/2013, p. 34-5).
Aqui encontramos algo muito próximo da formulação de imbricação das relações soci-
ais, sustentada por Kergoat e Falquet, e que se articula ao que Butler (1996/2017) propõe em
“Meramente cultural”. Assim, se uma possível leitura de “Problemas de gênero” é a da “disso-
lução ou desconstrução das identidades sexuais”, como propõem Cossi e Dunker (2017), tam-
bém é possível situar a perspectiva dos múltiplos pertencimentos e atravessamentos que, ao

178
mesmo tempo, constituem e colocam em questão uma identidade coerente. Como afirma Butler
(1990/2013):

Existe uma região do “especificamente feminino”, diferenciada do masculino como


tal e reconhecível em sua diferença por uma universalidade indistinta e consequente-
mente presumida das “mulheres”? A noção binária de masculino/feminino constitui
não só a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de
todo modo a “especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente descontextua-
lizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros
eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam
equívoca a noção singular de identidade. (p. 21)

Interessante notar que Butler (1990/2013) começa questionando se haveria algo de “es-
pecificamente feminino”, que constituiria uma suposta “identidade” para essa categoria “mu-
lheres”, e recorre às intersecções entre diversos âmbitos de relações de poder e pertencimentos
de raça, classe, entre outros, para afirmar que não. A autora coloca uma questão que nos parece
fundamental: “existiriam traços comuns entre as ‘mulheres’, preexistentes à sua opressão, ou
estariam as ‘mulheres’ ligadas em virtude somente de sua opressão?” (BUTLER, 1990/2013,
p. 21). Estamos de acordo que não há nada de “especificamente feminino” que constituiria uma
identidade, o que não significa que a categoria “mulheres” seja completamente vazia de conte-
údo. Ao contrário, consideramos que é a materialidade da opressão que circunscreve algo que
nos permite falar enquanto “mulheres”. Como afirma Butler (1990/2013), “Declarar que o gê-
nero é construído não é afirmar sua ilusão ou artificialidade” (p. 58), e como nos lembra Fraser
(2003a), como apresentado no capítulo 1, existem opressões gênero-específicas.
Para nosso trabalho, o que nos interessa em particular, a partir desse debate entre Butler
e Fraser, é que, resguardadas as diferenças, ambas chamam a atenção para a dimensão material.
Finalizaremos esse capítulo procurando circunscrever como compreendemos essa materiali-
dade no que se refere à opressão das mulheres.
Fraser (1997/2017), partindo da consideração de que a configuração “pós-socialista” se
caracteriza por uma dissociação entre o que denomina, por um lado, “política da identidade” e
“esquerda cultural” e, por outro, “política de classe” e “esquerda social” (p. 278), afirma buscar
superar essas divisões. Fraser (1997/2017) não considera que a opressão sexual seria menos
material e real do que a opressão de classe; ao contrário, procura não distinguir opressões em
“primárias” ou “secundárias”. Nessa perspectiva, insere-se sua teorização sobre as injustiças de
distribuição e de reconhecimento, que apresentamos no capítulo 1, e que, segundo a autora, não
relega o reconhecimento à categoria do “meramente cultural”. Segundo seus termos:

[...] ser falsamente reconhecido [misrecognized] não é simplesmente ser menospre-


zado ou desvalorizado nas atitudes conscientes ou crenças mentais dos outros. Trata-

179
se antes de ter negado o status de parceiro integral nas interações sociais e de ser
impedido de participar como um igual na vida social – não como consequência de
uma desigualdade distributiva (como não receber a sua justa parte de recursos ou
“bens primários”), senão como consequência de padrões institucionalizados de inter-
pretação e avaliação que constituem alguém como comparativamente indigno de res-
peito ou estima. (FRASER, 1997/2017, p. 279, grifos da autora)

Essa citação tem diversos pontos que merecem ser analisados. Um primeiro ponto que
nos parece importante na leitura de Fraser é destacar práticas institucionalizadas como elemento
de mediação que indica a materialidade da condição de injustiças de status. Como detalha a
autora:

Quando tais padrões de desrespeito e desconsideração são institucionalizados, por


exemplo, na lei, nas políticas de bem-estar social, na medicina e/ou na cultura popular,
eles impedem a paridade de participação tão certamente como fazem as desigualdades
distributivas. Nos dois casos, o dano é bastante real” (FRASER, 1997/2017, p. 279).

A nosso ver, a importância de destacar essa mediação se encontra no fato de possibilitar


uma compreensão dos problemas de reconhecimento em termos diferentes daqueles propostos
por Honneth, como apresentamos no capítulo 1. Se Vladimir Safatle propõe uma “reconstrução
da teoria do reconhecimento” a partir de uma crítica do eu – como apontamos no capítulo 1 –,
Nancy Fraser traz uma leitura do reconhecimento não nos termos de relações intersubjetivas,
como aparece em Honneth, mas como relação social institucionalizada, o que retira a discussão
do âmbito da intersubjetividade e da esfera do psiquismo. Como afirma Fraser (1997/2017): “o
falso reconhecimento [misrecognition] é uma relação social institucionalizada, não é um estado
psicológico” (p. 279). Ou seja, a autora, ao tratar o falso reconhecimento como injustiça de
status, afasta a concepção de reconhecimento da esfera intersubjetiva das representações, das
crenças ou atitudes em relação aos outros.
Injustiças de reconhecimento e de redistribuição podem vir acompanhadas, mas são
conceitualmente distintas. Nancy Fraser (1997/2017) explica apontando que, em sociedades
pré-estatais e pré-capitalistas, as ordens de status e de hierarquia de classe coincidem, de ma-
neira que há coincidência entre injustiças de reconhecimento e de distribuição. Ao contrário,
nas sociedades capitalistas, status e classe podem divergir, existe alguma separação entre dis-
tribuição econômica e estruturas de prestígio.
No entanto, não importa se injustiças de reconhecimento e de distribuição coincidem ou
não, nem em que medida coincidem: não é preciso recorrer às injustiças de distribuição para
legitimar uma demanda de reconhecimento. A autora sustenta que “o falso reconhecimento
constitui uma injustiça fundamental, seja acompanhado por má distribuição ou não” (FRASER,

180
1997/2017, p. 280). Ou seja, sustentar a distinção entre redistribuição e reconhecimento não
significa desvalorizar este último.
Em relação ao argumento de Butler (1996/2017) de que gays e lésbicas também experi-
enciam danos econômicos, Fraser (1997/2017) concorda e afirma que são incontestáveis os
dados que evidenciam a desvantagem material de gays e lésbicas, trazendo alguns exemplos do
contexto norte-americano no momento de produção do texto: possibilidade de dispensa de car-
gos civis e do serviço militar, ausência de acesso a benefícios sociais baseados na família, des-
vantagens nas leis de herança, entre outros.
Assim, Fraser (1997/2017) considera que esses prejuízos materiais constituem justa-
mente falso reconhecimento, uma vez que são efeito da institucionalização de significados e
normas, o que aparece nas leis, nas políticas etc, ou seja, “é a essência mesma do falso reco-
nhecimento: a construção material, por meio da institucionalização de normas culturais, de uma
classe de pessoas desprivilegiadas que são privadas da paridade participativa” (p. 284, grifos
da autora).
A partir dessas contribuições de Fraser (1997/2017), podemos articular alguns pontos
que pretendemos sustentar ao longo da tese. Como apresentamos no capítulo 1, existem opres-
sões gênero-específicas, ou seja, mulheres experienciam injustiças de redistribuição e reconhe-
cimento. Quando Fraser (1997/2017) destaca padrões institucionalizados de interpretação e
avaliação, possibilita pensar práticas institucionalizadas como elemento de mediação, que in-
dica a materialidade de injustiças de status. Essa articulação possibilita, também, uma análise
em termos de performance que leve em conta as condições materiais que possibilitam determi-
nadas performances – da mesma maneira que não possibilitam outras.
Retomando a seção 2.4 deste capítulo, consideramos, seguindo Rosemary Hennessy
(1994), que instituições se organizam com base em mais do que discursos; é preciso também
levar em conta aspectos da vida material, como trabalho, saúde e seguridade social. No entanto,
esses aspectos são discursivamente mediados, embora sua materialidade não seja simplesmente
discursiva.
Essa articulação entre materialidade e discurso é o que Fraser (1997/2017) aponta ao
indicar que injustiças de reconhecimento são institucionalizadas – na lei, nas políticas de bem-
estar social, na medicina, na cultura popular –, ou seja, a autora afirma uma “construção mate-
rial, por meio da institucionalização de normas culturais”. Os prejuízos materiais experiencia-
dos por aqueles submetidos a injustiças de reconhecimento são efeito da institucionalização de
significados e normas, o que aparece nas leis, nas políticas etc.

181
Retomando as dimensões propostas por Davids e Driel (2003), tal como apresentamos
na seção 2.1, a materialidade está articulada tanto à dimensão simbólica, referente às represen-
tações, quanto à dimensão estrutural ou institucional. A esfera das representações não se faz na
abstração de discursos, sem um conjunto de práticas sociais e instituições reais, como aponta-
mos a partir de Bourdieu (1982).
A materialidade é discursivamente mediada, o que podemos observar, por exemplo,
quando Kergoat (2010a), como apresentamos na seção 2.5, afirma que a organização do traba-
lho se apoia em elementos corporais tomados como símbolos de masculinidade ou feminilidade,
ou seja, o naturalismo funciona como ideologia da legitimação. O discurso é materialmente
mediado, mediação que se faz por meio de instituições e práticas sociais institucionalizadas,
que materializam significados e normas em leis e políticas, por exemplo, como afirma Fraser
(1997/2017), ou como pontua Butler (1996/2017) ao sustentar que a homofobia “deveria ser
localizada no aparato e na prática de sua institucionalização, isto é, em sua dimensão material”
(p. 244).
Um exemplo que nos parece bastante interessante para evidenciar essa dimensão mate-
rializada em práticas institucionalizadas são as considerações tecidas por Jules Falquet (2008)
sobre a questão da herança. Consideramos que a autora especifica um ponto que, pelo menos
no Brasil, constitui quase um tabu: reconhecer que, muitas vezes, riqueza não está relacionada
a trabalho ou a uma suposta “meritocracia”. Nas palavras da autora: “Ora, se o trabalho é um
dos meios de tentativa de acúmulo de riquezas, ele raramente é o melhor: a aliança e a herança
são bem mais rápidas” (FALQUET, 2008, p. 132). No entanto, a liberdade de escolha de ali-
anças, de filiação legítima e de transmissão de ainda são regradas pela heterossexualidade. A
autora se pergunta, então, se o matrimônio não-heterossexual poderia subverter a organização
do trabalho e do acesso aos recursos.
Esse ponto também aparece na entrevista com Mirla Cisne e Telma Gurgel, quando, ao
ser questionada sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, Falquet (2014a) afirma ser
“contra o matrimônio tanto para as pessoas heterossexuais como para as bissexuais, as lésbicas
e os gays. Para chegar a uma igualdade maior, o caminho politicamente mais interessante seria
lutar pelo desaparecimento da instituição matrimonial” (p. 253). A autora refere a existência
das sociedades Mosuo o Na, na China, e da cultura Senufo, no Senegal, em que inexiste o
matrimônio como instituição, bem como a análise traçadas por Alexandra Kolontai sobre uma
multiplicidade de vínculos sociais na nova sociedade socialista no início do século XX.
Falquet (2014a) segue pontuando que o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo colo-
caria a possibilidade de formalização da solidariedade econômica entre mulheres, que poderia
182
criar novas possibilidades de transmissão, tanto de herança material quanto social, com linha-
gens de mulheres, o que tem efeitos nos mecanismos de poder. Como explica:

Isso não apenas para compartilhar na vida cotidiana e para a questão da transmissão,
da herança material, mas também da herança social. Isso poderia significar uma mu-
dança profunda, no sentido das linhas de poder na sociedade que se reproduzem não
apenas horizontalmente, com os mecanismos de aliança (instituição matrimonial),
mas verticalmente, por meio das lógicas de filiação entre gerações. Então, o feito de
criar novas linhas de transmissão que poderiam ser linhagens de mulheres cria
também coisas novas, diferentes, que podem produzir transformações. (p. 254)

No entanto, embora considere essas possibilidades, Falquet (2014a) afirma que ainda
resta o limite colocado pelo matrimônio apenas entre duas mulheres e sem um questionamento
das formas dominantes heterossexuais, o que a leva a pensar que, nesses termos, o matrimônio
entre pessoas de mesmo sexo não significaria uma mudança radical. Na visão de Falquet (2008),
uma mudança efetiva dependeria da possibilidade de diferentes modalidades de alianças entre
as pessoas. Como afirma a autora:

Não basta mudar o sexo do(a)s noivo(a)s para alterar as estruturas das relações sociais
(MATHIEU, 1991 [1989]). De fato, para além do “casal”, se não tentamos colocar
em prática outros arranjos “econômico-sexuais” – para retomar o conceito de Tabet
(2004) – entre as pessoas, pouca coisa mudará. (FALQUET, 2008, p. 133)

Essa reflexão de Jules Falquet nos remeteu a uma proposição, que vai no mesmo sentido,
de Safatle (2015), ao apontar que são justas as questões ligadas à ampliação do direito ao casa-
mento para casais homossexuais, que perpassam nossas sociedades contemporâneas. No en-
tanto, considera interessante radicalizar essa demanda, de maneira que o Estado simplesmente
deixasse de legislar sobre a forma do matrimônio, e se restringisse a legislar apenas sobre as
relações econômicas entre casais ou outras formas de “agrupamentos afetivos”. Ou seja, “em
vez de ampliar a lei para casos que ela não contemplava (como os homossexuais), dever-se-ia
simplesmente eliminar a lei, criando uma zona de indiferença desinstitucionalizada”
(SAFATLE, 2015, p. 112).
Consideramos importante destacar que tanto Falquet quanto Safatle vislumbram um po-
tencial de transformação caso outras possibilidades fossem criadas no âmbito dos arranjos
econômicos entre pessoas. Esse nos parece ser um aspecto importante para cotejar perspectivas
materialistas e queer. Existe uma materialidade, que se concretiza em práticas institucionaliza-
das, como o matrimônio. A opressão das mulheres não se reduz à dimensão do discurso e, se o
âmbito das relações interindividuais (relations sociales) é mais fácil de mudar, a estrutura das
relações sociais (rapports sociaux) coloca uma dificuldade muito maior de transformação.
Existe uma inter-relação entre esses âmbitos, assim como entre os níveis do discurso e da

183
materialidade, mas não basta atuar no nível dos discursos, é preciso transformar as instituições,
a materialidade.
Ainda no sentido de situar que a opressão das mulheres não se reduz ao âmbito do dis-
curso e de tecer algumas considerações sobre a concepção de performatividade levando em
conta relações sociais específicas, recorremos a mais um exemplo, a partir do filme “Eu não
sou um homem fácil”154. O filme se passa em Paris e o personagem principal, Damien, bate a
cabeça em um poste e acorda em um “mundo ao contrário”, em que os homens são oprimidos
pelas mulheres.
Já no momento do acidente, começam a aparecer algumas características desse mundo:
Damien está com um amigo, Christophe, e recebe auxílio de duas bombeiras mulheres; em
seguida duas mulheres passam por eles de motocicleta, sendo uma delas a esposa de Christophe,
que diz a ele que pediu pizza e que as crianças o aguardam. Ao longo do filme, seguem-se
diversas cenas que evidenciam estereótipos associados culturalmente a homens e mulheres. Não
temos a pretensão de fazer uma análise detalhada do filme, mas apenas de tomar alguns exem-
plos para discutir o que consideramos pertinente aos objetivos deste trabalho.
No dia seguinte ao acidente, ainda sem se dar conta do que aconteceu, Damien estranha
as roupas em seu guarda-roupas. No caminho para o trabalho, uma desconhecida se dirige a ele
dizendo que tem um “belo sorriso”. Quando chega ao trabalho, é alertado por um colega sobre
sua roupa, aparentemente considerada muito “sensual”. Damien é chamado para uma reunião
com sua chefe, uma mulher, e reage mal à notícia de que um projeto seu não seria levado adi-
ante. Em seguida, o filme coloca em cena uma tentativa de assédio pela chefe – associada a um
aceno de que o projeto de Damien poderia ser considerado – bem como, no sentido de tentar
“acalmar” Damien, o conselho da chefe de que ele deveria ficar uns dias em casa, dizendo que
ele estaria sobrecarregado e precisaria relaxar, se cuidar, sair com amigos, ficar em casa com o
gato etc. Como essa fala da chefe não produz o efeito de “acalmar” Damien – muito pelo con-
trário, faz aumentar sua indignação –, ele acaba demitido do emprego.
Começa a ficar mais evidente no filme a caracterização desse “mundo ao contrário”, em
que mulheres não usam maquiagem, vestem-se com terno, são retratadas como mais fortes fi-
sicamente, mais voltadas para o trabalho e ocupando posições de poder, enquanto os homens
aparecem como mais afetivos, voltados à família e preocupados com a aparência física.
Damien acaba indo trabalhar como substituto de seu amigo, Christophe, que tem pro-
blemas com sua chefe por conta da licença-paternidade e consegue contornar a situação com a

154
“Je ne suis pas un homme facile” (2018), direção de Éléonore Pourriat.
184
possibilidade de ser substituído pelo amigo. Logo antes disso, a cena do parto da esposa de
Christophe é retratada com a mulher em pé, com uma expressão facial de força física, enquanto
Christophe apresenta uma expressão facial afetiva e chora.
A nova chefe de Damien, Alexandra, é uma escritora reconhecida, retratada como uma
mulher poderosa, que dirige um carro de luxo e coleciona conquistas sexuais. Existe um mo-
mento em que Alexandra explica que a dominação das mulheres se justifica porque elas são
fortes para engravidar e dar à luz. A gravidez e o parto são retratados não como um momento
de fragilidade, mas de força.
O que consideramos interessante pontuar é que o filme coloca “homens” e “mulheres”
como performativamente produzidos: os discursos sobre o que seria “homem” ou “mulher”
produzem aquilo que nomeiam. Ao colocar em cena um “mundo ao contrário”, com homens
oprimidos pelas mulheres, o filme evidencia a arbitrariedade dessas concepções ao mesmo
tempo em que evidencia um sistema que atribui papéis dos quais dificilmente podemos sair.
No filme, são os homens que se ocupam dos cuidados com os filhos – e encontram
problemas profissionais por conta da licença-paternidade, o que revela a materialização em
práticas sociais institucionalizadas –, enquanto as mulheres ocupam posições profissionais so-
cialmente valorizadas. Essa caracterização dos homens como oprimidos aparece, portanto, ar-
ticulada a uma organização injusta e desigual do trabalho, elemento central na análise da opres-
são das mulheres segundo as perspectivas feministas materialistas com as quais trabalhamos na
seção 2.5.
Essa materialidade, inscrita na organização do trabalho, é discursivamente mediada pela
explicação de que a dominação das mulheres está articulada a sua maior força física, já que são
as mulheres que são fortes o suficiente para engravidar e dar à luz. O discurso recorre à biologia
para justificar construções culturais, o que corresponde ao que é afirmado por Kergoat (2010a),
como apresentamos na seção 2.5, sobre o naturalismo funcionando como ideologia da legiti-
mação.
O discurso de que a dominação das mulheres está articulada à sua maior força física
produz aquilo que nomeia, porém esse discurso só pode ser performativo naquele “mundo ao
contrário” retratado no filme: um mundo com uma organização injusta e desigual do trabalho
que oprime os homens. Em nosso mundo ocidental contemporâneo, esse mesmo discurso não
produziria qualquer efeito – ou talvez produzisse risos, mas certamente não produziria aquilo
que nomeia, isto é, a dominação das mulheres. Nesse sentido, podemos articular a análise pro-
posta por Rosemary Hennessy (1994), de considerar as relações sociais que tornam possível
determinada performance. No filme, temos, entre essas condições, a organização injusta do
185
trabalho que atribui aos homens o cuidado com os filhos e funções menos valorizadas cultural-
mente.
Assim, o filme possibilita compreender como a materialidade é discursivamente medi-
ada e o discurso é materialmente mediado, e são essas articulações entre materialidade e dis-
curso que consideramos fundamentais para uma compreensão em termos de performance que
não se faça na abstração da linguagem, mas na materialidade de relações sociais específicas.
Para destacar um segundo aspecto que consideramos importante a partir do filme, re-
correremos a uma outra cena. Damien não se ajusta a esse “mundo ao contrário”, em certos
momentos por desconhecimento das normas, em outros por indignação diante das normas que
começa a compreender. A percepção de que haveria algo incoerente em Damien faz com que
Alexandra suspeite que ele seria homossexual, por isso ela faz uma surpresa e o leva a uma
danceteria onde as pessoas se vestiam de diferentes maneiras, mas sobretudo de maneiras muito
semelhantes ao mundo ocidental contemporâneo: mulheres de vestido e maquiagem, por exem-
plo.
Esta cena da danceteria é particularmente interessante por “embaralhar” definitivamente
nossos estereótipos culturais: aquilo que na cultura ocidental contemporânea é normativo, no
“mundo ao contrário” retratado no filme é subversivo. Naquele contexto, mulheres de vestido
e maquiagem e homens de terno estão subvertendo as normas de gênero. Essa subversão está
articulada ao nível das relações interindividuais (relations sociales), que possibilita negocia-
ções e transgressões, como discutimos a partir de perspectivas materialistas, na seção 2.5. Muito
mais difícil de mudar, entretanto, é o nível das relações sociais (rapports sociaux), caracterizado
por relações de poder, de força, que organizam posições.
A partir da consideração da dificuldade de mudança no nível das relações sociais (rap-
ports sociaux), e também no sentido de estabelecer um fechamento para este capítulo e de lançar
algumas questões que serão discutidas no próximo, destacamos o trabalho da psicanalista Pas-
cale Molinier (2008), com o qual trabalharemos no próximo capítulo, que assinala lugares atri-
buídos – pelas fantasias parentais ou pelas relações sociais (rapports sociaux) – dos quais não
podemos facilmente “escapar”. Mesmo se a possibilidade de “superar” esses lugares se coloca,
“a subversão deve ser sempre renovada e se paga muito caro”155 (MOLINIER, 2008, p. 154,
tradução nossa).

155
“Si l’on peut s’affranchir des places qui nous sont assignées par les fantasmes parentaux ou les rapports sociaux,
cet affranchissement n’est jamais total, la subversion toujours à reconduire et chère payée.” (MOLINIER, 2008,
p. 154)
186
Finalizamos este capítulo fazendo alusão à já referida proposição de Butler (2005), na
qual a autora comenta sobre outros autores que buscam discutir se seria possível transpor a
teoria da performatividade de gênero para pensar questões raciais, e afirma que “a questão não
é saber se a teoria da performatividade de gênero é passível de transposição para a raça, mas
ver o que acontece com a teoria quando ela é confrontada com a questão da raça”156 (p. 28,
tradução nossa). A nosso ver, muitas tentativas de diálogo entre psicanálise e teoria queer o
fazem no âmbito de tentar estabelecer o que seria transponível entre esses dois campos. Assim
como Butler, consideramos mais produtivo pensar o que acontece com a psicanálise quando
confrontada com as incidências de outros campos teóricos; por isso, nos próximos capítulos,
buscaremos situar interrogações para a psicanálise a partir do que discutimos neste capítulo
acerca da materialidade da opressão.

156
“[...] je dirais que la question n’est pas de savoir si la théorie de la performativité du genre est transposable à la
race, mais plutôt de voir ce qui arrive à la théorie quand elle est confrontée à la question de la race.” (BUTLER,
2005, p. 28)
187
CAPÍTULO 3. O “tornar-se mulher” na perspectiva psicanalítica: normas que operam e
falham

Ao interrogar qual seria a especificidade da psicanálise, em relação a abordagens soci-


ológicas sobre gênero, Rose (2005), pontua que, em contraposição a perspectivas que focalizam
uma internalização de normas, a leitura psicanalítica chama a atenção para a falha: a operação
dessas normas revela, ao mesmo tempo, sua falha. Essa tensão entre operação e falha possibilita
colocar em cena a divisão e o conflito, que situam a leitura da subjetividade em uma perspectiva
psicanalítica.
Tendo anunciado essa proposição, a ser desenvolvida ao longo deste capítulo, é impor-
tante retomar que, como apresentamos no capítulo 1, leituras psicanalíticas evidenciam o cará-
ter de unificação imaginária de identidades. O assinalamento da impossibilidade da identidade
é importante para nos alertar do risco de tomar supostas identidades como essências, como
discutimos no capítulo 1. Se nos limitamos a recolocar categorias como “homem” e “mulher”,
“masculino” e “feminino”, estamos reproduzindo um regime de normas. Como sintetiza Por-
chat (2018):

Sabemos que “homem”, “mulher”, “masculino” e “feminino” são termos igualmente


colocados em xeque pela psicanálise e que a sexualidade na psicanálise também tem
a sua especificidade. Não se trata de sexo e tampouco se fala em essências identitárias
a partir do sexo anatômico. (p. 37)

Se devemos tomar seriamente os riscos de essencialismo, também não podem descon-


siderar a existência de uma série de desigualdades e injustiças, com as quais as mulheres se
defrontam e das quais, de alguma maneira, é importante falar, seja em termos de identidade ou
não. Se não existe definitivamente “homem” ou “mulher”, não podemos negar que existem
opressões gênero-específicas, como nos lembra Nancy Fraser (2003a) e como procuramos dis-
cutir ao longo dos capítulos 1 e 2. Por mais que “mulher” não seja uma identidade, por mais
que não saibamos sequer definir o que seria “mulher”, existe uma realidade da opressão que
levou e leva mulheres a falar em nome dessa categoria identitária.
Poderíamos considerar que essa opressão existe, mas que não cabe à psicanálise se ocu-
par dessa temática, que deveria ser discutida a partir de outros campos do conhecimento. Ana
Maria Fernández (2018), em entrevista com Patricia Porchat, aponta essa tendência a refutar
esse tema como da psicanálise e questiona se isso não se tornou um dogma: “E, me parece que
isso, a psicanálise nunca pôde nem quis pensar. Desde a velha diferença, até muitos escritos de

188
Lacan, há ali algo que se transforma em dogma, não? Psicanálise se ocupa da diferença sexual,
não dos problemas sociais das mulheres etc.” (p. 126).
Fernández (2018) segue contando que, no início dos trabalhos sobre gênero, dois argu-
mentos apareciam para recusar a questão: um argumento sociológico, de que o tema não com-
petiria à psicanálise, e outro que sustentava uma equivalência entre a questão e um “não pensar
a diferença”. Fernández (2018) rebate que, quando se buscava discutir gênero, o problema era
a desigualdade. No entanto, defrontavam-se com o contra-argumento de que almejavam a igual-
dade apagando a diferença, como algo de “andrógino” ou “lésbica”.
Hoje, questões de gênero já encontram lugar no âmbito da discussão psicanalítica, tanto
que Porchat (2018) aponta o contraste entre o momento em que defendeu sua tese de doutorado,
em 2007, quando o tema não era abordado no Brasil, e o contexto contemporâneo, em que o
gênero passou a ser discutido em quase todas as instituições psicanalíticas e Judith Butler se
tornou uma autora de referência para a psicanálise.
No entanto, muitos psicanalistas continuam a se recusar a ver o gênero como um con-
ceito psicanalítico. Porchat (2018) destaca que, de fato, não é um conceito usado por Freud,
Klein ou Lacan, mas Robert Stoller, psiquiatra e psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Los
Angeles, introduziu na psicanálise a identidade de gênero em meados da década de 1960, o que
conduz Porchat (2018) ao questionamento: “Quem hoje se atreveria a dizer que objeto transi-
cional, holding, função-alfa, não são conceitos psicanalíticos? Quais psicanalistas e quais teo-
rias podem criar conceitos?” (p. 38).
Retomando Fernández (2018), consideramos que a psicanálise se ocupa sim da dife-
rença sexual e dos processos de subjetivação, mas pode também se ocupar dos problemas soci-
ais das mulheres. Acreditamos que a especificidade da psicanálise traz contribuições para a
discussão dessa questão, como procuraremos delinear ao longo deste capítulo. Rosalind Minsky
(1996) inicia seu livro “Psychoanalysis and gender” com a seguinte asserção: “A teoria psica-
nalítica é radicalmente diferente de outras teorias porque faz do inconsciente seu conceito or-
ganizador central”157 (p. 3). Partir desse ponto é fundamental para discutir a especificidade e as
contribuições da psicanálise em relação à temática em questão. A autora segue lembrando que
a centralidade do inconsciente “torna possível a exploração de um território de sentido além das
fronteiras de outras teorias, como a psicologia convencional e a sociologia, que se preocuparam

157
“Psychoanalytic theory is radically different from other theories because it makes the unconscious its central
organizing concept” (MINSKY, 1996, p. 3)
189
principalmente com a análise da consciência e os processos de socialização”158 (MINSKY,
1996, p. 3-4).
Nos capítulos 1 e 2, procuramos traçar um percurso no sentido de destacar as condições
sociais de produção e reprodução dos diferentes discursos, de maneira a situar que, se a cate-
goria “mulheres” não existe enquanto uma essência e não existe nada de “autenticamente femi-
nino”, mas existe uma vulnerabilidade diferenciada, então essa categoria só pode ser pensada
como produzida a partir de sua opressão. Neste capítulo, pretendemos, a partir de contribuições
psicanalíticas, abordar o “tornar-se mulher” a partir de normas que operam e falham, como
propõe Jacqueline Rose (2005). Normas que operam por um princípio de hierarquia, como dis-
cutiremos a partir das formulações da psicanalista Pascale Molinier (2008), e que falham porque
essa hierarquia se coloca para a criança como um enigma a traduzir. Como a tradução nunca é
uma reprodução e existe a produção de um resto, coloca-se a falha, o imprevisto, o impossível
de dizer.
Se o assinalamento do caráter normativo das identidades e a proposta de desconstrução
é fundamental por denunciar a condição de exclusão daqueles que não encontram lugar dentro
dos campos de inteligibilidade vigentes, talvez algo fique de fora: a possibilidade de discutir a
materialidade da opressão, que historicamente levou os movimentos sociais a se organizarem
em torno de categorias identitárias. Os trabalhos no âmbito da psicanálise muitas vezes reco-
nhecem as conquistas que são tributárias desses movimentos de luta por direitos e afirmam não
pretender deslegitimar tais movimentos. Apesar desse reconhecimento, parece haver uma difi-
culdade de efetivamente estabelecer articulações.
Nosso esforço neste trabalho é justamente o de procurar delinear possíveis articulações.
Por isso, na seção 3.1, retomaremos momentos da obra freudiana em que podemos encontrar
tematizações da opressão vivida pelas mulheres naquele momento histórico, sobretudo a partir
das proposições de Rubin (1975/2017), que vê nos textos freudianos uma descrição da realidade
da opressão das mulheres. Iniciaremos esse percurso resgatando um momento da obra freudiana
em que a materialidade da opressão é tematizada: as restrições à sexualidade e as neuroses
atuais, que possibilitam observar como havia uma vulnerabilidade diferenciada no que diz res-
peito às mulheres naquele contexto histórico.

158
“It makes possible the exploration of a territory of meaning beyond the boundaries of other theories such as
conventional psychology and sociology which have been primarily concerned with the analysis of consciousness
and the processes of socialization” (MINSKY, 1996, p. 3-4)

190
Tais formulações constituem um momento privilegiado em que a opressão aparece de
maneira bastante clara na obra freudiana, o que não necessariamente acontece em outros mo-
mentos. Na seção 3.2, procuraremos retomar as proposições freudianas e também discutir como
os psicanalistas contemporâneos delas se apropriam de maneiras bastante diversas. Na seção
3.2.1, retomaremos a oposição masculinidade-feminilidade em Freud, na seção 3.2.2, buscare-
mos circunscrever a histeria como questionamento da condição de opressão das mulheres e, na
seção 3.2.3, retomaremos as formulações freudianas sobre sexualidade feminina e feminilidade.
Discutiremos como é possível partir de Freud tanto para fazer uma leitura essencialista ou, ao
contrário, para propor uma leitura que situa historicamente as formulações freudianas.
No que se refere a essas diferentes possibilidades de leitura, Elliot (1991) alerta para os
riscos de deslizamento de um discurso analítico para um discurso de mestria. Procuramos ler a
psicanálise como discurso analítico, de maneira que não pretendemos descrever o que seria
“mulher” a partir de algo “especificamente feminino”. Na tentativa de delinear uma compreen-
são do “tornar-se mulher” enquanto fazer a experiência mesma da opressão, recorreremos, na
seção 3.3, às contribuições de Jean Laplanche (2014a; 2014b; 2014c) e de Pascale Molinier
(2008), para situar esse “tornar-se mulher” em um contexto de normas que operam – por meio
de um princípio de hierarquia – ao mesmo tempo em que falham.
Nosso recorte neste capítulo circunscreve, portanto, formulações de Freud e Laplanche,
bem como de autores que trabalham o campo da psicanálise em diálogo com os estudos de
gênero: Gayle Rubin, Juliet Mitchell, Jacqueline Rose, Patricia Elliot, Laurie Laufer, Pascale
Molinier e Thamy Ayouch. Apresentaremos brevemente esses autores, destacando alguns tra-
balhos mais diretamente relacionados à nossa temática, e situaremos desde já como suas for-
mulações contribuem para nosso trabalho.
Gayle Rubin159 considera que os textos freudianos evidenciam aspectos da opressão das
mulheres, o que a leva a afirmar que “a psicanálise é uma teoria feminista que não chegou a se
configurar plenamente como tal”160 (RUBIN, 1975/2017, p. 36). Diante da descrição da opres-
são das mulheres, a autora se pergunta por que os psicanalistas não defendem novas disposi-
ções. Consideramos que, para “defender novas disposições”, “colocar em movimento” a psica-
nálise, é importante fazer incidir compreensões a partir de campos estrangeiros à psicanálise.

159
Gayle Rubin é professora de Antropologia e Estudos das mulheres (Anthropology and Women's Studies) na
Universidade de Michigan (EUA), tendo produzido trabalhos inovadores sobre as políticas de sexo e gênero. Entre
suas linhas de pesquisa, estão “Estudos lésbicos, gays, bissexuais e transgêneros”, “Teoria e política feminista”
(Informações disponíveis em https://lsa.umich.edu/anthro/people/faculty/socio-cultural-faculty/grubin.html).
Laufer (2014a) faz referência a Gayle Rubin destacando “The Traffic in Women”, de 1975, como um importante
texto em uma obra coletiva que inaugura a Antropologia Feminista.
160
Na versão francesa, “La psychanalyse est une théorie féministe manquée” (RUBIN, 1975/2010, p. 17).
191
A reflexão sobre a psicanálise a partir das incidências de outros campos de conheci-
mento é algo que, a nosso ver, marca os trabalhos de Laurie Laufer161, Pascale Molinier162 e
Thamy Ayouch163. Suas contribuições foram fundamentais para que pudéssemos situar regimes
de normatividade e compreender que a psicanálise descreve uma determinada organização, em-
bora existam determinados discursos que, “em nome da psicanálise”, tomam algumas análises
descritivas, que aparecem em Freud, como prescritivas, como afirma Ayouch (2018) e como
detalharemos neste capítulo.
Esses discursos muitas vezes se apresentam de maneira a “levar verdades” da psicaná-
lise para outros campos do conhecimento. Quando a psicanálise é lida como discurso de mes-
tria, afastando-se do discurso analítico, produzem-se discursos supostamente detentores de ver-
dades universais, nos quais a relação entre sexo e gênero se torna rígida, como propõe Patricia
Elliot164 (1991). O assinalamento dos riscos de deslizamento do discurso analítico para o dis-
curso de mestria constitui contribuição fundamental desta autora para nosso trabalho, por cha-
mar nossa atenção para ler a psicanálise enquanto discurso analítico.
Esse esforço de ler a psicanálise como discurso analítico nos parece ser a marca funda-
mental dos trabalhos de Juliet Mitchell165 e de Jacqueline Rose166, autoras entre as quais existe
um diálogo bastante produtivo. Mitchell e Rose partem de Freud e também de uma leitura

161
Laurie Laufer é psicanalista, professora da Universidade Paris Diderot e diretora do Centre de Recherches
Psychanalyse Médecine et Société (CRPMS). Uma de suas linhas de pesquisa é “Gênero, sexualidade, psicanálise”
(Informações disponíveis em http://www.ep.univ-paris-diderot.fr/recherche/crpms/membres-du-crpms/laurie-lau-
fer/), tendo publicado diversos trabalhos nessa temática, entre eles “Ce que le genre fait à la psychanalyse” (2014)
e “La psychanalyse est-elle un féminisme manqué?” (2014).
162
Pascale Molinier é professora de Psicologia Social na Universidade de Paris 13, diretora da “Unité Transversale
de Recherche Psychogenèse et Psychopathologie. Cliniques, psychopathologie et psychanalyse” (UTRPP). Entre
suas linhas de pesquisa estão “Psicodinâmica do trabalho”, “Gênero, trabalho e sexualidades”, “Trabalho do care”,
(Informações disponíveis em https://utrpp.univ-paris13.fr/user/molinier-pascale/), tendo publicado, por exemplo,
“Pénis de tête. Ou comment la masculinité devient sublime aux filles” (2008) e “Le travail du care” (2013).
163
Thamy Ayouch é psicanalista, professor da Universidade Paris Diderot, pesquisador do CRPMS. Entre suas
linhas de pesquisa estão “Estudos pós-coloniais, decoloniais e psicanálise”, “Estudos de gênero, estudos queer e
psicanálise” (Informações disponíveis em http://www.ep.univ-paris-diderot.fr/recherche/crpms/membres-du-
crpms/ec-01/), tendo publicado, por exemplo, “A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e
desconstruções” (2014) e “Psychanalyse et hybridité: genre, colonialité, subjectivations” (2018).
164
Patricia Elliot é professora de Sociologia e Antropologia na Universidade Wilfrid Laurier, no Canadá (Infor-
mações disponíveis em https://www.wlu.ca/academics/faculties/faculty-of-arts/faculty-profiles/patricia-elliot/in-
dex.html), tendo trabalhado articulações entre psicanálise e feminismo em seu livro “From Mastery to Analysis:
Theories of gender in Psychoanalytic Feminism” (1991).
165
Juliet Mitchell é psicanalista e professora emérita de Psicanálise e Estudos de Gênero (Psychoanalysis and
Gender Studies) na Universidade de Cambridge (Informações disponíveis em https://www.gender.cam.ac.uk/di-
rectory/jmitchell). Em 1974, com “Psicanálise e Feminismo” (“Psychoanalysis and Feminism”), Mitchell propõe
que a psicanálise oferece uma análise de uma sociedade patriarcal, portanto não deve ser negligenciada se preten-
demos compreender a opressão das mulheres (MITCHELL, 1974/2000).
166
Jacqueline Rose é professora de Humanidades (Professor of Humanities) no Birkbeck Institute da Universidade
de Londres, do qual é também co-diretora. É reconhecida internacionalmente por seus trabalhos sobre feminismo,
psicanálise, literatura e sobre política e ideologia da questão Israel-Palestina. Publicou, entre outros, “Sexuality in
the Field of Vision” (1986/2005) e, conjuntamente com Juliet Mitchell, “Feminine Sexuality: Jacques Lacan and
the École Freudienne” (2001).
192
lacaniana de Freud, no que se refere a aspectos em que Lacan retoma formulações já presentes
em Freud, de maneira a resgatar e especificar, explicitar ou esclarecer. Nos termos de Elliot
(1991), Juliet Mitchell e Jacqueline Rose são “psicanalistas feministas”167.
Para nosso trabalho, as contribuições de Juliet Mitchell e Jacqueline Rose são funda-
mentais por situarem uma leitura da psicanálise como discurso analítico, o que fazem por meio
do resgate de proposições freudianas fundamentais – como sexualidade e inconsciente – com-
preendidas como causalmente entrelaçados (“causatively intertwined”), como propõe Mitchell
(2001), e da articulação entre a concepção de subjetividade – dividida e precária – e a feminili-
dade em Freud, como propõe Rose (2001).
A partir das contribuições de Jacqueline Rose, Elliot (1991) afirma que “enquanto as
mulheres sentirem os efeitos negativos da construção da diferença sexual, não podemos dispen-
sar a descrição que a psicanálise oferece dessa construção.”168 (p. 74, tradução nossa). Consi-
deramos que o desafio é articular os conceitos fundamentais da psicanálise à compreensão de
regimes de normatividade inscritos em condições sociais de produção. Buscaremos articular a
realidade de opressão a partir da proposição de Jacqueline Rose (2005) de que as normas ope-
ram, mas também falham. Acreditamos que a tensão entre essa operação e falha constitui algo
próprio da leitura psicanalítica, bem como consideramos importante destacar que não é por que
a norma falha que não opere.
Assim como indicamos, no capítulo 2, que fizemos um recorte no interior de perspecti-
vas feministas, neste capítulo também fizemos um recorte a partir de nossos objetivos geral e
específicos. Como delimitamos na introdução da tese, endereçamo-nos à psicanálise e temos
por objetivo pensar a categoria “mulheres” a partir de sua opressão. Neste capítulo, trabalhamos
com autores que iluminaram, para nós, possibilidades de pensar essa opressão, no campo da
psicanálise, a partir de normas que operam e falham.
Tivemos de fazer escolhas e muitos autores e autoras ficaram de fora, inclusive muitas
“psicanalistas feministas”. Inicialmente, pretendíamos trabalhar com Freud e Lacan, mas

167
Elliot (1991) discute o que denomina “teorias do sujeito generificado” (“theories of the gendered subject”),
produzidas no diálogo entre psicanálise e feminismo, e procura organizar algumas das que considera as mais in-
fluentes, destacando que as psicanalistas feministas (psychoanalytic feminists) não constituem um grupo homogê-
neo. Juliet Mitchell e Jacqueline Rose partem da leitura de Freud e Lacan, bem como da concepção de que a
psicanálise contribui para o marxismo com a noção de subjetividade. Dorothy Dinnerstein e Nancy Chodorow
discutem relações entre teoria social e a perspectiva psicanalítica das relações objetais para repensar a construção
do gênero a partir do papel da mulher como mãe. Luce Irigaray e Julia Kristeva discutem a questão da diferença
sexual por meio de uma leitura de Freud a partir de Lacan (ELLIOT, 1991). Rosalind Minsky (1996) lembra
também de Hélène Cixous, junto a Luce Irigaray e Julia Kristeva, como “feministas francesas”, grupo que fre-
quentemente recebe a denominação “feministas pós-modernas” (post-modern feminists).
168
“As Rose points out, as long as women feel the negative effects of the construction of sexual difference, we
cannot dispense with the description psychoanalysis offers of that construction” (ELLIOT, 1991, p. 74)
193
percebemos que nosso objetivo não era discutir a diferença sexual ou a sexuação. Esses temas
acabam aparecendo em alguns momentos de maneira transversal, mas não constituem nosso
foco. Lacan também acaba aparecendo por meio de trabalhos de outros psicanalistas, como, por
exemplo, as “psicanalistas feministas” Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, que desenvolvem suas
próprias leituras a partir de Freud e Lacan, assim como Patricia Elliot, que parte da formulação
dos quatro discursos em Lacan para assinalar os riscos de deslizamento do discurso analítico
para o discurso de mestria.
Fizemos a escolha de nos aprofundar em Freud e trazer outros psicanalistas que traba-
lham em diálogo com os estudos de gênero. Mesmo em relação aos estudos de gênero, nosso
recorte foi de autoras e autores que trabalham mais diretamente com perspectivas feministas e
que nos ajudam a pensar mais especificamente as questões relativas a mulheres e à realidade de
sua opressão – e não psicanalistas que trabalham com identidades de gênero excluídas, identi-
dades trans, entre outros temas que compõem o vasto campo dos estudos de gênero. Assim
como, no capítulo 2, indicamos que não tínhamos a pretensão de fazer uma cartografia das
perspectivas feministas nem esgotá-las, neste capítulo não pretendemos dar conta de todo o
vasto debate entre psicanálise e feminismos, mas apenas retomar contribuições das psicanalistas
e dos psicanalistas com os quais trabalhamos, no que se refere à temática e aos objetivos de
nosso trabalho.

3.1 As restrições à sexualidade e as neuroses atuais: uma tematização da materialidade


da opressão

No capítulo 1, recorremos ao texto “A psicogênese de um caso de homossexualismo em


uma mulher” para trabalhar a questão da identificação e da escolha de objeto, bem como a
contingência sustentada por Freud (1920/1996) ao propor que homossexualidade e heterosse-
xualidade são igualmente possíveis, sendo as restrições decorrentes do regime de normatividade
vigente. Partimos da retomada deste texto, de maneira a situar as restrições que recaem sobre a
sexualidade, mais especificamente em relação à escolha de objeto “proibida pela sociedade”,
tal como Freud (1920/1996) afirma, e como discutimos no capítulo 1.
Embora o foco do texto seja a questão da escolha de objeto, Freud (1920/1996) também
traz algo em relação às características que denomina “mentais” e que diriam respeito à atitude
“masculina” ou “feminina”, o que leva o autor a recorrer ao termo “feminista” para se referir à
jovem que não se conformava com sua condição como mulher.

194
Freud (1920/1996) descreve a jovem como “fogosa, sempre pronta a traquinagens e
lutas, não se achava de modo algum preparada para ser a segunda diante do irmão ligeiramente
mais velho” (1920/1996, p. 180), ou seja, inclinada a atividades e comportamentos considera-
dos culturalmente como “masculinos”. Não se mostrava inclinada às ideias de gravidez e parto,
sentia-se descontente em relação à posição relegada às mulheres e desejava a mesma liberdade
dos homens, o que leva Freud (1920/1996) a afirmar que “era na realidade uma feminista;
achava injusto que as meninas não gozassem da mesma liberdade que os rapazes e rebelava-se
contra a sorte das mulheres em geral” (p. 180).
Assim, a realidade da opressão aparece nesse caso, tanto no que se refere à escolha de
objeto “proibida pela sociedade”, quanto na consideração de que existe uma restrição social
quanto ao que se considera apropriado ou não para mulheres – bem como a revolta da jovem
diante disso. Optamos por iniciar esta seção retomando esse caso para sustentar que Freud se
mostra atento a aspectos da opressão das mulheres, proposição que pretendemos desenvolver
nesta seção a partir da tematização freudiana de restrições à sexualidade.
Levando em conta a existência de opressões gênero-específicas, tal como proposto por
Nancy Fraser (2003a) e discutido no capítulo1, consideramos importante destacar a abordagem
freudiana das restrições à sexualidade como a tematização de um aspecto da materialidade a
que estavam submetidas as mulheres no contexto histórico em que Freud produziu seus traba-
lhos. Quando discute a imposição da abstinência e da sexualidade voltada à reprodução, no
contexto da “moral sexual ‘civilizada’”, Ayouch (2018) considera que Freud aborda a temática
da opressão das mulheres, embora apenas indiretamente. Nos termos do autor:

Freud lida apenas indiretamente com a opressão da mulher, abordando, em 1908, a


“moral sexual ‘civilizada’”, que generaliza a abstinência pela imposição do único ob-
jetivo da reprodução a uma sexualidade que rompe com a reprodução pela pulsão.
Menos favorecidas pela “dupla” moral sexual deixando aos homens um fragmento de
liberdade sexual fora do casamento, as mulheres “sucumbem a graves neuroses que
assombram suas vidas”, enfatiza Freud, reconhecendo, assim, sua maior vulnerabili-
dade.169 (AYOUCH, 2018, p. 76, tradução nossa)

Naquele contexto histórico, a “moral sexual ‘civilizada’” circunscreve a sexualidade ao


âmbito do casamento heterossexual e da reprodução, e os efeitos dessa restrição recaem sobre
homens e mulheres. Porém, Freud se mostra atento a uma vulnerabilidade diferenciada, como

169
“Freud ne traite qu’indirectement de l’oppression des femmes en abordant en 1908 la « morale sexuelle ‘civi-
lisée’ », qui généralise l’abstinence par l’imposition du seul but de la reproduction à une sexualité qui s’en est
détachée par la pulsion. Moins favorisées par la « double » morale sexuelle laissant aux hommes un fragment de
liberté sexuelle hors mariage, les femmes « tombent dans de sévères névroses qui assombrissent leur vie », souligne
Freud, reconnaissant ainsi leur plus grande vulnérabilisation.” (AYOUCH, 2018, p. 76)

195
destaca Ayouch (2018), o que é particularmente importante, para nosso trabalho, por indicar
que existe algo – uma vulnerabilidade diferenciada ou opressões gênero-específicas – de que
precisamos falar. Se falar dessa realidade em termos de identidade coloca problemas – tendo
em vista os riscos associados ao essencialismo, como discutimos no capítulo 1 –, essa realidade
não deixa de existir, o que, a nosso ver, coloca a exigência de que possamos lidar com os desa-
fios epistemológicos.
Com o intuito de discutir essa vulnerabilidade diferenciada, no caso das mulheres, ini-
ciaremos resgatando textos freudianos em que encontramos tematizações dos efeitos da “moral
sexual ‘civilizada’”, bem como considerações sobre como esses efeitos se fazem sentir por ho-
mens e mulheres. A primeira menção que encontramos em Freud a uma argumentação que faz
referência a uma diferenciação entre homens e mulheres – articulada aos efeitos diferenciados
sobre homens e mulheres do contexto das restrições à sexualidade – foi nas “Publicações pré-
psicanalíticas” (1886-99), no contexto da primeira teoria freudiana da angústia.
Nesse momento, Freud (1894a/1996) diferencia neuropsicoses de defesa, caracterizadas
pelo mecanismo de defesa de recalcamento de representações (incluindo histeria, fobias, ob-
sessões e determinadas psicoses), e neuroses atuais (neurastenia e neurose de angústia), associ-
adas a alterações na descarga da excitação sexual somática, e não a fatores de ordem psíquica.
Estas últimas são discutidas nos rascunhos submetidos por Freud a Wilhelm Fliess, em especial
nos rascunhos B e E.
No “Rascunho B: A etiologia das neuroses” (FREUD, 1894b/1996), a neurastenia é as-
sociada a um “esgotamento sexual” que seria causado, no homem, sobretudo pela masturbação
e pelo coito interrompido. Campos (2004) explica que a inadequação da descarga da tensão
sexual ocasionaria a neurastenia, uma vez que a masturbação ou poluções corresponderiam a
substituições da ação específica. Essas descargas não satisfatórias acabariam produzindo um
esgotamento do estoque energético
Freud (1894b/1996) tece considerações, separadamente, em relação à neurastenia mas-
culina e feminina. No que se refere à masculina, considera que é adquirida na puberdade, ma-
nifestando-se no início da vida adulta (por volta de 20 anos), e que sua origem é a masturbação.
Identifica ainda um segundo fator nocivo, no caso de homens mais velhos: o coito incompleto,
com a finalidade de evitar a gravidez.
No caso das mulheres, Freud (1894b/1996) considera que os casos de neurastenia em
sua forma pura são relativamente raros e, nesses casos, “deve-se então pensar que surgiu

196
espontaneamente e do mesmo modo [? que nos homens]”170 (p. 226). Mais frequentemente, a
neurastenia feminina decorre ou é produzida simultaneamente à neurastenia masculina, em qua-
dro caracterizado pela mistura com histeria, a “neurose mista comum das mulheres” (p. 226).
Nesses casos, a neurastenia resultaria dos fatores nocivos relacionados à evitação da gravidez,
surgindo durante o segundo impacto dos fatores nocivos sexuais.
Assim, embora parta da diferenciação entre homens e mulheres, a argumentação freu-
diana caminha no sentido de indicar a evitação da gravidez como origem da neurastenia em
ambos. Tal consideração é evidenciada por afirmações de Freud (1894b/1996), como, por
exemplo: “A única alternativa seriam as relações sexuais livres entre rapazes e moças res-
peitáveis; isto, contudo, só poderia ser adotado se houvesse métodos inócuos de evitar a gravi-
dez” (p.228). Em decorrência disso, Freud (1894b/1996) considera que “na ausência de tal so-
lução, a sociedade parece condenada a cair vítima de neuroses incuráveis” (p. 229). No que se
refere à masturbação, esta é apresentada como fator etiológico no caso dos homens, mas parece
ser também implicitamente considerada no caso de mulheres, com quadro de neurastenia em
sua forma pura, quando o autor afirma que sua origem deveria ser pensada do mesmo modo –
o que, dado o contexto, parece de fato significar “do mesmo modo que nos homens”.
No “Rascunho E”171, a etiologia da neurose de angústia é proposta como acúmulo de
excitação sexual que não consegue encontrar descarga no campo psíquico (FREUD,
1894c/1996). Loffredo (2012) lembra que Freud apresenta suas primeiras formulações sobre a
angústia na mesma época em que, no “Projeto para uma psicologia científica” (FREUD,
1895c/1996), discute a necessidade de descarga dos estímulos endógenos por meio de uma ação
específica atrelada ao mundo externo.
Essa ausência de descarga aparece por meio da abstinência, uma vez que Freud
(1894c/1996) parte da observação de grupos bastante heterogêneos (incluindo homens e mu-
lheres, pessoas virgens, abstinentes etc.) e aponta a abstinência como elemento comum entre
eles. A observação de que mesmo mulheres frígidas podem experimentar angústia após o coito
interrompido levaria à conclusão de acúmulo de tensão sexual física, por ter sido evitada a
descarga.
O acúmulo de tensão endógena só seria percebido quando determinado limiar fosse al-
cançado, e então a tensão passaria a ter significação psíquica, o que induziria ao coito. Não

170
Essa marcação, entre colchetes e com interrogação, corresponde ao que está apresentada na versão brasileira
das “Obras Completas”, não se tratando de acréscimo nosso.
171
De acordo com o editor James Strachey, o “Rascunho E” não está datado, tendo 1894 sido atribuído pelos
editores da correspondência com Fliess (FREUD, 1894d/1996).

197
ocorrendo a reação específica, a tensão aumentaria e se tornaria uma perturbação. Na neurose
de angústia, a tensão física aumentaria, atingindo o limiar em que despertaria a libido no âmbito
psíquico, mas, por algum motivo, sendo a conexão psíquica insuficiente, a tensão física, não
ligada psiquicamente, seria transformada em angústia (FREUD, 1894c/1996).
Essas formulações sobre a neurose de angústia são retomadas nas Primeiras Publicações
Psicanalíticas. No texto “Obsessões e fobias”, Freud (1895b[1894]/1996) afirma a etiologia
sexual da neurose de angústia, não articulada a representações da vida sexual, mas à acumu-
lação de tensão sexual em decorrência de abstinência ou excitação sexual não consumada (coi-
tus reservatus, impotência do marido, excitação não satisfeita dos noivos, abstinência forçada
etc.). Acrescenta que essas condições são “extremamente frequentes na sociedade moderna,
especialmente entre as mulheres” (p. 86).
Além dessa breve menção no texto sobre obsessões e fobias, temos, nas Primeiras Pu-
blicações Psicanalíticas, o texto “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma sín-
drome específica denominada neurose de angústia” (FREUD, 1894d/1996). Freud
(1894d/1996), justifica a terminologia “neurose de angústia” pela possibilidade de agrupamento
de todos os seus componentes em torno do sintoma principal da angústia. Sua etiologia é rela-
cionada a fatores da vida sexual que, embora pareçam de origem variada, revelam sua caracte-
rística comum. Para discutir as condições etiológicas, Freud (1894d/1996) afirma ser impor-
tante considerar homens e mulheres separadamente.
Nas mulheres, que teriam uma predisposição inata para a neurose de angústia, Freud
(1894d/1996) apresenta como fatores etiológicos: 1) angústia virginal ou angústia nas adoles-
centes, que se refere a uma relação entre a produção da neurose de angústia e o primeiro contato
com o problema do sexo (revelação de algo até então desconhecido, visão do ato sexual etc.),
situação em que tipicamente haveria uma associação com a histeria; 2) angústia da recém-ca-
sada, quando se observa desencadeamento de neurose de angústia em jovens casadas que per-
maneceram anestésicas no período inicial da vida conjugal, e que pode desaparecer se advém a
sensibilidade; 3) ejaculação precoce ou potência enfraquecida do marido, ou ainda prática do
coito interrompido, situações consideradas por Freud como relações sexuais em que a mulher
não obtém satisfação, o que estaria associado à neurose de angústia; 4) viúvas e mulheres vo-
luntariamente abstinentes; e 5) no climatério, durante o último grande aumento da necessidade
sexual.
Nos homens, Freud (1894d/1996) identifica: 1) abstinência voluntária, frequentemente
combinada com sintomas de defesa (ideias obsessivas, histeria); 2) estado de excitação não
consumada (por exemplo, durante o período do noivado ou em situações onde se evita a relação
198
sexual); 3) coito interrompido quando o homem, para satisfazer a mulher, procura dirigir vo-
luntariamente o coito e adiar a emissão; 4) senescentes, em que o climatério, como nas mulhe-
res, apresenta potência decrescente e libido crescente.
Após tecer as considerações em relação a mulheres e homens separadamente, Freud
(1894d/1996) acrescenta casos que se aplicam a ambos os sexos: 1) pessoas que se tornaram
neurastênicas pela prática da masturbação e que desenvolveram neurose de angústia quando
abandonaram sua forma de satisfação sexual e 2) sobrecarga de trabalho ou esforço exaustivo.
Contudo, embora os fatores sejam apresentados separadamente para homens e mulhe-
res, Freud (1894d/1996) destaca que os estados de excitação não consumada, que discute no
caso masculino, podem se aplicar sem alterações no caso das mulheres. Além disso, no caso do
coito interrompido, destaca que em geral apenas um dos parceiros adoece: aquele que não está
obtendo satisfação.
Freud (1894d/1996) especifica que a causa da angústia está relacionada ao acúmulo de
tensão sexual, em decorrência de abstinência sexual ou excitação sexual não consumada. Nesse
sentido, consideramos possível articular as origens da neurose de angústia em homens e em
mulheres ao contexto de restrições à sexualidade das mulheres, já que a interdição de relações
sexuais fora do casamento recaía principalmente sobre elas, e essa abstinência forçada aparece
na origem da neurose de angústia. Em outras palavras, a opressão vivenciada pelas mulheres
resultaria em consequências negativas para ambos.
Também não podemos deixar de considerar uma vulnerabilidade diferenciada, que mui-
tas vezes aparece em Freud como algo inato às mulheres, mas que poderíamos articular às con-
dições sociais, uma vez que, como já pontuamos, ao homem ainda restavam possibilidades de
“burlar” as interdições, o que era muito mais difícil para as mulheres. Como destacamos a partir
de Ayouch (2018), podemos observar “a sensibilidade de Freud a uma forma de maior opressão
feminina pela moral sexual ‘civilizada’”172 (p. 76, tradução nossa).
A percepção dos efeitos de um regime normativo que coloca a sexualidade sob a égide
da reprodução e do casamento aparece também na explicação do mecanismo da neurose de
angústia, quando Freud (1894d/1996) inicia com uma discussão sobre o processo sexual nos
homens: a excitação sexual somática produzida continuamente se expressaria como estímulo
psíquico ao atingir certo nível. Esse estado psíquico resultaria em tendência a eliminar essa
tensão, o que só seria possível mediante ação específica. Apenas a ação específica seria efetiva,

172
“[...] une sensibilité de Freud à une forme de plus grande oppression féminine par la morale sexuelle « civi-
lisée ».” (AYOUCH, 2018, p. 76)

199
pois, uma vez atingido o limite da excitação sexual somática, ocorre a conversão contínua em
excitação psíquica. Após essa explicação, no caso dos homens, segue-se a seguinte passagem,
no que se refere às mulheres:

Afirmarei apenas que, em essência, essa fórmula é também aplicável às mulheres, a


despeito da confusão introduzida no problema por todos os retardamentos e tolhimen-
tos artificiais da pulsão sexual feminina. Também nas mulheres devemos postular uma
excitação sexual somática e um estado em que essa excitação se transforma num
estímulo psíquico – libido – e provoca a ânsia da ação específica a que está ligada a
sensação voluptuosa. (FREUD, 1894d/1996, p. 110)

Importante destacar que Freud (1894d/1996) menciona “retardamentos e tolhimentos


artificiais da pulsão sexual feminina”, o que indica sua percepção de processos artificiais – ou
seja, produzidos historicamente – que atuam na repressão sexual das mulheres. Essa análise a
partir de processos produzidos em um determinado regime de normatividade é destacada por
Ayouch (2018), que considera que a ênfase de Freud recai menos sobre “traços masculinos ou
femininos essencializados do que sobre a cultura e a moral restritiva que ela impõe, e que na
maioria das vezes coloca como a única saída para as mulheres a doença neurótica”173 (p. 76,
tradução nossa).
Essa percepção freudiana, muito atenta ao contexto histórico, é retomada em “A sexua-
lidade na etiologia das neuroses”, quando Freud (1898/1996) tece considerações sobre a hipo-
crisia no campo da sexualidade e defende uma maior liberdade nesse campo:

[...] é do interesse geral que se torne um dever, entre homens e mulheres, um grau
mais alto de franqueza sobre as coisas sexuais do que se tem esperado deles até agora.
Isso só pode constituir-se em benefício para a moral sexual. Em matéria de sexuali-
dade, somos todos, no momento, doentes ou sãos, não mais do que hipócritas. Será
muito bom se obtivermos, em conseqüência dessa franqueza geral, uma certa dose de
tolerância quanto às questões sexuais. (p. 254)

A questão das neuroses atuais reaparece no texto “Moral sexual civilizada e doença
nervosa moderna”, quando Freud (1908a/1996) coloca o fator sexual como fator básico na eti-
ologia das neuroses atuais, devido a necessidades sexuais insatisfeitas. Aponta a sublimação
como possibilidade, mas afirma que “parece ser indispensável uma certa quantidade de satisfa-
ção sexual direta” (p. 193). A restrição desta satisfação sexual direta pode levar à doença, em
um contexto de duras sanções sobre a sexualidade, sobretudo no que se refere às mulheres. Nos
termos do autor:

173
“Car l’accusation de Freud porte moins sur les déviances dans la masturbation ou les perversions, l’affaiblisse-
ment de la puissance sexuelle et leurs corrélatifs de traits masculins ou féminins essentialisés, que sur la culture et
la morale contraignante qu’elle impose, et qui ne laisse le plus souvent aux femmes comme seule issue que la
maladie névrotique.” (AYOUCH, 2018, p. 76)
200
[...] a singularidade da moral sexual civilizada a que obedecemos é que as restrições
feitas às mulheres por tal sistema são estendidas à vida sexual masculina, sendo proi-
bida toda relação sexual exceto dentro do casamento monogâmico. No entanto, as
diferenças naturais entre os sexos impõem sanções menos severas às transgressões
masculinas, tornando mesmo necessário admitir uma moral dupla. (FREUD,
1908a/1996, p. 169, grifos do autor)

Assim, como já pontuamos a partir de Ayouch (2018), enquanto aos homens restava
uma parcela de liberdade sexual fora do casamento, as mulheres ficavam em uma condição
menos favorecida e, por isso, seriam acometidas por neuroses. Freud reconhece, portanto, uma
maior vulnerabilidade das mulheres e mostra-se sensível a essa forma de opressão feminina.
Ao fazer essa retomada desde os textos freudianos iniciais, nossa intenção foi evidenciar que
Freud reconhecia essa realidade da opressão. Concordamos com a antropóloga Gayle Rubin
(1975/2017), que considera que textos freudianos evidenciam aspectos da opressão das mulhe-
res, que mal seriam percebidos sem suas contribuições.
Rubin (1975/2017), ao discutir a opressão e a subordinação social das mulheres, resgata
uma passagem de “O capital” (1890/1988), em que Marx ressalta o caráter relacional e histori-
camente específico daquilo que supostamente “é”. Marx pontua que um negro só se torna es-
cravo no interior de determinadas relações, assim como uma máquina de fiar algodão só se
torna capital em determinadas relações. Rubin (1975/2017) propõe, então, parafrasear Marx
para pensar as mulheres e questiona: “Quais são, então, essas relações por meio das quais uma
mulher se torna uma mulher oprimida?” (p. 10). A autora considera que Lévi-Strauss e Freud
possibilitam discutir essas relações, embora ambos não vejam o próprio trabalho dessa maneira:
“eles não percebem as implicações do que dizem, nem a crítica implícita que sua obra pode
suscitar quando submetida a um olhar feminista” (RUBIN, 1975/2017, p. 11).
Para Rubin (1975/2017), esses autores trazem conceituações que lançam luz às relações
nas quais reside a opressão das mulheres. A autora propõe o termo “sistema sexo/gênero” para
se referir ao conjunto de “arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade
biológica em produtos da atividade humana” (RUBIN, 1975/2017, p. 11). Os sistemas sexo/gê-
nero “são produtos da ação humana historicamente situada” (RUBIN, 1975/2017, p. 55) e, em-
bora tenham ocorrido transformações, a autora considera que esse sistema continua sendo res-
ponsável “pela socialização dos jovens e por providenciar definições cabais a respeito da natu-
reza dos próprios seres humanos” (RUBIN, 1975/2017, p. 54-5).
Rubin (1975/2017) recorre às formulações de Lévi-Strauss sobre os sistemas de paren-
tesco para evidenciar que as mulheres são os “presentes” e os homens os parceiros da troca,
sendo a estes últimos que a troca confere poder – ou seja, são os homens, e não as mulheres,

201
que se beneficiam da troca. Por isso, Rubin refere-se ao “tráfico de mulheres” como aquilo que
situa a opressão das mulheres nos sistemas sociais.
No que se refere à psicanálise, a autora afirma que “A psicanálise é uma teoria feminista
que não chegou a se configurar plenamente como tal”174 (RUBIN, 1975/2017, p. 36), ou seja,
existiriam elementos na obra freudiana que possibilitariam tematizar a opressão:

Os efeitos que os sistemas sociais dominados por homens produzem sobre as mulhe-
res estão muito bem documentados na literatura clínica, mais do que em qualquer
outro lugar. De acordo com a ortodoxia freudiana, a conquista da feminilidade “nor-
mal” custa caro para as mulheres. (RUBIN, 1975/2017, p. 36)

Retomaremos as considerações de Rubin ao discutirmos as formulações freudianas so-


bre a sexualidade feminina e feminilidade, na próxima seção deste capítulo. Por enquanto, gos-
taríamos de sustentar que as contribuições freudianas sobre as neuroses atuais, em um contexto
de restrições impostas pela “moral sexual ‘civilizada’”, possibilita pensar quais as “relações por
meio das quais uma mulher se torna uma mulher oprimida”, nos termos de Rubin (1975/2017,
p. 10).
Essas formulações sobre as neuroses atuais e as restrições à sexualidade, sobretudo nas
mulheres, são pouco exploradas nos estudos sobre a obra freudiana. No entanto, o psicanalista
Wilhelm Reich segue esse caminho aberto por Freud para trilhar seu percurso e propor suas
próprias contribuições. A importância de Reich é reconhecida por Juliet Mitchell (1974/2000),
que discute a reelaboração reichiana sobre a importância da sexualidade e sua ênfase na família
opressora das mulheres como um possível caminho para compreender a psicologia da femini-
lidade numa sociedade patriarcal e capitalista.
Albertini (2005) destaca que muitas ideias de Freud no texto “Moral sexual ‘civilizada’
e doença nervosa moderna” foram posteriormente adotadas por Reich, principalmente as apre-
sentadas no livro “Casamento indissolúvel ou relação sexual duradoura?”. Nesse texto, Reich
(1975) discute a repressão das necessidades sexuais como condição para o casamento, desta-
cando que a moral exige a castidade antes do casamento, principalmente da mulher, e define a
essência do casamento pela procriação, e não pela sexualidade. A repressão das necessidades
sexuais até o casamento levaria à consequência de que, quando se casa, a genitalidade não está
mais à disposição da mulher, o que estaria relacionado à frigidez.
Juliet Mitchell (1974/2000) discute as contribuições de Reich e sua condenação do ca-
samento compulsório e da família burguesa por suprimir a sexualidade, destacando sua ênfase
à importância da sexualidade das mulheres, bem como a formulação da passividade como

174
Na versão francesa, “La psychanalyse est une théorie féministe manquée” (RUBIN, 1975/2010, p. 17).
202
produto da sociedade. A autora ressalta ainda a defesa de Reich do controle sobre o próprio
corpo e da independência econômica como direitos da mulher, apontando que apenas leis de
divórcio mais liberais não teriam efeitos práticos sendo a mulher economicamente dependente
do marido.
Também relacionada à moral sexual repressora está a ênfase de Reich na predominância
das neuroses atuais, seja por elas mesmas, seja como núcleo das psiconeuroses. Por isso, sua
preocupação com as condições sociais nas quais as necessidades sexuais devem se expressar,
segundo Mitchell (1974/2000). Para Reich, a etiologia das neuroses atuais está em desordens
da vida sexual atual, e não em conflitos ligados à infância (ALBERTINI, 2005). Reich (1975)
aponta a influência da educação autoritária no desenvolvimento de uma atitude negativa em
relação ao ato sexual na mulher, de maneira que desordens da vida sexual atual se colocam
como muito prováveis.
Nosso objetivo aqui não é de aprofundar a perspectiva aberta por Freud e trilhada por
Reich no que se refere às neuroses atuais, mas apenas assinalar que existem trabalhos de psica-
nalistas que se ocupam deste campo, e também que a diferenciação entre neuroses atuais e
psiconeuroses não significa que caiba à psicanálise se ocupar apenas das últimas.
Um último aspecto que gostaríamos de destacar, antes de passar à próxima seção, é o
forte impacto que a observação referente aos efeitos negativos da moral sexual sobre a vida das
mulheres parece ter causado em Freud. Um caso clínico nos parece particularmente interessante
no que se refere a esse ponto: trata-se de Emmy Von N. nos “Estudos sobre a histeria”
(BREUER & FREUD, 1893-95/1996), que teria sido, segundo Freud, sua primeira tentativa de
recorrer à hipnose independentemente da sugestão hipnótica, por meio do método catártico. Na
fase inicial do tratamento, ele emprega a hipnose na forma convencional, com sugestões te-
rapêuticas diretas, mas a observação da resistência oposta pela paciente a suas solicitações e
sugestões desperta seu ceticismo.
Optamos por apresentar este caso nesta seção – e não na seção 3.2, em que abordaremos
a histeria – porque o que pretendemos destacar é uma diferença na abordagem de Freud em
diferentes seções dos “Estudos sobre a histeria”, que nos leva a considerar a forte impressão
que as restrições impostas à sexualidade das mulheres parece ter causado em Freud. Como
veremos, Freud “suspeita” que haveria um elemento sexual – a abstinência sexual –, embora,
segundo ele próprio, tal elemento não tenha aparecido no relato de Emmy Von N.
Para a discussão que pretendemos desenvolver, é importante destacar a diferença na
abordagem de Freud comparando a seção onde o caso é apresentado e uma seção de teorização
(“Psicoterapia da histeria”, escrita por Freud), em que o caso é retomado. Freud (1893-95/1996)
203
discute se o quadro poderia ou não ser considerado como histeria e, na seção onde o caso é
apresentado, estabelece ponderações mas conclui pela caracterização como histeria. Essa dis-
cussão contrasta com o que aparece na seção “Psicoterapia da histeria”, onde Freud afirma se
tratar de neurose de angústia, que teria se originado da abstinência sexual e se combinado com
a histeria.
Na seção de apresentação do caso, em nenhum momento aparece essa referência à neu-
rose de angústia, embora apareça a menção à abstinência sexual. Na época em que foi acompa-
nhada por Freud, Emmy Von N.175 tinha cerca de quarenta anos e apresentava um quadro de
depressão, insônia e dores. O quadro de enfermidade, em graus de gravidade variáveis, vinha
desde a morte de seu marido, com quem se casou aos vinte e três anos. Freud associa o temor
de choques inesperados, vivenciados por Emmy Von N., à situação de ter visto o marido, apa-
rentemente saudável, ser vítima de um ataque cardíaco diante de seus olhos. Ela relatou a Freud
que estava em período de repouso, após seu segundo parto, quando o marido, que estava ao seu
lado tomando o café-da-manhã e lendo o jornal, levantou-se subitamente, olhando-a de modo
que considerou estranho, e caiu morto (BREUER & FREUD, 1893-95/1996).
Freud considera que havia uma intensidade em seus sentimentos, e contrapõe a essa
observação a solidão em que vivia desde a morte do marido. Associa essa observação ao fato
de que, após a morte do marido, Emmy Von N. foi alvo de perseguições realizadas pelos pa-
rentes dele, que haviam sido contra o casamento, e que então a acusaram de tê-lo envenenado,
envolvendo-a em processos legais. Freud considera que essa perseguição fez com que se tor-
nasse desconfiada, de modo que ela desempenhava sozinha suas obrigações, que incluíam cui-
dar dos negócios (BREUER & FREUD, 1893-95/1996).
Freud atribui os afetos aflitivos vivenciados por Emmy Von N. a experiências traumáti-
cas e discute se o quadro poderia ou não ser considerado como histeria. Considera que, embora
não houvesse a sintomatologia típica dos ataques histéricos, possibilitariam a caracterização
como histeria: o caráter brando dos delírios e alucinações, permanecendo intactas outras ativi-
dades mentais, a alteração de sua personalidade e lembranças quando em estado de sonambu-
lismo artificial, a anestesia em sua perna dolorida e as cãibras no pescoço (BREUER & FREUD,
1893-95/1996). Essa discussão delineada na seção em que o caso é apresentado contrasta com
o que aparece na seção “Psicoterapia da histeria”, onde Freud afirma:

175
De acordo com nota do editor, apresentada no Apêndice A, existem dúvidas quanto à cronologia deste caso,
acompanhado por Freud entre 1888 ou 1889 e 1891. Freud afirma que o tratamento se iniciou em 1889 mas em
outros momentos do texto faz referência a 1888. A hipótese aventada para essas incoerências é de que Freud
poderia ter alterado tanto o local quanto o período do tratamento para preservar a identidade da paciente (BREUER
& FREUD, S., 1893-95/1996).
204
Quando examino minhas notas sobre esse caso hoje em dia, parece-me não haver ne-
nhuma dúvida de que ele deve ser visto como um caso grave de neurose de angústia
acompanhada de expectativa ansiosa e fobias – uma neurose de angústia que se origi-
nara da abstinência sexual e se combinara com a histeria. (p. 275)

Assim, na seção onde o caso é apresentado, Freud discorre e estabelece ponderações,


mas conclui pela caracterização como histeria e, na seção “Psicoterapia da histeria”, afirma
neurose de angústia combinada à histeria (BREUER & FREUD, S., 1893-95/1996).
Na seção de apresentação do caso, Freud afirma ser necessário acrescentar um fator para
explicar a persistência dos sintomas: a abstinência sexual que vinha vivendo há anos. Ou seja,
não há menção à neurose de angústia, mas aparece a menção à abstinência sexual. No entanto,
essa interpretação contrasta com a afirmação de que, dentre todas as informações compartilha-
das, houve ausência completa do elemento sexual. Apesar da ausência de informações sobre
essa dimensão, Freud considera impossível que excitações nesse campo não tivessem deixado
consequências. Segundo seus termos:

[...] não posso deixar de suspeitar de que essa mulher, que era tão passional e tão
capaz de sentimentos fortes, não tenha vencido suas necessidades sexuais sem grandes
lutas, e que, por vezes, suas tentativas de suprimir essa pulsão, que é de todas a mais
poderosa, tinham-na exposto a seu grave esgotamento mental. (BREUER & FREUD,
1893-95/1996, p. 131, grifos nossos).

Na leitura do caso, essa pontuação parece desconectada do relato de Emmy Von N., ou
seja, os efeitos da abstinência sexual aparecem como algo que Freud “suspeita”, e não uma
pontuação a partir de algo que Emmy Von N. teria relatado. Talvez isso fale mais de Freud do
que de Emmy Von N., e consideramos que uma possibilidade seria justamente a impressão de
Freud sobre os efeitos da moral sexual sobre as mulheres: ele parece tão convencido disso que
“suspeita” ser disso que se trata, embora não apareça no relato.
Um outro aspecto que consideramos importante destacar deste caso, para os objetivos
de nosso trabalho, é a admiração de Freud diante de Emmy Von N., destacando que, mesmo
em seus momentos difíceis, ela desempenhou suas obrigações na administração dos negócios,
na educação das filhas e manteve correspondência com pessoas preeminentes do mundo inte-
lectual. Como afirma o autor:

A mulher que viemos a conhecer era admirável. A seriedade moral com que encarava
suas obrigações, sua inteligência e energia, que não eram inferiores às de um homem,
e seu alto grau de instrução e de amor à verdade nos impressionaram grandemente,
enquanto seu generoso cuidado para com o bem-estar de todos os seus dependentes,
sua humildade de espírito e o requinte de suas maneiras revelaram também suas qua-
lidades de verdadeira dama. (BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 131)

205
A afirmação sobre sua inteligência “não inferior à de um homem” certamente suscita
questionamentos em nossa época. Podemos fazer uma leitura crítica, que nos leva, ao mesmo
tempo, a questionar a suposição de que as mulheres seriam menos inteligentes do que os ho-
mens, e também a reconhecer que a admiração de Freud, assim como a leitura que ele faz desse
caso, revelam sua inscrição em um contexto histórico onde as mulheres permaneciam alheias a
lugares de poder.
Assim, na tematização dos efeitos negativos da “moral sexual ‘civilizada’” e no caso
Emmy Von N., aparece uma articulação entre a opressão das mulheres e as condições sociais
que (re)produzem essa opressão. Para ressaltar esse aspecto, finalizamos esta seção retomando
Freud (1898/1996), em “A sexualidade na etiologia das neuroses”, destacando uma passagem
que podemos articular às formulações de Reich e à importância dos métodos contraceptivos:

Tudo o que impede a ocorrência de satisfação é nocivo. Mas, como se sabe, não pos-
suímos no momento nenhum método de impedir a concepção que preencha todos os
requisitos legítimos – isto é, que seja seguro e cômodo, que não diminua a sensação
de prazer durante o coito e que não fira a sensibilidade da mulher. Isso impõe aos
médicos uma tarefa prática para cuja solução eles poderiam concentrar suas energias
com resultados compensadores. Quem preencher essa lacuna em nossa técnica médica
terá preservado o prazer da vida e mantido a saúde de inúmeras pessoas, muito em-
bora, é verdade, tenha também preparado o terreno para uma drástica mudança em
nossas condições sociais. (p. 263)

Freud (1908a/1996) destaca a importância de que viessem a ser concebidos métodos


contraceptivos eficazes e que não prejudicassem a sensibilidade (da mulher, esse é o destaque
de Freud) e considera o aspecto positivo em termos de prazer e saúde caso isso fosse obtido,
acrescentando em seguida que “muito embora” seria ter “preparado o terreno para uma drástica
mudança em nossas condições sociais”. A percepção de que a conquista de métodos contracep-
tivos estaria articulada a uma transformação drástica no campo social reforça a percepção de
que Freud se mostra muito atento à opressão vivenciada pelas mulheres no campo da sexuali-
dade naquele momento histórico e, mais ainda, que os efeitos dessa opressão não ficavam cir-
cunscritos a essa esfera, mas permeavam outros domínios da sociabilidade.
Se essas formulações sobre as restrições vivenciadas pelas mulheres no campo da sexu-
alidade – que aparecem em teorizações sobre neuroses atuais e são retomadas em “Moral sexual
‘civilizada’ e doença nervosa moderna” – evidenciam a materialidade da opressão vivida pelas
mulheres, não podemos dizer o mesmo de toda a obra freudiana, por isso as muitas críticas
dirigidas por feministas a Freud. No entanto, consideramos que existem outros elementos que
nos possibilitam uma leitura dessa experiência de opressão a partir da psicanálise. Na próxima
seção, trabalharemos com as formulações freudianas sobre sexualidade feminina, feminilidade

206
e histeria e discutiremos como diferentes leituras são possíveis a partir dessas formulações,
desde leituras mais essencialistas até leituras que buscam situar historicamente as formulações
freudianas.

3.2 Sexualidade feminina, feminilidade e histeria: possíveis leituras a partir das for-
mulações freudianas

Na seção anterior, retomamos momentos da obra freudiana em que podemos encontrar


tematizações da opressão vivida pelas mulheres naquele momento histórico. Se, naquele mo-
mento histórico, efetivamente havia um contexto de restrições à sexualidade das mulheres – e
os casos clínicos freudianos proporcionam uma descrição sobre esse aspecto da opressão das
mulheres –, também não podemos deixar de interrogar sobre a posição de Freud. No caso Dora,
que discutiremos na seção 3.2.2 , quando Freud discute os sintomas como substitutos da mas-
turbação, encontramos a seguinte asserção: “possibilidade de cura da histeria pelo casamento e
pelas relações sexuais normais” (FREUD, 1905b/1996, p. 80).
Em 2019, mais de um século depois dos escritos de Freud e em outro contexto histórico,
um radialista brasileiro foi demitido por ter afirmado que Greta Thunberg, de 16 anos de idade,
ativista pelo meio ambiente, estaria “precisando de sexo”, acrescentando que se tratava de “uma
histérica mal-amada”176. Se hoje é evidente o caráter misógino de tal afirmação, também nos
parece evidente a necessidade de interrogarmos o que aparece em Freud à luz do contexto em
que ele escreveu e do nosso atual.
Evidentemente, não se trata de igualar Freud ao radialista. Freud não afirmou que Dora
estava “precisando de sexo”, além de ser muito diferente tecer considerações sobre casos clíni-
cos e fazer uma afirmação preconceituosa, com o intuito de desautorizar alguém diante de um
grande público. No entanto, a psicanálise não fica restrita aos psicanalistas; existe uma apropri-
ação – que pode ser equivocada – pelo público externo ao círculo dos psicanalistas. De alguma
maneira, a psicanálise tem algo a ver com a representação cultural que desvaloriza mulheres
afirmando que são “histéricas” “precisando de sexo”.
Esse aspecto nos remete a um questionamento colocado por Costa (2013), que discuti-
remos no capítulo 4, sobre os estudos de masculinidade(s): tais estudos não constituem um
problema em si, mas, muitas vezes, deixam de fora uma perspectiva feminista e reproduzem as

176
“Radialista é demitido após dizer que Greta está ‘precisando de sexo’”, matéria do UOL de 26/09/2019. Dis-
ponível em https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/09/26/radialista-e-demitido-apos-di-
zer-que-greta-esta-precisando-de-sexo.htm
207
mesmas perspectivas narradas por homens. Por isso consideramos fundamental interrogar a
psicanálise a partir das incidências dos estudos sobre gênero e feminismo. Como afirma Laufer
(2014a): “É precisamente a ferramenta do gênero que pode dar novo impulso a uma psicanálise
presa nos discursos correntes de sua época”177 (p. 18, tradução nossa).
Nossa perspectiva, ao longo da tese, é a de buscar as incidências de outros campos do
conhecimento para interrogar a psicanálise. Algo muito diferente se produz quando, ao contrá-
rio, busca-se levar “verdades” da psicanálise para outros campos, o que coloca os riscos de
tomar a psicanálise como discurso de mestria, discussão que apresentaremos, na seção 3.2.2, a
partir das contribuições de Elliot (1991). Na perspectiva de tomar a psicanálise como discurso
analítico, nesta seção recorreremos a contribuições de psicanalistas que discutem questões so-
bre gênero e feminismo a partir de Freud e trabalharemos a partir de três eixos: a oposição
masculinidade/feminilidade, a discussão sobre sexualidade feminina e feminilidade e as formu-
lações sobre a histeria.

3.2.1 A oposição masculinidade-feminilidade em Freud

Laplanche (2014a) considera que a noção de gênero está presente em Freud a partir da
oposição entre os termos masculinidade e feminilidade. A concepção freudiana apareceria, para
Laplanche (2014a), em momentos de sua obra como, por exemplo, quando afirma que um ser
extraterrestre se daria conta da divisão da espécie humana em dois. O autor pontua que Freud
não utiliza o termo “gênero”, mas que é possível concluir que é disso que se trata, uma vez que
não está em questão a visualização dos órgãos genitais, e sim das vestimentas e características
externas.
A oposição masculinidade-feminilidade em Freud é articulada ao par ativo-passivo, o
que aparece pela primeira vez já em “A hereditariedade na etiologia das neuroses”, quando
Freud (1896b/1996) destaca precondições, causas concorrentes e específicas das neuroses. Em
relação a estas últimas, coloca a vida sexual e seus distúrbios como fonte.
É importante destacar que, conforme nota do editor inglês, James Strachey (FREUD,
1896c/1996), nesse momento da obra freudiana, uma experiência sexual de caráter traumático
era considerada como fator etiológico: uma experiência passiva na histeria e ativa nas obsessões

177
“C’est précisément l’outil du genre qui peut redonner un nouvel élan à une psychanalyse prise dans les discours
courants de son époque.” (LAUFER, 2014a, p. 18)
208
– embora, no caso das obsessões, exista a referência a uma experiência passiva anterior178. A
etiologia estaria sempre associada à sedução, constituindo evento traumático que ocorria antes
da puberdade, embora o aparecimento da neurose ocorresse após a puberdade. Posteriormente,
essa concepção é modificada dando lugar ao papel da fantasia na etiologia das neuroses.
A etiologia da histeria é associada, então, a uma experiência sexual precoce, decorrente
de abuso sexual antes da puberdade, em que a submissão se daria com indiferença, aborreci-
mento ou medo, ou seja, não produziria prazer – o que leva Freud a denominar “experiência
sexual passiva”. Na primeira infância, essa experiência não traria maiores consequências, mas
seu traço psíquico seria preservado e, na puberdade, esse traço psíquico inconsciente seria rea-
tivado (FREUD, 1896b/1996).
No caso da neurose obsessiva, também haveria um evento sexual precoce, porém que
proporcionou prazer (diferentemente da histeria): “um ato de agressão inspirado no desejo (no
caso do menino) ou de um ato de participação nas relações sexuais acompanhado de gozo (no
caso da menina)” (FREUD, 1896b/1996, p. 154). As representações obsessivas consistiriam de
“recriminações dirigidas pelo sujeito a si mesmo por causa desse gozo sexual antecipado”
(FREUD, 1896b/1996, p. 154), distorcidas pelo trabalho inconsciente de transformação.
Mesmo no caso das obsessões, associadas a uma experiência ativa, a menina aparece
em uma posição “passiva” – a de “ser abusada”. O elemento “ativo”, no caso da menina, seria
o sentir prazer em uma experiência de abuso – abuso que aparece em Freud (1896b/1996) como
“participação nas relações sexuais”. Talvez essa associação nos ajude a compreender a articu-
lação entre, por um lado, passividade e feminino e, por outro, atividade e masculino:

A importância do elemento ativo na vida sexual como causa das obsessões, e da pas-
sividade sexual na patogênese das histerias, parece até mesmo desvendar a razão da
conexão mais íntima da histeria com o sexo feminino e da preferência dos homens
pela neurose obsessiva. Às vezes deparamos com um par de pacientes neuróticos que
formaram um casal de pequenos amantes em sua mais remota infância – o homem
sofrendo de obsessões e a mulher, de histeria. Quando se trata de irmão e irmã, pode-
se cometer o equívoco de tomar como resultado da hereditariedade nervosa o que é,
de fato, consequência de experiências sexuais precoces. (FREUD, 1896b/1996, p.
154)

Essa citação sobre a conexão atividade-obsessões e passividade-histeria aparece, nesse


momento, articulada à teoria do trauma e se refere a natureza (ativa ou passiva) da suposta
experiência traumática (seduzir ou ser seduzido). A princípio, nada tem a ver com atividade
relacionada à masculinidade e passividade à feminilidade, mas apenas com seduzir e ser

178
O evento traumático, no caso do menino, seria sua tentativa de seduzir uma menina, mas essa tentativa ativa
estaria relacionada a uma sedução mais remota em que ele teria ocupado o lugar passivo de ser seduzido por uma
mulher adulta.
209
seduzido. No entanto, se retomamos a citação referente às obsessões, a experiência de abuso
sexual que teria proporcionado prazer corresponderia, para Freud, ao menino que abusa – “um
ato de agressão inspirado no desejo (no caso do menino)” – ou à menina que é abusada e sente
prazer – “um ato de participação nas relações sexuais acompanhado de gozo (no caso da me-
nina)” (FREUD, 1896b/1996, p. 154).
Em nosso contexto atual, não passa despercebido o aspecto problemático de afirmar
prazer em uma situação de abuso sexual. Freud está se referindo à clínica, onde a singularidade
sempre se coloca, mas essa afirmação de prazer em uma situação de abuso sexual é apresentada
como evidente, como algo que não desperta maiores questionamentos, ao invés de ser proble-
matizada, interrogada. Além do aspecto problemático de afirmar prazer em uma situação de
abuso sexual, parece excluída de saída a possibilidade de a menina abusar. Ou seja, no caso das
obsessões, haveria uma primeira experiência passiva em que o menino ou a menina é abusado/a
por um adulto, mas, no segundo momento, Freud não concebe a possibilidade de a menina ser
a agressora. Dessa maneira, a articulação entre, por um lado, masculino e ativo e, por outro,
feminino e passivo, já parece dada nos pressupostos.
Por que estaria excluída a possibilidade de a menina ser a agressora? Talvez por ser
pouco frequente, o que fez com que Freud sequer concebesse essa possibilidade? Mesmo su-
pondo que seja, de fato, menos frequente, o risco aqui é confundir o que é contingente com
necessário – e teorizar, a partir de algo contingente, fazendo proposições supostamente univer-
sais.
Ao abordar as subjetivações minoritárias, Ayouch (2018) interroga determinados dis-
cursos que, em nome da psicanálise, adotam uma postura pedagógica em relação àqueles que
escapam à forma de subjetivação majoritária, organizada em torno de normas heterocentradas.
Ayouch (2018) diferencia, então, a descrição de algo – historicamente situado – e a prescrição
de um único modo de subjetivação: “A análise descritiva de modalidades de arranjo dos sexos,
de configurações historicamente situadas de sexuações e sexualidades, torna-se prescritiva de
um único modo de subjetivação”179 (p. 15, grifos do autor, tradução nossa).
A partir dessa proposição de Ayouch (2018), consideramos que o relato de algo – que
se mostra na cultura, em determinado contexto, ou que aparece na clínica – consiste em uma
descrição, o que é diferente de prescrição. Se é mais frequente meninos abusarem e meninas

179
“L’analyse descriptive des modalités d’arrangement des sexes, des configurations historiquement situées des
sexuations et des sexualités, devient prescriptive d’un seul mode de subjectivation” (AYOUCH, 2018, p. 15, grifos
do autor)

210
serem abusadas, pontuar esse aspecto consiste em descrever; não significa que possa ser gene-
ralizado para todos os meninos e meninas, nem que sempre será assim, e muito menos que deve
ser assim.
Esse aspecto nos parece importante porque, muitas vezes, no intuito de defender deter-
minadas afirmações, psicanalistas recorrem ao argumento “mas é isso que aparece na clínica”.
Por mais que algo tenha aparecido ou esteja aparecendo na clínica, não significa que seja uni-
versal nem que vá continuar aparecendo, ou seja, é preciso cuidado para não tomar como ne-
cessário algo que é contingente. Por isso, consideramos que é importante que nós, psicanalistas,
voltemo-nos para os textos de Freud atentos a esses aspectos. Podemos, assim, questionar arti-
culações que Freud coloca como evidentes, mas que resultam bastante problemáticas.
Retornando aos textos freudianos para destacar um outro momento em que a articulação
masculino-ativo e feminino-passivo parece ser tomada como pressuposto desde o início, temos
a discussão da histeria como de natureza passiva, por ser relacionada a uma experiência
primária de desprazer, tal como retomada no “Rascunho K: As neuroses de defesa”. Nesse
texto, Freud (1896a/1996) apresenta a passividade como algo “natural” no caso da mulher: “A
passividade sexual natural das mulheres explica o fato de elas serem mais propensas à histeria.
Nos casos em que encontrei histeria em homens, pude comprovar, em suas anamneses, a pre-
sença de acentuada passividade sexual” (p. 275). Seguem-se descrições sobre o recalcamento
como mecanismo produtor da histeria e, de fato, não aparece qualquer relativização em relação
a aspectos culturais – diferentemente do “Rascunho G”, que apresentaremos a seguir. De uma
articulação masculino-ativo e feminino-passivo, que consideramos problemática pelos motivos
já expostos, aqui Freud dá mais um passo e caracteriza a passividade como “natural” nas mu-
lheres. A partir de conexões que vão sendo tomadas como evidentes – e não como algo a ser
interrogado – chega-se a conclusões que parecem já estar contidas nas premissas.
Ao apontarmos que, em determinados momentos da obra freudiana, a articulação entre
passividade e feminilidade é apresentada de maneira que parece ser pressuposta desde o início,
concordamos com Rubin (1975/2017), que vê nos textos freudianos uma descrição da realidade
da opressão das mulheres, mas aponta que existem momentos em que há uma racionalização
daquilo que é descrito, que a autora considera problemática. No que se refere ao aspecto des-
critivo, a autora considera que as críticas feministas estão equivocadas, ou seja, a teoria psica-
nalítica é, na visão da autora, uma boa “descrição de como a cultura fálica domestica as mulhe-
res”. Por outro lado, existem momentos em que as formulações teóricas racionalizam essa rea-
lidade descrita, e com relação a esse aspecto Rubin (1975/2017) considera que as críticas femi-
nistas são pertinentes.
211
Rubin (1975/2017) pontua que Freud desafiou a moral convencional, mas esse desafio
não aparece quando se trata do masoquismo e da passividade associadas às mulheres. A autora
considera que Freud recorre a um “modelo de interpretação de dois pesos e duas medidas”
(RUBIN, 1975/2017, p. 53), considerando o masoquismo e a passividade como algo negativo
para os homens mas necessário nas mulheres. Ou seja, Freud descreve um sistema sexista, mas
não questiona o sexismo presente nesse sistema que descreve. Na leitura de Rubin (1975/2017):

Há momentos das discussões analíticas da feminilidade em que se pode dizer “Isso é


opressão das mulheres” ou “Podemos demonstrar com facilidade que os sacrifícios
exigidos pelo que se chama de feminilidade vão além do que isso vale”180. E é preci-
samente aqui que as implicações da teoria são ignoradas e substituídas por formula-
ções cujo objetivo é manter tais implicações firmemente alojadas no inconsciente teó-
rico. (RUBIN, 1975/2017, p. 54).

No entanto, se concordamos que, em determinados momentos da obra freudiana, apare-


cem racionalizações problemáticas, também é importante destacar o aspecto dialético e de mo-
vimento, assim como apontado por Laufer (2014a). No intuito de evidenciar esse movimento,
cabe destacar que, no mesmo texto (“Rascunho K”), Freud (1896a/1996) menciona a ocorrência
de histeria também em homens, ainda que destacando a predominância em mulheres.
Além disso, é interessante notar uma perspectiva bastante diferente no “Rascunho G:
Melancolia”, embora a passividade apareça aqui circunscrita à discussão sobre a melancolia, e
não à histeria. Nesse texto, Freud (1895a/1996) afirma uma correlação entre melancolia e anes-
tesia sexual, questiona o por quê da predominância da anestesia em mulheres e responde que
isso se deve à passividade: “Torna-se necessário verificar por que a anestesia é tão predomi-
nantemente característica das mulheres. Isso tem origem no papel passivo desempenhado por
elas. Um homem com anestesia logo deixa de empreender qualquer relação sexual; a mulher
não tem escolha” (p. 250).
Ao dizer que a mulher “não tem escolha”, parece-nos que Freud já começa a indicar que
não se trata de uma passividade que seria inata, característica das mulheres, mas sim algo que
se inscreve em determinado regime de normas. Em seguida, Freud (1895a/1996) chama a aten-
ção para o papel da educação atuando no sentido de que não se desperte a excitação sexual
somática nas mulheres. Segundo seus termos: “toda a sua educação se faz no sentido de não
despertarem s. S.[excitação sexual somática], e sim de transformarem em estímulos psíquicos
todas as excitações que de outro modo teriam esse efeito” (p. 250).

180
A referência da autora é o questionamento de Freud em “Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna”:
“[...] é justo que nos indaguemos se a nossa moral sexual ‘civilizada’ vale o sacrifício que nos impõe” (FREUD,
1908a/1996, p. 186). Da mesma maneira que Freud se interroga se vale o sacrifício que nos impõe a “moral sexual
‘civilizada’”, Rubin se interroga se vale o sacrifício que nos impõe a feminilidade.
212
A discussão que aparece aqui se aproxima das considerações freudianas sobre as neuro-
ses atuais, com ênfase nos efeitos da moral sexual da época, sobretudo para as mulheres. Na
discussão sobre a histeria, a passividade aparece articulada ao “ser seduzido”; nas considera-
ções sobre a melancolia a um “papel passivo” (passivo em contraposição a ação, atividade),
que é articulado à educação e à moral sexual. Nos dois casos, passividade aparece articulada à
posição de objeto que recebe uma ação.
Ao destacar a educação, parece evidente a circunscrição no regime normativo da época
em que Freud viveu. O autor segue dizendo, sobre essa educação, que “exige-se que renunciem
ao arco da reação específica; em lugar disso, delas se exigem ações específicas que atraiam o
homem para a ação específica” (FREUD, 1895a/1996, p. 250-1). Interessante notar que aqui
aparece uma leitura em termos de “se fazer objeto do outro”, porém, da maneira como essa
afirmação aparece no texto freudiano, trata-se de algo contingente, situado no regime de normas
de determinada cultura e momento histórico. De maneira diversa, esse mesmo aspecto é tomado
como prescritivo por alguns psicanalistas, como veremos a partir das formulações de Schaeffer
(2002a; 2002b), na seção 3.2.3.
Além disso, Freud (1895a/1996) afirma ainda que “as mulheres [tornam-se frígidas mais
facilmente do que os homens] porque, muitas vezes, chegam ao ato sexual (casam) sem amor
– ou seja, com menos s. S. [excitação sexual somática]” (p. 251). Novamente, acreditamos que
se trata de algo localizado naquele momento histórico, quando as mulheres não tinham qualquer
escolha em relação ao casamento. Aqui, Freud articula feminino e passividade de uma maneira
que remete a algo da ordem da contingência: algo que observa na clínica e descreve, mas que
não toma como prescritivo ou inevitável.
Também no sentido de destacar a contingência associada aos termos “masculino” e “fe-
minino”, nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1905a/1996) evidencia a
dificuldade com esses termos. Consideramos importante resgatar o início das considerações
freudianas sobre esse ponto – a articulação feminino-passividade e masculino-atividade – por-
que foi algo a que Freud se debruçou desde esse momento, não sem contradições e com refe-
rências ao contexto sociocultural, e cuja dificuldade ele não deixa de destacar. Essa dificuldade
volta a aparecer mais tarde em sua obra, quando em “A psicogênese de um caso de
homossexualismo em uma mulher” Freud (1920/1996) afirma que:

Mas a psicanálise não pode elucidar a natureza intrínseca daquilo que, na fraseologia
convencional ou biológica, é denominado de “masculino” e “feminino”: ela simples-
mente toma os dois conceitos e faz deles a base de seu trabalho. Quando tentamos
reduzi-los mais ainda, descobrimos a masculinidade desvanecendo-se em atividade e
a feminilidade em passividade, e isso não nos diz o bastante. (p. 183)

213
Retomando os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, em nota de rodapé acres-
centada em 1915, Freud (1905a/1996) parte da afirmação de que “é indispensável deixar claro
que os conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’, cujo conteúdo parece tão inambíguo à opinião
corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência e se decompõem em pelo menos três
sentidos” (p. 207). Os sentidos aos quais Freud (1905a/1996) associa esses termos são: ativi-
dade e passividade, sentido biológico e sociológico.
Na primeira acepção, que seria “o essencial, assim como o mais utilizável em psicaná-
lise” (p. 207), “atividade” aparece associada ao masculino e “passividade” ao feminino – o que
leva Freud (1905a/1996) a descrever, por exemplo, a libido como “masculina”, no sentido de
que a pulsão é sempre ativa.
Esse primeiro sentido seria, então, específico da psicanálise, enquanto o segundo signi-
ficado, biológico, estaria associado à presença de espermatozóides ou óvulos e às funções de-
rivadas. Características como atividade, desenvolvimento muscular, agressividade, maior in-
tensidade da libido, entre outras, costumam ser associadas à masculinidade biológica, mas
Freud (1905a/1996) considera que não é necessariamente assim, uma vez que existem espécies
animais em que estas qualidades são associadas à fêmea.
O terceiro significado, sociológico, tem sua conotação derivada da observação de in-
divíduos masculinos e femininos efetivamente existentes. Freud (1905a/1996) afirma que essa
observação evidencia que, no humano, masculinidade e feminilidade puras não podem ser en-
contradas, nem em sentido biológico nem psicológico: “Cada pessoa exibe, ao contrário, uma
mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda
uma conjugação de atividade e passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos dependerem
dos biológicos quanto no caso de independerem” (FREUD, 1905a/1996, p. 208).
No intuito de situar como Freud (1905a/1996) trabalha com esses sentidos dos termos
“masculino” e “feminino”, em uma seção intitulada “Diferenciação entre o homem e a mulher”,
é destacada a diferenciação entre as características que marcariam o masculino e o feminino na
puberdade. Segundo Freud (1905a/1996): “Sabe-se que somente com a puberdade se estabelece
a separação nítida entre os caracteres masculinos e femininos, num contraste que tem, a partir
daí, uma influência mais decisiva do que qualquer outro sobre a configuração da vida humana”
(p. 207).
Nesse trecho, Freud parece se referir a características externas, visíveis, que possibilitam
a categorização como masculino ou feminino. Mas ele continua, no mesmo parágrafo, menci-
onando “disposições masculinas e femininas”, que poderiam ser reconhecidas já na infância, e

214
a “inibições da sexualidade”, que ocorreriam mais precocemente e com menor resistência nas
meninas. Freud (1905a/1996) afirma, então, uma maior tendência ao recalcamento sexual e a
predominância da forma passiva das pulsões parciais nas meninas.
No entanto, Freud (1905a/1996) considera que é idêntica em meninos e meninas a ati-
vidade auto-erótica das zonas erógenas, o que “suprime na infância a possibilidade de uma
diferenciação sexual como a que se estabelece depois da puberdade” (p. 207). Aqui parece que
há algo mais nessa diferenciação que se estabeleceria na puberdade: se Freud inicia o parágrafo
de uma maneira que parece fazer referência a características visíveis, ao aspecto sociológico, o
desenvolvimento do parágrafo trazendo as “disposições” na infância e a atividade auto-erótica
idêntica (que impossibilitaria uma diferenciação na infância) parece evidenciar que Freud tem
algo mais em mente quando se refere a essa diferenciação sexual que se estabelece na puber-
dade, algo para além das características visíveis. Essa diferenciação parece ser aquela entre
atividade e passividade, tanto que ele segue dizendo que, no que diz respeito às manifestações
auto-eróticas e masturbatórias nas meninas, seu caráter é inteiramente masculino. Como a libido
é considerada de natureza masculina, pela característica de atividade, parece que a diferencia-
ção que Freud pretende fazer é de uma indiferenciação na infância, quando a sexualidade auto-
erótica seria ativa em meninos e meninas, e uma diferenciação na puberdade, que articularia
feminino a passividade e masculino a atividade.
Embora Freud estabeleça a distinção entre o sentido sociológico e o sentido de atividade
e passividade, parece haver aqui uma certa confusão e mistura desses sentidos, afinal ele co-
meça com “caracteres masculinos e femininos” e termina em atividade e passividade. Impor-
tante destacar a passagem que fecha esta seção, recolocando a dificuldade de estabelecer o que
seria “masculino” e “feminino”, e destacando a concepção de bissexualidade como um possível
caminho que, neste momento, indicaria algo de “masculino” e “feminino” em todos nós:

A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino” e “feminino” um conteúdo


mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e normati-
vamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo
seu objeto, seja este homem ou mulher. Desde que me familiarizei com a noção de
bissexualidade, passei a considerá-la como o fator decisivo e penso que, sem levá-la
em conta, dificilmente se poderá chegar a uma compreensão das manifestações sexu-
ais efetivamente no homem e na mulher. (FREUD, 1905a/1996, p. 207-8)

Freud (1913/1996) retoma a reflexão sobre o que seria “masculino” e “feminino” em


“O interesse científico da psicanálise”, ao referir a importância de que o aspecto biológico não
domine a psicanálise, mas da impossibilidade de prescindir dessa esfera ao definir a pulsão no
limite entre psíquico e somático. Em seguida, trata das concepções de masculinidade e femini-
lidade:
215
Falamos também de atributos e impulsos mentais “masculinos” e “femininos”, em-
bora, estritamente falando, as diferenças entre os sexos não possam pretender ne-
nhuma característica psíquica especial. Aquilo de que falamos na vida comum como
“masculino” e “feminino” reduz-se, do ponto de vista da psicologia, às qualidades de
“atividade” e “passividade” – isto é, a qualidades determinadas não pelos próprios
instintos, mas por seus objetivos. A associação regular destes “ativos” e “passivos”
na vida mental reflete a bissexualidade dos indivíduos, que está entre os postulados
clínicos da psicanálise. (p. 184)

Embora não seja nosso objetivo um aprofundamento na questão da bissexualidade, con-


sideramos importante destacar o questionamento colocado por Molinier (2008), como aponta-
mos no capítulo 1, no que se refere à conservação da diferença no conceito de bissexualidade:
ao postular a existência de moções masculinas e femininas em todos nós, o conceito de bisse-
xualidade não deixa de recolocar essa diferença, o que coloca riscos de uma compreensão no
sentido de “vitória ‘quantitativa’ do gênero ‘bom’ sobre o outro”181 (p. 168, tradução nossa).
Ao longo desta seção, vimos que Freud enfatiza, mais de uma vez, que as definições de
masculino e feminino parecem problemáticas. Para Molinier (2008), “Freud retomou várias
vezes a ideia de que não existem noções mais complexas do que as de ‘masculino’ e ‘feminino’,
ele nunca deixa de enfatizar os equívocos que elas geram, bem como o caráter convencional de
suas determinações”182 (p. 167, tradução nossa). Como também destaca Ayouch (2014), Freud
sublinha muitas vezes que, embora tais noções pareçam ter um significado inequívoco, são, na
verdade, confusas, e a psicanálise não tem a pretensão de elucidar sua essência.
Para Laplanche (2014a), a oposição masculinidade-feminilidade em Freud não corres-
ponderia nem ao par ativo-passivo nem fálico-castrado, mas seria algo da ordem da produção,
a partir de diferentes dimensões. Como afirma o autor: “masculinidade e feminilidade são duas
sínteses complexas feitas de elementos psicológicos, biológicos e sociológicos”183
(LAPLANCHE, 2014a, p. 105, tradução nossa).
No entanto, pudemos observar, também, que as formulações freudianas em relação a
essas concepções por vezes se contradizem e, a partir da observação dessas contradições, con-
cordamos com Ayouch (2019b), que observa em Freud um “movimento pendular, oscilando
entre posturas revolucionárias que rompiam com o seu contexto epistemológico e retrocessos
inevitáveis que inscreviam o seu discurso nas formações discursivas do seu tempo” (p. 79).

181
“[...] l’intégration de la bisexualité psychique implique, pour les psychanalystes, une victoire ‘quantitative’ du
‘bon’ genre sur l’autre” (MOLINIER, 2008, p. 168)
182
“Freud est revenu à plusieurs reprises sur l’idée qu’il n’existe pas de notions plus complexes que celles de
« masculin » et de « féminin », il ne manque jamais de souligner les équivoques qu’ils génèrent ainsi que le
caractère conventionnel de leurs déterminations” (MOLINIER, 2008, p. 167)
183
“[…] masculinité et feminilité sont deux synthèses complexes faites d’élements psychologiques, biologiques
et sociologiques” (LAPLANCHE, 2014a, p. 105)
216
Esse movimento de ruptura e reprodução também aparece nas formulações freudianas
sobre a histeria. Se, por um lado, a tematização da histeria em Freud revela sua sensibilidade
para a opressão vivenciada pelas mulheres, por outro, também reproduz pressupostos de gênero
em determinados momentos, como veremos na seção seguinte. Além disso, suas formulações
sobre a histeria possibilitam ampliar a discussão para o campo da própria teorização freudiana
da sexualidade feminina, reflexão que iniciaremos na próxima seção, situando a histeria como
questionamento da condição de opressão das mulheres, e à qual daremos continuidade na seção
seguinte, com as teorizações freudianas sobre sexualidade feminina e feminilidade.

3.2.2 A histeria como questionamento da condição de opressão das mulheres

Como já discutimos na seção 3.1, Ayouch (2018) aborda os efeitos da cultura e da moral
restritiva, afirmando que “muitas vezes deixa como única saída para as mulheres a doença neu-
rótica”184 (p. 76, tradução nossa). Em seguida, o autor pontua que “é por isso que não escapa a
Freud o fato de a histeria apresentar um desafio a essa condição, como ele escreve, por exemplo,
sobre Elisabeth von R.”185 (AYOUCH, 2018, p. 76, tradução nossa)
Nesta seção, discutiremos a histeria como questionamento da condição de opressão das
mulheres a partir de dois casos clínicos: Elisabeth Von R. e Dora. É importante destacar que se
trata de momentos diferentes na obra freudiana: o caso de Elisabeth Von R. é apresentado nos
“Estudos sobre a histeria” (1893-95/1996) e o caso Dora em “Fragmentos da análise de um caso
de histeria” (1905b/1996).
Nos “Estudos sobre a histeria”, temos a primeira teoria etiológica da histeria, que com-
preende os sintomas a partir de uma vivência traumática e adota a teoria da ab-reação (DIAS,
2001). Sendo a etiologia dos sintomas histéricos associada a excitações que atuam como trau-
mas – por não terem sido descarregadas por ab-reação ou pela atividade do pensamento –,
ocorre a referência à ideia de quantidades e a proposição do termo “conversão”, considerado
característico da histeria, para designar essa transformação da excitação psíquica em sintomas
somáticos (BREUER & FREUD, 1893-95/1996).
O caso Dora, por sua vez, apresenta uma compreensão das bases etiológicas da histeria
que assinala o sexual e o infantil, a partir da centralidade do inconsciente e do recalcamento, ao
mesmo tempo em que alguns aspectos da primeira teoria permanecem. O conceito de trauma é

184
“[...] ne laisse le plus souvent aux femmes comme seule issue que la maladie névrotique” (AYOUCH, 2018, p.
76)
185
“C’est pourquoi il n’échappe pas à Freud que l’hystérie présente une contestation de cette condition, comme il
l’écrit par exemple au sujet de Elisabeth von R.” (AYOUCH, 2018, p. 76)
217
mantido, mas ampliado, sendo o evento traumático, associado a algo externo ou a in-
fluências/impressões internas que tivessem efeito semelhante (DIAS, 2001).
Antes de iniciar a apresentação do caso de Elisabeth Von R., gostaríamos de destacar
uma passagem que nos chamou a atenção – e que poderia talvez passar por um discurso femi-
nista –, a partir das pontuações de Breuer na seção “Considerações teóricas” (escrita por Breuer)
dos “Estudos sobre a histeria”, ao tratar da etiologia sexual nos casos de histeria. Breuer consi-
dera que, na vida de solteira, uma tendência de recalcamento da sexualidade apareceria na mu-
lher devido à excitação associada à angústia, ao medo diante do desconhecido. Com o casa-
mento, novos traumas sexuais advêm: “É surpreendente que a noite de núpcias não tenha efeitos
patogênicos com maior freqüência, visto que, infelizmente, o que ela implica é, muitas vezes,
não uma sedução erótica, mas uma violação” (BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 264).
Breuer segue dizendo que os sintomas podem desaparecer se, com o tempo, ocorre a
emergência do prazer sexual, e acrescenta como fatores sexuais nocivos aqueles associados a
situações de satisfação insuficiente (coito interrompido, ejaculação precoce etc.). O autor ex-
plicita que, para Freud, tais fatores resultariam em neurose de angústia, mas considera que tam-
bém podem surgir fenômenos histéricos. Interessante notar a associação entre a primeira rela-
ção sexual como violação e a generalização sobre os problemas advindos com o casamento:
“Não penso estar exagerando ao afirmar que a grande maioria das neuroses graves nas mulheres
tem sua origem no leito conjugal” (BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 264). As afirmações
de Breuer nos remetem ao que já foi discutido na seção 3.1 sobre os efeitos das restrições im-
postas sobre a sexualidade, mas consideramos importante destacá-la aqui sobretudo porque
Breuer as articula também à histeria, e não apenas à neurose de angústia.
Passando à apresentação do caso de Elisabeth Von R. por Freud, na época ela contava
com 24 anos de idade e sofria há mais de dois anos de dores nas pernas e dificuldades em andar.
Embora tivesse passado por vários infortúnios nos últimos anos (a morte do pai, uma cirurgia
séria a que a mãe teve de se submeter e a morte de uma irmã, em decorrência de uma afecção
cardíaca após o puerpério), Freud afirma que ela lidava com os problemas com ar alegre, o que
o leva a caracterizar como a belle indifférence característica da histeria (BREUER & FREUD,
1893-95/1996).
Em relação à sua história familiar e aos infortúnios vividos, Freud destaca que era a
mais jovem de três filhas e tinha uma relação bastante próxima com o pai, “que costumava dizer
que aquela filha ocupava o lugar de um filho e de um amigo com quem ele podia trocar idéias”
(BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 165). Durante dezoito meses, Elisabeth foi a cuidadora
de seu pai, vítima de uma afecção crônica do coração que resultou em edema pulmonar. Com
218
a morte do pai, a condição da mãe se agravou e Elisabeth se concentrou em seus cuidados. Após
um ano, sua irmã mais velha casou-se e se mudou para outra cidade. Após algum tempo, sua
segunda irmã se casou e morreu, em decorrência de uma doença cardíaca agravada pela segunda
gravidez.
No que se refere aos sintomas, o primeiro deles (dor em parte específica da coxa direita)
apareceu enquanto cuidava do pai. Freud indica que, por meio da análise, foi possível elucidar
que esse surgimento estava relacionado a um conflito entre seus deveres com o pai e um desejo
erótico. Ela conhecia um jovem por quem nutria sentimentos afetuosos e foi convencida, pela
família e pelo próprio pai, a ir a uma festa em que provavelmente o encontraria. Ele a acom-
panhou de volta até em casa depois da festa e, quando ela chegou em casa, soube que seu pai
havia sofrido uma piora, o que a levou a se recriminar por ter se ausentado e se divertido. O
resultado desse conflito foi o recalcamento da representação erótica, e o afeto ligado a essa
representação produziu a dor física, pelo mecanismo de conversão (BREUER & FREUD, 1893-
95/1996).
Um segundo episódio acontece articulado aos sentimentos de Elisabeth por seu cu-
nhado, marido de sua segunda irmã. Em uma viagem em família, Elisabeth e o cunhado vão a
um passeio, sendo que ele inicialmente havia recusado para permanecer ao lado da esposa en-
ferma, mas ela o convenceu a participar. Eles permaneceram juntos durante todo o passeio,
conversaram e ela desejou ter um marido como ele. Posteriormente, sua irmã morre e ocorre à
Elisabeth que agora ele estava livre e ela poderia ser sua esposa. Seus sentimentos pelo cunhado
encontram resistência, o que coloca em cena novamente o conflito com a consciência moral e
a produção de dores físicas. Os dois acontecimentos referem-se a um conflito semelhante, entre
as representações de natureza erótica e as representações morais (BREUER & FREUD, 1893-
95/1996).
O que nos interessa particularmente, para os propósitos de nossos estudos, é a caracte-
rização de Elisabeth em relação aos estereótipos habitualmente associados a mulher. Ao tratar
da relação estreita com o pai, Freud afirma que:

Embora a mente da moça encontrasse estímulo intelectual nessa relação com o pai,
ele não deixava de observar que a constituição mental dela estava, por causa disso,
afastando-se do ideal que as pessoas gostam de ver concretizado numa moça. Em tom
brincalhão, ele a chamava de “insolente” e “convencida” e a aconselhava a não ser
categórica demais em seus julgamentos, advertindo-a contra o hábito de dizer a ver-
dade às pessoas sem medir as conseqüências e muitas vezes dizendo que ela teria
dificuldades em achar um marido. Ela se sentia, de fato, muito descontente por ser
mulher. Tinha muitos planos ambiciosos. Queria estudar ou receber educação musical
e ficava indignada com a ideia de ter de sacrificar suas inclinações e sua liberdade de
opinião pelo casamento. (BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 165)

219
Interessante notar que o pai de Elisabeth identifica o “afastamento do ideal feminino”,
associado à atitude de expressar suas opiniões, como dificultador para o casamento. Freud re-
fere o “descontentamento em ser mulher”, articulado aos planos de estudar e ao ressentimento
de ter de abdicar de inclinações e da possibilidade de se expressar livremente para se casar.
Trata-se, portanto do “ser mulher” naquela cultura e momento histórico, algo contingente. As
significações que aparecem associadas ao “ser mulher” deixam claro que se tratam de situações
localizadas historicamente – e não a algo de uma suposta “natureza” do “ser mulher”. Afinal,
hoje mulheres podem estudar e expressar opiniões – não necessariamente sem encontrar difi-
culdades, mas a situação é diferente daquela vigente no contexto em que Elisabeth viveu.
No entanto, embora tenha essa posição inicial em relação ao casamento, Elisabeth acaba
desejando se casar, e inclusive os conflitos associados a seus sintomas aparecem articulados
aos sentimentos em relação a homens (BREUER & FREUD, 1893-95/1996). Aproximações
poderiam ser traçadas entre este caso e formulações posteriores sobre a posição feminina como
“se fazer objeto do outro”. Como já mencionamos, na seção 3.2.3, apresentaremos a leitura de
Schaeffer (2002b), que parte de Freud para propor uma leitura que situa a mulher a partir desse
“fazer-se objeto do outro”: “primeiro espera um pênis, depois seus seios, suas ‘regras’, a pri-
meira vez, depois todo mês, ela espera por penetração, depois uma criança, então parto, depois
desmame, etc.”186 (p. 7, tradução nossa).
No entanto, se, de fato, Elisabeth parte de um posicionamento crítico com relação ao
casamento, e, posteriormente, vem a desejar esse lugar, consideramos que uma outra leitura é
possível, justamente considerando as contingências históricas em que Elisabeth viveu. Na des-
crição do momento de vida posterior à morte do pai, quando Elisabeth passa a se ocupar do
cuidado de sua mãe, Freud afirma que:

[...] como estava esgotada após a preocupação com a visão da mãe e os cuidados pres-
tados a ela na época da operação, e de como por fim perdera a esperança de que uma
moça solitária como ela pudesse ter alguma felicidade na vida ou realizar alguma
coisa. Até então ela se julgara forte o bastante para poder passar sem a ajuda de um
homem, mas agora se via dominada pelo sentimento de sua fraqueza como mulher e
por um anseio de amor no qual, citando suas próprias palavras, sua natureza congelada
começava a derreter-se. (BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 179)

Elisabeth vislumbrava uma vida sem casamento e tinha planos para si, mas começa a se
deparar com dificuldades que a fazem questionar essa possibilidade. Naquele momento histó-
rico, talvez não restasse à mulher muitas possibilidades que não “se fazer objeto do outro”.

186
“[…] elle attend d’abord un pénis, puis ses seins, ses « règles », la première fois, puis tous les mois, elle attend
la pénétration, puis un enfant, puis l’accouchement, puis le sevrage, etc. Elle n’en finit pas d’attendre.”
(SCHAEFFER, 2002b, p. 7)
220
Ayouch (2018) considera que, ao escrever sobre Elisabeth von R., não escapa a Freud a consi-
deração da histeria como um desafio à condição de opressão das mulheres. A demanda endere-
çada ao médico por pacientes histéricos, no século XIX, também significaria um questiona-
mento dirigido ao espaço social, uma vez que o discurso da histeria articula uma contestação
às normas de gênero, à condição feminina ou, mais amplamente, à opressão social vivenciada
sobretudo pelas mulheres naquele contexto histórico. Para Ayouch (2018), o que aparecia no
discurso dos pacientes histéricos eram as contestações de uma ordem social específica, marcada
pela desigualdade de gênero.
Contudo, as considerações tecidas por Freud em relação às mulheres não deixam de
retomar pressupostos de gênero vigentes em seu contexto histórico. Essa reprodução aparece,
a nosso ver, no caso Dora, que se apresenta a Freud acusando o pai de tê-la oferecido ao Sr. K.
como objeto de barganha devido à relação amorosa que mantinha com a Srª K. Freud considera
que Dora tinha razão em pensar que seu pai não queria esclarecer o comportamento do Sr. K.
em relação a ela para evitar questionamentos em relação a seu relacionamento com a Sra. K.,
mas pensa que Dora havia agido da mesma maneira, favorecendo o relacionamento entre seu
pai e a Sra K. (FREUD, 1905b/1996).
Mitchell (2001) considera que Freud trata do amor de Dora pelo Sr. K. como substituto
do amor edípico pelo pai e que as origens dessa formulação encontram-se em noção normativa
da atração heterossexual como natural: “Aqui, a posição de Freud é convencional: os meninos
serão meninos e amarão mulheres, meninas serão meninas e amarão homens”187 (p. 10, tradução
nossa). Freud assume que, se Dora não fosse histérica, teria sentido atração pelo Sr. K., assim
como teria se sentido atraída pelo pai no complexo de Édipo. Também nesse sentido, Elliot
(1991) pondera que Freud teria partido do pressuposto do amor de Dora pelo Sr. K., que buscou
confirmar: “a exigência de Freud de que Dora conformasse suas expectativas de que ela amava
Herr K não apenas interpretou mal seu desejo, mas também repetiu a relação na qual Dora foi
feita objeto do desejo de outro”188 (p. 95, tradução nossa).
Ao buscar confirmar o apaixonamento de Dora pelo Sr. K., Freud acaba indicando a
Dora que ela desejaria determinado objeto, o que não cabe ao analista, além de se contrapor ao
desejo como algo que permanece como questão. Como lembra Rose (2001):

Assim, insistindo para Dora que ela estava apaixonada por Herr K. Freud não estava
apenas definindo-a em termos de um conceito normativo de heterossexualidade

187
“Here, Freud’s position is a conventional one: boys will be boys and love women, girls will be girls and love
men” (MITCHELL, 2001, p. 10)
188
“Freud’s demand that Dora conform to his expectations that she loves Herr K not only misconstrued her desire,
but also repeated the relationship in which Dora as made the object of another’s desire” (ELLIOT, 1991, p. 95).
221
genital, ele também falhou em ver seu próprio lugar dentro do relacionamento analí-
tico, reduzindo-a a uma dimensão dual operando nos eixos de identificação e de-
manda. Pedindo a Dora que realizasse sua ‘identidade’ através de Herr K, Freud es-
tava pedindo simultaneamente que ela encontrasse ou refletisse sua própria demanda.
Em ambos os casos, ele estava ligando-a a um relacionamento dual no qual o problema
do desejo não tem lugar.189 (ROSE, 2001, p. 35-6, tradução nossa).

Esse ponto também é destacado por Elliot (1991), que resgata a noção de que, se o
desejo permanece como questão, como problema, não cabe ao analista propor “objetos adequa-
dos”. Partindo das proposições de Jacqueline Rose, Elliot (1991) traz a discussão para o campo
da própria teorização freudiana da sexualidade feminina – com a qual trabalharemos na próxima
seção –, apontando o equívoco em apontar o pênis (ou qualquer outro objeto) como objeto do
desejo, uma vez que “a exasperação de Freud com a persistência do suposto desejo das mulheres
pelo pênis e sua tentativa de persuadi-las a desistir, constituem uma incompreensão da natureza
do desejo em si. O desejo existe apenas ‘no intervalo entre a demanda e sua impossibilidade’”190
(p. 95).
A presunção de que seria possível saber o que quer a mulher marca a inversão do dis-
curso analítico para o discurso do mestre191 e, quando a psicanálise é lida como discurso de
mestria, detentor de verdades universais, a relação entre sexo e gênero se torna rígida, segundo
Elliot (1991):

Em primeiro lugar, a suposição do analista de que ele/ela sabe o que uma mulher quer
(um bebê, o falo ou qualquer outra coisa) reproduz a fantasia de que o objeto do desejo
pode ser alcançado. Segundo, a demanda do analista de que a paciente mulher esteja
em conformidade com a norma da feminilidade impede uma análise de seu desejo em
outro lugar.192 (p. 95, tradução nossa).

Retomando o caso Dora, para em seguida resgatar algumas pontuações no que se refere
à sexualidade feminina, Mitchell (2001) considera que as notas de rodapé, escritas

189
“Thus by insisting to Dora that she was in love with Herr K, Freud was not only defining her in terms of a
normative concept of genital heterosexuality, he also failed to see his own place within the analytic relationship
and reduced it to a dual dimension operating on the axes of identification and demand. By asking Dora to realise
her ‘identity’ through Herr K, Freud was simultaneously asking her to meet, or reflect, his own demand. On both
cases, he was binding her to a dual relationship in which the problem of desire has no place.” (ROSE, 2001, p. 35-
6)
190
“[…] Freud’s exasperation at the persistence of women’s supposed desire for the penis and his attempt to
persuade them to give it up, constitute a misunderstanding of the nature of desire itself. Desire exists only ‘in the
gap between the demand and its impossibility’” (ELLIOT, 1991, p. 95).
191
Uma análise detalhada da teoria lacaniana dos discursos não caberia no escopo deste trabalho, mas, para nossos
objetivos aqui, destacamos que a relação entre analista e analisando constitui tipo particular de relação social em
que o desejo do analisando é privilegiado. O discurso analítico difere dos demais por criar um espaço onde esse
desejo pode ser articulado. O analista não faz do outro seu escravo (como no discurso do mestre), não o reduz a
um reflexo de sua imagem (discurso universitário) nem a um sintoma do desejo do analista (discurso da histeria).
Em contraposição, o discurso do mestre é o discurso da lei em nome do qual o mestre fala (ELLIOT, 1991).
192
“First, the analyst’s assumption that he/she knows what a woman wants (a baby, the phallus, or whatever) plays
into the phantasy that the object of desire can be attained. Second, the analyst’s demand that the woman patient
conform to the norm of femininity precludes an analysis of her desire elsewhere” (ELLIOT, 1991, p. 95).
222
posteriormente, colocam a questão da identificação com o pai, de maneira que “em termos de
seu desejo sexual, Dora é um homem que ama uma mulher”193 (p. 11, tradução nossa). A iden-
tificação masculina em Dora colocaria em questão a existência de uma pulsão natural ou auto-
maticamente heterossexual, segundo Mitchell (2001). Rose (2001) considera que a falha de
Freud em analisar Dora, em termos de uma concepção normativa do que uma mulher deve ser
ou desejar, o leva a reconhecer que:

A sexualidade normal é, portanto, estritamente uma ordenação, que o histérico recusa


(adoece). O resto do trabalho de Freud pode então ser lido como uma descrição de
como esse ordenamento ocorre, o que o levou de volta, necessariamente, à questão da
feminilidade, porque sua persistência como uma dificuldade revelou o custo dessa
ordem.194 (p. 28, tradução nossa, grifos da autora)

Ou seja, Freud parte do pressuposto do amor heterossexual, e posteriormente propõe


outra leitura a partir da identificação de Dora com o pai e seu amor não pelo Sr. K, mas pela
Sra K. Rose (2001) destaca, então, que essa virada proporciona a compreensão da histeria como
recusa de um ordenamento social heteronormativo e, na visão da autora, a obra freudiana des-
creve esse ordenamento, assim como assinala o custo associado a esse ordenamento. Nos ter-
mos de Elliot (1991), como apresentaremos na seção 3.2.3, o sacrifício exigido das mulheres
para se conformar à posição feminina, ao ordenamento social vigente.
Assim, ao longo desta seção, buscamos situar a histeria como contestação da opressão
das mulheres, ao mesmo tempo em que apontamos que Freud pôde escutar essa contestação,
mas também reproduz aspectos do regime normativo em que estava inscrito. Elliot (1991)
aponta o equívoco de tentar situar o que seria o objeto de desejo, de tomar como universal algo
que é contingente.
Como veremos na seção 3.3, Laplanche propõe que a criança procura traduzir mensa-
gens enigmáticas do adulto a partir de códigos e esquemas narrativos, e inclui, entre esses có-
digos, os esquemas narrativos do complexo de Édipo, assassinato do pai, complexo de castra-
ção, entre outros. A partir das contribuições de Laplanche, Ayouch (2018) coloca a seguinte
problematização:

O erro da psicanálise consiste, segundo J. Laplanche, em incluir entre suas verdades


metapsicológicas esses esquemas narrativos “mais ou menos contingentes, que ser-
vem ao homem, em uma dada situação cultural, para colocar em ordem, historicizar
seu destino”. A questão que surge aqui, no entanto, é saber se é uma questão de pre-
servar esses esquemas, à maneira de metáforas, que podem não ser

193
“In terms of her sexual desire, Dora is a man adoring a woman” (MITCHELL, 2001, p. 11)
194
“Normal sexuality is, therefore, strictly an ordering, one which the hysteric refuses (falls ill). The rest of Freud’s
work can then be read as a description of how that ordering takes place, which led him back, necessarily, to the
question of femininity, because its persistence as a difficulty revealed the cost of that order” (ROSE, 2001, p. 28,
grifos da autora)
223
desimaginarizáveis, ou se é aconselhável renunciar a essas ferramentas e à inflação
fantasmática imaginária que eles carregam o tempo todo.195 (p. 151, tradução nossa)

Não pretendemos trabalhar as interrogações lançadas por Ayouch (2018) em toda sua
amplitude, mas consideramos que são interessantes, para os objetivos do nosso trabalho, no
sentido de apontar como determinados aspectos das teorizações psicanalíticas correspondem a
imaginarizações. O assinalamento do objeto do desejo, como problematiza Elliot (1991), con-
siste em imaginarizar, em dar um conteúdo imaginário a esse objeto. O risco que essa imagina-
rização coloca, tal como compreendemos a partir de Ayouch (2018), é tomar como universal
algo que é contingente.
Tendo em vista esse risco e partindo das reflexões sobre a histeria, podemos ampliar a
discussão para o campo da teorização da sexualidade feminina, como propõe Elliot (1991) ao
afirmar que a suposição de saber sobre o que a mulher deseja marca a inversão do discurso
analítico para o discurso do mestre. Na leitura de Elliot (1991) as contribuições de Julliet Mit-
chell e Jacqueline Rose buscam ler a psicanálise como discurso analítico, e não como discurso
de mestria. Entretanto, estariam atentas ao risco de deslizamento para um discurso de mestria,
deslizamento em que aquilo que é contingente, circunscrito a determinado momento histórico,
passa a ser visto como universal, imutável. Como alerta Elliot (1991):

Embora acreditem que a psicanálise nos permite compreender a construção do gênero


na sociedade patriarcal (que a psicanálise é um discurso analítico), elas também estão
cientes de seu potencial para se tornar um discurso de mestria. Talvez o aspecto mais
problemático da psicanálise seja sua tendência a confundir o que é contingente à so-
ciedade patriarcal com o que é universal ou inevitável. Essa tendência demonstra a
facilidade com que um discurso analítico pode se tornar um discurso de mestria, algo
que Mitchell e Rose tentam evitar em sua própria teorização do gênero.196 (ELLIOT,
1991, p. 17, tradução nossa).

Consideramos que, a partir de Freud, é possível situar diferentes leituras sobre o “tornar-
se mulher”, e esse será nosso objeto na próxima seção. Leituras essencialistas tendem a deslizar
para um discurso de mestria, tomando como universal o que é contingente. Diferentemente, se
pretendemos, com Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, ler a psicanálise como discurso analítico,

195
“L’erreur de la psychanalyse consiste, selon J. Laplanche, à avoir voulu inclure parmi ses vérités métapsy-
chologiques ces schémas de narration « plus ou moins contingents, qui servent à l’homme, dans une situation
culturelle donnée, à mettre en ordre, à historiciser son destin ». La question qui ici se pose toutefois est de savoir
s’il s’agit de conserver ces schémas, à la manière de métaphores, susceptibles de ne pas être désimaginarisées, ou
s’il convient de renoncer à ces outils et à l’inflation fantasmatique imaginaire qu’ils charrient à chaque fois.”
(AYOUCH, 2018, p. 151)
196
“Although they believe psychoanalysis enables us to understand the construction of gender in a patriarchal
society (that psychoanalysis is an analytic discourse), they are also aware of its potential to become a discourse of
mastery. Perhaps the most problematic aspect of psychoanalysis is its tendency to confuse what is contingent to
patriarchal society with what is universal or inevitable. This tendency demonstrates the ease with which an analytic
discourse may become a discourse of mastery, something both Mitchell and Rose attempt to avoid in their own
theorization of gender” (ELLIOT, 1991, p. 17).
224
é fundamental ter cuidado para não “imaginarizar”, revestindo de universal aquilo que é con-
tingente, o que abre possibilidades de leituras não essencialistas que não pretendem descrever
o que seria “mulher” a partir de algo “especificamente feminino”.

3.2.3 Sexualidade feminina e feminilidade

Como destacamos na seção 3.1, Rubin (1975/2017) considera que: “De acordo com a
ortodoxia freudiana, a conquista da feminilidade ‘normal’ custa caro para as mulheres” (p. 36).
Para compreender essa proposição sobre o “preço alto” que as mulheres pagam para “tornarem-
se mulheres”, é importante retomar as formulações freudianas sobre sexualidade feminina e
feminilidade.
Rubin (1975/2017) situa que, até o final dos anos 1920, não havia uma teorização espe-
cífica sobre o desenvolvimento das mulheres no âmbito psicanalítico. As formulações psicana-
líticas sobre a feminilidade se desenvolveram no final dos anos 1920, início dos anos 1930,
com textos de Freud, Jeanne Lampl-de Groot, Helene Deutsch, Karen Horney e Jones. Para
Rubin, são os desenvolvimentos sobre a fase pré-edípica que promovem um deslocamento, a
partir da consideração de que, nesse momento pré-edípico, as crianças seriam bissexuais, de
maneira que a diferenciação posterior não poderia ser pressuposta, deveria ser explicada.
Ao teorizar sobre sexualidade feminina e feminilidade, Freud tematiza essa diferencia-
ção, buscando situar especificidades no caso das mulheres. Rubin faz referência à citação de
Freud de que “a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher – seria esta uma tarefa difícil
de cumprir –, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma, como a mulher se
desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual” (FREUD, 1933c[1932]/1996, p.
117).
Segundo Laufer (2014a), com esta asserção Freud afirmaria que não cabe à psicanálise
tentar “resolver” o “enigma da feminilidade”. A psicanalista traça, ainda, um paralelo com a
famosa afirmação de Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, diz Freud substancialmente,
torna-se mulher, antecipando em alguns anos a famosa fórmula beauvoiriana”197 (LAUFER,
2014a, p. 18, tradução nossa).
No intuito de interrogar esse “tornar-se mulher”198 em Freud, retomaremos suas princi-
pais contribuições no texto “Sexualidade feminina”, em que Freud (1931/1996) desenvolve

197
“On ne naît pas femme, dit Freud en substance, on le devient, devançant de quelques années la célèbre formule
beauvoirienne.” (LAUFER, 2014a, p. 18)
198
Na versão brasileira das “Obras completas”, a tradução apresenta “a mulher se forma”. Na versão francesa,
temos o verbo “tornar” ao invés de “formar: “Il répond à la spécificité de la psychanalyse de ne pas prétendre
225
duas especificidades no desenvolvimento das mulheres: a mudança de objeto amoroso da mãe
para o pai e da zona erógena principal do clitóris para a vagina. No que se refere à troca de
objeto, o primeiro objeto amoroso, tanto para meninos quanto para meninas, seria a mãe, por
ser quem alimenta e cuida da criança – proposição que, como veremos, é problematizada por
Rubin (1975/2017), afinal a articulação entre a mãe o os cuidados com a criança é tomada aqui
como evidência, e não interrogada.
Com relação a atividade e passividade, Freud (1931/1996) considera que os objetivos
sexuais da menina em relação à mãe seriam tantos ativos quanto passivos. Quando uma criança
recebe uma impressão passiva, tende a produzir uma reação ativa (fazer a ela própria o que
acabou de ser feito a ela, numa tentativa de dominar o mundo externo). Essa oscilação de pas-
sividade e atividade estaria ligada à intensidade relativa de masculinidade e feminilidade. No-
vamente, encontramos aqui a presença de moções “femininas” e “masculinas” como algo que
conserva a diferença, nos termos de Molinier (2008). Se, como vimos, a autora fala da “vitória”
de um gênero sobre o outro, veremos, também, nos desenvolvimentos freudianos, a “vitória”
da passividade no “tornar-se mulher” – proposição que, como já indicamos, consideramos bas-
tante problemática.
As primeiras experiências sexuais que a criança têm em relação à mãe seriam de caráter
passivo, pois é alimentada, vestida, cuidada pela mãe. Ao mesmo tempo em que existe satisfa-
ção, também surge esforço por transformá-las em atividade. Por exemplo, o sugamento ativo
na amamentação, a repetição de suas experiências passivas sob forma ativa no brinquedo (por
exemplo, o desejo de lavar ou vestir a mãe se expressaria na brincadeira de boneca, o que evi-
denciaria o lado ativo da feminilidade) (FREUD, 1931/1996).
Assim, as sensações associadas aos cuidadas proporcionam prazer, o que estaria ligado
a uma dimensão passiva da fase fálica. Também nessa fase, surgem impulsos ativos dirigidos à
mãe, e a atividade sexual desse período culmina na masturbação clitoridiana. O afastamento da
mãe na menina, mais do que uma simples mudança de objeto, consiste num abaixamento dos
impulsos sexuais ativos e ascensão dos passivos. As tendências seriam frustradas por se mos-
trarem irrealizáveis, e por isso seriam abandonadas, sendo a transição para o objeto paterno
realizada com o auxílio das tendências passivas (FREUD, 1931/1996).

décrire ce qu’est la femme – tâche dont on elle ne pourrait guère s’acquitter – mais d’examiner comment elle le
devient” (FREUD, 1932/2004, p. 199). Optamos por utilizar o “tornar-se” por considerar que a expressão “a mu-
lher se forma” poderia produzir um sentido desenvolvimentista e de um processo que produziria uma essência: a
mulher que “se forma” e então se apresentaria em seu aspecto “acabado”.
226
Outro fator complicador no desenvolvimento da sexualidade feminina residiria na tarefa
de abandonar o clitóris como zona genital principal em favor da vagina, sendo que, para Freud,
a feminilidade dependeria de conseguir realizar essa transferência do clitóris à vagina, em ter-
mos de sensibilidade e importância (FREUD, 1933c[1932]/1996). Na fase fálica, meninos rea-
lizariam a masturbação do pênis e meninas do clitóris, não tendo a vagina sido “descoberta”
ainda nesse momento. Nessa fase, que é contemporânea do complexo de Édipo, o órgão genital
assumiria papel principal, mas “esse órgão genital é apenas o masculino, ou, mais corretamente,
o pênis” (FREUD, 1924/1996, p. 218). Freud (1923b/1996) afirma a existência de uma “orga-
nização genital infantil”199, que difere da organização genital final do adulto, porque o órgão
genital masculino é o que se leva em conta para ambos os sexos, de maneira que haveria uma
primazia do falo. Os estágios estariam organizados da seguinte forma:

No estágio da organização pré-genital sádico-anal não existe ainda questão de mascu-


lino e feminino; a antítese entre ativo e passivo é a dominante. No estádio seguinte da
organização genital infantil, sobre o qual agora temos conhecimento, existe masculi-
nidade, mas não feminilidade. A antítese aqui é entre possuir um órgão genital mas-
culino e ser castrado. Somente após o desenvolvimento haver atingido seu completa-
mento, na puberdade, que a polaridade sexual coincide com masculino e feminino. A
masculinidade combina [os fatores de] sujeito, atividade e posse do pênis; a feminili-
dade encampa [os de] objeto e passividade. A vagina é agora valorizada como lugar
de abrigo para o pênis; ingressa na herança do útero. (FREUD, 1923b/1996, p. 161)

Assim, enquanto o homem possuiria um só órgão sexual, a mulher teria duas zonas
sexuais principais: a vagina e o clitóris, análogo ao órgão masculino, e com o fator “complica-
dor” de que este órgão continua a funcionar na vida sexual feminina posterior. A atividade
fálica característica nas meninas seria a masturbação do clitóris, ou seja, na infância, as princi-
pais ocorrências sexuais seriam em relação a este órgão, constituindo uma primeira fase da vida
sexual de caráter masculino. A proibição dessa atividade pela mãe promoveria a rebelião da
menina contra a mãe, sendo que esse ressentimento pelo impedimento da atividade sexual de-
sempenharia importante papel em seu desligamento da mãe (FREUD, 1931/1996).
Quando o interesse da criança se volta para seus órgãos genitais, ela começa a manipulá-
los frequentemente, e os adultos então a repreendem, geralmente ameaçando que seu órgão
genital lhe será tirado, no caso do menino. A visão dos órgãos genitais femininos tornaria a
perda do próprio pênis imaginável, e surgiria então “um conflito entre seu interesse narcísico

199
Conforme nota do editor, o texto “A organização genital infantil (Uma interpolação na teoria da sexualidade)”
constitui acréscimo aos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, ao qual foi incluída uma nota de rodapé a
partir do que é apresentado neste texto. Freud (1923b/1996) inicia o texto afirmando que “A dificuldade do traba-
lho de pesquisa em psicanálise demonstra-se claramente pelo fato de ser-lhe possível, apesar de décadas inteiras
de observação incessante, desprezar aspectos de ocorrência geral e situações características, até que, afinal, elas
nos confrontam sob forma inequívoca. As observações que seguem têm a intenção de reparar uma negligência
desse tipo no campo do desenvolvimento sexual infantil” (p. 157)
227
nessa parte do corpo e a catexia libidinal de seus objetos parentais” (FREUD, 1924/1996, p.
221). O conflito se resolveria na dissolução do complexo de Édipo: “As catexias de objeto são
abandonadas e substituídas por identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no
ego e aí forma o núcleo do superego” (FREUD, 1924/1996, p. 221). As tendências libidinais
do complexo de Édipo são em parte sublimadas e em parte inibidas em seu objetivo e transfor-
madas em afeição (FREUD, 1924/1996). Ou seja, o interesse em preservar seu órgão genital
promoveria no menino a restrição da sexualidade infantil (FREUD, 1931/1996)
Quando a menina, por sua vez, vê um órgão sexual masculino, descobriria sua deficiên-
cia. Inicialmente consideraria que isso se restringiria a ela própria, depois compreenderia que
também se estende a outras crianças, e, por fim, a outros adultos. Por isso, a feminilidade so-
freria uma depreciação. Ao final da primeira fase de ligação à mãe, a menina a responsabilizaria
por não ter lhe dado um pênis, o que apareceria, então, como um forte motivo para se afastar
dela (FREUD, 1931/1996)
Os efeitos do complexo de castração seriam diferentes no menino e na menina, pois “ela
reconhece o fato de sua castração, e, com ele, também a superioridade do homem e sua própria
inferioridade” (FREUD, 1931/1996, p. 264). Assim, enquanto o menino temeria a possibilidade
da castração, a menina a aceitaria como um fato consumado. Isso excluiria, na menina, o temor
da castração, e, consequentemente, um “motivo poderoso para o estabelecimento de um supe-
rego e para a interrupção da organização genital infantil” (FREUD, 1924/1996, p. 223).
Assim, a especificidade do complexo de castração na mulher envolveria o reconheci-
mento da castração e da “própria inferioridade” (FREUD, 1931/1996, p. 264), bem como a
assunção de uma postura feminina da menina em relação ao pai e o deslizamento de seu desejo
do pênis para um bebê. Uma discussão muito interessante sobre essas formulações é proposta
por Rubin (1975/2017), ao retomar a formulação freudiana de inveja do pênis, e afirmar sua
inscrição em um contexto específico, tendo como pressuposto a heterossexualidade da mãe,
diante da qual a menina sente que está em condições inferiores para lhe satisfazer. Se “não se
confrontasse com a heterossexualidade da mãe, poderia talvez tirar conclusões diferentes sobre
o status relativo de seus órgãos genitais” (RUBIN, 1975/2017, p. 39).
Rubin (1975/2017) recorre a Lampl-de Groot, que explicita que a crise edípica envolve
um sofrimento narcísico tanto para o menino quanto para a menina, mas, além deste, a menina
vivencia também um sentimento de inferioridade no que se refere aos órgãos genitais, por con-
cluir ser o pênis indispensável para que se possa satisfazer a mãe. Dessa maneira, “a disposição
hierárquica dos órgãos genitais masculinos e femininos vem de definições da situação – a regra
da heterossexualidade obrigatória” (RUBIN, 1975/2017, p. 45). Ou seja, Rubin (1975/2017)
228
destaca que as teorizações freudianas pressupõem a heterossexualidade e o papel culturalmente
inferior atribuído à mulher naquele contexto histórico, assim como a divisão sexual do trabalho
que atribui à mulher os cuidados com os filhos – algo que é tomado por Freud (1931/1996) sem
maiores interrogações ao afirmar que o primeiro objeto amoroso, para meninos e meninas, seria
a mãe, por ser quem cuida da criança. Segundo os termos de Rubin (1975/2017):

Se a divisão sexual do trabalho levasse mulheres e homens a se envolver igualmente


no cuidado com as crianças, a escolha primeira do objeto sexual seria bissexual. Se a
heterossexualidade não fosse obrigatória, esse primeiro amor não teria que ser supri-
mido, e o pênis não seria superestimado. (p. 50).

Outra diferença que se coloca entre meninos e meninas refere-se ao processo de afasta-
mento em relação à mãe e à aproximação ao pai como momento de inserção no “sistema de
trocas simbólico em que circula o falo” (RUBIN, 1975/2017, p. 46). Nas mulheres o complexo
de Édipo não seria destruído, mas, ao contrário, criado pela influência da castração (FREUD,
1931/1996). A menina então assumiria o lugar da mãe e uma postura feminina em relação ao
pai. Numa tentativa de compensação, seu desejo deslizaria do pênis para um bebê (receber do
pai um bebê). O complexo de Édipo seria gradativamente abandonado, já que esse desejo jamais
se realizaria. Os desejos de possuir um pênis e um filho permaneceriam catexizados no incons-
ciente e preparariam a mulher para seu “papel” (FREUD, 1924/1996). A situação feminina só
se estabeleceria se o desejo do pênis fosse substituído pelo desejo de um bebê (FREUD,
1933c[1932]/1996).
Na puberdade, estaria constituída, então, a polaridade masculino e feminino, que esta-
riam associados a atividade e passividade, e a vagina como “lugar de abrigo para o pênis”
(FREUD, 1923b/1996, p. 184). Dessa maneira, como destaca Rubin (1975/2017), a menina
pode apenas “receber” o falo, em uma relação sexual ou como um bebê, mas nunca chega a ter
o falo e poder oferecê-lo, ou seja “quando ‘reconhece a sua castração’, ela se conforma ao lugar
de mulher em uma rede de trocas fálica” (RUBIN, 1975/2017, p. 46).
O caminho para o desenvolvimento da feminilidade segue com uma intensificação da
passividade, com a repressão do erotismo clitoridiano, considerado ativo, em favor do erotismo
vaginal passivo. Considerando que essa articulação entre órgãos e atividade/passividade não é
uma evidência, uma vez que qualquer órgão pode ser locus de erotismo ativo ou passivo, Rubin
afirma que “nesse esquema, o mapeamento dos estereótipos culturais é situado nos órgãos ge-
nitais” (RUBIN, 1975/2017, p. 46). Sendo contingente a articulação clitóris-ativo e vagina-
passivo, a autora pontua que “Não é um órgão que é reprimido, mas um segmento de possibili-
dade erótica” (RUBIN, 1975/2017, p. 47). Como Freud indicou, “temos a impressão de que

229
maior coerção foi aplicada à libido quando ela é moldada para servir à função feminina”
(FREUD, 1933c[1932]/1996, p. 130-1).
Freud aponta, então, três caminhos para o desenvolvimento da menina: 1) a insatisfação
pela comparação com os meninos levaria a uma insatisfação com seu clitóris, o que resultaria
em abandono da sexualidade fálica e da sexualidade em geral, bem como da masculinidade em
outros campos; 2) apegar-se à masculinidade e à esperança de conseguir um pênis, o que pode-
ria resultar em escolha de objeto homossexual; 3) tomar o pai como objeto, seguindo para a
forma feminina do complexo de Édipo (FREUD, 1931/1996)
Dessa maneira, como sintetiza Rubin, ela pode reprimir totalmente a sexualidade, ou
protestar e se tornar “masculina” ou homossexual, ou aceitar e conquistar a “normalidade”. Este
terceiro caminho é descrito por Rubin nos seguintes termos: “Se a fase edípica acontece nor-
malmente e a menina ‘aceita sua castração’, sua estrutura libidinal e a escolha de seu objeto
passam a ser congruentes com o seu papel de gênero feminino. Ela se torna uma mulherzinha
– feminina, passiva, heterossexual” (RUBIN, 1975/2017, p. 47).
Diante desse quadro, Rubin (1975/2017) considera que a construção da “feminilidade”
constitui um “ato de brutalidade psíquica”, de maneira que “os ensaios de Freud sobre a femi-
nilidade podem ser lidos como descrições de como um grupo é preparado psicologicamente,
desde a infância, para viver com a própria opressão” (p. 48).
Entretanto, também em relação aos aspectos discutidos nesta seção, observamos contra-
dições nos textos freudianos. No texto “Feminilidade”, Freud (1933c[1932]/1996) começa afir-
mando que os conceitos “masculino” e “feminino” geralmente estão associados a “ativo” e
“passivo”, respectivamente, e que existiria uma relação desse tipo no que se refere às células
sexuais masculina e feminina (móvel e imóvel, respectivamente). Porém, em seguida, Freud
(1933c[1932]/1996) indica ser inadequado coincidir o comportamento masculino com ativi-
dade e o feminino com passividade, pois a mulher seria ativa em muitos sentidos, por exemplo
na amamentação, enquanto a vida social exigiria do homem grande adaptabilidade passiva. En-
tão, Freud (1933c[1932]/1996) aponta que a preferência por fins passivos poderia ser conside-
rada como característica da feminilidade, e, para alcançá-los, a atividade pode ser necessária.
Faz a ressalva também de que “devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não
subestimar a influência dos costumes sociais que, de forma semelhante, compelem as mulheres
a uma situação passiva” (FREUD, 1933c[1932]/1996, p. 116). Por exemplo, Freud
(1933c[1932]/1996) considera o masoquismo como tipicamente feminino, e acredita que a su-
pressão da agressividade nas mulheres “é instituída constitucionalmente e lhes é imposta soci-
almente” (p. 116), e que tal supressão favoreceria impulsos masoquistas. Contudo, aponta que
230
traços masoquistas são encontrados em homens, e questiona, então, o que restaria senão dizer
que mostram traços femininos evidentes.
Dessa forma, no texto “Feminilidade”, Freud (1933c[1932]/1996) parece esboçar um
questionamento sobre as características consideradas “femininas”, como a passividade, estarem
ligadas a fatores constitucionais ou sociais, afirmando explicitamente que é preciso cautela para
não subestimar a influência de costumes sociais compelindo a mulher a uma situação passiva.
No entanto, mais à frente no texto, Freud (1933c[1932]/1996) afirma que as diferenças
nos órgãos genitais seriam acompanhadas de outras diferenças na disposição instintual, que
estariam relacionadas à natureza subsequente das mulheres. Segundo seus termos: “Uma me-
nininha é, em geral, menos agressiva, desafiadora e autossuficiente; ela parece ter mais neces-
sidade de obter carinho e, por esse motivo, de ser mais dependente e dócil.” (FREUD,
1933c[1932]/1996, p. 118). Também aponta uma série de peculiaridades psíquicas da feminili-
dade madura, entre elas a de um superego menos rígido na mulher. Além disso, a feminilidade
seria caracterizada por maior quantidade de narcisismo, o que também afetaria a escolha obje-
tal, de modo que, para a mulher, ser amada seria uma necessidade maior que amar. A “inveja
do pênis” também deixaria marcas em seu desenvolvimento e formação de seu caráter, influ-
enciando, por exemplo, numa tendência à vaidade física como compensação por sua inferiori-
dade sexual original (FREUD, 1933c[1932]/1996).
Assim, na conferência sobre a feminilidade, existem momentos que evidenciam um na-
turalismo e outros em que Freud “se torna mais ‘materialista’”200 (LAUFER, 2014a, p. 18,
tradução nossa), ao tratar de organizações sociais que forçariam a mulher a situações passivas.
A autora retoma o trecho destacado por nós, quando Freud pontua que “devemos, contudo, nos
acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos costumes sociais que, de forma
semelhante, compelem as mulheres a uma situação passiva” (FREUD, 1933c[1932]/1996, p.
116).
Essas diferentes perspectivas adotadas por Freud podem ser vistas como um problema
ou, ao contrário, como uma potencialidade. Parece-nos ser este segundo caminho o adotado por
Laufer (2014a), que percebe, nos textos de Freud, momentos que possibilitam compreender
algo e seu oposto, o que, para a autora, configura “um pensamento dialético em constante mo-
vimento”201 (p. 18, tradução nossa).
Freud reconhecia a realidade da opressão, mas também reproduz essa mesma realidade
de opressão em seu discurso em diversos momentos – e talvez existam contradições em seus

200
“[...] il se fait plus « matérialiste »” (LAUFER, 2014a, p. 18)
201
“[...] une pensée dialectique sans cesse en mouvement” (LAUFER, 2014a, p. 18)
231
textos precisamente por reconhecer ao mesmo tempo em que, inscrito em seu tempo, reproduz.
As contradições que encontramos em Freud parecem refletir o processo de pensamento de al-
guém que se depara com a complexidade da realidade e se esforça para tentar levar em conta
suas múltiplas dimensões. E talvez as contradições de Freud sejam preferíveis às “certezas” que
aparecem hoje em muitos psicanalistas reivindicando que nos limitemos à “especificidade da
psicanálise”.
Tendo apresentado as formulações freudianas sobre a sexualidade feminina e a femini-
lidade, possíveis leituras se colocam. É possível tomar as formulações freudianas para sustentar
uma concepção essencialista sobre “mulher” e “feminilidade”, ou, como veremos a partir de
Rose (2001), uma leitura que não busque “resolver” as dificuldades que se colocam a partir da
formulação freudiana da feminilidade pela visada da própria feminilidade. Nessa segunda pos-
sibilidade, trata-se de lembrar que o próprio Freud colocava a impossibilidade de descrever o
que seria “mulher”, o que abre possibilidades de leituras não essencialistas.
No intuito de evidenciar como o recurso a categorias freudianas pode levar a uma leitura
essencialista, apresentaremos as formulações da psicanalista Jacqueline Schaeffer (2002a), que
retoma as formulações freudianas sobre a sexualidade feminina e a feminilidade, partindo das
oposições ativo/passivo, fálico/castrado, masculino/feminino para defender a pertinência da di-
ferença dos sexos. Sua teorização apresenta evidentes implicações políticas, uma vez que a
autora começa ressaltando a importância da luta pela igualdade de gênero e afirmando que esta
deve ser realizada nos campos social, político e econômico, mas que seria prejudicial no domí-
nio sexual – pela tendência a ser confundida com a abolição da diferença entre os sexos.
Interessante notar que, embora faça a ressalva de que a igualdade seria importante em
domínios outros que o sexual, mais à frente no texto a autora toma a dominação masculina
como uma evidência incontestável, articulando-a à função paterna no campo psicanalítico. Em
suas palavras: “A dominação do homem, incontestável na organização de todas as sociedades,
refere-se, do ponto de vista psicanalítico, à necessária função fálica paterna, simbólica, que
estabelece a lei, que permite ao pai separar a criança de sua mãe e trazê-lo para o mundo so-
cial”202 (SCHAEFFER, 2002a, p. 5, traducão nossa). Sua defesa da necessidade da diferença
de sexos aparece, então, articulada à questão da função paterna de separação.
Essa defesa aparece também em sua abordagem sobre o gozo sexual. A autora considera
que haveria uma contradição entre aquilo que é do domínio do eu, por um lado, e o gozo sexual,

202
“La domination de l’homme, incontestable dans l’organisation de toutes les sociétés, renvoie, du point de vue
psychanalytique, à la nécessaire fonction phallique paternelle, symbolique, laquelle instaure la loi, qui permet au
père de séparer l’enfant de sa mère et de le faire entrer dans le monde social.” (SCHAEFFER, 2002a, p. 5)
232
por outro, uma vez que algo que não é tolerado pelo eu pode ser exigido pelo sexo. Nessa
perspectiva de que o sexo exige algo que não é tolerado pelo eu, a autora sustenta que a mulher
desejaria o “masculino” do homem e haveria uma tendência ao masoquismo erótico: “De fato,
tudo o que é insuportável para o ego é precisamente o que contribui para o gozo sexual: a
invasão, o abuso de poder, a perda de controle, o apagamento dos limites, a posse, a submissão,
em suma, a ‘derrota’ em toda a polissemia do termo”203 (SCHAEFFER, 2002a, p. 5, traducão
nossa).
Importante destacar, primeiramente, que a diferença entre os sexos defendida pela au-
tora parte de uma articulação entre masculino-atividade e feminino-passividade em termos que
extrapolam o que seria do campo propriamente psicanalítico e que, a nosso ver, recai em este-
reótipos culturais que associam atividade a força, a submeter, invadir, como se isso caracteri-
zasse o “masculino”. Além disso, parece que a autora considera que as mulheres demandam
igualdade em relação aos homens nas esferas social, política e econômica – reivindicação de
direitos, que estaria no âmbito do eu –, mas, no domínio sexual, as mulheres desejariam ser
“dominadas” pelos homens – por isso a igualdade seria “prejudicial” no domínio sexual.
A defesa da existência de diferenças necessárias entre homens e mulheres no domínio
sexual é fundamentada por um discurso que busca justificar essas diferenças a partir da anato-
mia. Como vimos, Freud (1924/1996) considera que a organização genital infantil se refere ao
pênis e ao clitóris, não tendo a vagina sido ainda “descoberta”. Schaeffer (2002a) retoma essa
proposição freudiana – de que a vagina, ignorada durante a infância, seria a grande descoberta
da puberdade – e acrescenta que, para que esse órgão seja “descoberto”, a única possibilidade
seria através da relação sexual com um homem. Como afirma Schaeffer (2002a), a penetração
“revelaria” a erogeneidade da vagina, de modo que seria através do homem que a mulher se
tornaria mulher: “Portanto, será necessário esperar, como a mulher esperará, o ‘amante de gozo’
para que o genital ‘feminino’ seja arrancado do corpo da mulher. Haverá verdadeiramente uma
experiência de diferenciação sexual, da criação do ‘feminino’ pelo masculino”204 (p. 3, tradução
nossa).
Finalmente, as supostas diferenças entre os sexos levam à reprodução de estereótipos
que fixam a mulher como aquela que esperaria passivamente, em contraposição ao masculino

203
“En effet, tout ce qui est insupportable pour le moi est précisément ce qui contribue à la jouissance sexuelle: à
savoir l’effraction, l’abus de pouvoir, la perte du contrôle, l’effacement des limites, la possession, la soumission,
bref, la « défaite », dans toute la polysémie du terme.” (SCHAEFFER, 2002a, p. 5)
204
“Il faudra donc attendre, comme la femme l’attendra, l’« amant de jouissance » pour que le « féminin » génital
soit arraché au corps de la femme. Il y aura là véritablement une expérience de différenciation sexuelle, de création
du « féminin » par le masculin.” (SCHAEFFER, 2002a, p. 3)
233
– associado à atividade –, que definiria o homem como aquele que penetra, portanto o “con-
quistador”, nos termos de Schaeffer (2002b):

O menino, destinado a uma sexualidade de conquista, isto é, à penetração, organizar-


se-á muitas vezes, bem apoiado em sua analidade e sua angústia de castração, na ati-
vidade e no controle da espera. A menina está condenada a esperar: ela primeiro es-
pera um pênis, depois seus seios, suas “regras”, a primeira vez, depois todo mês, ela
espera por penetração, depois uma criança, então parto, depois desmame, etc. Ela não
deixa de esperar.205 (p. 7, tradução nossa)

Assim, partindo de uma leitura quase literal de Freud, a autora retoma, no atual contexto
histórico, todas as formulações de Freud “ao pé da letra”, e acaba reforçando estereótipos esta-
belecidos culturalmente, como o do “homem conquistador” e da “mulher à espera do amor”.
Trata-se de uma leitura essencialista, que parte da diferença entre os sexos como um pressu-
posto e de um juízo normativo heterocentrado de que a abolição dessa diferença seria “prejudi-
cial” no domínio sexual. Nessa leitura, haveria uma identidade “mulher”, definida de maneira
essencialista a partir da passividade, do desejo pela dominação no âmbito sexual, do “tornar-se
mulher” a partir da “descoberta” da vagina na relação sexual com um homem, da espera passiva
pelo amor.
Da mesma maneira que, na seção 3.2.1, apontamos que a passividade associada às mu-
lheres parece ser pressuposta em Freud, em Schaeffer (2002a; 2002b) essa passividade é pres-
suposta e tomada como necessária. Além disso, essa passividade é não só pressuposta, mas se
torna uma prescrição, a partir do juízo normativo de que um apagamento das diferenças entre
homens e mulheres seria “prejudicial” no domínio sexual. Ou seja, a mulher não só é, mas
também deve ser “feminina” – uma “mulherzinha” feminina, passiva e heterossexual, nos ter-
mos de Rubin (1975/2017, p. 47).
Consideramos que a teorização de Schaeffer (2002a; 2002b) revela como uma leitura
pode se tornar prescritiva, como destacamos a partir de Ayouch (2018), na seção 3.2.1, e tam-
bém como a “diferença entre os sexos” pode ser tomada como normativa em formulações psi-
canalíticas – o que justifica as críticas dirigidas à psicanálise a partir do campo dos estudos de
gênero. Como afirma Ayouch (2018): “A interpelação da psicanálise pelos estudos de gênero
tem se centrado muitas vezes na ‘diferença entre os sexos’, que se tornou normativa em algumas

205
“Le garçon, destiné à une sexualité de conquête, c’est-à-dire à la pénétration, s’organisera le plus souvent, bien
appuyé sur son analité et son angoisse de castration, dans l’activité et la maîtrise de l’attente. La fille, elle, est
vouée à l’attente : elle attend d’abord un pénis, puis ses seins, ses « règles », la première fois, puis tous les mois,
elle attend la pénétration, puis un enfant, puis l’accouchement, puis le sevrage, etc. Elle n’en finit pas d’attendre.”
(SCHAEFFER, 2002b, p. 7)
234
teorizações, por ser naturalizadora e conceder uma primazia a essa diferença em detrimento de
outras que foram ignoradas”206 (AYOUCH, 2018, p. 141-2).
Diferentemente da leitura essencialista proposta por Schaeffer, uma outra possibilidade
seria resgatar as proposições freudianas fundamentais, como sexualidade e inconsciente, que
Mitchell (2001) propõe que situemos como causalmente entrelaçados (“causatively intertwi-
ned”), bem como a interdependência entre as formulações sobre a subjetividade – dividida e
precária – e a feminilidade em Freud, como propõe Rose (2001).
Rose (2001) destaca essa interdependência e aponta que a falha em reconhecê-la levou
psicanalistas a “uma tentativa de resolver as dificuldades do relato de Freud sobre a feminili-
dade pela visada de resolver a dificuldade da própria feminilidade”207 (ROSE, 2001, p. 28,
tradução nossa) – perdendo a ênfase na divisão e precariedade da subjetividade, estes sim entre
os insights mais radicais da psicanálise.
Para Rose (2001), a relação entre sexualidade e inconsciente deve ser o ponto de partida
para discutir as questões da sexualidade feminina, já que a centralidade da formulação do in-
consciente implica um deslocamento “de qualquer posição de certeza, de qualquer relação de
conhecimento para seus processos psíquicos e história, e simultaneamente revela a natureza
ficcional da categoria sexual à qual todo sujeito humano é, no entanto, atribuído.”208 (ROSE,
2001, p. 29, tradução nossa). Além de destacar a precariedade, no sentido de ausência de ga-
rantias, a autora se refere ao gênero como algo da ordem da designação (“assigned” em inglês),
de modo que consideramos um paralelo com a proposição laplanchiana de “assignation”, que
introduziremos na seção 3.3.
Mitchell (2001) considera que Lacan chama a atenção para o que seria mais revolucio-
nário no trabalho freudiano, e que deveria ser nossa tarefa: “a psicanálise não deveria subscrever
a ideias sobre como homens e mulheres vivem ou deveriam viver como seres sexualmente di-
ferenciados, mas em vez disso deveria analisar como eles se tornam tais seres em primeiro
lugar”209 (MITCHELL, 2001, p. 3, tradução nossa). A autora destaca a citação de “Feminili-
dade”, já apresentada por nós: “a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher – seria esta

206
“L’interpellation de la psychanalyse par les études de genre a souvent porté sur la « différence des sexes »,
devenue normative dans certaines théorisations, sur sa naturalisation, et sur le primat qui peut lui être accordé à la
défaveur d’autres différences alors ignorées.” (AYOUCH, 2018, p. 141-2)
207
“[…] an attempt to resolve the difficulties of Freud’s account of femininity by aiming to resolve the difficulty
of femininity itself” (ROSE, 2001, p. 28)
208
“For Lacan, the unconscious undermines the subject from any position of certainty, from any relation of
knowledge to his or her psychic processes and history, and simultaneously reveals the ficctional nature of the
sexual category to which every human subject is none the less assigned” (ROSE, 2001, p. 29)
209
“[…] psychoanalysis should not subscribe to ideas about how men and women do or should live as sexually
differentiated beings, but instead it should analyse how they come to be such beings in the first place”
(MITCHELL, 2001, p. 3)
235
uma tarefa difícil de cumprir –, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma,
como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual”210 (FREUD,
1933c[1932]/1996, p. 117).
Laplanche (2014b) também resgata essa citação e estabelece um paralelo com a propo-
sição de Simone de Beauvoir em “O Segundo sexo”: “não se nasce mulher, torna-se mulher”.
O autor questiona em que medida esses enunciados se aproximam ou se distanciam, e aponta
que Beauvoir admite “mulher” como um ser, “ela vem a sê-lo”, enquanto Freud diz “Ela se
torna o que somos incapazes de definir”211 (LAPLANCHE, 2014b, p. 164-5, tradução nossa).
A tarefa da psicanálise seria, então, discutir como se torna algo que não pode conseguir
descrever. Nesse sentido, as formulações de Mitchell (2001) sobre sexualidade e inconsciente
como causalmente entrelaçados (“causatively intertwined”) nos parecem importantes. Na abor-
dagem da autora, que afirma buscar retomar o que haveria de fundamental em Freud, não ha-
veria nada de substancial ou essencial nessas concepções: “nem o inconsciente nem a sexuali-
dade podem ser em qualquer grau fatos pré-estabelecidos, são construções; ou seja, são objetos
com histórias e o próprio sujeito humano é formado apenas dentro dessas histórias”212
(MITCHELL, 2001, p. 4, tradução nossa). Para a autora, isso estabelece o quadro no qual a
questão da sexualidade feminina pode ser compreendida.
Mitchell (2001) considera que as ideias de Freud sobre a sexualidade feminina podem
ser divididas em dois períodos: dos anos 1890 a 1916-19 e dos anos 1920 até seus últimos
trabalhos incluindo uma publicação de 1940. No primeiro período, a autora considera que uma
contradição perpassa os trabalhos freudianos, momento em que as poucas referências à sexua-
lidade feminina remetem ao complexo de Édipo tomado de maneira simétrica no menino e na
menina, ou seja, em ambos os casos se tratava do desejo pelo genitor do sexo oposto e rivalidade
em relação ao do mesmo sexo.
Nesse primeiro período, a posição de Freud seria contraditória, para Mitchell (2001):
nos “Três ensaios”, não há qualquer referência ao complexo de Édipo; a formulação do com-
plexo de Édipo o leva a assumir uma heterossexualidade natural, em contraste com o restante

210
Mitchell (2001) cita a versão inglesa das “Obras completas”: “In conformity with its particular nature, psycho-
analysis does not try to describe what a woman is – that would be a task it could scarcely perform – but sets about
enquiring how she comes into being” (edição inglesa, citada por (MITCHELL, 2001, p. 3, tradução nossa). Desta-
camos que na edicão inglesa, assim como na francesa, já destacada por nós, a referência é a “tornar-se” mulher, e
não “formar-se”, como aparece na versão brasileira.
211
“Au contraire, chez Freud, c’est tout à fait extraordinaire, en ce sens que son énoncé est complètement contra-
dictoire. Freud nous dit: ‘Elle devient ce que nous sommes incapables de définir’” (LAPLANCHE, 2014b, p. 164-
5)
212
“[…] neither the unconscious nor sexuality can in any degree be pre-given facts, they are constructions; that is
they are objects with histories and the human subject itself is only formed within these histories” (MITCHELL,
2001, p. 4).
236
dos seus trabalhos, que vão contra essa possibilidade. Em 1915, Freud acrescenta diversas notas
de rodapé nos “Três ensaios”, quase todas sobre o problema da definição de masculinidade e
feminilidade. Dentre esses acréscimos, Mitchell (2001) considera que o conceito de complexo
de castração marcaria um ponto de virada:

No esquema de Freud, após o complexo de castração, meninos e meninas adotarão


mais ou menos adequadamente a identidade sexual do genitor apropriado. Mas é sem-
pre apenas uma adoção e uma precariedade, como, há muito tempo, a identificação
paterna “inadequada” de Dora havia provado. Para Freud, a identificação com o ge-
nitor apropriado é um resultado do complexo de castração que já deu a marca da dis-
tinção sexual.213 (p. 22, tradução nossa)

Em 1933, em “Feminilidade”, Freud se pergunta como a menina passaria da fase mas-


culina para feminina e considera que não haverá adaptação sem luta. Mitchell (2001) aponta,
então, que cabe à psicanálise discutir como se torna mulher. No que se refere a esse ponto, um
paralelo entre o “tornar-se mulher” em Beauvoir e na psicanálise nos parece oferecer caminhos
para pensar a questão da opressão. Como indicamos, Laplanche (2014b) traça aproximações e
distanciamentos entre o que aparece em Freud e em Beauvoir. Além disso, Pascale Molinier,
resgatando Beauvoir, afirmou que “tornar-se mulher” é fazer a experiência da própria opressão
como mulher (informação verbal)214.
Seguindo essas formulações, a partir de Mitchell, Rose e Molinier, abre-se uma possi-
bilidade de leitura não essencialista sobre a sexualidade feminina e a feminilidade. Como vi-
mos, nas formulações freudianas, a puberdade se caracterizaria pela subordinação de outras
fontes de excitação sexual ao primado das zonas genitais e pelo processo do encontro do objeto.
Nesse processo, já nos “Três Ensaios”, Freud (1905a/1996) pontua que “havíamos levado em
conta a diferenciação dos seres sexuados em masculino e feminino e descobrimos que, no tor-
nar-se mulher, faz-se necessário um novo recalcamento, que suprime parte da masculinidade
infantil e prepara a mulher para a troca da zona genital dominante” (p. 221). A partir dessa
citação, consideramos importante destacar “seres sexuados em masculino e feminino” e o “tor-
nar-se mulher” que exige “um novo recalcamento”.
Em “Sobre as teorias sexuais das crianças”, Freud (1908b/1996) já discutia a concepção
das crianças de que meninos e meninas possuiriam um pênis e os resultados da descoberta de
que a menina não o possui, com o surgimento na menina da “inveja do pênis” e o “complexo

213
“In Freud’s schema, after the castration complex, boys and girls will more or less adequately adopt the sexual
identity of the appropriate parent. But it is always only an adoption and a precarious one at that, as long ago, Dora’s
‘innapropriate’ paternal identification had proved. For Freud, identification with the appropriate parent is a result
of the castration complex which has already given the mark of sexual distinction” (MITCHELL, 2001, p. 22)
214
Pascale Molinier, em 10 de abril de 2019, no seminário “Gênero, normas e psicanálise”, ministrado pelos pro-
fessores Laurie Laufer, Thamy Ayouch e Pascale Molinier, na Universidade Paris Diderot.
237
de castração” diante da ameaça de castração no menino. O clitóris seria homólogo ao pênis e a
sede de excitações na infância, o que “confere à atividade sexual da menina um caráter mascu-
lino, sendo necessária uma vaga de repressão nos anos da puberdade para que desapareça essa
sexualidade masculina e surja a mulher” (p. 197). Freud refere a manutenção da excitabilidade
do clitóris, a anestesia na penetração e as formações compensatórias histéricas para dizer que
“a função sexual de muitas mulheres apresenta-se reduzida” e que “tudo isso parece mostrar
que existe uma dose de verdade na teoria sexual infantil de que as mulheres possuem, como os
homens, um pênis” (p. 197). Nesse ponto, Freud parece reconhecer a importância do clitóris,
sendo importante lembrar que só muito recentemente descobertas científicas sobre a anatomia
desse órgão possibilitaram uma melhor compreensão de seu funcionamento e do prazer que
proporciona.
Finalmente, uma última contribuição que gostaríamos de destacar, a partir de formula-
ções freudianas, aparece em “Algumas observações gerais sobre os ataques histéricos”, quando
Freud (1909[1908]/1996) associa a histeria a um reviver de uma atividade sexual de caráter
essencialmente masculino na infância. As jovens com “tendências masculinas nos anos anteri-
ores à puberdade, são justamente as que se tornam histéricas daí em diante”, o que leva Freud
(1909[1908]/1996) a afirmar que a é “repressão que, apagando a sexualidade masculina, per-
mite o aparecimento da mulher” (p. 213) – o que não aconteceria nas histéricas.
A partir dessas pontuações e procurando traçar articulações com o que já discutimos das
formulações freudianas sobre sexualidade feminina e feminilidade, consideramos que uma pos-
sibilidade de leitura seria de que o “tornar-se mulher” exige “um novo recalcamento” que recai
justamente sobre a parcela de sexualidade que Freud considera “masculina” e que está associ-
ada ao clitóris – nos termos freudianos, o “apagamento” da sexualidade masculina possibilitaria
o “aparecimento da mulher”. Hoje, diferentemente, as mulheres têm a possibilidade de manter
sua sexualidade “masculina” via prazer clitoridiano – embora não necessariamente sempre sem
encontrar dificuldades –, o que se colocava de outra forma no contexto histórico em que Freud
produziu seus trabalhos. Naquele momento, a restrição à sexualidade, vinculada à reprodução,
possibilita compreender essa necessidade de recalcamento de uma parcela da sexualidade como
fazer a experiência da opressão enquanto mulher, e é justamente o que Freud coloca em “Fe-
minilidade” ao associar o “tornar-se mulher” à mudança do clitóris para a vagina como zona
erógena. Naquele momento, de fato ou a mulher “conseguia” realizar essa transição e passava
a sentir prazer com penetração, no quadro da sexualidade associada à reprodução, ou não sen-
tiria prazer sexual. Também a partir dessa leitura, a histeria pode ser vista como não conformi-
dade aos papéis de gênero.
238
Consideramos que existe, então, uma possibilidade de ler as formulações de Freud sobre
sexualidade feminina e feminilidade como uma descrição do “tonar-se mulher” em um deter-
minado regime de normas, vigente naquele momento histórico e que não necessariamente se
apresenta da mesma forma em outros contextos. Ou seja, Freud estaria descrevendo a partir do
que aparecia na clínica e naquele contexto histórico, mas não prescrevendo algo que deveria
ser ou que teria sempre sido e/ou seria sempre da mesma forma, o que propomos a partir da
diferenciação estabelecida por Ayouch (2018) entre descrição e prescrição, apresentada na se-
ção 3.2.1. Nesse sentido, Elliot (1991) considera que “não se pode falar em sexualidade femi-
nina como inata ou natural, apenas normativa”215 (p. 76, tradução nossa). Como o objeto é o
que há de mais variável na pulsão, como discutimos no capítulo 1, “uma norma heterossexual
deve ser explicada, e não pressuposta desde o início”216 (ELLIOT, 1991, p. 76, tradução nossa)
Retomando a proposição de Molinier, se compreendermos o “tornar-se mulher” como
fazer a experiência de sua opressão enquanto mulher, podemos propor uma leitura muito dife-
rente daquela proposta por Schaeffer (2002a; 2002b), por exemplo. Uma leitura não essencia-
lista, que não circunscreve uma identidade “mulher”, mas, ao contrário, considera que não há
nada de “especificamente feminino” que constituiria uma identidade e que as “mulheres” esta-
riam ligadas apenas em virtude de sua opressão, como afirma Butler (1990/2013) e como dis-
cutimos no capítulo 2.
Elliot (1991) afirma que “O que Freud parecia incapaz de entender era o sacrifício exi-
gido pelas mulheres em assumir a posição feminina, uma posição na qual se é objeto do desejo
do outro ao invés de sujeito de desejo”217 (p. 94, tradução nossa). Ou seja, Freud não se dá conta
dessa experiência de opressão. De maneira semelhante, Rubin (1975/2017), como vimos, ob-
serva nos textos freudianos uma descrição da realidade da opressão das mulheres, mas também
racionalizações daquilo que é descrito, o que a autora considera problemático.
Do nosso ponto de vista, consideramos que Freud nos fornece uma descrição de como
as mulheres naquele momento histórico vivenciavam essa opressão na esfera da sexualidade,
mas muitas vezes se contradiz, destaca aspectos ora constitucionais ora culturais. Considerando
a maneira como nós, psicanalistas, apropriamo-nos das ideias de Freud, procuramos destacar,
nesta seção, que é possível partir de Freud para fazer uma leitura que fixa a sexualidade femi-
nina ou, ao contrário, para propor uma leitura não essencialista, que situa historicamente as

215
“[…] one cannot speak of feminine sexuality as innate or natural, only normative.” (ELLIOT, 1991, p. 76)
216
“[...] a heterosexual norm has to be accounted for rather than assumed from the outset” (ELLIOT, 1991, p. 76)
217
“What Freud seemed unable to understand was the sacrifice entailed by women in taking up the feminine
position, a position in which one is an object of another’s desire instead of a subject of desire.” (ELLIOT, 1991,
p. 94).
239
formulações freudianas e possibilita pensá-las a partir de contribuições de outros campos do
conhecimento.
Acreditamos que uma outra leitura só é possível justamente porque hoje podemos ler
Freud a partir de outros autores, sobretudo no campo dos estudos feministas e de gênero. Tam-
bém só é possível se mantivermos a ênfase nos conceitos fundamentais, e essa nos parece ser
uma importante contribuição de Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, ao buscarem ler Freud tendo
sempre como orientadores a formulação do inconsciente e da sexualidade. Mitchell (2001) des-
taca que existem contradições nos textos freudianos, o que levou analistas a desenvolverem
determinados aspectos e rejeitarem outros. No entanto, a autora não considera possível sustentar
que o texto seja heterogêneo e que se justificaria fazer escolhas e desenvolvê-las como se de-
seja. Ao contrário, lembra a importância de retornar aos conceitos básicos, o que procura fazer
resgatando a centralidade da sexualidade e do inconsciente.
Como discutimos na seção anterior, Elliot (1991) alerta para os riscos de deslizamento
de um discurso analítico para um discurso de mestria. Consideramos que esse deslizamento
acontece na leitura proposta por Schaeffer (2002a; 2002b), que acaba por tomar como universal
o que é contingente. Diferentemente, procuramos, com Julliet Mitchell e Jacqueline Rose, bem
como a partir das contribuições de Pascale Molinier, Thamy Ayouch e Laurie Laufer, ler a
psicanálise como discurso analítico, de maneira a situar leituras não essencialistas, que não
pretendem descrever o que seria “mulher” a partir de algo “especificamente feminino”. Con-
cordamos com Butler (1990/2013) que não existe nada que definiria “mulheres” senão a reali-
dade de sua opressão, por isso o desafio é como articular uma compreensão do “tornar-se mu-
lher” enquanto fazer a experiência da própria opressão. Na próxima seção, recorreremos às
contribuições de Jean Laplanche (2014a; 2014b; 2014c) e de Pascale Molinier (2008) para si-
tuar esse “tornar-se mulher” em um contexto de normas que operam – por meio de um princípio
de hierarquia – ao mesmo tempo em que falham.

3.3 Um princípio de hierarquia como fundamento de normas que operam e falham

Como apresentamos no capítulo 2, a noção de gênero foi introduzida, no campo psi,


pelo psicólogo e sexólogo John Money e pelo psiquiatra e psicanalista Robert Stoller. Money
criou o termo “gênero” em referência à diferença entre sexo biológico e social. Com Robert
Stoller, temos a entrada da concepção de “transexualismo” na psicanálise, em seus trabalhos
sobre os problemas de “identidade de gênero”. Dessa maneira, as questões que se colocam no

240
campo psicanalítico contemporâneo tiveram sua entrada por uma inflexão médica e diagnóstica,
em uma perspectiva em que, de acordo com Laufer (2014b), os termos “gênero” e “identidade
de gênero” não são considerados problemáticos, não são questionados.
Um exemplo de como esses termos podem ser reproduzidos sem que sejam interrogados
é oferecido por Laplanche (2014b), ao apontar que os relatos de caso escritos por psicanalistas
frequentemente começam com “homem/mulher de tantos anos”. Indicando irrefletidamente,
desde o início, que se trata de “homem” ou “mulher”, o gênero aparece como se estivesse fora
de conflito, o que leva Laplanche (2014b) a questionar: “O gênero seria verdadeiramente a-
conflitual a ponto de ser um impensado de partida?”218 (p. 161, tradução nossa).
Considerando que, muitas vezes, como afirmam Laufer e Rochefort (2014), os estereó-
tipos de gênero aparecem como se fosse “naturais”, de maneira que suas condições de produção
não são nunca interrogadas, como poderíamos, então, interrogar esse campo, a partir da psica-
nálise? Mitchell (2001) considera que se trata de assumir uma posição que não corresponde à
dimensão biológica nem oferece garantias. Como afirma: “Tal posição não é de forma alguma
idêntica às características sexuais biológicas, nem é uma posição da qual se pode estar muito
confiante – como demonstra a experiência psicanalítica”219 (MITCHELL, 2001, p. 6, tradução
nossa).
Um novo campo de possibilidades se abre, a nosso ver, a partir da proposição do psica-
nalista Jean Laplanche de “identificação por” no caso do gênero, considerado como “primaria-
mente uma mensagem, uma atribuição (veremos: enigmática), uma atribuição no social, no
sentido mais geral do termo, pelo socius, isto é, por um próximo, um pai, amigo ou grupo de
pessoas”220 (LAPLANCHE, 2014a, p. 105-6, grifos do autor, tradução nossa). Anunciamos
aqui a maneira como o próprio autor sintetiza sua formulação, para, ao longo desta seção, de-
senvolvê-la.
Um primeiro aspecto importante na formulação laplanchiana é a colocação do sexual
sob o primado do outro, como destaca Molinier (2008). A atribuição de gênero está articulada
a uma alteridade e se trata de “identificação por” – e não “identificação a”. Como afirma La-
planche (2014a): “não se trata de ‘se identificar a’, mas ‘ser identificado por’. Assim, o sujeito

218
“Le genre serait-il vraiment a-conflictuel au point d’être un impensé de depart?” (LAPLANCHE, 2014b, p.
161)
219
“One must take up a position as either a man or a woman. Such a position is by no means identical with one’s
biological sexual characteristics, nor is it a position of which onde can be very confident – as the psychoanalytical
experience demonstrates” (MITCHELL, 2001, p. 6)
220
“[...] le genre est d’abord un message, d’abord une assignation (on le verra: énigmatique), une assignation dans
le social, au sens le plus general du terme, par le socius, c’est à dire par un proche, un parent, ou un ami ou un
groupe de personnes” (LAPLANCHE, 2014a, p. 105-6, grifos do autor)
241
é identificado pela atribuição a um determinado gênero”221 (p. 106, grifos do autor, tradução
nossa).
A formulação laplanchiana de “identificação por” é discutida na obra denominada “Se-
xual: La sexualité élargie au sens freudien”, que reúne textos escritos entre 2000 e 2006. Trata-
se de um neologismo criado por Laplanche a partir de “sexuel” e utilizado de forma substanti-
vada para designar a dimensão infantil da sexualidade: “o que eu denomino ‘sexual’ (por dife-
rença com sexuel), é tudo o que sai da teoria freudiana da sexualidade ampliada, e no primeiro
plano a sexualidade infantil dita ‘perversa polimorfa’”222 (p. 5, tradução nossa). Na versão bra-
sileira, foi utilizado “Sexual” em maiúscula para marcar a diferença em relação a “sexual”, e
nós seguiremos essa proposição, embora tenhamos tomado como referência a versão francesa
da obra.
Para compreender a formulação de “identificação por” e as contribuições do autor no
que se refere a gênero, é preciso partir da distinção que ele procura traçar entre sexo, gênero e
Sexual. Apresentaremos as principais proposições do autor no que se refere a essa diferencia-
ção, mas destacaremos os aspectos que consideramos mais importantes para nosso trabalho.
Existem elementos nas formulações do autor que poderiam ser problematizados, por exemplo
a consideração do sexo como dual. Como apresentamos no capítulo 2, a partir da pontuação
bastante precisa de Falquet (2014a), Butler critica a ideia de que haveria uma base – o sexo –
como fundamento do gênero, sendo essa “base, na verdade, inexistente” (p. 250). Não nos apro-
fundaremos nessa problematização nas formulações de Laplanche e nos deteremos naquilo que
particularmente nos interessa a partir do autor: a articulação do gênero por meio tanto de inves-
timentos conscientes quanto de fantasias sexuais inconscientes.
O autor utiliza o termo “sexo” no sentido de “sexuado”, afirmando então que o sexo é
dual, pela reprodução sexuada e sua simbolização humana que fixa a dualidade em presença/au-
sência, fálico/ castrado. Diferentemente, o gênero é plural, e embora sua apresentação apareça
normalmente como masculino-feminino, não o é por natureza. O Sexual é múltiplo, polimorfo,
fundamenta-se no recalque, inconsciente, fantasia (LAPLANCHE, 2014b).
A compreensão do Sexual como sexualidade ampliada é fundamental para situar a for-
mulação de Laplanche sobre gênero, em articulação com essa dimensão do Sexual. Laplanche
(2014b) especifica que, em alemão, Geschlecht significa “sexo sexuado”. Se o sexuado implica

221
“[...] elle n’est pas un ‘s’identifier à’ mais un ‘être identifié par’. Ainsi, le sujet est identifié par l’assignation à
um certain genre” (LAPLANCHE, 2014a, p. 106, grifos do autor)
222
“ce que je nome ‘sexual’ (par différence avec sexuel), c’est tout ce qui est du ressort de la théorie freudienne
de la séxualité élargie, et au premier plan la sexualité infantile dite ‘perverse polymorphe’” (p. 5)
242
a diferença de sexos, quando Freud aborda a sexualidade ampliada sua referência é ao Sexual
(em alemão, sexual): sua Sexualtheorie não é uma Geschlechttheorie. Trata-se de sexualidade
não associada à procriação, à reprodução sexuada: “o Sexual não é o sexuado; é essencialmente
o sexual perverso infantil”223 (LAPLANCHE, 2014b, p. 155, tradução nossa).
Para Laplanche (2014b), a sexualidade ampliada é a principal descoberta psicanalítica,
mantém-se em toda a obra freudiana e coloca uma dificuldade de conceituação. Refere-se ao
infantil, está ligada à fantasia (mais do que ao objeto), é autoerótica, regida pelo inconsciente,
de maneira que o Sexual é “exterior ou mesmo anterior à diferença dos sexos, para não dizer, à
diferença dos gêneros”224 (LAPLANCHE, 2014b, p. 155, tradução nossa)
Na tentativa de definição, Freud é levado a relacionar o Sexual com aquilo que ele não
é: a atividade sexuada ou sexo. Muitas vezes, o prazer Sexual está em oposição ao prazer sexu-
ado, porque, enquanto o Sexual tem um funcionamento que busca a tensão, o sexuado objetiva
o alívio pelo prazer, e também porque o Sexual corresponde ao que é condenado pelo adulto.
A sexualidade infantil é considerada repugnante pelo adulto, de maneira que “o Sexual é o
recalcado, ele é recalcado por ser Sexual”225 (LAPLANCHE, 2014b, p. 157, tradução nossa).
No que se refere ao sexo ou ao sexuado, Laplanche (2014b) afirma que Freud fala da
anatomia como destino. Retomemos as formulações freudianas antes de passar às considerações
de Laplanche.
No texto “Sobre à tendência universal à depreciação na esfera do amor”, Freud
(1912/1996) afirma que existe algo do caráter da pulsão sexual desfavorável à realização da
satisfação completa, e levanta dois fatores para essa impossibilidade. Primeiramente, em de-
corrência da interposição da barreira contra o incesto, o objeto nunca será o objeto original:
“quando o objeto original de um impulso desejoso se perde em consequência da repressão, ele
se representa, frequentemente, por uma sucessão infindável de objetos substitutos, nenhum dos
quais, no entanto, proporciona satisfação completa” (FREUD, 1912/1996, p. 194). Um segundo
ponto relaciona-se à repressão de determinados componentes pulsionais, como os coprófilos,
“que demonstraram ser incompatíveis com nossos padrões estéticos de cultura, provavelmente
porque, em consequência de havermos adotado a postura ereta, erguemos do chão nosso órgão
do olfato” (FREUD, 1912/1996, p. 194). Destacamos a passagem em que aparece a citação “A
anatomia é o destino” nesse contexto das implicações da postura ereta:

223
“le sexual n’est pas le sexué; c’est essentiellement le sexuel pervers infantile” (LAPLANCHE, 2014b, p. 155)
224
“[...] le ‘sexual’ est donc extérieur sinon même préalable pour Freud à la différences des sexes, voire à la
différence des genres” (LAPLANCHE, 2014b, p. 155)
225
“Le sexual est le refoulé, il est refoulé parce que sexual” (LAPLANCHE, 2014b, p. 157)
243
Os processos fundamentais que produzem excitação erótica permanecem inalterados.
O excrementício está todo, muito íntima e inseparavelmente, ligado ao sexual; a po-
sição dos órgãos genitais – inter urinas et faeces – permanece sendo o fator decisivo
e imutável. Poder-se-ia dizer neste ponto, modificando um dito muito conhecido do
grande Napoleão: “A anatomia é o destino”. Os órgãos genitais propriamente ditos
não participaram do desenvolvimento do corpo humano visando à beleza: permane-
ceram animais e, assim, também o amor permaneceu, em essência, tão animal como
sempre foi. Os instintos do amor são difíceis de educar; sua educação ora consegue
de mais, ora de menos. O que a civilização pretende fazer deles parece inatingível, a
não ser à custa de uma ponderável perda de prazer: a persistência dos impulsos que
não puderam ser utilizados pode ser percebida na atividade sexual, sob a forma de
não-satisfação. (FREUD, 1912/1996, p. 194-5)

A referência à “a anatomia é o destino” aparece também em “A dissolução do complexo


de Édipo”, quando Freud (1924/1996) afirma que “a exigência feminista de direitos iguais para
os sexos não nos leva muito longe, pois a distinção morfológica está fadada a encontrar expres-
são em diferenças de desenvolvimento psíquico. ‘A anatomia é o destino’, para variar um dito
de Napoleão” (p. 197).
Sobre a postulação freudiana da anatomia como destino, Laplanche (2014b) considera
que há uma confusão entre anatomia e biologia em Freud. Para o autor, biologia e anatomia são
diferentes, sendo que esta última envolve anatomia científica (que pode ser puramente descri-
tiva ou estrutural, descrevendo funções) e popular.
Quando Freud fala da “anatomia como destino”, Laplanche (2014b) considera que se
trata da anatomia popular, que é perceptiva e comporta algo de ilusório. No animal, os dois
conjuntos de órgãos genitais são percebidos pela visão e pelo olfato (por isso diferença percep-
tiva). Diferentemente, no homem, a posição ereta caracteriza a regressão da percepção olfativa
e torna os órgãos genitais femininos perceptualmente inacessíveis à visão, de maneira que se
tem a percepção de apenas um órgão genital e a “diferença dos sexos torna-se ‘diferença de
sexo’”226 (LAPLANCHE, 2014b, p. 170, tradução nossa).
Dessa maneira, coloca-se uma descontinuidade entre diferença anatômica perceptível e
diferença biológica macho/fêmea, de maneira que Laplanche (2014b) destaca o aspecto contin-
gente desse “destino”: “Não é um destino extraordinário essa contingência? A postura ereta
torna os órgãos femininos perceptivelmente inacessíveis. Mas esta contingência foi levantada
por muitas civilizações e, sem dúvida, a nossa, para o posto de significante maior e universal
da presença/ausência”227 (LAPLANCHE, 2014b, p. 172, grifos do autor, tradução nossa). Ou

226
“La différence des sexes devient la ‘différence de sexe’” (LAPLANCHE, 2014b, p. 170)
227
“N’est-ce pas un destin extraordinaire que cette contingence? La station debout rend les organes feminis per-
ceptivamente inacessibles. Or cette contingence a été élevée par bien des civilisations, et sans doute la nôtre, au
rang de significant majeur, universel, de la presence/absence.” (LAPLANCHE, 2014b, p. 172, grifos do autor)
244
seja, a contingência da não percepção dos órgãos genitais femininos foi elevada em nossa civi-
lização à posição de um significante universal, de presença/ausência (LAPLANCHE, 2014b).
No que se refere a “gênero”, Laplanche (2014b) destaca que aparece em Freud a oposi-
ção Geschlecht/sexual e que Geschlecht significa, ao mesmo tempo, sexo e gênero. Por isso,
considera a possibilidade de introduzir o gênero em psicanálise porque, de alguma maneira, já
estava presente em Freud. Freud trabalha três pares de oposição no ser humano: ativo-passivo,
fálico-castrado, masculino-feminino, sendo o último o mais difícil de pensar.
Para Freud, o enigma da masculinidade-feminilidade não é puramente biológico, psico-
lógico ou sociológico, mas uma mescla dos três. Masculino e feminino seria a primeira dife-
renciação que fazemos diante de outro ser humano, o que leva Freud a afirmar, em “Teorias
sexuais infantis”, que um visitante de outro planeta notaria a diferença dos sexos. Laplanche
(2014b) pontua que, na verdade, trata-se de gênero, porque o que está sendo levado em conta
são os habitus dessas duas categorias de seres, e não efetivamente os órgãos genitais – que não
estão visíveis.
No entanto, se Laplanche (2014b) considera que, de alguma maneira, havia uma con-
cepção de gênero em Freud, o autor também sustenta que a categoria do gênero muitas vezes
está ausente ou impensada em perspectivas psicanalíticas. O autor contrapõe-se, então, a dife-
rentes abordagens, que considera ipsocentristas – gênero não seria uma impregnação cere-
bral/hormonal, nem uma marca (como apareceria em Stoller) nem um hábito – para propor uma
compreensão de gênero a partir da designação (assignation), que destaca o primado do outro
no processo, desde o registro civil.
Entretanto, não se trata de um processo pontual, limitado a um ato, não se trata de uma
“determinação pelo nome”. A designação é um “conjunto complexo de atos que se prolongam
na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno”228 (LAPLANCHE, 2014b, p.
167, tradução nossa). Trata-se de uma designação contínua que funciona como prescrição,
como mensagens prescritivas. A designação se insere no social, no registro inicial junto às es-
truturas institucionais de determinada sociedade, mas se refere ao grupo dos socii próximos
(familiares, amigos) – e não o social em geral. Segundo o autor:

Diz-se “o gênero é social”, “o sexo é biológico”. Cuidado com esse termo “social”
porque ele aborda aqui pelo menos duas realidades que se recobrem. Por um lado, o
social ou sociocultural em geral. É claro que é no “social” que a designação é inscrita,
ainda que apenas nesta famosa declaração de partida feita no nível das estruturas ins-
titucionais de uma determinada sociedade. Mas quem inscreve não é o social em geral,
é o pequeno grupo de associados próximos. Ou seja, efetivamente, pai, mãe, um

228
“L’assignation est um ensemble complexe d’actes qui se prolonge dans le langage et dans les comportements
significatifs de l’entourage” (LAPLANCHE, 2014b, p. 167)
245
amigo, um irmão, um primo etc. É, portanto, o pequeno grupo de socii que inscreve
no social, mas não é a sociedade que designa.229 (LAPLANCHE, 2014b, p. 167-8,
grifos do autor)

Esse “pequeno grupo de socii que inscreve no social” corresponde àqueles que são res-
ponsáveis pelos cuidados à criança, e a relação entre eles – adultos e criança – é compreendida
por Laplanche (2014c) a partir da retomada de sua formulação da “teoria da sedução generali-
zada”. Essa perspectiva generaliza a teoria da sedução freudiana para trabalhar a sedução como
algo que não estaria circunscrito ao âmbito do patológico, mas, ao contrário, que aconteceria
em toda relação entre adulto e criança. A “teoria da sedução generalizada” é retomada, então,
por Laplanche (2014c) para destacar que existem mensagens pré-conscientes-conscientes e que
o inconsciente dos pais constitui o ruído que interfere e compromete tais mensagens. Como
destaca Molinier (2008), ao realizar esses cuidados, o adulto transmite mensagens para criança,
as quais são distorcidas pela pulsão, pela sexualidade e pelo inconsciente do adulto.
Esse processo de “comunicação enigmática” é articulado pelo autor à designação de
gênero. A comunicação entre pais e filhos não acontece apenas por meio dos cuidados corpo-
rais, existe também a língua e o código social, assim como as “mensagens do socius” que “são
principalmente mensagens de designação de gênero”230 (LAPLANCHE, 2014b, p. 170,
tradução nossa). Essa comunicação é marcada por “ruídos” por meio das fantasias, expectativas
inconscientes ou pré-conscientes dos adultos. Como explica Laplanche (2014c):

As mensagens do adulto são mensagens pré-conscientes-conscientes, são necessaria-


mente “comprometidas” (no sentido do retorno do recalcado), pela presença de “ru-
ído” inconsciente. Estas mensagens são, portanto, enigmáticas, tanto para o emissor
adulto para o receptor, infans231 (p. 199, grifos do autor, tradução nossa)

Ao se referir ao Sexual, Laplanche sublinha a concepção de que os adultos reativam sua


sexualidade infantil na presença da criança. Em decorrência disso:

[...] toda atribuição traz consigo o desejo inconsciente dos pais, os desejos mais bár-
baros e mais inacreditáveis que entram em contradição com a atribuição manifesta.
Em outras palavras, a linguagem do gênero é comprometida pelo sexo e ainda mais

229
“On dit ‘le genre est social’, ‘le sexe est biologique’. Attention sur ce terme de ‘social’, car il recouvre ici au
moins deux réalités qui se recroisent. D’une part le social ou le sociocultural général. Bien sûr c’est dans ‘le
social’qu’est inscrite l’assignation, ne serait-ce que dans cette fameuse declaration de depart qui se fait au niveau
des structures institutionelles d’une société donée. Mais celui qui inscrit, ce n’est pas le social em general, c’est le
petit groupe des socii proche. C’est-à-dire, effectivement, le père, la mère, um ami, um frère, um cousin etc. C’est
donc le petit groupe des socii qui inscrit dans le social, mais ce n’est pas la Société qui assigne.” (LAPLANCHE,
2014b, p. 167-8, grifos do autor)
230
“[...] il y a aussi les messages du socius: ces messages sont notamment des messages d’assignation du genre”
(LAPLANCHE, 2014b, p. 170)
231
“Les messages de l’adulte sont des messages pré-conscients-conscients, ils sont nécesairement ‘compromis’
(aus sens du retour du refoulé), par la présence du ‘brouillage’ inconscient. Ces messages sont donc énigmatiques,
à la fois pour l’émeteur adulte et pour le récepteur, infans” (LAPLANCHE, 2014c, p. 199, grifos do autor)
246
pelo sexual infantil dos pais e, mais geralmente, dos adultos232 (LAPLANCHE, 2014a,
p. 106, tradução nossa).

A teoria da sedução generalizada implica uma tradução, o que supõe um código de tra-
dução. Como pontua Molinier (2008) a partir de Laplanche, essa “comunicação enigmática”,
que se produz nos cuidados realizados, tem um efeito de excitação sobre a criança, o que de-
sencadeia um trabalho psíquico na tentativa de compreender o que está acontecendo. Na tenta-
tiva de traduzir as mensagens que recebe, a criança recorre ao “seu ambiente cultural geral (e
não apenas familiar), códigos, esquemas narrativos performados”233 (LAPLANCHE, 2014c, p.
208, tradução nossa). Assim, para traduzir as mensagens, ocorre o recurso aos códigos forneci-
dos pelo ambiente cultural: “Os grandes esquemas narrativos transmitidos e modificados pela
cultura vêm ajudar o pequeno sujeito humano a tratar, isto é, a ligar e simbolizar, ou ainda
traduzir, as mensagens traumáticas enigmáticas que vêm do outro adulto”234 (LAPLANCHE,
2014c, p. 212, tradução nossa).
No entanto, por serem as mensagens “comprometidas”, a tradução deixa restos. Nunca
será uma reprodução, porque há deformação, pelo lado do adulto, e há o trabalho de tradução
pela criança. Nessa perspectiva, Laplanche (2014c) propõe que: “O inconsciente, no sentido
próprio, freudiano, só pode ser o recalcado, isto é, em nossos termos, o resíduo da tradução
sempre imperfeita da mensagem”235 (LAPLANCHE, 2014c, p. 213, tradução nossa). Ou, nos
termos de Molinier (2008): “A criança tenta traduzir a mensagem enigmática do inconsciente
parental, mas esse trabalho de tradução não retraduz tudo, há um resto, um resíduo, aquilo que
não é traduzido permanece excitante e constitui o inconsciente da criança”236 (p. 162, tradução
nossa)
Assim, como destaca Molinier (2008), a atribuição de gênero é acompanhada por essas
mensagens enigmáticas, sendo o gênero “implantado” a partir do exterior, por meio de investi-
mentos conscientes e fantasias sexuais inconscientes daqueles que se ocupam dos cuidados.

232
“[…] toute assignation comporte, avec elle, le désir inconscient des parents, les désirs les plus baroques et le
plus incroyables qui viennent en contradiction avec l’assignation manifeste. En d’autres terms, le langage du genre
est compromise par le sexué et encore plus par le sexuel infantile des parents et, plus généralement, des adultes”
(LAPLANCHE, 2014a, p. 106)
233
“[…] son environnement culturel général (et pas seulement familial), des codes, des schémas narratifs pé-
rformés” (LAPLANCHE, 2014c, p. 208)
234
“Les grands schémas narratifs transmis puis modifiés par la culture viennent aider le petit sujet humain à traiter,
c’est à dire à lier et symboliser, ou encore à traduire, les messages énigmatiques traumatisants qui lui viennent de
l’autre adulte. (LAPLANCHE, 2014c, p. 212)
235
“L’incoscient, au sens propre, freudien, ne peut être que le refoulé, c’est-à-dire, em nos termes, le résidu de la
traduction toujours imparfaite du message” (LAPLANCHE, 2014c, p. 213)
236
“L’enfant cherche à traduire le message énigmatique de l’inconscient parental, mais ce travail de traduction ne
retraduit pas tout, il y a un reste, un résidu, ce qui n’est pas traduit demeure excitant et constitue l’inconscient de
l’enfant” (MOLINIER, 2008, p. 162)

247
Como afirma Ayouch (2014), os conteúdos de gênero tomam a forma de um enigma, já que o
adulto atribui um gênero à criança e envia mensagens prescritivas sobre o que seria ser “ho-
mem” ou “mulher”, mas há sempre uma ambiguidade em tais mensagens, visto que “carregam
tudo aquilo que o adulto pensa acerca das mulheres e dos homens, mas também todas as suas
dúvidas, ambivalências, incertezas e conflitos inconscientes” (p. 67).
A partir da leitura de Laplanche (2014a; 2014b; 2014c), consideramos que se coloca
uma possibilidade de compreendermos como as mulheres fazem a experiência da opressão, a
partir de uma perspectiva psicanalítica. Se considerarmos que existem normas que (re)produ-
zem a opressão e que as mulheres aprendem e se conformam a essas normas, estaríamos em
uma perspectiva que considera a socialização e a constituição de papéis de gênero, que expli-
caria o comportamento das mulheres a partir da história de aprendizagens e de cognições asso-
ciadas. Não podemos negar que essa dimensão atue. Para exemplificar com algo bastante sim-
ples, temos as convenções em relação a vestimentas consideradas ou não apropriadas para ho-
mens e mulheres, que mudam ao longo da história e em diferentes contextos, e que nós apren-
demos pela socialização – e reproduzimos ou decidimos não reproduzir, mas aprendemos que,
em determinada cultura, as vestimentas funcionam de determinada maneira.
Qual seria a especificidade de uma abordagem propriamente psicanalítica? A nosso ver,
Laplanche abre uma possibilidade de leitura nesse sentido por enfatizar não aquilo que é trans-
mitido – e que poderia ser explicado pela socialização, pelo aprendizado de papéis – mas jus-
tamente o que fica como “resíduo da tradução sempre imperfeita da mensagem”
(LAPLANCHE, 2014c, p. 213, tradução nossa). Esse resto não está descolado do que é trans-
mitido. Como vimos, Laplanche explica que a criança recorre aos códigos culturais na tentativa
de tradução, de maneira que, se mudam os códigos culturais – tanto o campo das normas, das
representações quanto a materialidade que caracteriza um contexto específico –, teremos outros
“restos de tradução”. Porém, isso não se dá de maneira linear, mas, ao contrário, de modo com-
pletamente imprevisível. Nunca será uma reprodução, porque há deformação do lado do adulto,
que transmite “mensagens comprometidas”, e tradução do lado da criança.
No que se refere a esse aspecto da leitura proposta por Laplanche (2014a; 2014b; 2014c)
– que possibilita situar o gênero para além da mera reprodução de normas –, podemos estabe-
lecer um paralelo entre suas contribuições e as de Rose (2005), ao discutir qual seria a especi-
ficidade da psicanálise, em relação a abordagens sociológicas sobre gênero. De acordo com a
autora:

O que distingue a psicanálise das abordagens [...] sociológicas de gênero é que, para
estas, pressupõe-se que a internalização de normas funcione; a premissa básica e, de

248
fato, o ponto de partida da psicanálise é que não funciona. O inconsciente revela cons-
tantemente o “fracasso” da identidade. Porque não há continuidade da vida psíquica,
não há estabilidade da identidade sexual, não há posição para as mulheres (ou para os
homens) que seja simplesmente alcançada.237 (p. 90-1, tradução nossa)

Nesse mesmo sentido, Rose (2005) afirma que tanto a consideração de algum dado bi-
ológico pré-estabelecido quanto o argumento do papel sociológico produzem uma concepção
passiva, em que a mulher receberia seu “destino natural” ou as marcas inelutáveis do mundo
social. Como propõe Mitchell (2001), a especificidade da abordagem psicanalítica residiria em
considerar a causalidade interdependente. Segundo seus termos:

Um psicanalista não poderia subscrever uma distinção sociológica popular atualmente


em que uma pessoa nasce com seu gênero biológico para o qual a sociedade – ambi-
ente geral, pais, educação, a mídia – adiciona um sexo socialmente definido, mascu-
lino ou feminino. A psicanálise não pode fazer tal distinção: uma pessoa é formada
através de sua sexualidade, não pode ser ‘adicionada’ a ela.”238 (MITCHELL, 2001,
p. 2, tradução nossa, grifos da autora)

A realidade psíquica não é biologicamente nem culturalmente determinada; essas di-


mensões vêm figurar nela, mas a concepção é de sobredeterminação. No que se refere à femi-
nilidade e às relações de opressão, Elliot (1991) pontua que: “a vida psíquica é caracterizada
por um processo complexo de mediação, de modo que a feminilidade não pode ser explicada
como um resultado natural da anatomia feminina ou como um resultado direto de relações so-
ciais (opressivas)”239 (p. 77, tradução nossa).
Tal asserção também não significa negar a realidade da opressão, mas sim levá-la em
conta sem sustentar uma essencialização. Por isso, Elliot (1991) considera interessante preser-
var a tensão entre, de um lado, constituição da identidade e, por outro, como a identidade falha:
como as mulheres experienciam caminhos para a feminilidade, mas esta nunca é alcançada – e
para isso é fundamental a centralidade da proposição do inconsciente.
Elliot (1991) considera que o que há de interessante da perspectiva psicanalítica, do
ponto de vista político, são esses dois insights juntos – senão teríamos apenas uma descrição

237
“What distinguishes psychoanalysis from sociological accounts of gender […] is that whereas for the latter, the
internalisation of norms is assumed roughly to work, the basic premise and indeed starting-point of psychoanalysis
is that it does not. The unconscious constantly reveals the ‘failure’ of identity. Because there is no continuity of
psychic life, so there is no stability of sexual identity, no position for women (or for men) which is ever simply
achieved.” (ROSE, 2005, p. 90-1)
238
“A psychoanalyst could not subscribe to a currently popular sociological distinction in which a person is born
with their biological gender to which society – general environment, parents, education, the media – adds a socially
defined sex, masculine or feminine. Psychoanalysis cannot make such a distinction: a person is formed through
their sexuality, it could not be ‘added’ to him or her.” (MITCHELL, 2001, p. 2, grifos da autora)
239
“[…] psychical life is characterized by a complex process of mediation, so that femininity cannot be explained
as a natural outcome of female anatomy or as a direct result of (oppressive) social relations.” (ELLIOT, 1991, p.
77)
249
funcionalista de internalização das normas. Daí a importância de não se desviar do discurso
analítico e cair em uma teoria do gênero baseada em um determinismo social. Como afirma
Elliot (1991): “na medida em que a psicanálise é lida como um discurso analítico e não como
um texto de mestria, a tensão entre um não organizado sujeito de possibilidades e uma ordem
simbólica do desejo é preservada.”240 (p. 97).
Ou seja, a partir de Laplanche (2014a; 2014b; 2014c) e de Rose (2005), consideramos
que as normas operam, ao mesmo tempo em que falham, e a especificidade da psicanálise nos
parece ser chamar a atenção para essa falha. Falha no sentido de divisão, de imprevisto, de uma
tradução que deixa restos e que nunca é uma reprodução. O que procuramos discutir a partir da
abordagem da histeria é justamente a evidência de que as normas sociais operam ao mesmo
tempo que falham, ou seja, a histeria colocou aquilo que insiste em ser dito (o que falha) apesar
do que é permitido dizer (no interior de determinado regime de normas que operam), como
propõe Elliot (1991).
Além dessa perspectiva de situar a experiência da opressão a partir de normas que ope-
ram e falham, encontramos uma outra contribuição, fundamental para os propósitos de nosso
trabalho, a partir da leitura de Molinier (2008) sobre as formulações de Laplanche. Como afirma
Ayouch (2018), Molinier traz uma contribuição importante “adicionando à teorização de gênero
por Laplanche a idéia de uma hierarquia (inferiorização das meninas)”241 (p. 144, tradução
nossa).
Quando afirmamos que normas operam e falham, é importante destacar que elas operam
– ou seja, a ênfase não é na falha em detrimento da operação. Para nós, as formulações de
Molinier (2008) lançam luz a essa questão, por apontarem que as normas operam por um prin-
cípio de hierarquia. Como veremos, essa hierarquia se coloca para a criança como um enigma
a traduzir e, como a tradução sempre é imperfeita e deixa restos, coloca-se a falha, o imprevisto,
o impossível de dizer.
No assinalamento dessa falha, encontramos, então, algo que possibilita pensar o que
seria a especificidade da psicanálise. No entanto, se existe a falha, igualmente importante é a
dimensão de normas que operam e estabelecem lugares dos quais dificilmente podemos “esca-
par”, o que faz com que tenhamos de “pagar caro” ao tentar subverter esses lugares. Molinier
(2008) nos convida a refletir sobre “o que significa identidade”242 (p. 154, tradução nossa),

240
“[…] to the extent psychoanalysis is read as an analytic discourse and not as a master text, the tension between
an unorganized subject of possibilities and a symbolic ordering of desire is preserved” (ELLIOT, 1991, p. 97).
241
“[...] ajoutant ici à la théorisation du genre par Laplanche l’idée d’une hiérarchisation (infériorisation des filles)”
(AYOUCH, 2018, p. 144)
242
“ce que l’identité veut dire” (MOLINIER, 2008, p. 154)
250
apontando seu caráter relacional a partir de lugares atribuídos dos quais não podemos facil-
mente “escapar”. Nos termos da autora: “Se podemos superar os lugares que nos são atribuídos
pelas fantasias parentais ou pelas relações sociais (rapports sociaux), essa emancipação nunca
é total, a subversão deve ser sempre renovada e se paga muito caro”243 (MOLINIER, 2008, p.
154, tradução nossa).
Molinier (2008) inicia sua discussão recorrendo ao argumento da ortodoxia psicanalítica
que atribui inveja do pênis ou complexo de masculinidade a mulheres que não se adequam ao
ideal prescrito de “feminilidade”. A autora recorre ao exemplo da inteligência e a um “fantasma
positivista” que associa a inteligência ao masculino. Segundo seus termos:

Evidentemente, não é proibido que as mulheres ocidentais sejam inteligentes ou usem


sua inteligência (especialmente a serviço de outras pessoas), mas com a condição de
não mostrá-la (demais) ou não exigir ser reconhecidas como tais. Esse tipo de reivin-
dicação “igualitária”, para não dizer feminista, foi apontado pela ortodoxia psicanalí-
tica como a forma principal de desvio feminino: Penisneid, inveja do pênis, complexo
de masculinidade. Assim, as mulheres inteligentes têm não apenas idéias, mas um
pênis na cabeça.244 (MOLINIER, 2008, p. 155, tradução nossa)

Em uma seção do texto intitulada “Trabalho, um ponto cego da psicanálise”245, Molinier


(2008) retoma a categoria de mulheres “intermediárias”, proposta por Joan Riviere para se re-
ferir a mulheres que combinavam, por um lado, aparência e atividades – domésticas e sociais –
associadas à feminilidade, e, por outro, sucesso em atividades profissionais tidas como mascu-
linas.
Em sua leitura, Molinier (2008) considera que não é tanto a sexualidade que define as
mulheres “intermediárias”, mas seu investimento em tarefas ou ocupações consideradas até en-
tão masculinas, ou seja, “são ‘mulheres ativas’ que transgridem o que hoje chamaríamos de
‘limites de gênero’”246 (p. 157, tradução nossa). Por isso, para a autora, essa categoria de mu-
lheres “intermediárias” “polariza o conflito entre masculinidade e feminilidade no eixo da di-
visão sexual do trabalho e torna quase inoperante o quadro teórico que categoriza – e de maneira

243
“Si l’on peut s’affranchir des places qui nous sont assignées par les fantasmes parentaux ou les rapports sociaux,
cet affranchissement n’est jamais total, la subversion toujours à reconduire et chère payée.” (MOLINIER, 2008,
p. 154)
244
“Il n’est bien sûr pas interdit aux femmes occidentales d’être intelligentes ou de se servir de leur intelligence
(surtout au service des autres), mais à condition de ne pas (trop) le montrer ou de ne pas exiger d’être reconnues
comme telles. Ce type de revendication ‘égalitaire’, pour ne pas dire féministe, a été épinglé par l’orthodoxie
psychanalytique comme la forme cardinale de la déviance féminine: Penisneid, envie du pénis, complexe de mas-
culinité. Ainsi, les femmes intelligentes n’ont-elles pas seulement des idées, mais un pénis dans la tête.”
(MOLINIER, 2008, p. 155)
245
“Le travail, un point aveugle de la psychanalyse” (MOLINIER, 2008, p. 156)
246
“Les femmes intermédiaires sont des ‘femmes actives’ qui transgressent ce que nous appellerions aujourd’hui
‘les frontières du genre’.” (MOLINIER, 2008, p. 157)
251
muito rígida – as mulheres homossexuais e heterossexuais”247 (MOLINIER, 2008, p. 157,
tradução nossa).
Temos aqui, portanto, a psicanalista Pascale Molinier sustentando a importância da di-
visão sexual do trabalho para a compreensão da opressão das mulheres, o que encontra conso-
nância em nossas discussões sobre perspectivas feministas materialistas, tal como discutido no
capítulo 2. A autora considera que a falha em “dessexualizar a masculinidade das mulheres”
está articulada à falta de uma teoria social que possibilitasse colocar em primeiro plano a infe-
rioridade social das mulheres. Nos termos de Molinier (2008):

Apesar da precisão de suas intuições, Riviere, Deutsch ou Horney, e a maioria das


psicanalistas mulheres, falharam em dessexualizar a masculinidade das mulheres o
suficiente para legitimamente reinscrevê-la em um contexto social. Para isso, faltava
uma teoria social que lhes permitisse entender que a chamada “inferioridade de órgão”
das mulheres é um efeito de sua inferioridade social, e não o contrário.248
(MOLINIER, 2008, p. 157-8, tradução nossa)

No sentido de situar essa inferioridade social, inscrita em uma hierarquia, Molinier


(2008) retoma a concepção de gênero tal como compreendido no pensamento feminista: “No
pensamento feminista, gênero é um conceito crítico que conceitua as diferenciações sexuadas
(sexuées) em relação à relação (rapport) social de opressão dos homens sobre as mulheres”249
(p. 163, tradução nossa). A partir dessa definição, Molinier (2008) resgata as formulações de
Laplanche para destacar que a atribuição de gênero não se refere apenas a “um masculino e um
feminino não socialmente determinados”, mas a uma inscrição na hierarquização que circuns-
creve a inferioridade social das mulheres. Como afirma a autora:

Do ponto de vista psicológico, o gênero não significa apenas uma implantação psí-
quica de um masculino e um feminino não socialmente determinados, mas a implan-
tação psíquica do sistema sexo/gênero com supremacia concedida ao homem/mascu-
lino sobre todos os outros valores do sistema. Assim, o performativo “É uma menina”
não marca apenas a entrada no mundo de um indivíduo classificado na categoria mu-
lher – como Jean Laplanche pensa (2003) – mas performa simultaneamente o lugar
desse indivíduo na hierarquização de sexos. Se é o adulto genitalizado que implanta

247
“polarise le conflit entre masculinité et féminité sur l’axe de la division sexuelle du travail et rend quasi
inopérant le cadre de réflexion théorique qui catégorisait – et de façon très étanche – les femmes homosexuelles
et hétérosexuelles.” (MOLINIER, 2008, p. 157)
248
“En dépit de la justesse de leurs intuitions, Riviere, Deutsch ou Horney, et la plupart des femmes psychanalys-
tes, n’ont pas réussi à désexualiser la masculinité des femmes suffisamment pour la réinscrire légitimement dans
un contexte social. Pour cela, il leur manquait une théorie sociale qui leur permette de comprendre que ladite «
infériorité d’organe » des femmes est un effet de leur infériorité sociale, et non le contraire.” (MOLINIER, 2008,
p. 157-8)
249
“Dans la pensée féministe, le genre est un concept critique qui conceptualise les différenciations sexuées en
relation avec le rapport social d’oppression des hommes sur les femmes.” (MOLINIER, 2008, p. 163)
252
o sexual no inconsciente da criança, esse mesmo adulto é igualmente engendrado (en-
gendered)250 (MOLINIER, 2008, p. 163, tradução nossa)

Tomando “gênero” como um sistema caracterizado por uma hierarquia, este é incrus-
tado desde o início da vida da criança a partir das mensagens enigmáticas dos pais, porém não
se trata de algo meramente sexual. Como propõe Karen Horney, citada por Molinier (2008), a
ideia de sua inferioridade é colocada para a menina desde o nascimento. Molinier (2008), fun-
damentada em Laplanche, acrescenta à formulação de Horney a ideia de que o que é colocado
desde o início para a menina é “o enigma de sua inferioridade, um enigma a traduzir”251 (p.
164).
Nesse sentido, Molinier (2008) argumenta que a inveja do pênis não está articulada a
um processo endógeno, mas à tradução de mensagens enigmáticas, que devem ser compreen-
didas, na visão da autora, articulando a noção de hierarquia (com inferiorização das meninas) à
teorização do gênero proposta por Laplanche. Segundo seus termos:

Se admitirmos que o sexual é implantado pelos adultos, a inveja do pênis não é o


resultado de um processo endógeno que conduziria da excitação genital ao reconhe-
cimento da inferioridade do órgão, mas sim uma tradução da mensagem enigmática
que os pais e mais amplamente o socius endereça às meninas. Ou seja, a inveja do
pênis tem significado apenas em referência ao lugar ocupado pela diferença anatômica
dos sexos no sistema social de sexo.252 (MOLINIER, 2008, p. 162, tradução nossa)

Consideramos importante a leitura proposta por Molinier (2008) porque, ao ler as con-
tribuições de Laplanche a partir da concepção de uma hierarquia, marcada pela inferiorização
das meninas, abre-se a possibilidade de pensar o “tornar-se mulher” enquanto fazer a experiên-
cia da própria opressão, de uma maneira que possibilita articular o que seria específico da psi-
canálise às dimensões da materialidade e do discurso – articulação cuja importância destacamos
no capítulo 2.

250
“Sur le plan psychologique, le genre ne signifie donc pas seulement une quelconque implantation psychique
d’un masculin et d’un féminin non socialement déterminés, mais implantation psychique du système sexe/genre
avec suprématie accordée au mâle/masculin sur toutes les autres valeurs du système. Ainsi le performatif « C’est
une fille » ne salue pas seulement l’entrée dans le monde d’un individu classé dans la catégorie femme – comme
le pense Jean Laplanche (2003) – mais performe simultanément la place de cet individu dans la hiérarchisation
des sexes. Si c’est l’adulte génitalisé qui implante le sexuel dans l’inconscient de l’enfant, ce même adulte est
également engendré (en-gendered)” (MOLINIER, 2008, p. 163)
251
“Je dirai : devant l’énigme de son infériorité, une énigme à traduire.” (MOLINIER, 2008, p. 164)
252
“Si l’on admet que le sexuel est implanté par les adultes, l’envie du pénis n’est pas le résultat d’un processus
endogène qui conduirait de l’excitation génitale à la reconnaissance de l’infériorité d’organe, mais plutôt une tra-
duction du message énigmatique que les parents et plus largement le socius adresse aux petites filles. C’est dire
que l’envie du pénis n’a de sens qu’en référence à la place occupée par la différence anatomique des sexes dans le
système social de sexe.” (MOLINIER, 2008, p. 162)

253
De maneira a explicitar como compreendemos essa articulação, é importante retomar
que, a partir das contribuições de Nancy Fraser (2003a), apresentamos, no capítulo 1, uma pers-
pectiva que situa gênero a partir das dimensões de diferenciação econômico-política e de valo-
ração cultural. No sentido de valoração cultural, associado à dimensão do reconhecimento, a
autora considera o androcentrismo como padrão institucionalizado que privilegia o que é asso-
ciado à masculinidade e desqualifica o que é tido como “feminino”. No capítulo 2, ressaltamos
que sua abordagem em termos de práticas institucionalizadas possibilita pensar a materialidade
da condição de injustiças de status.
Como podemos, então, articular as dimensões da materialidade e do discurso a uma
leitura psicanalítica? No sentido de discutir essa questão, buscaremos articular as formulações
teóricas discutidas até aqui com considerações clínicas tecidas pela psicanalista Irene Meler
(2018), em entrevista realizada por Patricia Porchat, já que ela recorre a alguns exemplos clíni-
cos para lançar reflexões acerca do que se diz sobre a mulher na psicanálise.
Um primeiro exemplo clínico destacado pela psicanalista refere-se a uma mulher que se
relaciona repetidamente com homens casados, em uma perspectiva que focaliza o amor, a se-
dução – e não o trabalho ou realizações profissionais, por exemplo. Meler (2018) pontua que
essas características, que marcam uma postura dependente, poderiam levar à consideração de
que se trata de histeria, em uma leitura que enfatizaria a rivalidade com outras mulheres e to-
maria o homem casado como representando o pai (MELER & PORCHAT, 2018). Essa leitura
seria, a nosso ver, compatível com a análise da psicanalista Jacqueline Schaeffer (2002a; 2002b)
sobre a orientação da mulher sobretudo em direção a ser amada, como vimos na seção 3.2.3.
Diferentemente, uma outra possibilidade de leitura destacada por Meler (2018) seria a
consideração de que essa postura – de dependência em relação a homens – estaria associada ao
não se valorizar como mulher e não atribuir suas conquistas a si mesma. Poderia se tratar de
uma mulher que acredita que apenas um homem a tornaria valiosa e que talvez outras mulheres
conheçam como atrair um homem – ou seja, uma idealização do masculino e desvalorização do
feminino.
Consideramos que essa segunda possibilidade de leitura poderia ser articulada às con-
tribuições de Nancy Fraser (2003a), apresentadas nos capítulos 1 e 2, sobre a existência de
formas de injustiça distributiva e de subordinação de status que são “gênero-específicas” e que
veiculam uma desvalorização do feminino. Pode ser articulada, também, à leitura de Molinier
(2008), que retoma as formulações de Laplanche sobre gênero e traz uma nova contribuição: a
ideia de uma hierarquia, com inferiorização das meninas. Como afirma a autora, a menina se
defronta com o enigma de sua inferioridade enquanto enigma a traduzir.
254
O “fazer a experiência de sua opressão” pode aparecer, então, articulado à valorização
do relacionamento com um homem. Em ambas as leituras – a primeira, que recorre à histeria,
e a segunda, que parte da idealização do masculino e desvalorização do feminino –, a mulher
está em uma posição de se fazer objeto do desejo de um homem. No entanto, a diferença reside
no fato de que, na primeira leitura, essa posição é tomada como ligada inevitavelmente a algo
da condição feminina, enquanto a segunda leitura possibilita interrogar como se produz essa
condição, articulada a um regime de normas, à materialidade de determinado contexto histórico
– portanto, como algo contingente.
A análise em termos de idealização do masculino e desvalorização do feminino poderia
estar circunscrita à aprendizagem de papéis e à socialização: a mulher teria aprendido a se com-
portar de determinada maneira por fazer sua experiência de socialização em um regime de nor-
mas que valoriza o masculino e desvaloriza o feminino. A partir de perspectivas da socialização
de gênero, tal como trabalhamos na seção 2.2 do capítulo 2, essa idealização do masculino e
desvalorização do feminino seria abordada no âmbito do imaginário, das representações, da
consciência.
Acreditamos que a especificidade da psicanálise reside justamente em não desconside-
rar que essas normas operam, mas também em destacar que falham. A menina, inscrita nesse
regime de normas, recebe mensagens de idealização do masculino e desvalorização do femi-
nino, que se apresentam como um enigma a traduzir, como propõe Molinier (2008). Essas men-
sagens chegam “comprometidas” e serão traduzidas, como propõe Laplanche, de maneira que
o que se produz é singular e imprevisível.
Não é sem o contexto, sem o regime de normas, mas também não é uma reprodução.
Tanto que, nesse mesmo contexto de valorização do masculino e desvalorização do feminino,
um outro exemplo evocado por Meler (2018) é de uma mulher “forte, líder, independente, em-
preendedora, segura de si, linda, interessada pela sexualidade e bem-sucedida” (p. 135). Essa
mulher era “filha de uma mãe que era órfã, muito apagada e submissa ao marido” (p. 135).
Novamente, Meler (2018) aponta duas possibilidades de leitura. Uma primeira possibi-
lidade seria considerar que se trata de uma histeria fálico narcisista, perspectiva em que a “lei-
tura clínica seria a de que as mulheres que têm uma personalidade masculina desejam ser reco-
nhecidas pelos homens como alguém igual a eles” (p. 136). Uma segunda possibilidade de lei-
tura seria considerar que se trata de uma tentativa de ser o oposto da mãe, de evitar aquele
mesmo destino. Nessa perspectiva, não se trata de desejar “ser homem”, mas de ser valiosa.
Como vimos, Molinier (2008) critica a leitura que atribui “complexo de masculinidade”
a mulheres que têm sucesso em atividades profissionais consideradas “masculinas”. A partir da
255
consideração de uma inscrição na hierarquização que circunscreve a inferioridade social das
mulheres, como propõe Molinier (2008), é possível sustentar a segunda possibilidade de leitura
proposta por Meler (2018), como desejo de ser valiosa – e não de “ser homem”.
Além disso, esse exemplo clínico coloca em cena a relação com a mãe “apagada e sub-
missa ao marido”, que possibilita situar a compreensão de como aqueles responsáveis pelos
cuidados da criança transmitem “mensagens enigmáticas”, nos termos de Laplanche (2014a;
2014b; 2014c), em um contexto de valorização do masculino e desvalorização do feminino – o
que implica que, como afirma Molinier (2008), a designação de gênero não se refere apenas a
“um masculino e um feminino não socialmente determinados”.
A inscrição em uma hierarquização que circunscreve a inferioridade social das mulheres
é tomada como um “enigma a traduzir”, como propõe Molinier (2008). Em ambos os exemplos
clínicos apresentados por Meler (2018), temos mulheres que receberam mensagens de ideali-
zação do masculino e desvalorização do feminino. No entanto, no primeiro exemplo citado – a
mulher que se relaciona repetidamente com homens casados –, esse “enigma a traduzir” produz
a busca por se fazer valiosa por meio de um homem, enquanto que, no segundo exemplo – a
mulher bem-sucedida profissionalmente –, a busca é por se fazer valiosa pelas conquistas e
realizações profissionais. Evidentemente, não cabe nenhum juízo de valor sobre o que seria
“melhor” ou “pior”, mas simplesmente destacar que são diferentes. Um mesmo código cultural,
com mensagens de idealização do masculino e desvalorização do feminino, tem essas mensa-
gens “comprometidas” diferentemente, traduzidas de maneira singular, produzindo diferentes
“restos de tradução”.
Um segundo ponto que consideramos importante destacar é que a leitura da “mulher
fálica”, “personalidade masculina”, parece supor que já existe igualdade entre homens e mu-
lheres, e a mulher estaria “exagerando”, “comportando-se como um homem”. Além da interro-
gação sobre o que seria uma “personalidade masculina” ou uma “mulher fálica”, é importante
situar que, de fato, o que existe é um contexto de não igualdade e a “mulher fálica” nada mais
é do que uma mulher que busca realização e sucesso profissional, expressa suas opiniões de
maneira assertiva, mostra-se independente, busca satisfação sexual, ou seja, tudo que é consi-
derado legítimo para um homem. Por quê não seria legítimo, então, para uma mulher?
Finalmente, o que pretendemos pontuar é que essas mulheres fizeram diferentemente a
experiência de opressão enquanto mulheres, mas ambas fizeram essa experiência, o que possi-
bilita falar em “nós, mulheres”. Não “mulheres” como essência nem necessariamente como
identidade, como apresentamos no capítulo 2. Ao ser atribuído o gênero feminino, a menina
recebe mensagens prescritivas de desvalorização do gênero que lhe é atribuído, diferentemente
256
do menino, que recebe mensagens de valorização. As “mensagens comprometidas” e os “restos
de tradução” em Laplanche nos possibilitam pensar que essas normas operam e falham, a tra-
dução nunca é uma reprodução. Porém, a tradução também não é sem relação com os códigos
culturais, de maneira que, se mudam os códigos culturais no que se refere a gênero, teremos
“mensagens comprometidas” diferentemente e outros “restos de tradução”.

257
CAPÍTULO 4. Materialidade, representação e “para além da representação”: é possível
pensar a especificidade psicanalítica sem eclipsar reconhecimento e redistribuição?

Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser (2019) escreveram um manifesto


intitulado “Feminismo para os 99%” (“Feminism for the 99%: a manifesto”), em que apresen-
tam as armadilhas do feminismo liberal e se propõem a pensar o que seria justiça de gênero – e
não “oportunidades iguais de dominação”. Nancy Fraser é uma autora bastante presente nesta
tese, e é importante destacar que o tom desse livro é bastante diferente dos textos acadêmicos
da autora. Em conferência realizada em Montreuil (França)253, Nancy Fraser falou do caráter
político do livro, justificando que o momento em que vivemos exige.
O livro se inicia com uma menção à afirmação de Sheryl Sandberg, diretora de opera-
ções do Facebook, de que seria “melhor se metade dos países e das empresas fosse administrada
por mulheres e metade de todos os lares fosse administrada por homens” (ARRUZZA,
BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 25). As autoras situam Sandberg como representante
do “feminismo corporativo” e destacam suas ações no sentido de defender uma “atitude firme”
das mulheres para que se pudesse alcançar a igualdade de gênero.
Para Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019), o que aparece nessa vertente de feminismo
liberal é a concepção de “dominação com oportunidades iguais”, em que “a opressão no todo
social seja compartilhada igualmente por homens e mulheres da classe dominante” (p. 26). Para
além do mundo corporativo, essa mesma perspectiva aparece no “mundo das celebridades das
mídias sociais, que também confunde feminismo com ascensão das mulheres enquanto indiví-
duos” em que “o ‘feminismo’ corre o risco de se tornar uma hashtag do momento e um veículo
de autopromoção, menos aplicado a libertar a maioria do que a promover a minoria”
(ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 39).
A ênfase na ascensão na hierarquia de um pequeno número de mulheres deixa de con-
siderar as restrições socioeconômicas que tornam essas condições impossíveis para a maioria
das mulheres, ou seja, quem se beneficia são mulheres já privilegiadas do ponto de vista social,
cultural e econômico, sendo que “seu verdadeiro objetivo não é igualdade, mas meritocracia”
(ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 37). As autoras sintetizam da seguinte
maneira essa ideia de “oportunidades iguais de dominação”:

253
Encontro com Nancy Fraser e Elsa Dorlin, em La Parole Errante, Montreuil, 3 de junho de 2019.
258
Completamente compatível com a crescente desigualdade, o feminismo liberal tercei-
riza a opressão. Permite que mulheres em postos profissionais-gerenciais façam acon-
tecer precisamente por possibilitar que elas se apoiem sobre mulheres imigrantes mal
remuneradas a quem subcontratam para realizar o papel de cuidadoras e o trabalho
doméstico. Insensível à classe e à etnia, esse feminismo vincula nossa causa ao eli-
tismo e ao individualismo. (ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p.
38, grifos das autoras)

As contradições colocadas pelo feminismo liberal aparecem, na visão das autoras, na


derrota de Hillary Clinton na eleição de 2016, nos EUA, uma vez que existe um abismo entre
a ascensão de mulheres da elite e as condições de vida da maioria das mulheres. Em contrapo-
sição, Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019) propõem o manifesto como um caminho para se
pensar o que seria justiça de gênero – e não “oportunidades iguais de dominação” – e um “fe-
minismo para 99%”, afirmando que o fazem inspiradas pelo que vem emergindo da experiência
prática.
As autoras consideram que os movimentos feministas contemporâneos estão reinven-
tando a greve, citando como exemplos as paralisações em outubro de 2016, na Polônia, contra
a proibição do aborto, e o “Ni uma menos”, que começou na Argentina diante do assassinato de
Lucía Pérez e se espalhou por diversos países. Ao articular paralisação do trabalho com mar-
chas, manifestações, bloqueios e boicotes, renova-se o repertório de ações grevistas – que já foi
amplo no passado mas sofreu uma redução no período recente –, de maneira que “esse movi-
mento emergente inventou novas formas de greve e impregnou o modelo da greve em si com
um novo tipo de política” (ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 33, grifos
das autoras).
Essa nova onda, na visão das autoras, recoloca em questão o que é considerado “traba-
lho”, ampliando para além do trabalho assalariado de maneira que “o ativismo das mulheres
grevistas também bate em retirada do trabalho doméstico, do sexo e dos sorrisos”, o que possi-
bilita “tornar visível o papel indispensável desempenhado pelo trabalho determinado pelo gê-
nero e não remunerado na sociedade capitalista (ARRUZZA, BHATTACHARYA &
FRASER, 2019, p. 33, grifos das autoras). A esfera da reprodução social, dos trabalhos neces-
sários para sustentar seres humanos e comunidades, é colocada em cena.
Além disso, os movimentos não se concentram apenas no que se refere a salários, mas
também assédio e agressão sexual, justiça reprodutiva, sistema de saúde, educação, pensões e
habitação, colocando em cena o ataque às condições de vida da classe trabalhadora e articulando
reivindicações salariais e referentes ao local de trabalho com reinvindicações de aumento de
gastos públicos em serviços sociais. Por isso, as autoras destacam o potencial dessas novas
lutas. Como afirmam:

259
[...] a nova onda feminista tem potencial para superar a oposição obstinada e dissoci-
adora entre “política identitária” e “política de classe”. Desvelando a unidade entre
“local de trabalho” e “vida privada”, essa onda se recusa a limitar suas lutas a um
desses espaços. E, ao redefinir o que é considerado “trabalho” e quem é considerado
“trabalhador”, rejeita a subvalorização estrutural do trabalho – tanto remunerado
quanto não remunerado – das mulheres no capitalismo. (ARRUZZA,
BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 34)

Essas novas tematizações possibilitam evidenciar a discussão dos limites do feminismo


liberal, quando este se pauta, por exemplo, pelo combate em defesa da legalização do aborto –
sendo que, para as mulheres pobres, apenas a legalização do aborto significa pouco, pois aca-
bam não tendo acesso por não dispor de recursos – ou ainda quando a defesa de igualdade
salarial entre homens e mulheres pode representar apenas “igualdade na miséria” (ARRUZZA,
BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 42). Ao contrário, justiça reprodutiva passa por sa-
úde gratuita e universal, assim como o combate a práticas racistas e eugenistas, e a luta por
igualdade salarial só faz sentido se vier associada à demanda de pisos salariais, direitos traba-
lhistas, bem como outra organização do trabalho doméstico e de cuidado (ARRUZZA,
BHATTACHARYA & FRASER, 2019).
Iniciamos o capítulo com essas considerações para situar que, da mesma maneira que
as autoras se preocupam com uma apropriação “de energias rebeldes (incluindo energias femi-
nistas) para projetos que beneficiam predominantemente o 1%” (ARRUZZA,
BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 48), nós nos preocupamos com os riscos de que as
tematizações de questões de gênero e relativas às mulheres, no campo das teorizações psicana-
líticas, também possam acabar circunscritas a uma minoria.
Um primeiro ponto importante a interrogar seria quem é esse 1%. Antes de seguirmos
no texto, seria interessante colocar algumas questões. Qual é a renda mínima para que um bra-
sileiro esteja situado entre os 10% mais ricos da população? Que faixa de renda caracteriza a
“classe média” no Brasil? Os ricos deveriam pagar mais impostos no Brasil? Quem são esses
ricos?
Colocamos essas perguntas a partir de uma pesquisa realizada pela Oxfam em parceria
com o instituto Datafolha sobre a percepção que os brasileiros têm da desigualdade de renda254.
Pedro Menezes255 (2019), comentando os resultados obtidos na pesquisa, indica que metade
dos entrevistados acreditam ser necessária uma renda de 20 mil reais para estar entre os 10%

254
Pesquisa “Nós e as desigualdades”, disponível em https://oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasilei-
ras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/
255
“Os ricos precisam pagar mais impostos, mas ricos são os outros”, por Pedro Menezes em 08/04/2019 em
Gazeta do Povo. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/pedro-menezes/ricos-precisam-pagar-
mais-impostos/
260
mais ricos, quando, na realidade, basta uma renda de cerca de 5 mil. Além disso, chama a aten-
ção para a ausência de entrevistados que afirmam ser ricos, o que leva Pedro Menezes a comen-
tar que “nossos ricos, aparentemente, acham que são da classe média”. A maioria dos entrevis-
tados considera que os ricos deveriam pagar mais impostos, mas, como Pedro Menezes coloca
já no título do texto, a ideia que parece predominar é a de que “os ricos precisam pagar mais
impostos, mas ricos são os outros”.
De fato, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a Pes-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)256, em 2017, revelam que um rendimento
de 5214 reais colocava um brasileiro entre os 10% mais ricos, 9782 reais entre os 5% mais ricos
e 27213 reais entre o 1% mais rico. Cabe destacar que esses números se referem ao rendimento
médio do trabalho, ou seja, só entram nessa conta os brasileiros que estão trabalhando. Disso
resulta que, como não necessariamente todos os moradores de um domicílio trabalham, o ren-
dimento médio domiciliar per capita é menor do que os números citados, ou seja, esse rendi-
mento é frequentemente responsável pelo sustento de mais de uma pessoa. Dessa maneira, mui-
tas pessoas que se dizem de “classe média” estão entre os mais ricos, e nossa percepção sobre
a desigualdade de renda revela-se muito equivocada.
Se considerarmos alguém que precisa viver exclusivamente do rendimento do trabalho
(“exclusivamente” para diferenciar de situações como pessoas que contam com auxílio de fa-
miliares, que dispõem de patrimônio herdado, como imóvel próprio, por exemplo, de modo a
não precisar pagar aluguel etc.), quem são os brasileiros que podem arcar com os custos de uma
análise? Os 10% mais ricos? Talvez – com muito esforço, dependendo do custo de vida onde
mora – os 20%, considerando que um rendimento de 3314 reais coloca um brasileiro entre os
20% mais ricos? É fato que existem clínicas sociais e atendimento por valor social, mas então
“clínica social” e atendimento a “valor social” no Brasil seria para 80% da população?
Nosso objetivo aqui não é discutir o preço da análise, mas sim lançar a interrogação
sobre onde nós, psicanalistas, estamos situados. Quando o valor que é considerado “social”
refere-se à maioria da população, isso não diz algo sobre nós, psicanalistas, e sobre o lugar que
ocupamos? Existem diferentes combinados em relação a preço, existem analistas e analisandos
de diferentes classes sociais, não necessariamente todos pertencem a uma minoria privilegiada.
No entanto, essa dimensão de que aquilo que é considerado “clínica social” ou “valor social”

256
Relatório “Rendimento de todas as fontes 2017 – PNAD contínua”, do qual destacamos o gráfico na página 6
evidenciando as classes percentuais de pessoas em função do rendimento. Disponível em: https://biblio-
teca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101559_informativo.pdf

261
abarca a maioria dos brasileiros parece apontar para algo da ordem das relações sociais (rap-
ports sociaux), que não é negado pelo nível das relações interindividuais (relations sociales).
Um exemplo bastante esclarecedor, embora em outro contexto, foi citado por Jules Fal-
quet257: é possível, por exemplo, que alguém tenha a experiência individual de conviver com
uma mãe “mandona” e um pai que faz tudo para agradá-la, o que poderia levar a afirmar que
machismo não existe. Porém, esse é o nível das relações interindividuais (relations sociales),
que pode ir em sentido diferente das relações sociais (rapports sociaux) – justamente porque
existe singularidade e não se trata de generalização –, o que não significa que machismo não
exista. Ou seja, a nosso ver, o fato de existirem analistas e analisandos de diferentes classes
sociais (nível das relações interindividuais) não invalida a reflexão sobre a psicanálise como
algo para uma minoria (nível das relações sociais, evidenciado pelo fato de que aquilo que é
considerado “clínica social” ou “valor social” abarca a maioria).
Se isso diz algo sobre nossa posição, qual a percepção que nós, psicanalistas, temos da
realidade brasileira quando colocamos em cena debates sobre o valor da análise ou sobre ques-
tões contemporâneas, como gênero? Quando fazemos um movimento de aproximação em rela-
ção ao campo dos estudos de gênero, mas, em seguida, retornamos ao “não existe definitiva-
mente homem ou mulher”, ou quando traçamos aproximações entre esse campo e a psicanálise
pela via exclusiva de uma problematização das identidades, não estaríamos fazendo uma psi-
canálise para uma minoria privilegiada?
Colocamos a questão sobre o lugar ocupado pelos psicanalistas porque nossa preocupa-
ção é com o fato de as teorizações que vem sendo desenvolvidas no campo do gênero, se rele-
vantes em apontar para a singularidade que coloca em xeque concepções essencialistas de “ho-
mem” e “mulher”, talvez acabem deixando de fora a materialidade da opressão das mulheres.
Nossa preocupação em relação à psicanálise é, nesse sentido, a mesma que Picq (2010) expressa
quanto às teorizações feministas:

O feminismo hoje aparece singularmente clivado entre grupos militantes inscritos no


movimento social, que denunciam as persistentes desigualdades na vida profissional,
na vida política, na divisão de tarefas domésticas, na violência contra as mulheres... e
um pensamento teórico sofisticado e cada vez mais afastado das realidades vivencia-
das pelas mulheres. Esse radicalismo na teoria seduz jovens pesquisadores que bus-
cam transgredir o gênero, a desconstruir o sujeito “mulheres”, negando sua relevância
política e epistemológica por sua intersecção com outras relações de dominação e pela
fragmentação de subjetividades e solidariedades que se definem sob um referencial
identitário.258 (p. 12, tradução nossa)

257
Conferência de Jules Falquet, no dia 15 de fevereiro de 2019, no âmbito do ciclo “Feminisme Genre & Sexua-
lité” realizado na Universidade Paris Diderot.
258
“Le féminisme aujourd’hui apparaît singulièrement clivé entre des groupes militants inscrits dans le mouvement
social, qui dénoncent les inégalités persistantes dans la vie professionnelle, dans la vie politique, dans le partage
262
Da mesma maneira, existe o risco de que a psicanálise, com um “pensamento teórico
sofisticado”, acabe perdendo a dimensão das desigualdades, violências e demais formas de
opressão das mulheres? Ao longo da tese, procuramos destacar que não existe nada que carac-
terize a categoria “mulheres” senão a realidade da opressão. Neste capítulo, nosso objetivo é
procurar estabelecer articulações entre o que trabalhamos nos capítulos anteriores e trazer a
discussão mais especificamente para o campo da clínica e das teorizações psicanalíticas, con-
siderando que, também nesses campos, pode ocorrer uma reprodução de realidades de opressão.
Na seção 4.1, discutiremos formulações de psicanalistas que, a partir do relato de situa-
ções de violência que aparecem na clínica, propõem leituras em termos de “vitimização”. In-
terrogaremos essas perspectivas a partir da consideração de que existe uma distância entre, por
um lado, “condição de vítima” e, por outro, “vitimizar-se” ou “vitimização”. Como veremos,
Fassin e Rechtman (2007/2009) denunciam a leitura em termos de “vitimização” como uma
maneira de negar as realidades de injustiça, desigualdade e violência.
Essa negação de realidades de opressão pode se fazer presente no contexto da clínica e
de teorizações psicanalíticas, e vem sendo colocada em evidência a partir da busca por um
profissional “psi” orientada por critérios que buscariam garantir que tal reprodução não acon-
tecesse nos espaços da clínica. Na seção 4.2, abordaremos a busca por um profissional a partir
do pertencimento a categorias identitárias articulada a essa possibilidade de reprodução de si-
tuações de opressão nos contextos da clínica.
Nosso percurso de reflexão sobre os problemas colocados nas seções 4.1 e 4.2 nos leva
a pensar nos riscos de que a ênfase no que seria a especificidade da psicanálise acabe se fazendo
em detrimento de outras dimensões importantes de análise. Como afirma Fraser (2018a): “Uma
das tarefas mais importantes – e mais difíceis – para a teorização feminista é conectar análises
discursivas de significações de gênero com análises estruturais de instituições e economia po-
lítica” (p. 238). Consideramos que essa dificuldade se coloca também no caso de teorizações
psicanalíticas. O desafio que se coloca, a nosso ver, é articular dimensões que caracterizam a
especificidade de uma leitura psicanalítica com as dimensões de representações e discursos,
com dimensões “estruturais de instituições e economia política”.

des tâches ménagères, les violences envers les femmes... et une réflexion théorique sophistiquée et de plus en plus
coupée des réalités vécues par les femmes. Ce radicalism in theory séduit les jeunes chercheuses qui cherchent à
transgresser le genre, à déconstruire le sujet « les femmes », en niant sa pertinence politique et épistémologique
du fait de son entrecroisement avec d’autres rapports de domination et de la fragmentation des subjectivités et des
solidarités qui se définissent sur un référent identitaire.” (p. 12)
263
No sentido de procurar pensar a categoria “mulheres” levando em conta as articulações
entre essas diferentes dimensões, retomaremos o que apreendemos de perspectivas feministas
materialistas – discutidas no capítulo 2 – para circunscrever uma possibilidade de pensar essa
categoria “mulher(es)” a partir de posições nas relações sociais. Na seção 4.3, trabalharemos a
partir das contribuições de Chantal Mouffe (2010), que parte da consideração de um conjunto
de posições de sujeito inscritas em relações sociais (rapports sociaux), e de Linda Alcoff
(1988), que discute a conceitualização de “mulher” a partir da concepção de posicionalidade
(“positionality”).
Desde já, cabe pontuar por que buscamos delinear uma conceituação de “mulheres” a
partir de posições nas relações sociais – e não outras possibilidades, por exemplo, em termos
de identidade ou performatividade. A nosso ver, essa conceituação em termos de posições nas
relações sociais nos possibilita, ao mesmo tempo, pensar a materialidade da opressão, situar
opressões gênero-específicas – como apresentamos no capítulo 1 a partir de Fraser (2003a) – e
chamar a atenção para a importância de nos interrogarmos sobre nossa posição, como psicana-
listas, quando nos pronunciamos sobre qualquer temática.
Finalmente, na seção 4.4, retornaremos ao problema do reconhecimento versus redistri-
buição, com o qual iniciamos nossa tese e que retorna para seu fechamento, uma vez que con-
sideramos fundamental enfrentar a dificuldade colocada por problemas complexos buscando
considerar suas múltiplas dimensões – e não deslocando ou eclipsando determinados aspectos,
como Nancy Fraser aponta. Consideramos que o risco de deslocar ou eclipsar dimensões im-
portantes de análise também se coloca no âmbito de teorizações psicanalíticas, como buscare-
mos discutir neste capítulo.

4.1 A importância de pensar a “especificidade da psicanálise” articulada a outras di-


mensões de análise

No capítulo 2, apresentamos as interrogações lançadas por Laura Lee Downs (1993) a


Joan Scott e por Rosemary Hennessy (1994) a Judith Butler e procuramos articular, como ponto
em que essas duas contribuições se aproximam, os riscos de que estratégias voltadas para a
desconstrução acabem ficando restritas à dimensão das representações, que buscam descons-
truir. A partir de Bourdieu (1982), destacamos que a linguagem não se faz na abstração de
enunciados que afirmam em ato o que realizam, sem um conjunto de práticas sociais e institui-
ções reais. Considerando as articulações entre materialidade e discurso, propusemos que a

264
materialidade é discursivamente mediada assim como o discurso apenas pode produzir aquilo
que nomeia em determinados contextos, inscritos em uma materialidade.
Ainda naquele capítulo, pontuamos que não pretendíamos avaliar se esses questiona-
mentos eram de todo pertinentes, considerando o conjunto da obra de Joan Scott e de Judith
Butler, mas sim tomar essas interrogações para questionar a psicanálise. Neste capítulo, preten-
demos situar como tomamos essas interrogações em relação à psicanálise, a partir da conside-
ração de que, dependendo de como se coloca a proposta de “problematização de identidades”,
existe o risco de que tal proposta se faça na abstração dos discursos.
Também no capítulo 2, ressaltamos que muitos trabalhos situam aproximações entre
psicanálise e teoria queer a partir da “desconstrução de identidades”. Ao longo da tese, susten-
tamos que não há nada de “especificamente feminino” que constituiria uma identidade “mu-
lher”. No entanto, existe a materialidade da opressão que coloca problemas sobre os quais con-
sideramos importante falar e que faz com que a categoria “mulheres” não seja completamente
vazia de conteúdo.
Destacar esse ponto não significa desconhecer os riscos de essencialismo, mas sim con-
siderar que, se, por um lado, existe o risco de essencialismo, existe, por outro, o risco do uni-
versalismo. Na verdade, o suposto “universalismo” só se produz a partir de exclusões, como
procuramos destacar, desde o capítulo 1, com o discurso de Sojourner Truth e os múltiplos
pertencimentos, bem como com as perspectivas feministas materialistas, no capítulo 2, que as-
sinalam a imbricação de relações de poder.
Levando em conta esses riscos – essencialismo e universalismo –, a questão que se co-
loca, para nós, é se a proposta de “desconstrução” ou “problematização” de identidades não
estaria se tornando uma “resposta pronta”, à qual, por vezes, psicanalistas recorrem enfatizando
exclusivamente o que seria a suposta especificidade da psicanálise – seja esta a singularidade,
a diferença, a não-identidade, o Real, o que está para além da representação. Embora não se
negue a importância das dimensões da materialidade e do discurso, tais dimensões acabam apa-
recendo, a nosso ver, como algo que se “considera sem considerar”. Nesse sentido, interro-
gamo-nos se “desconstrução” ou “problematização” de identidades não estaria se tornando um
essencialismo na psicanálise.
Essa interrogação se produziu a partir de trabalhos de psicanalistas que propõem uma
leitura de situações de violência em termos de “vitimização”. Delinearemos essa discussão a
partir dos trabalhos de Vorsatz e Almeida (2017) e de Cerruti e Rosa (2008). O primeiro coloca
uma articulação entre entre o “vitimizar-se” e o contexto cultural, porém, a nosso ver, esse
contexto aparece meramente como um “pano de fundo”, o que coloca riscos de tomar o contexto
265
histórico sem efetivamente historicizar, como veremos. Deteremo-nos no segundo trabalho, que
aborda mais especificamente as mulheres. Nos dois casos, o fio condutor de nossa análise são
os riscos de uma reprodução de realidades de opressão no âmbito da clínica ou das teorizações
sobre a clínica.
Os psicanalistas Vorsatz e Almeida (2017), em trabalho sobre situações de suspeita de
violência sexual contra crianças e adolescentes, situam a “demanda de reparação” articulada à
“vítima como figura emblemática na contemporaneidade” (p. 674). Partindo de uma articulação
entre o “vitimizar-se” e um contexto cultural marcado pela importância da figura da vítima, os
autores interrogam se tratar-se-ia de “um novo sujeito”. Segundo seus termos: “tal é a relevância
dada à figura da vítima nas sociedades contemporâneas fazendo com que se possa interrogar se
estamos diante de um novo sujeito” (VORSATZ & ALMEIDA, 2017, p. 677).
O trabalho busca discutir a judicialização das relações familiares, partindo da conside-
ração de que “uma vez esvaziado o lugar da autoridade paterna259 na contemporaneidade, esta
passará a ser atribuída ao juiz” (VORSATZ & ALMEIDA, 2017, p. 677). Nesse contexto de
invasão do campo do direito sobre a esfera privada, emergiria a figura privilegiada da vítima,
que aboliria a dimensão da singularidade a partir do colocar-se como vítima do outro. Como
afirmam Vorsatz e Almeida (2017):

[...] esta é a representação social e o suporte privilegiado do sujeito excluído pelo


discurso da ciência, cujo caráter universalizante pretende abolir a dimensão do singu-
lar. Nesse sentido, a queixa seria o modo de expressão por excelência deste sujeito
excluído, sob a forma de sua vitimização por parte de outro. (VORSATZ &
ALMEIDA, 2017, p. 681)

Os autores consideram que a posição de vítima é assumida por um sujeito que demanda
reparação, mas que esta, como qualquer demanda, não pode ser satisfeita. O “sujeito fixado na
posição de vítima”, além de demandar reparação “ao preço da elisão do desejo”, não se respon-
sabilizaria e atribuiria toda a responsabilidade ao outro. Como afirmam Vorsatz e Almeida
(2017):

Sabemos que uma demanda de reparação pode se estender ao infinito sem que jamais
possa ser satisfeita. Um sujeito fixado na posição de vítima estará fadado a degradar
a dimensão do desejo à demanda, que é sempre demanda de amor e de reconheci-
mento, ao preço da elisão do desejo. Ou seja, na posição de vítima o sujeito recua e,
demitindo-se de sua parcela de responsabilidade, passa a outorgar a outro a responsa-
bilidade sobre sua vida, cabendo a este dizer qual é o seu – do sujeito – lugar. (p. 681)

259
Não desenvolveremos essa questão, que escapa ao escopo de nosso trabalho, mas não podemos deixar de apon-
tar o caráter problemático do discurso sobre um suposto “declínio da autoridade paterna”, que pode ser utilizado
para colocar questionamentos sobre novos arranjos familiares “em nome da psicanálise”.
266
Embora não seja este o foco de nosso trabalho, não podemos deixar de registrar nossa
perplexidade diante de tal apontamento: qual poderia ser a “parcela de responsabilidade” que
os autores enxergam em uma criança ou adolescente submetido a uma situação de violência
sexual? Assinalado esse questionamento, o que pretendemos interrogar a partir do texto, consi-
derando os objetivos de nosso trabalho, é se a ênfase na singularidade não se faria aqui em
detrimento de outras dimensões de análise.
Embora psicanalistas frequentemente retomem Freud para afirmar que “não há distinção
estrutural entre psicologia individual e social” (VORSATZ & ALMEIDA, 2017, p. 686), isso
não pode servir como “argumento de autoridade”. A nosso ver, não basta mencionar que, para
a psicanálise, não há distinção entre psicologia individual e social; diferentes dimensões de
análise precisam ser trabalhadas e evidenciadas em suas articulações. Também não basta fazer
alusão ao contexto histórico, é preciso estabelecer articulações. Como afirma Hennessy (1994)
– autora com quem trabalhamos no capítulo 2, a partir de suas críticas a Butler – não basta
“considerar” o contexto histórico; é preciso estabelecer articulações entre diferentes esferas e
níveis de análise. Segundo seus termos:

[...] considerar o contexto histórico é bem diferente de historicizar. A historicização


não estabelece conexão apenas nesse cenário local de recepção – entre uma prática
discursiva e outra – nem deixa de abordar as relações entre o discursivo e o não dis-
cursivo. A historização começa por reconhecer que a continuação da vida social de-
pende de sua (re)produção em várias esferas. Como um modo de leitura, ele rastreia
conexões entre essas esferas em vários níveis de análise – conectando arranjos con-
junturais particulares em uma formação social a outros de maior alcance.260
(HENNESSY, 1994, p. 40, tradução nossa)

Mas por que seria importante trabalhar a partir dessas articulações? A nosso ver, os
riscos de desconsiderá-las aparecem, no trabalho de Vorsatz e Almeida (2017), ao trazer para a
análise o fato de que a figura da vítima tem um lugar de destaque na cultura. O contexto histó-
rico é considerado, porém essa dimensão parece ficar apenas como um “pano de fundo” que
situa – ou que corrobora – aquilo que se discute no âmbito da “especificidade da psicanálise”.
Essa especificidade aparece, no trabalho de Vorsatz e Almeida (2017), com a dimensão do
desejo – em contraposição à demanda –, e também no que se refere às possibilidades oferecidas
pela escuta psicanalítica. Como afirmam Vorsatz e Almeida (2017):

260
“[...] considering historical context is quite differen from historicizing. Historicizing does not establish connec-
tion only in this local scene of reception – between one discursive practice and another – nor does it leave un-
addressed the relationshi between the discursive and the nondiscursive. Historicizing start by acknowledging that
the continuation of social life depends on its (re)production in various spheres. As a mode of reading, it traces
connections between and among these spheres at several level of analysis – connecting particular conjunctural
arrangements in a social formation to more far-reaching ones.” (HENNESSY, 1994, p. 40)
267
Ao psicanalista cabe, através da especificidade de sua escuta, possibilitar que os su-
jeitos concernidos por uma experiência de violência sexual – tanto a criança e o ado-
lescente como, no caso da violência intrafamiliar, seus pais e/ou familiares nela en-
volvidos – possam tomar a palavra e, ao fazê-lo, situar-se como sujeitos de sua
história, e não como meras vítimas dos acontecimentos – ou ainda seus algozes. Trata-
se, neste sentido, de uma aposta na efetividade da palavra, em especial na aposta de
um recolhimento da palavra por uma escuta. (p. 685)

Essa perspectiva sobre a especificidade da escuta psicanalítica se aproxima da adotada


pelas psicanalistas Cerruti e Rosa (2008) em trabalho que propõe “novas abordagens para a
violência de gênero” a partir da “desconstrução da vítima”. Deteremo-nos neste trabalho porque
aborda mais especificamente as mulheres e traz mais detalhamentos em relação à “desconstru-
ção da identidade de vítima”, que pretendemos discutir.
As autoras especificam que o “artigo parte do exame crítico dos fundamentos das políti-
cas públicas de assistência ao fenômeno da violência entre homens e mulheres no ambiente
doméstico, sobretudo naquilo que se refere às mulheres” (CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1047).
Trata-se, portanto, de um diálogo entre psicanálise e políticas públicas. Uma primeira questão
que colocamos é a seguinte: busca-se fazer incidir sobre a psicanálise o que se mostra no campo
das políticas públicas ou, ao contrário, levar incidências da psicanálise para o campo das polí-
ticas públicas?
Cerruti e Rosa (2008) partem de dados sobre a violência contra a mulher e consideram
que “o que se observa é que as atuais políticas públicas, em sua maioria, vêm contemplando a
questão da violência entre homens e mulheres pautada em uma visão dicotômica vítima/agres-
sor, e vêm priorizando uma assistência jurídica exclusiva às mulheres” (p. 1050). As autoras
começam, então, a indicar uma problematização de uma leitura vítima/agressor, baseada em
uma dicotomia e, logo em seguida, associam essa leitura ao movimento feminista, como pode-
mos observar na seguinte passagem:

Tal abordagem, advinda de importantes lutas políticas do movimento feminista a par-


tir da década de 1970, acaba por difundir uma interpretação generalizante para o
fenômeno, em uma perspectiva que define o masculino como agressivo e o feminino
como passivo, reproduzindo uma lógica adversarial que confere à mulher a posição
de vítima de circunstâncias desfavoráveis. (CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1050)

Essa abordagem dicotômica, que viria do movimento feminista, é articulada pelas auto-
ras a teorizações “iniciais” que explicariam a opressão a partir da dominação patriarcal ou a
partir da divisão do trabalho, em uma perspectiva marxista. Vejamos a citação:

As teorizações iniciais do conceito de gênero, no campo feminista, são as que ainda


hoje preponderam como norteadoras para a assistência prestada às mulheres que so-
frem violência. Tais teorizações buscam explicar a subordinação da mulher como
efeito da dominação patriarcal, ou ainda, em uma tradição marxista, como efeito da
divisão sexual do trabalho. São concepções que estabelecem uma linha de

268
continuidade entre a identidade e seu submetimento a identificações culturalmente
normativas, conferindo à cultura um caráter patologizante. (p. 1050)

Parece que o termo “iniciais” aqui não é tomado simplesmente no sentido de algo que
vem temporalmente antes, mas em uma acepção evolucionista que consideraria que essas teo-
rizações “iniciais” teriam sido “superadas” por teorizações mais recentes. Apenas para exem-
plificar, Jules Falquet – autora com quem trabalhamos no capítulo 2, a partir de teorizações que
abordam a divisão sexual do trabalho – é professora atualmente e encontra-se em plena ativi-
dade de produção intelectual. Não se trata de algo que existiu “no início” e hoje não existe mais
ou não tem mais relevância. Além disso, essas teorizações que situam a divisão sexual do tra-
balho não trabalham em torno da concepção de identidade – como vimos no capítulo 2, as
leituras materialistas que destacamos mostram-se críticas à concepção de identidade – nem
“conferem à cultura um caráter patologizante”.
Talvez a intenção das autoras tenha sido destacar algumas teorizações iniciais na pers-
pectiva marxista. De fato, foram tecidas críticas no interior dos estudos feministas a abordagens
marxistas ortodoxas, como nós também destacamos. Mas não seria mais interessante recorrer a
perspectivas com as quais concordamos – não necessariamente uma concordância integral, mas
pelo menos em parte – para estabelecer um diálogo? Se buscamos um diálogo entre psicanálise
e estudos feministas, mas o que resgatamos desse segundo campo são apenas as perspectivas
“iniciais”, das quais discordamos, que diálogo se pode estabelecer?
Passando às considerações a partir da psicanálise, as autoras afirmam que reconhecem
a gravidade do problema da violência contra as mulheres e que não negam os fatos narrados,
mas procuram interrogar como esses discursos aparecem. Nas palavras de Cerruti e Rosa
(2008):

Não pretendemos aqui colocar em dúvida a veracidade factual de tais relatos, mas sim
apontar a maneira particular pela qual se arma essa narrativa e as conseqüências disso
para as próprias mulheres. Isto porque, ao falarem sempre de si mesmas através das
cenas nas quais surgem vitimizadas, elas acabam por encobrir qualquer outro traço de
sua singularidade. É terrível ser vítima de um infortúnio, como também o é agir para
reiterar uma situação tão danosa. (p. 1057)

É terrível “agir para reiterar uma situação tão danosa”? Quem estaria reiterando? Só
poderiam ser as mulheres, afinal, “É terrível ser vítima de um infortúnio, como também o é agir
para reiterar uma situação tão danosa” (p. 1057). Destacamos esse aspecto sobre o “reiterar uma
situação tão danosa” para colocar, desde já, a problematização que pretendemos delinear, mas,
antes de retomar e detalhar nossas interrogações, é preciso situar as proposições das autoras.
Um primeiro aspecto importante a destacar é que Cerruti e Rosa (2008) se propõem a discutir

269
a “construção da mulher como vítima” a partir de duas perspectivas: a dimensão subjetiva, que
buscam abordar no âmbito da psicanálise, e o discurso jurídico. Segundo as autoras:

A proposta que será perseguida ao longo deste artigo é a de elucidar o processo da


construção da mulher como vítima por dois ângulos. De um lado abordamos, com os
instrumentos da psicanálise, a posição subjetiva da mulher, especialmente através dos
conceitos de eu, eu ideal, narcisismo, repetição, masoquismo fundamental e impli-
cação subjetiva. De outro lado visamos apontar o modo pelo qual o discurso jurídico
articula-se à dimensão subjetiva, contribuindo para a perpetuação da condição vitimi-
zada da mulher. (CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1055)

No que se refere ao discurso jurídico, Cerruti e Rosa (2008) afirmam que “trata-se de
um discurso que opera na gramática do registro do imaginário” (p. 1069). A esse registro do
imaginário, as autoras contrapõem a perspectiva psicanalítica, segundo a qual “o sujeito deve
ser convocado a se responsabilizar por seu desejo, desbancando o sujeito suposto saber do dis-
curso jurídico e assumindo a falta, o vazio no qual supunha haver um saber do Outro” (p. 1071).
Existe, portanto, no trabalho de Cerruti e Rosa (2008), a proposta de articular o que seria espe-
cífico da psicanálise com outras dimensões de análise. No entanto, a nosso ver, a questão que
se coloca é se existe efetivamente uma articulação, uma vez que ocorre ao recurso ao que não
é específico da psicanálise, associa-se ao imaginário, e afirma-se que a psicanálise vai tratar de
outra coisa.
Tendo pontuado esse aspecto, destacamos que não pretendemos nos alongar na discus-
são sobre o discurso jurídico, mas sim na discussão estabelecida pelas autoras no âmbito do que
denominam “dimensão subjetiva”, uma vez que é nessa perspectiva que as autoras colocam
uma problematização da identidade de vítima, que nos interessa discutir. Cerruti e Rosa (2008)
procuram delimitar o que poderia ser uma “compreensão psicanalítica” da situação de violência
contra a mulher e propõem, então, uma reflexão sobre essa temática a partir de uma problema-
tização da categoria “identidade”. Segundo seus termos:

Na busca por uma compreensão psicanalítica de como se pode considerar a construção


da vítima do ponto de vista subjetivo, temos como ponto de partida a radicalidade do
questionamento que a psicanálise realiza quanto à solidez do conceito de identidade.
A concepção da realidade psíquica implica o deslocamento de um ser naturalizado
para um ser de desejo, motor de toda afetividade humana. A identidade, para a psi-
canálise, é entendida como uma ficção necessária à ação. Uma vez diluídas as
exigências pragmáticas a identidade não pode mais ser tomada como uma certeza,
mas sim como uma interrogação. Sendo assim, o que a psicanálise coloca em
evidência é a impossibilidade de que se possa estabelecer uma verdade última acerca
do sujeito. Daí o risco da tentativa de definir uma identidade específica de vítima às
mulheres, estabelecendo um discurso socialmente compartilhado, que limita em muito
a capacidade de ação das mulheres que vêm sofrendo violência. (CERRUTI & ROSA,
2008, p. 1058-9)

270
Podemos observar aqui muito do que discutimos no capítulo 1 ao abordar a problema-
tização da identidade a partir da psicanálise – o assinalamento de “identidade” como uma es-
pécie de unificação imaginária – e, nesse caso em particular, trata-se da identidade de “vítima”.
Se reconhecemos e destacamos a importância dessa problematização, como fizemos ao longo
da tese, gostaríamos, no entanto, de levantar um primeiro questionamento: a “problematização
das identidades” não estaria se tornando um essencialismo na psicanálise? Como já ressaltamos
diversas vezes ao longo da tese, é válido apontar o caráter ficcional de identidades e indicar
uma problematização, no entanto, essa não estaria se tornando aquela saída que encontramos
para tudo? Parece haver uma tendência entre alguns psicanalistas de, diante de qualquer pro-
blema, por mais complexo que seja, a “resposta” passa pela “problematização das identidades”.
Não seria o caso de questionar, como faz Rubin (1975/2017), “por que os analistas não defen-
dem novas disposições, em vez de racionalizar as antigas?” (p. 49).
Busca-se uma leitura não essencialista e crítica de uma dicotomia vítima/agressor, e,
posteriormente, discute-se que o discurso apresentado pelas mulheres seria “fixo” e não reco-
nheceria o que existe de falha no parceiro. De acordo com Cerruti e Rosa (2008): “Essas for-
mulações podem auxiliar uma melhor compreensão do que identificamos como a fixidez em
uma cena de caráter acusatório, presente no discurso vitimado das mulheres, que impede que o
companheiro seja reconhecido como parceiro, falível e impotente” (p. 1061).
Falíveis e impotentes somos todos, mas parece-nos que aqui corre-se o risco de deslocar
a condição de “impotente”, que deixa de estar articulada a quem foi a vítima da violência para
caracterizar quem a praticou. Não estaríamos caindo em outro essencialismo? Parte-se de uma
crítica à dicotomia, mas parece que se chega a outras dicotomias. Mais à frente no texto, outro
trecho coloca uma polarização: “A relação das mulheres com as cenas que relatam parece obe-
decer a essa lógica que oscila entre, de um lado, a posição de se fazer objeto, submetendo-se ao
homem [...] e, de outro, uma posição adversarial e ressentida que pretende punir e eliminar
quem lhes causou tanto mal” (CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1063). Ou seja, parte-se da crítica
à condição de vítima associada às mulheres em situação de violência para se chegar pratica-
mente em seu oposto, igualmente essencialista: estaríamos diante de um discurso “acusatório”
de mulheres que pretendem “punir e eliminar quem lhes causou tanto mal”.
Buscando como a psicanálise poderia contribuir para a compreensão dessa situação, as
autoras propõem, então, que o discurso de vitimização remete ao narcisismo e ao masoquismo:

A posição de vítima pode ser entendida como uma exaltação narcísica do eu, uma
tentativa de preservar um projeto soberano do eu. E é desse ponto de vista, na figu-
ração obscena e fascinante da vítima, que podemos articular os desígnios do ideal do
eu como operador permanente do masoquismo primordial, e que carrega todas as suas
271
terríveis conseqüências: recusa à cura e compulsão à repetição, ou, mais especifica-
mente no caso desta reflexão, a monotonia discursiva do relato de uma cena.
(CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1061-2)

É importante ressaltar, como fica claro mais à frente no texto, que as autoras não asso-
ciam o masoquismo a um gozo na situação de violência em si, ou seja, problematizam a expli-
cação de que “mulher gosta de apanhar”:

Cabe ressaltar que o fenômeno do masoquismo, em sua condição constituinte e estru-


turante, refere-se a uma modalidade de relação que o sujeito irá estabelecer com o
outro, uma vez que o masoquismo se inscreve no cerne da constituição do campo
fantasístico no qual o sujeito irá operar suas relações. Trata-se de uma distinção fun-
damental para a reflexão que propomos, pois interroga incisivamente a versão cor-
rente de que a mulher é vítima de violência por parte dos homens porque, ao fim e ao
cabo, “gosta de apanhar”. [...] Mais ainda, deslocamos a banalização de tomar o ato
de apanhar como masoquismo, no sentido popular do termo, para focar no discurso
sobre o ato: o discurso da vítima como alienante e perversor da condição desejante.
(CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1067)

Ou seja, o masoquismo é articulado ao discurso de vitimização. Não se trata de afirmar


que as mulheres “gostam de apanhar”; o masoquismo não é articulado a essa esfera, mas à
repetição do discurso de vitimização.
Problematizar dicotomias e essencialismos é importante; as autoras do texto partem de
uma questão que é pertinente, assim como é louvável questionar o discurso de que “mulher
gosta de apanhar”. No entanto, parte-se de uma problematização do essencialismo e chega-se,
a nosso ver, a outras formulações igualmente essencialistas. Não seria essencialista inferir o
masoquismo da repetição do relato sobre a situação de violência? A repetição não poderia ser
simplesmente a tentativa de elaboração diante de uma situação de violência? Além disso, não
repetimos todos nós? Por que a repetição das mulheres em situação de violência chama parti-
cularmente a atenção?
Parece-nos que o objetivo das autoras é buscar explicitar o que seria a especificidade da
psicanálise: como traçar uma “compreensão psicanalítica” das mulheres em situação de violên-
cia. Nesse artigo, encontramos o recurso a conceitos da psicanálise que são levados para o
campo das políticas públicas. Ou seja, retomando nossa questão inicial, busca-se as incidências
da psicanálise para o campo das políticas públicas, e não as incidências desse campo para a
psicanálise. Talvez se partíssemos das incidências do campo das políticas públicas (ou dos fe-
minismos, ou de outros campos) para a psicanálise, poderíamos encontrar caminhos não essen-
cialistas para discutir as incidências da psicanálise para esses outros campos.
Consideramos que abordar o que seria “específico da psicanálise” sem uma articulação
com outras dimensões – articulação para a qual o diálogo com campos estrangeiros à psicanálise
poderia contribuir – coloca os riscos de se apresentar de maneira a “levar verdades” da

272
psicanálise para outros campos do conhecimento. Como discutimos no capítulo 3, o risco é que
a psicanálise seja lida como discurso de mestria, afastando-se do discurso analítico e produ-
zindo supostas verdades universais, como propõe Patricia Elliot (1991).
Quando discutem “possibilidades de saída”, as autoras igualmente delineiam uma dis-
cussão totalmente circunscrita à psicanálise:

Como psicanalistas acreditamos que é a palavra aquilo que oferece uma possibilidade
de saída de uma relação dual imaginária: o campo simbólico, ao aprisionar o ima-
ginário a uma cadeia metonímica infindável, é o que gera condições para que o objeto
do desejo possa vir a assumir as mais variadas formas. Isso evidencia a importância
de que se busque uma abordagem para o fenômeno da violência de gênero na qual a
palavra recupere seu caráter polissêmico e cambiante e, nesse sentido, em nada atre-
lada ao empirismo da imagem. (CERRUTI & ROSA, 2008, p. 1071)

Não temos a pretensão de discutir a violência contra as mulheres neste trabalho, justa-
mente porque não temos dúvidas de que se trata de um fenômeno extremamente complexo, em
uma sociedade tão desigual e injusta como a nossa. Apenas para situar algumas considerações,
em uma busca na internet, encontramos notícias como: “Suspeito de feminicídio mandou áudio
para ex-mulher e sugeriu volta: ‘Antes que seja tarde’”261, “RJ: Jovem é torturada, estuprada e
ameaçada de morte pelo ex”262, “Ex-companheiro é condenado a 28 anos de prisão por matar
filhos e atear fogo na mulher”263. Em reportagem da “Folha de São Paulo”, encontramos que,
em 71% dos casos de vítimas de feminicídio, o atual ou ex-companheiro aparece como suspeito,
sendo que o inconformismo com o término do relacionamento é citado como motivo para a
agressão em 18% dos casos. A reportagem destaca que “a separação é um dos principais fatores
de risco para o feminicídio”264.
O que pretendemos destacar é que o temor de acontecer algo ainda mais grave consigo
mesma ou com os filhos não deve ser negligenciado entre os fatores que podem levar uma
mulher a continuar em um relacionamento em que está sendo vítima de violência – temor que
se revela bastante real em nosso contexto brasileiro. Em situações como essa, será que “relação
dual imaginária” é suficiente para pensar uma relação concreta de opressão? Será que a “possí-
vel saída” proposta pelas autoras dá conta do problema? A saída proposta passa pelo discurso,
pela palavra, pelo que pode ser elaborado em análise. A crítica à “virada das coisas para as

261
Por EPTV 1 em 07/11/2019, disponível em https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/11/07/sus-
peito-de-feminicidio-mandou-audio-para-ex-mulher-e-sugeriu-volta-antes-que-seja-tarde.ghtml
262
Por Isto é em 21/11/19, disponível em https://istoe.com.br/jovem-e-torturada-ameacada-de-morte-xingada-es-
tuprada-e-roubada-pelo-ex/
263
Por Folha de São Paulo em 04/09/19, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/ex-com-
panheiro-e-condenado-a-28-anos-de-prisao-por-matar-filhos-e-atear-fogo-na-mulher.shtml
264
Por Folha de São Paulo em 08/03/2019, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/71-
dos-feminicidios-e-das-tentativas-tem-parceiro-como-suspeito.shtml
273
palavras”, que discutimos no capítulo 2, não caberia aqui? Não teríamos aqui uma “problema-
tização de identidades” na abstração dos discursos? Não seria uma “aposta” grande demais
acreditar no “poder” da palavra como “possível saída” para a violência contra as mulheres? Não
seria necessário também considerar as condições materiais?
Nesse ponto, um possível questionamento seria pontuar que um psicanalista não pode
fazer nada em relação a condições materiais. No entanto, quando o psicanalista, diante de uma
situação tão complexa quanto a violência contra as mulheres, vê no trabalho de análise uma
possível “saída de uma relação dual imaginária”, o risco é enfatizar a singularidade em detri-
mento de condições materiais e de relações sociais específicas.
Como procuramos apontar ao longo de nosso trabalho, consideramos importante procu-
rar articular essas dimensões. No intuito de evidenciar os riscos que se colocam, a nosso ver,
quando não existe essa articulação, recorreremos a um outro exemplo. A psicanalista Irene Me-
ler (2018) refere a seguinte situação:

[...] um paciente homossexual, que comentou que, antes de fazer análise comigo, ti-
nha ido a um psicanalista da Associação Psicanalítica Argentina, que lhe propôs fazer
três sessões semanais com altos honorários. Esse paciente disse ao psicanalista que
não tinha tanto dinheiro para fazer um tratamento assim e nenhuma das pessoas que
ele conhecia teria dinheiro para fazer um tratamento tão caro. Então, o analista lhe
disse: “Se você continuar assim nunca vai conhecer pessoas que tenham dinheiro para
fazer um tratamento tão caro” (p. 141)

Da maneira como compreendemos, a leitura de Meler (2018) sobre essa fala do analista
articula saúde mental e boa posição social, interpretando o “continuar assim” no sentido de
saúde mental, ou seja, se o analisando “continuasse assim”, sem saúde mental, não conseguiria
alcançar posições sociais mais altas. Outra possibilidade seria compreender “continuar assim”
como “continuar se recusando a pagar um tratamento tão caro”. De todo modo, existe um ques-
tionamento do analista diante da fala do analisando sobre não ter condições de arcar com aque-
les custos – e acrescentando que seus conhecidos também não, ou seja, apontando que não se
trata de algo meramente individual.
Consideramos que existem duas possibilidades de leitura do questionamento feito pelo
analista. Se o pressuposto dessa fala é de que o analisando teria sim condições materiais para
pagar e estaria se recusando (ou seja, o analista não acredita que o analisando não teria condi-
ções de arcar com os custos), essa fala aponta para o pertencimento do analista a uma classe
privilegiada, que muitas vezes não tem sequer noção de que para muitos é objetivamente im-
possível pagar “um tratamento tão caro”. Embora o analisando assinale que pessoas do seu
círculo de convivência não poderiam arcar com esses custos, parece não haver sequer a consi-
deração de que existem pessoas que objetivamente não poderiam pagar. Esse exemplo acontece
274
na Argentina, mas parece bem plausível no Brasil – relembremos aqui que iniciamos este capí-
tulo com o texto sobre a percepção equivocada das desigualdades sociais em nosso país.
Se, ao contrário, o analista parte do pressuposto de que, de fato, o analisando não tem
condições materiais para arcar com aqueles custos, a fala do analista pode estar articulando, de
alguma forma, a implicação subjetiva do paciente em “não ter dinheiro para um tratamento tão
caro”. Ou seja, a ideia seria a de que as pessoas poderiam sim ganhar mais e pertencer ao círculo
de pessoas que “têm dinheiro para um tratamento tão caro” – se não pertencem é porque, de
alguma maneira, escolhem “continuar assim”. Em qualquer das duas leituras, é assustador o
distanciamento desse tipo de psicanálise em relação à realidade socioeconômica, em relação a
condições materiais completamente desconsideradas diante de um discurso que, ao suposta-
mente assinalar implicação subjetiva, corrobora um discurso de meritocracia.
Diante disso, o que pretendemos assinalar é que, efetivamente, não se trata de supor que
o psicanalista teria de “resolver” questões sociais, materiais. Mas isso não justifica que o psi-
canalista deixe de levar tais dimensões em consideração sob a justificativa de focalizar o que
seria específico da psicanálise. Ao proceder dessa maneira, o psicanalista pode acabar corrobo-
rando uma realidade injusta e reproduzindo um discurso de opressão. Parece-nos que o primeiro
passo, então, é reconhecer a dimensão da opressão, o que nos leva de volta à discussão com a
qual iniciamos esta tese.
Reconhecendo a dimensão da opressão, consideramos importante que a ênfase no que
seria a especificidade da psicanálise não se faça em detrimento de outras dimensões de análise.
Como apresentamos no capítulo 3, Freud, em diferentes momentos, reconhece e reproduz a
realidade da opressão, e suas contradições parecem evidenciar o esforço de, diante da comple-
xidade da realidade, procurar levar em conta suas múltiplas dimensões. Talvez essas contradi-
ções sejam preferíveis às “certezas” associadas a reivindicações contemporâneas de que nos
limitemos à “especificidade da psicanálise”.
Para evidenciar os riscos que se colocam, a nosso ver, a partir da colocação em cena da
“especificidade da psicanálise” desarticulada de outras dimensões de análise, faremos recurso
a alguns aspectos discutidos por Didier Fassin265 e Richard Rechtman266 no livro “L'empire du
traumatisme: enquête sur la condition de victime”, publicado em 2007 e no qual os autores

265
Didier Fassin é antropólogo e sociólogo, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS),
fundador e coordenador do Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux (IRIS). Sua primeira
área de formação e atuação profissional foi a medicina, e, ao atuar como médico na Índia e na Tunísia, decidiu
estudar sociologia e antropologia (FASSIN, JAIME, & LIMA, 2011).
266
Richard Rechtman é psiquiatra e antropólogo, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Soci-
ales (EHESS) (RECHTMAN, 2011), membro do Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux
(IRIS) (Informações disponíveis em https://www.reseau-terra.eu/auteur38.html).
275
traçam uma genealogia da “condição de vítima”. Chegamos ao trabalho de Fassin e Rechtman
(2007/2009) a partir de artigo da psicanalista Fernanda Canavêz (2015), que faz referência aos
autores com o objetivo de, a partir da “produção social do trauma” e do “reconhecimento moral
das vítimas” (p. 40), investigar o trauma a partir da figura da vítima.
No recurso que faremos a esses autores, não nos deteremos na discussão sobre o trauma,
uma vez que uma análise detalhada dessa concepção se afastaria de nossa temática. Partiremos
de algumas considerações específicas que, a nosso ver, são relevantes no sentido de lançar
questões à psicanálise no que se refere aos objetivos de nosso trabalho. Considerando que uma
análise mais detalhada do trabalho de Fassin e Rechtman (2007/2009) fugiria aos nossos obje-
tivos, recorreremos a algumas de suas contribuições, sobretudo a partir da pontuação de uma
distância que se coloca entre, por um lado, “condição de vítima” e, por outro, “vitimizar-se” ou
“vitimização”.
Com relação à “condição de vítima”, Fassin e Rechtman (2007/2009), fundamentados
em Foucault, recorrem à formulação de “produção de verdade” para evidenciar articulações
entre suas modalidades de produção e os diversos arranjos que possibilitam com que determi-
nados discursos sejam consideradas relevantes e regulados. Interrogando novos modos de pro-
dução de verdade, os autores buscam explorar as maneiras pelas quais o “trauma”267 foi produ-
zido268 e o lugar que este ocupa nas sociedades contemporâneas. Com isso, buscam delimitar o
que denominam “condição social de vítima” em um contexto de normas morais em que são
reconhecidos como “vítimas” aqueles submetidos a experiências dolorosas ou traumáticas. A
partir da concepção de que eventos trágicos e dolorosos deixam marcas vistas como “cicatrizes”
– em analogia com o que se passa no corpo –, passa a ser considerado legítimo demandar repa-
ração nessas circunstâncias.
É importante destacar que não se trata aqui de fazer equivaler este trabalho com aqueles
de Vorsatz e Almeida (2017) e de Cerruti e Rosa (2008), no âmbito da psicanálise. Na análise
proposta por Fassin e Rechtman (2007/2009), a “condição de vítima” se refere àqueles que,
diante de uma situação tida como “traumática”, enunciam-se como vítimas, com o objetivo de

267
Em relação à concepção de “trauma”, Fassin e Rechtman (2007/2009) apontam que existe a concepção no
campo dos saberes “psi” (psiquiatria, psicologia e psicanálise), que os autores aproximam do sentido de “choque
psicológico”. No entanto, no âmbito das concepções sociais (que circulam na mídia, por exemplo), a concepção
passou a ser usada de maneira ampla, no sentido de “evento trágico”. Os autores pontuam, ainda, que muitos
discursos mudam de uma concepção para a outra sem marcar a distinção. Não abordaremos aqui a discussão psi-
canalítica sobre essa temática, nem distinções entre trauma e traumatismo, porque fugiria ao escopo do trabalho.
268
Nesse processo, indicam a participação de duas ordens de fatores: uma relacionada à história da ciência e da
medicina, com a importância da categoria de “estresse pós-traumático” e outra relacionada a uma “antropologia
de sensibilidades e valores”268 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 6, tradução nossa). Essas duas dimensões
são articuladas, uma vez que os autores atribuem a emergência da categoria de “estresse pós-traumático” a um
contexto de convergências entre saberes “psi” e movimentos sociais de demandas de direitos.
276
demandar reparação, por exemplo. Trata-se, portanto, de uma enunciação no campo político, o
que é diferente da mobilização da condição de vítima no âmbito da clínica, colocada em cena
pelos psicanalistas Vorsatz e Almeida (2017) e Cerruti e Rosa (2008). Além disso, a interroga-
ção sobre a “condição de vítima” em Fassin e Rechtman (2007/2009) é articulada a uma dis-
cussão sobre trauma e traumatismo, concepções que, como já mencionamos, exigiriam uma
análise cuidadosa, o que foge ao escopo de nosso trabalho.
Para chegar à formulação de que, a partir da “condição de vítima”, não se deriva auto-
maticamente “vitimizar-se” ou “vitimização”, é importante destacar os riscos de, ao analisar-
mos economias morais, cairmos na “armadilha da moralização” em nossas próprias teorizações.
Ao contrapor o contexto contemporâneo a contextos anteriores – por exemplo, os soldados que
retornaram da Primeira Guerra Mundial com sequelas traumáticas e que eram alvo de suspeita
–, essa pontuação poderia levar à compreensão de que Fassin e Rechtman (2007/2009) estariam
sustentando que, nas sociedades contemporâneas, não mais se levantam suspeitas sobre o relato
das vítimas. No entanto, não é essa a perspectiva defendida pelos autores, o que fica bastante
claro em uma entrevista em que Richard Rechtman (2008) fala sobre o livro. Questionado se
poderíamos afirmar o fim da suspeita em relação àqueles que recorrem ao poder público de-
mandando proteção, Rechtman (2008) responde: “Claro que não, a suspeita não desapareceu e
esse desaparecimento não está perto de acontecer”269 (RECHTMAN, 2008, p. 91, tradução
nossa).
Rechtman (2008) especifica que o que eles buscaram foi evidenciar um deslocamento
dessa suspeita, comparando os anos 1970-80 e as sociedades contemporâneas. Antes, até os
anos 1970-80, a existência de uma hipótese traumática já era suficiente para colocar a suspeita
de que o indivíduo seria usurpador ou covarde, enquanto nas sociedades contemporâneas, com
a concepção de “transtorno de estresse pós-traumático”, a concepção de trauma não é colocada
em suspeita. O que marca o deslocamento da noção de suspeita entre esses dois momentos é
que, no primeiro momento “o traumatismo não é não é pensado como sendo suscetível de afetar
a todos. Portanto, a questão que se coloca é saber quem são esses homens ou mulheres que, ao
contrário dos outros, mostrarão sinais traumáticos”270 (RECHTMAN, 2008, p. 91, tradução
nossa). Isso não significa que hoje não se levantem suspeitas de que os que se queixam pode-
riam ser usurpadores, como fica evidenciado na seguinte passagem:

269
“Bien sûr que non, le soupçon n’a pas disparu et il n’est pas près de le faire.” (RECHTMAN, 2008, p. 91)
270
“[...] le traumatisme n’est pas pensé comme étant susceptible de toucher tout le monde. La question est donc
bien de savoir qui sont ces hommes ou ces femmes qui, contrairement aux autres, vont présenter des signes trau-
matiques.” (RECHTMAN, 2008, p. 91)
277
Permanece que aqueles que se queixam podem, no entanto, ser usurpadores, ou seja,
pessoas que gostariam de fazer acreditar que estão traumatizadas. A suspeita simples-
mente se deslocou: não é mais a categoria [trauma] que leva o opróbrio social, mas os
indivíduos isolados, mesmo que sejam numerosos. Essa é uma diferença maior,
mesmo que, no nível dos resultados para os indivíduos, não mude muita coisa, pelo
contrário, uma vez que novas hierarquias de traumatizados e humanidade são cons-
truídas a partir dessa nova linguagem do evento ou da emoção coletiva.271
(RECHTMAN, 2008, p. 91, tradução nossa).

Esse aspecto destacado nos parece fundamental, porque a preocupação com o caráter
normativo veiculado pela concepção de “vitimização” é fundamental na crítica tecida pelos
autores. Fassin e Rechtman (2007/2009) questionam se é possível escapar inteiramente de uma
leitura normativa e respondem negativamente, afirmando que não é possível haver um ponto
de vista apolítico nem completamente separado da moral. No entanto, é preciso cuidado com
os riscos da moralização: “a questão é analisar essas economias morais sem cairmos nós mes-
mos na armadilha da moralização”272 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279, tradução
nossa). Por isso, os autores destacam que a ênfase de suas análises não recai sobre o julgamento
das vítimas ou da validade de suas causas, mas sim sobre “as maneiras pelas quais as vítimas e
suas causas são produzidas”273 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 280, tradução nossa).
Nessa perspectiva de levar em conta os riscos de reproduzirmos, em nossas teorizações,
a “armadilha da moralização”, Fassin e Rechtman (2007/2009) consideram que, se a figura da
vítima é fundamental para a compreensão da sociedade contemporânea, o mesmo não vale para
a concepção de “vitimização”. Os autores se contrapõem a leituras que analisam aqueles “que
transformam suas demandas em reclamações” em termos de uma “tendência à vitimização”274
(FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 278, tradução nossa).
Com relação ao termo “vitimização”, os autores colocam uma nota de rodapé especifi-
cando que, no contexto francês, foi inicialmente utilizado, em estudos sobre violência e crime,
de maneira mais objetiva e menos impregnada de juízos de valor: “simplesmente para descrever
o fato de se considerar vítima de um fenômeno”275 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p.

271
“Reste que ceux qui s’en plaignent peuvent néanmoins être des usurpateurs, c’est-à-dire des gens qui voudraient
faire croire qu’ils sont traumatisés. Le soupçon s’est simplement déplacé: ce n’est plus la catégorie qui supporte
l’opprobre sociale, mais des individus isolés même s’ils sont nombreux. C’est une différence majeure, même si au
niveau des résultats pour les individus, cela ne change pas grand-chose, au contraire même, puisque de nouvelles
hiérarchies de traumatisés et d’humanité sont néanmoins construites à partir de ce nouveau langage de l’événement
ou de l’émotion collective.” (RECHTMAN, 2008, p. 91)
272
“[...] the issue is to analyse these moral economies without falling ourselves into the trap of moralization”
(FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279)
273
“[...] the ways in which the victims and their causes are produced” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p.
280)
274
“[...] those who transform their demands into complaints, it has become usual to mock the tendency towards
‘victimization’” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 278)
275
“simply to describe the fact of considering oneself victim of a phenomenon” (FASSIN & RECHTMAN,
2007/2009, p. 278)
278
278, tradução nossa). Posteriomente, adquiriu uma conotação negativa, que se evidencia, por
exemplo, em trabalhos que julgam a “vitimização” como “obsessão contemporânea”. Os auto-
res se contrapõem a leituras que derivam automaticamente “vitimização” de “condição de ví-
tima”, como fica evidente em:

Nós, no entanto, rejeitamos essa leitura, que é simplesmente uma maneira sofisticada,
mas clássica, de negar a injustiça, desigualdade e violência. Em nossa opinião, esse
tipo de análise apenas adiciona uma avaliação moral ao estudo de nossa economia
moral, sugerindo que algumas vítimas são, do ponto de quem fala, mais legítimas que
outras.276 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 278, tradução nossa)

A partir dessa citação de Fassin e Rechtman (2007/2009) e considerando os objetivos


de nosso trabalho, gostaríamos de destacar que existe uma distância entre, por um lado, “con-
dição de vítima” e, por outro, “vitimizar-se” ou “vitimização”. Lembramos que não pretende-
mos fazer equivaler as proposições de Fassin e Rechtman (2007/2009) às de Vorsatz e Almeida
(2017) e de Cerruti e Rosa (2008), uma vez que os trabalhos dos psicanalistas referem-se ao
contexto da clínica, diferente do contexto político colocado em cena por Fassin e Rechtman
(2007/2009). O que nos parece importante é, sem deixar de levar em conta os distanciamentos
entre campos do conhecimento e de análise que não podem ser tomados como equivalentes,
interrogar os riscos de derivar automaticamente “vitimização” a partir de “condição de vítima”.
A partir da consideração, evidenciada por Fassin e Rechtman (2007/2009), dessa dis-
tância entre “vítima” e “vitimização”, retornamos ao trabalho de Cerruti e Rosa (2008) e nos
interrogamos se a própria definição de “vítima”, proposta pelas autoras, não estaria estabelecida
em um limite tenso entre “vítima” e “vitimizar-se”. De acordo com as autoras: “Tomando a
definição de vítima em um aspecto mais genérico, podemos identificá-la como a condição da-
quela que atribui a outro a responsabilidade por aquilo que a faz sofrer” (CERRUTI & ROSA,
2008, p. 1057). No dicionário online Michaelis277, são oferecidas sete diferentes acepções para
a palavra “vítima”278 e em nenhuma delas existe a conotação de “atribuir a outro a responsabi-
lidade por aquilo que a faz sofrer”. Com isso não pretendemos negar que a definição das autoras

276
“We, however, reject this reading, which is ultimately simply a sophisticated but classic way of denying injus-
tice, inequality and violence. In our view, this type of analysis only adds a moral evaluation to the study of our
moral economy, by suggesting that some victims are, from the point of view of the speaker, more legitimate than
others.” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 278)
277
http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=vitima
278
“Pessoa ou animal que morre em sacrifício a uma divindade ou em algum ritual; pessoa ferida, executada,
torturada ou violentada; pessoa que morre ou passa por uma situação traumática: ‘[…] ficou tetraplégica aos de-
zoito anos, vítima de um acidente de carro’; pessoa que é submetida a arbitrariedades: ‘Por vezes, se Deus não
chegasse depressa, Pedrinho poderia ser vítima de atos que muita gente não gosta nem de ler nem de escutar’;
pessoa que sofre o resultado funesto das próprias paixões ou a quem são fatais os seus bons sentimentos; qualquer
ser ou coisa que sofre algum tipo de prejuízo; pessoa contra quem se comete um crime” (Dicionário Michaelis,
disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=vitima)
279
seja válida – afinal, o idioma é algo em constante transformação –, mas sim apontar que existe
uma pluralidade de definições possíveis e que a definição escolhida parece já trazer a ideia de
“vitimização” na própria definição do que seria “vítima”.
A pontuação de Fassin e Rechtman (2007/2009) nos parece importante por evidenciar
que não devemos tomar como evidente que, de “condição de vítima”, possa se derivar, imedi-
atamente, “vitimização”. Assim, consideramos que se, no âmbito de um trabalho acadêmico,
pretende-se articular de alguma maneira esses termos, é preciso estabelecer relações.
Nós não temos a pretensão de fazê-lo, porque consideramos muito difícil fazer essa
passagem – entre “vítima” e “vitimização” – sem ser normativo. Mas talvez exista a possibili-
dade de articular teoricamente essas concepções sem um juízo normativo; não pretendemos
excluir a priori a possibilidade de se construir teoricamente articulações não normativas entre
“condição de vítima” e “vitimização”. O que pretendemos destacar é que essa passagem precisa
ser explicitada; caso contrário estamos no domínio do normativo.
Cerruti e Rosa (2008) destacam que não colocam em questão a veracidade dos relatos,
ou seja, enfatizam que não pretendem julgar. No entanto, quando afirmam que “é terrível ser
vítima de um infortúnio, como também o é agir para reiterar uma situação tão danosa.” (p.
1057), já não estaríamos em uma fronteira tênue, que pode levar a uma compreensão de que se
estaria julgando a vítima? Não se apresentaria aqui, na leitura das autoras, uma identificação
automática e bastante problemática entre “condição de vítima” e o que seria da ordem do “viti-
mizar-se”? A tentativa de assinalar implicação naquilo de que se queixa não caminha muito
próxima a uma responsabilização da vítima, que poderia encontrar “saída de uma relação dual
imaginária”? Não se estaria aqui a um passo de “uma maneira sofisticada, mas clássica, de
negar a injustiça, desigualdade e violência”, como pontuam Fassin e Rechtman (2007/2009, p.
278, tradução nossa)?
Relembremos que, no capítulo 3, procuramos evidenciar como Freud, a partir de cone-
xões que vão sendo tomadas como evidentes, chega a conclusões – sobre a articulação entre
masculino e ativo e feminino e passivo – que parecem já estar contidas nas premissas. Assim
como a passividade associada às mulheres parece ser pressuposta em Freud, em Schaeffer
(2002a; 2002b), a partir de um juízo normativo heterocentrado, essa passividade é pressuposta
e tomada como necessária, o que produz uma identidade fixa “mulher”, definida de maneira
essencialista a partir da passividade. Não teríamos algo semelhante aqui? Ao derivar “vitimi-
zação” de “condição de vítima”, estaríamos descrevendo uma realidade que já existe previa-
mente – ou seja, descrevendo que as “vítimas” “se vitimizam” – ou estaríamos produzindo uma
identidade de “vítima” a partir da suposição de “vitimização”?
280
Essas considerações são importantes porque estão relacionadas a um aspecto que enun-
ciamos na introdução da tese e que perpassa todo nosso trabalho: a preocupação com o que
pode ficar excluído a partir de uma abordagem que busque exclusivamente a “especificidade”
da psicanálise. Isso não significa desconsiderar a singularidade; o desafio é justamente articular
o que seria da especificidade da psicanálise com aquilo que não é. Encontramos uma possível
pista nesse sentido a partir de Fassin e Rechtman (2007/2009) quando os autores interrogam “o
que a reformulação dos crimes de guerra como experiência traumática significa para os perpe-
tradores (reconhecimento social e reparação) e para a nação norte-americana como um todo
(reconciliação e redenção)”279 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 280, tradução nossa).
No sentido da interrogação sobre o que significa “a reformulação dos crimes de guerra
como experiência traumática”, Pedro Jaime e Ari Lima, ao apresentarem Didier Fassin, recor-
rem a uma fala sua ao jornal Le Monde: “As desigualdades são traduzidas como sofrimento
social, as violências em termos de traumatismos e as questões políticas em termos huma-
nitários” (FASSIN, JAIME, & LIMA, 2011, p. 259). O que significa tomar as desigualdades
como sofrimento social, as violências como traumatismos e as questões políticas em termos
humanitários? O que fica de fora?
Para colocar em cena essa dimensão do que fica excluído, os autores partem da compa-
ração entre a reação de mobilização internacional diante de um tsunami na Tailândia e de um
terremoto no Paquistão, “principalmente porque o tsunami afetou turistas ocidentais, aos quais
foi imediatamente oferecido apoio pelas unidades de psicologia clínica disponibilizadas a eles,
enquanto nenhum ocidental estava envolvido no terremoto”280 (FASSIN & RECHTMAN,
2007/2009, p. 282, tradução nossa). Outro exemplo apresentado pelos autores é um acidente
industrial com explosão de uma fábrica em Toulouse, ocasião em que toda a população da
cidade foi considerada como vítima de trauma – o que justificaria a intervenção de profissionais
de saúde mental. Porém esse “todos” não incluiu os trabalhadores da fábrica, estigmatizados
pelo acidente, nem os pacientes de um hospital psiquiátrico – aos quais o status de “vítima” não
foi totalmente atribuído.
Sobre os pacientes do hospital psiquiátrico, Rechtman (2011) especifica que, em frente
à fábrica que explodiu, havia um hospital psiquiátrico que foi quase totalmente destruído pela

279
“[...] what the recasting of war crimes as traumatic experience means for the perpetrators (social recognition
and reparation) and for the American nation as a whole (reconciliation and redemption)” (FASSIN &
RECHTMAN, 2007/2009, p. 280)
280
“[...] principally because the tsunami affected Western tourists who were immediately offered support by the
clinical psychology units made available to them, while no Westerns were involved in the earthquake” (FASSIN
& RECHTMAN, 2007/2009, p. 282)
281
explosão. Os pacientes tiveram de ser realocados às pressas para outros hospitais, alguns a mais
de 200 quilômetros de distância. Rechtman (2011) pontua que “eles não foram abandonados ou
esquecidos, mas não foram vistos como vítimas”281 (p. 186, tradução nossa). O autor coloca o
seguinte questionamento:

Quando a investigação começou, mesmo os psiquiatras mais engajados pelos quais


tenho grande estima não consideravam necessário imaginar que os pacientes também
poderiam ser considerados vítimas e obter reparação financeira. Por quê? Uma vítima
é uma pessoa normal que passa por uma situação anormal. Deve-se acreditar que os
doentes mentais não são considerados pessoas normais... Mas a razão mais profunda
é que apenas são considerados vítimas aqueles que podem se amparar dessa condição
para se fazer ouvir e reivindicar direitos. Trata-se de militância que supõe saber mo-
bilizar, ter recursos, representantes e falar alto. Caso contrário, você não existe. O
traumatismo apenas dá a palavra àqueles que são capazes de assumir o controle. Os
outros permanecem invisíveis.282 (RECHTMAN, 2011, p. 186, tradução nossa)

Assim, Fassin e Rechtman (2007/2009), além de trabalharem de maneira não normativa


a “condição de vítima”, procuram interrogar quem fica de fora dessa concepção. Os autores
buscam analisar modos de produção de verdade em sua articulação com o que “esse processo
não permite que seja dito”, bem como considerando “quem são aqueles a quem torna possível
deixar de fora” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 281, tradução nossa). Essa interroga-
ção sobre o que fica excluído é norteadora do trabalho dos autores, que partem justamente do
que fica excluído para interrogar o fenômeno, como podemos observar em:

Enquanto a prática científica tende a examinar a realidade pelo que ela é, estudamos
o que não é. Para ser preciso, focamos em dois aspectos do processo de produção do
trauma que a maioria das pesquisas deixa de fora: o que esse processo não permite
que seja dito e quem são aqueles a quem torna possível deixar de fora?283 (FASSIN &
RECHTMAN, 2007/2009, p. 281, tradução nossa)

Essa preocupação dos autores nos reenvia à preocupação de Butler (1990/2013) com
aqueles que ficam excluídos das normas de inteligibilidade socialmente instituídas e à nossa

281
“[...] ils n’ont pas été abandonnés ou oubliés, mais ils n’ont pas été pensés comme des victimes” (RECHTMAN,
2011, p. 186)
282
“Quand l’enquête a commencé, même les psychiatres les plus engagés pour lesquels j’ai une grande estime, ne
pensaient pas qu’il était nécessaire d’imaginer que les patients puissent être également considérés comme des
victimes et obtenir une réparation financière. Pourquoi? Une victime est une personne normale qui subit une situ-
ation anormale. Il faut croire que les malades mentaux ne sont pas considérés comme des personnes normales...
Mais la raison plus profonde est que ne sont considérées comme victimes que les personnes qui peuvent s’emparer
de cette condition pour se faire entendre et réclamer des droits. C’est du militantisme qui suppose de savoir se
mobiliser, d’avoir des ressources, des représentants et de parler fort. Sinon vous n’existez pas. Le traumatisme ne
donne la parole qu’à ceux qui sont capables de s’en emparer. Les autres demeurent invisibles.” (RECHTMAN,
2011, p. 186)
283
“While scientific practice tends to examine a reality for what it is, we have studied what is not. To be precise,
we have focused on two aspects of the process of production of trauma that most research leaves out: what does
this process not allow to be said and who are those whom it makes it possible to leave out?” (FASSIN &
RECHTMAN, 2007/2009, p. 281)
282
preocupação de interrogar a psicanálise considerando o que fica de fora em análises que, ao
enfatizarem a singularidade ou o que seria “específico da psicanálise”, correm o risco de perder
as articulações com outras dimensões igualmente importantes.
Pensar a especificidade da psicanálise a partir daquilo que não é sua especificidade tal-
vez possa oferecer um caminho para evitar a abstração dos discursos. Se consideramos que a
especificidade da psicanálise reside no assinalamento do caráter ilusório de unificação imagi-
nária das identidades – em decorrência do que, muitas vezes, aparece a proposta de problema-
tização ou “desconstrução” de identidades – ou no assinalamento da implicação naquilo de que
se queixa, talvez seja interessante articular essa análise a dimensões que não correspondem à
da singularidade, como a materialidade de realidades de opressão. Talvez assim possamos pen-
sar uma singularidade fora da “abstração dos discursos”, bem como situar a “desconstrução de
identidades” a partir de realidades específicas, e não como “solução pronta” para qualquer pro-
blema.
Para pensar a especificidade da psicanálise a partir daquilo que não é sua especificidade
– de maneira a “colocar em movimento” a psicanálise, como apontamos no capítulo 3 –, é
importante fazer incidir compreensões a partir de campos estrangeiros à psicanálise. No capí-
tulo 3, a partir de Jean Laplanche (2014a; 2014b; 2014c) e de Pascale Molinier (2008), procu-
ramos fazer essa articulação no que se refere ao “tornar-se mulher” em um contexto de normas
que operam – por um princípio de hierarquia, com desvalorização do feminino – e falham.
Levamos em conta a materialidade da opressão em sua articulação com o discurso e os regimes
de normatividade, assim como colocamos em cena a singularidade, uma vez que a inferioridade
social das mulheres se coloca como um enigma a traduzir – o que coloca a dimensão do impos-
sível de dizer bem como a singularidade da tradução diante desse enigma. Com isso, procura-
mos também sustentar que não há uma identidade “mulher”, mas que a consideração da mate-
rialidade da opressão faz com que a categoria “mulheres” não seja vazia de conteúdo.
Finalizaremos esta seção com uma discussão sobre a categoria “identidade” que derivou
de uma consideração de Fassin e Rechtman (2007/2009). Vale dizer que os autores não fazem
uso do termo “identidade” nesse momento, mas oferecem um exemplo que nos ajudou a pensar
essa categoria, a partir de formulações de Foucault, com as quais buscamos articular o exemplo.
Segundo Fassin e Rechtman (2007/2009): “Os sobreviventes do acidente em Toulouse também
podem se ver como residentes relegados a um projeto habitacional desvantajoso; jovens

283
palestinos podem se ver como heróis da causa de seu povo; requerentes de asilo podem se
considerar ativistas políticos”284 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279, tradução
nossa).
Com esses exemplos, os autores buscam evidenciar que aqueles que demandam repara-
ção, enunciando-se como “vítimas” de determinado fenômeno, podem compreender a si mes-
mos de diferentes maneiras – e não apenas em torno de uma identidade unificada e coerente de
“vítima”. Após esses exemplos – sobre os sobreviventes do acidente, os palestinos e os reque-
rentes de asilo –, logo em seguida os autores pontuam que “Sobreviventes de desastres, opres-
sões e perseguições adotam a única persona que lhes permite ser ouvida – a da vítima. Ao fazê-
lo, eles nos dizem menos sobre o que eles são do que sobre as economias morais de nossa época
em que eles encontram seu lugar”285 (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279, tradução
nossa).
Destacamos dessa citação dos autores: a enunciação como “vítimas” nos diz “menos
sobre o que eles são” e mais sobre as maneiras pelas quais suas queixas são ouvidas, em um
modo historicamente específico de produção de verdade. A partir desse ponto, colocamos a
seguinte questão: ao problematizar o caráter de ficção de identidades como construções imagi-
nárias, não estaríamos tomando algo que é da ordem da enunciação política como algo que
seria, necessariamente, da ordem do ser? Da mesma maneira que pontuamos, a partir de Fassin
e Rechtman (2007/2009), que existe uma distância entre “condição de vítima” e “vitimização”,
também existe uma distância entre a enunciação a partir do lugar de “vítima” e a identidade de
“vítima”.
Para discutir essa diferenciação que estamos propondo entre condição e identidade de
vítima, faremos recurso a Foucault e, em seguida, retomaremos esse ponto. Foucault
(1981/1994) destaca o caráter histórico da tendência de levar a questão da sexualidade para o
questionamento sobre “Quem sou eu?”, discussão que deve ser situada em relação à compre-
ensão de Foucault (1996) em torno do conceito de “dispositivo”:

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, or-


ganizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito

284
“Survivors of the accident in Toulouse may equally see themselves as residents relegated to a disadvantaged
housing project; young Palestinians may see themselves as heroes of their people's cause; asylum seekers may
consider themselves as political activists.” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279)
285
“Survivors of disasters, oppresion and persecution addopt the only persona that allows them to be heard – that
of victim. In doing so, they tell us less of what they are than of the moral economies of our era in which they find
their place.” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279)

284
e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode esta-
belecer entre estes elementos. (FOUCAULT, 1996, p. 244)

A sexualidade é produzida e regida pelo “dispositivo da sexualidade”, que se refere a


práticas discursivas e não discursivas, saberes e poderes que visam à normatização e controle
por meio do estabelecimento de “verdades” sobre o corpo. É no contexto do dispositivo da
sexualidade que a ideia de homossexualidade é produzida historicamente (FOUCAULT, 1988).
A constituição da homossexualidade como objeto de análise médica, pelos psiquiatras, originou
intervenções e controles novos, como afirma Foucault (1996).
O dispositivo da sexualidade está associado à ideia de que o sexo revelaria uma verdade
sobre o sujeito. Entretanto, Foucault (1981/1994) acredita que é preciso desconfiar da tendência
de levar a questão da homossexualidade para o questionamento sobre “Quem sou eu? Qual o
segredo do meu desejo?”: “O problema não é descobrir em si a verdade de seu sexo, mas é
sobretudo utilizar doravante sua sexualidade para chegar a multiplicidade relacionais”286 (p.
163, tradução nossa).
Quando Foucault (1981/1994) discute a tendência de levar a questão da homossexuali-
dade para o questionamento sobre “Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?” está apon-
tando que, nessa acepção, o sexo passa a ser visto como “revelação do eu”. Sibilia (2008),
fundamentada em Foucault, destaca o desvio de foco do ato sexual para o ser, ou seja, algo que
poderia ser um comportamento pontual passa a ser visto como uma característica constitutiva
do sujeito. Essa tendência a levar a questão da sexualidade para o questionamento sobre “Quem
sou eu?” é circunscrita historicamente; a sexualidade não necessariamente precisaria ser vista
como algo que define a identidade.
A aproximação que buscamos traçar é que se, como vimos com Foucault, a sexualidade
não necessariamente diz algo sobre o “ser”, a enunciação a partir de categorias identitárias tam-
bém não necessariamente diz algo sobre o “ser”. Como afirmam Fassin e Rechtman
(2007/2009), ao adotar “a única persona que lhes permite ser ouvida – a da vítima”, “eles nos
dizem menos sobre o que eles são do que sobre as economias morais de nossa época em que
eles encontram seu lugar”287 (2007/2009, p. 279, tradução nossa). Trazendo essa discussão para
nossa temática, diríamos que a enunciação a partir de categorias identitárias nos diz algo sobre
os modos de produção de verdade e as condições para que se seja ouvido; não necessariamente

286
“Le problème n’est pas de découvrir en soi la vérité de son sexe, mais c’est plutôt d’user désormais de sa
sexualité pour arriver à des multiplicités de relations.” (FOUCAULT, 1981/1994, p. 163)
287
“Survivors of disasters, oppresion and persecution addopt the only persona that allows them to be heard – that
of victim. In doing so, they tell us less of what they are than of the moral economies of our era in which they find
their place.” (FASSIN & RECHTMAN, 2007/2009, p. 279)
285
nos diz algo sobre o “ser” daqueles que assim se enunciam no campo político ou sobre uma
identidade unificada e coerente.
Quando Cerruti e Rosa (2008) apontam “o risco da tentativa de definir uma identidade
específica de vítima às mulheres, estabelecendo um discurso socialmente compartilhado, que
limita em muito a capacidade de ação das mulheres que vêm sofrendo violência” (p. 1058-9),
talvez de fato isso seja verdade em algumas situações, mas talvez em outras situações a enun-
ciação a partir de uma “identidade específica de vítima” seja o que coloca a essas mulheres a
possibilidade de serem ouvidas.
O que pretendemos destacar é que o recurso à identidade pode sim estar circunscrito ao
âmbito do “ser” – essa tendência aparece, por exemplo, nas formulações de Schaeffer (2002a;
2002b), em que se produz uma identidade essencialista que diria algo do “ser mulher” – mas
não necessariamente – talvez a fala a partir do lugar de vítima seja justamente o que possibilita
ser ouvida. Novamente, essa articulação precisa ser interrogada e, se consideramos que tal ar-
ticulação existe, na especificidade de relações sociais ou do que se coloca na escuta clínica, é
preciso, a nosso ver, explicitar como compreendemos essas articulações.
De maneira a levar em conta relações sociais específicas – tal como discutimos, no ca-
pítulo 2, a partir de Rosemary Hennessy (1994) em seus questionamentos a Butler –, seria im-
portante considerar os modos de produção de verdade de nosso tempo e como estes circunscre-
vem condições para que causas sejam ouvidas. A nosso ver, também deveria levar em conta
como esse contexto em que a figura da vítima adquire relevância pode ser apropriado por dis-
cursos que deslegitimam reivindicações de direitos. Como destacamos a partir do exemplo apre-
sentado pela psicanalista Irene Meler (2018), no assinalamento de implicação naquilo de que
se queixa, precisamos ter cuidado para não reproduzir uma realidade de opressão – seja corro-
borando um discurso de meritocracia, seja desconsiderando relações sociais específicas.
Levar em conta relações sociais específicas também implica, a nosso ver, que a “pro-
blematização de identidades” não pode vir como um a priori, como a possível saída para qual-
quer problema, sem considerar a materialidade em que tal problema se inscreve. Por isso, in-
terrogamos se não haveria um risco de um essencialismo na maneira como a “desconstrução de
identidades” pode ser apropriada, no campo psicanalítico, a partir da ênfase na singularidade
em detrimento de relações sociais específicas.
Tendo traçado, nesta seção, uma discussão sobre os riscos envolvidos na afirmação de
“vitimização”, na seção seguinte discutiremos como esse juízo normativo de que o outro estaria
“se vitimizando” aparece no contexto da clínica a partir da negação de realidades de opressão.

286
4.2 Normatividade e trabalho analítico

A reprodução de situações de opressão no contexto da clínica vem sendo colocada em


cena a partir da busca por profissionais orientada pela tentativa de evitar que a vivência cotidi-
ana de opressão seja reproduzida nos espaços da clínica.
Para nossa reflexão sobre os riscos de reprodução de realidades de opressão no contexto
da clínica, partimos de uma questão lançada por Porchat (2012), em artigo voltado à discussão
sobre como a psicanálise tem sido convocada a se manifestar sobre questões relacionadas às
diversidades – por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças
por casais homoparentais, o processo transexualizador, entre outros. Tomamos como questão
orientadora a seguinte interrogação proposta pela autora: “A pergunta aqui seria então: minha
noção de sujeito é compatível com a noção de ser humano que tem direitos e necessidades?”
(PORCHAT, 2012, p. 197).
Na seção anterior, pontuamos que, a nosso ver, a busca pela especificidade da psicaná-
lise não deve se fazer em detrimento de outras dimensões importantes de análise. Consideramos
que essa atenção se evidencia nessa reflexão proposta por Porchat (2012): como podemos tra-
balhar com a concepção de sujeito – ou com outras concepções que seriam específicas da psi-
canálise – sem que isso se faça em detrimento das dimensões de direitos e necessidades?
Se não estivermos atentos aos contextos de injustiça, desigualdade e violência, bem
como das necessidades e demandas por direitos, corremos o risco de negar tais dimensões tam-
bém na prática clínica e em teorizações que buscam refletir sobre a clínica. Essa negação muitas
vezes vem articulada aos riscos associados a um “universalismo imaginário”, segundo os ter-
mos de Brubaker (2001), como introduzimos no capítulo 1 e retomamos em diferentes momen-
tos ao longo da tese.
Se identidade é uma unificação imaginária e se devemos considerar seriamente os riscos
de essencialismo, também é preciso cuidado para que a problematização de tal categoria não se
faça em detrimento das particularidades e em nome de um “universalismo imaginário”. Como
afirma Ayouch (2018): “A psicanálise concebe qualquer construção identitária como unificação
imaginária que, se é politicamente real, é ontologicamente fantasmática. Mas a abordagem psi-
canalítica não pode simplesmente afastar a questão das identidades minoritárias, referindo sua
etiologia à fantasia”288 (p. 124, tradução nossa).

288
“La psychanalyse conçoit en effet toute construction d’identité comme unification imaginaire, qui, si elle peut
être politiquement réelle, est ontologiquement fantasmatique. Mais l’approche psychanalytique ne peut se
287
No que se refere aos riscos de recusar o problema reenviando a questão das identidades
à fantasia, procuramos situar, ao longo da tese, a existência de realidades de opressão que não
correspondem a “capturas imaginárias”, cuja desconsideração pode levar à reprodução dessas
mesmas realidades de opressão. Em relação às teorizações psicanalíticas, essa reprodução pode
operar a partir de enunciações pretensamente neutras. Concordamos com Ayouch (2018), que
situa de maneira bastante precisa o que está implícito nessas enunciações supostamente neutras.
Segundo seus termos:

Essa desconstrução do fantasma da identidade, concebida, como vimos, como local


de um hibridismo que rompe toda a unidade, deve ser acompanhada de uma análise
da maneira pela qual funciona, na postura enunciativa pretensamente neutra da psica-
nálise, uma identidade implícita. Se, portanto, muitos analistas descartam identidades
minoritárias como captações imaginárias, essa mesma captura também caracteriza a
identidade majoritária implícita a partir da qual eles falam (masculina, heterocentrada,
cis-centrada, ocidental, branca), também construída mas que não recebe mesma crí-
tica.289 (p. 124, tradução nossa)

Existe, portanto, uma identidade – majoritária – implícita na enunciação pretensamente


neutra. Por exemplo, no capítulo 2, resgatamos uma afirmação feita pela psicanalista Ana Laura
Prates (2018): diante de um depoimento de uma pessoa trans afirmando que, após a cirurgia de
redesignação, pode “entrar num shopping e tomar um café”, a psicanalista questiona “o laço
social que inclui o sujeito pela via do consumo (shopping)” (p. 60). Naquele momento, interro-
gamo-nos se a psicanalista faria essa mesma consideração em relação a pessoas cisgênero. Ao
colocar essa interrogação, pensamos justamente em como existe uma posição enunciativa a
partir de uma identidade majoritária cisgênero, que não aparece explicitamente. Como a iden-
tidade majoritária pode ser tomada como pretensamente neutra, ao contrário das identidades
minoritárias, muitas vezes são colocadas questões em relação a pessoas trans que nunca seriam
endereçadas a pessoas cis.
Como discutimos no capítulo 1, Freud (1905a/1996) ressalta que o interesse sexual ex-
clusivo pelo sexo oposto exige explicação da mesma maneira que o interesse pelo mesmo sexo
e que qualquer escolha de objeto – a heterocentrada inclusive – repousa sobre uma restrição da
escolha de objeto. Essa formulação freudiana é retomada por Ayouch (2018), que pontua que
“as experiências, binárias ou não, de sexuação e sexualidade inscrevem-se em uma redução da

contenter de balayer d’un revers de main cette question des identités minoritaires en renvoyant leur étiologie au
fantasme.” (AYOUCH, 2018, p. 124)
289
“Cette déconstruction du fantasme d’identité, conçu, nous l’avons vu, comme lieu d’une hybridité qui brise
toute unité, doit être accompagnée d’une analyse de la manière dont fonctionne, dans la posture énonciative préten-
dument neutre de la psychanalyse, une identité implicite. Si donc bien des analystes écartent les identités minori-
taires comme captations imaginaires, cette même captation caractérise également l’identité majoritaire implicite
depuis laquelle ils parlent (masculine, hétérocentrée, cis-centrée, occidentale, blanche), tout aussi construite, et qui
n’est pas alors livrée à la même critique.” (AYOUCH, 2018, p. 124)
288
multiplicidade de gênero específica à subjetivação”290 (p. 125, tradução nossa). Ayouch (2018)
resgata essa formulação freudiana para afirmar que as identidades majoritárias são igualmente
construídas, mas em relação a estas não se costuma colocar em questão as “capturas imaginá-
rias”, que são sempre apontadas quando se trata de identidades minoritárias.
Assim, quando nos posicionamos, como psicanalistas, em relação a identidades mino-
ritárias, devemos estar atentos em relação à nossa própria posição, levando em conta os riscos
de “universalismo imaginário” que se colocam se assumirmos uma postura enunciativa preten-
samente neutra. Os riscos associados ao universalismo, nesse caso, incluem a reprodução de
situações de opressão no contexto da clínica. Nesta seção, discutiremos esses riscos a partir da
demanda por um “psi safe” ou por um profissional a partir de pertencimentos identitários.
No sentido de começar a pensar essa possibilidade de reprodução de realidades de opres-
são, gostaríamos de destacar as diferentes posições e implicações do analista e do analisando,
buscando articular a questão da normatividade no trabalho analítico. Consideramos muito inte-
ressante o relato de Beatriz Santos, por se tratar de alguém que ocupa esses dois lugares, o de
analisanda e o de analista. Em entrevista conjunta com Judith Butler e Monique David-Mé-
nard291 (BUTLER, et al., 2015), a questão da normatividade na clínica aparece, e Beatriz Santos
coloca uma questão sobre as diferenças de, em análise, “colocar a questão de uma identidade
cultural, em oposição à uma identidade sexual, identidade de mulher ou de mãe”292 (p. 11, tra-
dução nossa).
Discutiremos essas questões sobre normatividade e trabalho analítico a partir do traba-
lho de Virginia Bicudo (1972/2016). Para começar nossa reflexão, pontuamos que, embora de-
fenda que o analista deve deixar sua realidade social “de fora” da cena analítica, em diversos
momentos Bicudo (1972/2016) parece se questionar se isso é possível: “Como ser humano,
pode o psicanalista desprender-se de sua realidade social? Que aspectos de sua realidade inevi-
tavelmente estão presentes em seu trabalho? Que aspectos de sua realidade social são incon-
troláveis?” (p.79). Ou, nos termos propostos por Santos e Polverel (2016), um analista “cuja
escuta estaria excessivamente comprometida pelo ruído das certezas derivadas do regime de
normas de seu tempo” (p. 3) poderia deixar “de fora” da cena analítica sua realidade social?

290
“Les vécus, binaires ou non, de sexuation et de sexualité sont tous inscrits dans une réduction de la multiplicité
de genre propre à la subjectivation.” (AYOUCH, 2018, p. 125)
291
Entrevista conjunta com Judith Butler e Monique David-Ménard, realizada em 11 de maio de 2012, ocasião em
que Judith Butler havia sido recebida como professora convidada pela Universidade Paris Diderot
292
“J’ai l’impression que ce n’est pas pareil de poser la question d’une identité culturelle, en opposition à celle
d’une identité sexuelle (pour le dire comme ça), d’identité de femme ou de mère” (BUTLER et all, 2015, p. 11)
289
Para irmos mais além, existe esse “deixar de fora”? Na já mencionada entrevista con-
junta com Judith Butler e Monique David-Ménard (2015), Butler coloca um questionamento
sobre esse ponto que nos parece fundamental. Segundo seus termos:

[...] o analista não deve procurar representar um certo ideal normativo, pode-se dizer
que o normativo está suspenso, fora do jogo, no interior da sessão analítica, precisa-
mente para poder ser reintroduzido pelo analisando. O cenário do normativo pode ser
reproduzido em suas complicações no interior da sessão. Mas o que estamos dizendo,
pelo menos em relação à norma, é claro que ela ainda existe. Temos que colocá-la de
lado, mas ela está lá, no interior, e essa é a prática. Ela está lá, colocada de lado.293
(BUTLER et all, 2015, p. 11, tradução nossa)

Ou seja, a normatividade está na cena analítica, suspensa, colocada de lado, mas está lá.
Não existe o “fora” das normas, “fora” das relações de poder. Nesse sentido, concordamos com
Santos e Polverel (2016) no que se refere a pensar as experiências analíticas em termos de
saberes situados. As autoras recorrem a Donna Haraway para discutir tais experiências “como
produzidas e pensadas por um sujeito radicalmente contingente historicamente e cujo relato é
construído sob uma perspectiva obrigatoriamente parcial” (p. 3).
Como apresentamos na introdução da tese, Haraway (2009) defende a noção de objeti-
vidade associada a “saberes situados” (situated knowledge), que se refere à concepção de co-
nhecimento como parcial, localizado e crítico. Nessa perspectiva, é importante interrogar nossa
própria posição em relação a qualquer objeto sobre o qual nos posicionamos. Mas o que signi-
fica interrogar a própria posição? Um exemplo, que introduziremos aqui e retomaremos na pró-
xima seção, e que nos ajuda a encaminhar uma possível resposta é oferecido por Costa (2013),
ao tecer considerações a partir da apresentação de um trabalho acadêmico discutindo o olhar
masculino sobre o aborto. A autora considera que ainda não existem relatos suficientes do olhar
feminino sobre o aborto e que as narrativas são quase sempre a partir da perspectiva masculina.
A partir da perspectiva dos saberes situados, consideramos que, se um homem pretende se po-
sicionar em relação a esse objeto (o aborto, no caso), é preciso que se interrogue sobre a posição
que ocupa em relação a ele. Esse interrogar-se sobre a própria posição implica levar em conta
que essa posição é de privilégio: a posição que um homem ocupa em relação a esse tema é
muito diferente da posição ocupada por uma mulher, uma vez que os sentidos atribuídos cultu-
ralmente à paternidade e à maternidade são muito diferentes.

293
“[...] l’analyste ne devrait pas chercher à se représenter un certain idéal normatif, on pourrait dire que le normatif
est suspendu, sorti du jeu, à l’intérieur de la séance analytique, précisément pour pouvoir être réintroduit par
l’analysant. Le scénario du normatif peut être reproduit dans ces complications à l’intérieur de la séance. Mais ce
qu’on est en train de dire, en tout cas en relation à la norme, c’est bien sûr qu’elle est toujours là. On doit la mettre
de côté mais elle est là, à l’intérieur, et c ̧a c’est la pratique. Elle est là, mise de côté.” (BUTLER et all, 2015, p.
11)
290
Da mesma maneira, parece-nos fundamental que nos interroguemos sobre nossa posi-
ção, como psicanalistas, quando nos pronunciamos sobre qualquer objeto. Em importante tra-
balho sobre a questão da negritude na psicanálise, Ana Paula Musatti Braga e Miriam Debieux
Rosa (2017) discutem o silêncio da maioria dos estudos psicanalíticos diante das diversas for-
mas de desigualdade no Brasil (social, de gênero, racial). Considerando que essa omissão cons-
titui uma forma de consentimento, as autoras chamam a atenção para nossa implicação em tais
questões.
Ao tratar do silenciamento da psicanálise sobre as questões raciais, Braga e Rosa (2017)
trazem contribuições de extrema importância, apontando que muitos psicanalistas buscam si-
tuar o momento histórico atual, diferenciando-o da época em que Freud escreveu e abordando,
por exemplo, as temáticas das novas configurações familiares, mas “‘esquecem’ de apontar que
não estamos todos em posições equivalentes ou lugares iguais na estrutura social e na rede
discursiva” (p. 92). Para as autoras, esse tipo de posicionamento está associado aos privilégios
da branquitude decorrentes da posição ocupada por esses psicanalistas, que confere, aos sujeitos
considerados brancos, privilégios no acesso a recursos materiais e simbólicos.
Em relação a esse aspecto, as proposições de Joanna Ryan, retomadas por Santos e
Polverel (2016), têm muito a contribuir para essa discussão, precisamente porque situam refle-
xões sobre a questão da patologização da homossexualidade a partir de alguém que é homosse-
xual e que fala a partir do lugar de analista e analisanda. Na conferência Women Today, em
2002, Ryan (2002) aborda a patologização da homossexualidade pela psicanálise e faz um re-
lato sobre si mesma como lésbica, considerando os lugares de analisanda e analista e a possibi-
lidade de discutir questões relacionadas à homossexualidade. Segundo Ryan (2002):

No início dos anos oitenta [...] levei algum tempo para perceber que realmente havia
um problema em ser ao mesmo tempo tanto uma lésbica quanto uma psicoterapeuta
psicanalítica. Até aquele momento, não havia nem mesmo um espaço onde isso pu-
desse ser articulado ou pensado, quanto mais acontecer. O WTC forneceu um espaço
seguro, não apenas onde lésbicas, inclusive eu, pudessem encontrar uma terapia não
patologizante, mas também onde, como terapeuta, eu poderia começar a tratar de al-
gumas das questões relativas a lésbicas294 (p. 1, tradução nossa)

Ryan, citada por Santos e Polverel (2016), considera que a falta de conhecimento das
vicissitudes das homossexualidades poderia estar relacionada ao fato de que os analistas efeti-
vamente não recebiam muitos pacientes não heterossexuais, que se mantinham afastados dos

294
“In the early eighties [...] it took me some time to realise that there really was a problem about being both an
out lesbian and a psychoanalytic psychotherapist. Until that time, there wasn’t even a space where this could be
articulated or thought about, let alone happen. The WTC provided a safe space, not only where lesbians, including
myself, could find non-pathologising therapy, but also where as a therapist I could begin to address some of the
issues concerning lesbians” (RYAN, 2002, p. 1)
291
espaços analíticos devido à patologização na associação entre homossexualidade e perversão.
A autora chama a atenção tanto para relatos de analisandos homossexuais sobre a homofobia
de seus analistas quanto para a própria produção teórica psicanalítica, mais voltada para a busca
de uma etiologia da homossexualidade do que da homofobia.
Assim, se analisando e analista estão inscritos em uma realidade social e se essa reali-
dade está marcada por situações de preconceito e opressão, como pensar a possibilidade de
reprodução dessas marcas no contexto da clínica? Em um trabalho de 1972, Virgínia Bicudo já
colocava questões em relação à realidade social e à “neutralidade” na clínica. Importante lem-
brar sua participação ativa nos momentos iniciais da psicanálise no Brasil, que contrasta com o
esquecimento que recai sobre suas contribuições. Esses são os apontamentos de Ana Paula Mu-
satti Braga (2016), que, em um texto que procura resgatar o percurso da psicanalista, começa
destacando que:

Talvez não seja novidade para alguns que a primeira mulher que fez análise na
América Latina tenha sido uma mulher negra. Que a primeira pessoa a escrever uma
tese sobre relações raciais no Brasil tenha sido uma mulher negra. Que também a
primeira psicanalista não médica no Brasil tenha sido uma mulher negra. E talvez já
saibam que todas essas credenciais pertencem a uma mesma mulher: Virgínia Leone
Bicudo. (p. 1)

Em seguida, Braga (2016) comenta que é possível que muitos nunca tenham ouvido
falar sobre Virgínia Bicudo, e então questiona: “como nunca soubemos disso? Como não nos
falaram antes? Como, na origem da psicanálise, alguém tão atento ao preconceito de cor esteve
tão atuante e presente e, ainda hoje, a psicanálise se faz tão daltônica em suas pesquisas?” (p.
2). Considerando a importância de resgatar o percurso da psicanalista, Braga (2016) se propõe
a fazê-lo buscando as marcas da realidade social, o que a leva a um texto em que Virgínia
Bicudo discute justamente a “incidência da realidade social no trabalho analítico”, ao qual re-
correremos para lançar reflexões sobre a questão da neutralidade.
Bicudo (1972/2016) traz considerações importantes para discutirmos essa questão da
incrição do trabalho analítico em uma realidade social, procurando circunscrever uma distinção
entre a incidência dessa realidade para o paciente e para o analista. Ambos, analisando e ana-
lista, estão inscritos na realidade social, mas o segundo deve estar vigilante para que os aspectos
de sua realidade não tomem parte no trabalho analítico. A autora pontua que essa necessidade
requer do analista a capacidade de “separar-se” da realidade social, deixando de fora do trabalho
analítico esferas que fazem parte de sua vida como “seus preconceitos, idiossincrasias, pre-
ferências, suas ideologias religiosas, raciais, políticas e pseudocientícas” (BICUDO,
1972/2016, p. 79).

292
Entretanto, a autora revela a percepção da absoluta impossibilidade de separação em
relação à realidade social, o que fica evidente em diversas passagens do texto, inclusive quando
recorre a Freud para tratar desse ponto. Segundo seus termos: “Um estudo cronológico da obra
de Freud poria em evidência que o trabalho do mestre foi marcado pelos acontecimentos históri-
cos da época em que viveu, fato que mais uma vez enfatiza as inter-relações nas duas direções
– do psíquico para o social e deste para aquele” (BICUDO, 1972/2016, p. 90).
Considerando que, assim como o analisando, o analista está inscrito na realidade social,
a questão que se coloca se refere às interdependências entre realidade social, normatividade e
trabalho analítico. Consideramos que essas interdependências aparecem no fenômeno da busca
por um “psi seguro” ou de um profissional a partir do pertencimento a determinadas categorias
identitarias.
A demanda por “psis seguros”295 foi objeto de reflexão de Santos e Polverel (2016) no
contexto francês, e fenômeno semelhante tem se colocado no Brasil, sobretudo a partir da de-
manda de pertencimento do profissional “psi” ao mesmo grupo identitário do paciente, o que
foi discutido em estudo brasileiro por Ferraz e Tourinho (2016). Para discutir esse fenômeno,
consideramos importante partir de elementos que nos indiquem como a reprodução de situações
de opressão vem ocorrendo no contexto da clínica, ou, em outros termos, como os pacientes
têm vivenciado situações de discriminação nesses espaços.
Em texto publicado em uma revista do segmento jornalístico na internet296, Jarrid Arraes
(2015) apresenta depoimentos de pacientes relatando reprodução de situações de opressão nos
espaços da clínica. Dentre os depoimentos, aparecem relatos de mulheres negras cuja fala foi
interpretada como “vitimização” e transformação de situações “normais” em racismo, questio-
namento sobre “acreditar” na atual existência de racismo no Brasil até a afirmação de que “ra-
cismo não existe”. Uma das mulheres conta que encontrou um grupo de mulheres negras e
feministas e foi nesse espaço que pôde falar do sofrimento vinculado ao racismo e machismo,
o que a leva a considerar que a militância fez por ela o que a terapia não pôde fazer: “A mili-
tância foi a minha terapia, a psicologia não fez nada por mim”.
Santos e Polverel (2016), ao discutirem o que seria um analista “não seguro”, conside-
ram que o risco estaria associado à expressão de juízos normativos pelo profissional “psi” ao
paciente, de maneira que se trataria de um profissional “cuja escuta estaria excessivamente

295
Na França, profissionais da saúde mental considerados “seguros” aparecem listados em um site denominado
Psysafe (http://psysafeinclusifs.wixsite.com/psysafe), sendo a definição de “seguro” referente à não reprodução
de opressões existentes no campo social.
296
ARRAES, J. “Meu psicólogo disse que racismo não existe”. Revista Fórum, 25 jun. 2015. Disponível em
https://www.revistaforum.com.br/meu-psicologo-disse-que-racismo-nao-existe. Acesso em 08 de agosto de 2018.
293
comprometida pelo ruído das certezas derivadas do regime de normas de seu tempo” (SANTOS
& POLVEREL, 2016, p. 3).
Não seria esse o caso nos depoimentos? Um profissional que interpreta o sofrimento
associado ao racismo como “vitimização” ou que questiona a existência de racismo não seria
alguém excessivamente comprometido “pelo ruído das certezas derivadas do regime de normas
de seu tempo”? A situação vivenciada pela paciente que teve sua fala interpretada como viti-
mização e seu relato de sofrimento associado ao racismo interpretado como “transformação de
situações ‘normais’ em racismo” não consiste em uma negação da realidade do preconceito sob
a forma de uma suposta intervenção psicanalítica de assinalamento da não implicação do ana-
lisando naquilo de que se queixa? Não estamos aqui diante da reprodução da realidade de opres-
são e de preconceitos no contexto da clínica? Fazendo referência a Braga e Rosa (2017), não se
trataria aqui de um posicionamento associado aos privilégios articulados à posição ocupada por
esses psicanalistas?
Gostaríamos de lembrar aqui o relato de Susanne Hommel297 que, em uma sessão de
análise com Lacan, contou que acordava todo dia às cinco horas da manhã, o que associa ao
fato de que era nesse horário que a Gestapo buscava os judeus em suas casas. Lacan se levanta
e faz um gesto de acariciar seu rosto. Ela compreende como uma transformação de “Gestapo”
em “geste à peau” (que têm a mesma pronúncia em francês) e afirma que isso não diminuiu a
dor, mas a transformou em algo diferente. Diante da brutalidade de uma realidade de opressão,
essa é uma postura muito diferente daquelas que colocam em questão o enunciado do anali-
sando ou fazem interpretações assinalando uma suposta implicação naquilo de que o analisando
se queixa.
Nosso trabalho não toma a perspectiva lacaniana como referencial teórico, mas recor-
reremos aqui a uma formulação lacaniana que nos parece pertinente nessa discussão sobre clí-
nica e normatividade. Laufer (2014a) destaca a formulação de Lacan sobre a transferência, no
Seminário 1, em que o psicanalista retoma criticamente a noção de contratransferência. Lacan
(1953-4/1986) afirma que “a contratransferência nada mais é do que a função do ego do ana-
lista, o que chamei a soma dos preconceitos do analista” (p. 33).
Entre esses preconceitos do analista, podem se fazer presentes concepções pré-concebi-
das que levam a uma negação da realidade de opressão, como vimos nos exemplos em relação
ao racismo e homofobia, e que podemos pensar em relação ao machismo, à condição

297
Suzanne Hommel é entrevistada por Gérard Miller, no documentário “Rendez-vous chez Lacan”. Trecho com
a referida fala disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VA-SXCGwLvY
294
socioeconômica etc. Além disso, a própria perspectiva do analista sobre a teoria psicanalítica
pode funcionar de forma contratransferencial, como propõe Fink (2017).
O autor comenta sobre uma situação em que o analisando se sentia desconfortável com
os frequentes atrasos da analista e pontua que analistas poderiam interpretar esse aborrecimento
como transferência. Diferentemente, Fink (2017) considera que o aborrecimento do analisando,
nessas circunstâncias, não pode ser considerado transferência: ele estava aborrecido com a ana-
lista, assim como poderia se aborrecer com outras pessoas que se atrasam e, mesmo que esse
aborrecimento fosse maior com a analista – por ter um papel importante em sua vida e até em
parte como resultado de outras transferências –, esse aborrecimento não pode ser denominado
transferência.
Existem casos em que, por exemplo, o analisando sente que todos buscam humilhá-lo,
e sempre perceberá a confirmação disso na relação com o analista, não importa o que este faça.
Entretanto, no exemplo do aborrecimento com os atrasos, não se trata de algo do analisando
que estaria atuando, mas algo do analista ou a contratransferência que produz os atrasos habi-
tuais. Para Fink (2017), “os analistas devem reconhecer suas próprias contribuições nessas si-
tuações” (p. 225), o que não significa discutir com o analisando as motivações relacionadas aos
atrasos, mas sim se comprometer a não se atrasar e trabalhar seus motivos em análise ou super-
visão.
Fink (2017) recorre à formulação de Lacan e acrescenta “informação inadequada” (p.
226), ou seja, propõe pensarmos a contratransferência como soma dos preconceitos do analista
ou de sua informação inadequada. Propõe, então, que “a perspectiva do analista sobre a teoria
psicanalítica pode funcionar de forma contratransferencial” (p. 226) e exemplifica afirmando
que, se o analista parte da crença na “identificação projetiva”, por exemplo, pode supor que o
analisando aborrecido com os atrasos estaria projetando na analista suas crenças de que todos
levam vantagem em relação a ele – colocando, portanto, a responsabilidade no analisando. O
autor considera que, nesse caso, os analistas “na medida em que abraçam conceitos psicanalí-
ticos, transferem convenientemente o ônus pelas dificuldades no tratamento deles para o paci-
ente. A contratransferência inclui os próprios preconceitos e tudo o que cega” (FINK, 2017, p.
226).
Assim, a perspectiva do analista sobre a teoria psicanalítica pode tomar parte nas visões
pré-concebidas reproduzidas por psicanalistas, por isso consideramos fundamental a reflexão
sobre as teorizações psicanalíticas. Encontramos na entrevista com Irene Meler um exemplo
que nos possibilita pensar implicações da perspectiva do analista sobre a teoria psicanalítica.
Ao entrevistar a psicanalista, Patricia Porchat interroga-lhe sobre os motivos da resistência dos
295
psicanalistas em relação às formulações sobre gênero. Meler (2018) circunscreve a posição so-
cial como elemento para sua resposta: “todos veem a profissão como algo lucrativo. São repre-
sentantes de sua classe social e nela desejam permanecer. Veem a profissão como um serviço
que se vende no mercado da sociedade capitalista. Não têm desejo de questionar essa sociedade,
e sim de reproduzi-la” (p. 141).
Quando Patricia Porchat pergunta se não haveria também resistências teóricas, Meler
(2018) considera que existe uma pretensão de universalidade na psicanálise e que esta poderia
estar articulada a resistências do ponto de vista epistemológico. Mas, logo em seguida, articula
esse ponto ao pertencimento a instituições psicanalíticas e ao aspecto financeiro. Segundo seus
termos:

Tomemos, como exemplo, a diferença sexual no sentido lacaniano. Se a questiona-


mos, estaríamos questionando o que nos faz ser respeitado em uma instituição e num
determinado circuito social. E isso nos expõe a sanções informais, digamos distanci-
amento, desconfiança e, eventualmente não nos encaminham pacientes. As institui-
ções costumam ser muito opressoras nesse sentido. (MELER & PORCHAT, 2018, p.
141-2)

A análise de Meler (2018) toma o conjunto dos psicanalistas como uma classe privile-
giada, o que talvez esteja começando a mudar no Brasil com uma maior democratização do
acesso às universidades. Mencionamos aqui universidades, e não escolas de formação em psi-
canálise, porque, embora também estas comecem a passar por mudanças, ainda aparecem muito
associadas a altos custos de formação, análise e supervisão, portanto ainda muito associadas a
uma minoria privilegiada. Contudo, o que consideramos mais importante não é necessariamente
partir da consideração do conjunto dos psicanalistas como uma classe privilegiada, mas sim
interrogar o lugar ocupado pela psicanálise numa sociedade tão desigual como a nossa e chamar
a atenção para que os psicanalistas se interroguem sobre sua posição.
Ayouch (2018), ao propor uma “hibridação do discurso analítico pelos estudos de gê-
nero” (p. 143, tradução nossa), situa como um dos objetivos: “uma atenção psicanalítica, clínica
e teórica, à maior exposição à vulnerabilidade dos sujeitos minoritários, com sexuações e sexu-
alidades não binárias”298 (p. 143, tradução nossa). Como procuramos situar desde o capítulo 1,
com as opressões gênero-específicas (FRASER, 2003a), não podemos negar a existência de
vulnerabilidades diferenciadas. É importante que nós, psicanalistas, estejamos atentos a essa

298
“[...] d’une attention psychanalytique, clinique et théorique, à la plus grande exposition à la vulnérabilité des
sujets minoritaires, de sexuations et sexualités non binaires.” (AYOUCH, 2018, p. 143)
296
vulnerabilidade, uma vez que o não reconhecimento das realidades de opressão pode levar a
uma reprodução dessa mesma opressão no contexto da clínica.
Essas realidades de opressão se impõem e é fundamental que possamos falar sobre elas.
No entanto, o desafio é articular os conceitos fundamentais da psicanálise à compreensão de
regimes de normatividade inscritos em condições sociais de produção. No sentido de procurar
traçar tais articulações e considerando que tomamos a categoria “mulheres” como definida pela
experiência de opressão, discutiremos, na próxima seção, possibilidades de pensar a categoria
“mulheres” a partir de posições nas relações sociais, segundo contribuições de perspectivas
feministas.

4.3 Delineando possibilidades de conceituação de “mulheres” a partir de posições nas


relações sociais

Como discutimos no capítulo 2, Butler (1990/2013) chama a atenção para os riscos de


que as descrições articuladas a “mulheres” acabem funcionando como prescrições, o que pro-
duz protestos e facções nos movimentos feministas. Fraser (2018b) retoma essa discussão rea-
lizada por Butler para pontuar que, por um lado, os movimentos feministas não podem deixar
de fazer reivindicações em nome das “mulheres” e, por outro, que a categoria construída a partir
dessas reivindicações deve passar por uma desconstrução contínua – o que deve ser visto como
recurso político.
Na perspectiva adotada por Butler, a categoria seria compreendida como um campo de
diferenças que não podem ser totalizadas em uma identidade descritiva. Para Fraser (2018b),
essa concepção de “mulheres” como campo não totalizável de diferenças possibilita uma inter-
pretação “fraca” e desinteressante – que a autora não detalha, talvez justamente por não consi-
derar interessante, de maneira que não fica claro qual seria essa interpretação –, e outra que
considera “forte” e indefensável. De acordo com Fraser (2018b):

A tese forte é aquela associada à teoria feminista francesa, segundo a qual “mulher”
não pode ser definido, significando diferença e não identidade. Essa é, claro, uma
alegação paradoxal, pois fazer de “mulher” o signo do indefinível é precisamente, por
meio disso, defini-lo. Ademais, essa (anti) definição é intrigante. Por que “mulher”
ou “mulheres” deveria ser o signo do não-idêntico? Tudo o que Butler diz sobre “mu-
lheres” não será válido para “homens”, “trabalhadores”, “pessoas de cor”, “chicanos”
ou qualquer outra nominação coletiva? (2018b, p. 112)

Fraser (2018b) considera inescapável fazer asserções sobre “mulheres”, mas propõe que
sejam vistas “de maneira não fundacional e falibilística”, ou seja, “as suposições nas quais se
baseiam tais asserções deveriam ser postas em genealogia, enquadradas pela narrativa
297
contextualizante e apresentadas de modo cultural e historicamente específico” (p. 113). A au-
tora considera que essa também é uma interpretação possível da asserção de Butler, compatível
com o que ela própria propõe em artigo conjunto com Nicholson (“Social criticism without
phylosophy”, publicado em 1988).
Tendo proposto essa outra interpretação, que considera possível a partir de Butler, ainda
assim Fraser (2018b) considera que a perspectiva que enfatiza as “diferenças” das mulheres não
dá conta do problema político, apontado por Butler, relativo aos conflitos entre mulheres no
interior dos movimentos feministas problema. Segundo seus termos:

Certamente há conflitos quando interesses são definidos em relação a formas atuais


de organização social; um exemplo é o choque de interesses entre mulheres brancas
profissionais de classe média do Primeiro Mundo e as mulheres negras do Terceiro
Mundo que elas contratam como empregadas domésticas. Diante desse tipo de con-
flito, a conversa celebratória, sem críticas sobre as “diferenças” das mulheres é uma
mistificação. A questão séria que os movimentos feministas precisam encarar é aquela
que a proposta de Butler omite: será que “nós” podemos prever novos arranjos sociais
que harmonizariam conflitos atuais? Se sim, será que “nós” podemos articular “nossa”
visão em termos que sejam suficientemente convincentes para persuadirem outras
mulheres – e homens – a reinterpretar seus interesses? (FRASER, 2018b, p. 113-4)

Procurando trazer essa discussão para a psicanálise, diante dos conflitos entre “mulheres
brancas profissionais de classe média do Primeiro Mundo e as mulheres negras do Terceiro
Mundo que elas contratam como empregadas domésticas”, em que nos ajuda afirmar que “não
existe definitivamente homem ou mulher”? Será que nós, psicanalistas, podemos reinterpretar
nossos interesses e nos interrogar sobre visões pré-concebidas em nossas teorizações? Como já
destacamos, parece-nos que essa possibilidade passa por interrogarmos nossa posição em rela-
ção aos objetos sobre os quais nos pronunciamos.
Como exemplo do que pretendemos articular, tomemos a leitura sobre o problema do
reconhecimento. Quando Safatle (2012) propõe uma releitura do problema do reconhecimento
a partir da não-identidade, do estranho, consideramos que ele toca em algo fundamental, cha-
mando a atenção para uma experiência de outra ordem, a partir de uma concepção de “sujeito”
não como entidade substancial, idêntico a si mesmo e capaz de se autodeterminar – mas, ao
contrário, a partir da não-identidade e da clivagem.
Na leitura sobre o reconhecimento, Safatle critica a apropriação de Hegel por Honneth,
pois, na visão do autor, o reconhecimento em Honneth estaria vinculado a direitos individuais,
o que não apareceria na leitura hegeliana. Segundo seus termos: “a partir de uma perspectiva
hegeliana, o processo de reconhecimento da individualidade não pode estar restrito ao simples
reconhecimento da reivindicação de direitos individuais positivos que não encontram posição
em situações normativas determinadas, como o quer Honneth” (SAFATLE, 2008, p. 99).

298
Assim, o autor propõe pensar o reconhecimento não circunscrito ao âmbito de direitos indivi-
duais, de expressões singulares da autonomia e da liberdade. Como afirma:

Hegel insiste que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-enraiza-
mento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos parti-
culares e nossas visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em
mostrar como o demorar-se diante desta negatividade é condição para a constituição
de um pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos. (SAFATLE,
2008, p. 100)

Consideramos importante a perspectiva psicanalítica de que o sujeito se inscreve a partir


de sua divisão, de maneira que somos atravessados por algo que não controlamos nem conhe-
cemos, o que coloca a imprevisibilidade e tem implicações para se pensar o campo da política.
Destacada a importância dessa outra dimensão, consideramos que também é fundamental levar
em conta a realidade da opressão. No que se refere ao nosso tema, o que significa levar em
conta a realidade de opressão das mulheres? Do nosso ponto de vista, significa considerar que
existem opressões gênero-específicas e que as posições nas relações sociais (rapports sociaux)
de homens e mulheres são diferentes.
Tomemos um exemplo: recentemente foi lançada uma carta aberta à comunidade cien-
tífica sobre como incluir mães em eventos científicos299. Na carta, as signatárias300 pontuam
que “em nossa cultura, tarefas que envolvem cuidado com os filhos ainda são vistas como es-
sencialmente femininas” e destacam que muitas mulheres deixam de participar de eventos ci-
entíficos por conta de dificuldades que “não são intrínsecas à maternidade, mas totalmente re-
lacionadas à ausência de uma preocupação com a inclusão das mães”.
Propõem, então, que a inclusão de mulheres mães depende da possibilidade de inclusão
de crianças nesses espaços, afinal “é preciso lembrar que existem bebês que ainda mamam, não
podem ficar tanto tempo longe da mãe. Existem mães solo, existem mães sem rede de apoio,
existem crianças que não conseguem ficar com outras pessoas por muito tempo pelos mais
variados motivos”. Além disso, apontam também que a existência de um espaço preparado
possibilita que homens possam levar seus filhos e dividir cuidados. Sobretudo, assinalam que
a inclusão de estruturas nos espaços de eventos científicos que possibilitem acolher crianças

299
“Carta aberta à comunidade científica: como incluir mães nos congressos”. Observatório Cajuína – Mulheres,
ciência e comportamento, em 6 de agosto de 2019. Disponível em https://www.facebook.com/notes/observatório-
caju%C3%ADna-mulheres-ciência-e-comportamento/carta-aberta-à-comunidade-cient%C3%ADfica-como-in-
cluir-mães-nos-congressos/109862173695914/
300
Ana Martins Torres Bernardes, Fernanda Libardi, Izadora Ribeiro Perkoski, Liane Dahás, Luana Flor T. Ha-
milton e Tauane Paula Gehm.
299
constitui uma mudança institucional, “protegendo institucionalmente essas mulheres dos olha-
res e ações, tão reforçadas na nossa cultura, de exclusão”.
Evidentemente, não se trata de uma carta direcionada a psicanalistas, mas não deixa de
chamar a atenção o contraste entre o tão repetido “não existe definitivamente homem e mulher”
e a asserção “existem bebês que ainda mamam [...] existem mães solo, existem mães sem rede
de apoio, existem crianças que não conseguem ficar com outras pessoas por muito tempo”. O
sentido de “homem” e “mulher” na afirmação psicanalítica não é o mesmo sentido de “mulhe-
res” na carta aberta: no âmbito psicanalítico esses termos aparecem nas fórmulas da sexuação
e não correspondem aos “pequenos outros” que aparecem na carta. No entanto, quando desta-
camos esse contraste, o que pretendemos é questionar se a psicanálise não se mostra muito
distante das realidades de opressão que, como reitera a carta, existem.
Se uma leitura desta carta for marcada exclusivamente pelo viés da problematização da
categoria de identidade, ela tenderá a criticá-la e a recusar sua pertinência. Afinal, se o cuidado
dos filhos não é intrinsecamente feminino, por que lançar uma carta sobre como incluir mães
em eventos científicos? De fato, seria muito positivo se as coisas se passassem de outra forma,
porém, como aparece na carta, as tarefas relacionadas ao cuidado com os filhos ainda são vistas
como femininas e são as mulheres que deixam de participar de eventos científicos por conta
das dificuldades. Essa realidade existe e precisamos falar dela.
Além disso, a carta chama a atenção para a possibilidade de que também homens pos-
sam levar os filhos e aponta o aspecto institucional envolvido: se eventos científicos ofereces-
sem a possibilidade de levar crianças, seria uma maneira de corrigir o que hoje se mostra como
uma opressão gênero-específica. Mais ainda, as dificuldades “não são intrínsecas à materni-
dade, mas totalmente relacionadas à ausência de uma preocupação com a inclusão das mães”.
Ou seja, as instituições – no caso, eventos científicos que não contemplam a possibilidade de
levar crianças – produzem essa opressão gênero-específica. Mudanças institucionais podem in-
clusive contribuir para que, no futuro, essa questão deixe de ser gênero-específica; afinal o
cuidado com os filhos não é intrinsecamente uma questão especificamente de mulheres.
Isoladamente, de nada adiante dizer “vamos desconstruir a ideia de que o cuidado com
os filhos é feminino” ou “vamos desconstruir essa categoria de ficção que é a mulher (ou a
mãe)”. Embora seja verdade, ficaríamos defendendo a desconstrução enquanto as mulheres
continuariam ficando em desvantagem profissionalmente em relação aos homens, pois seriam
elas que deixariam de participar de eventos científicos. Precisamos, sim, de desconstrução e
precisamos, sim, ter sempre em mente o caráter ficcional dessas categorias, mas precisamos
sobretudo de transformações na materialidade (no caso, espaço para crianças em eventos
300
científicos) para que o discurso da desconstrução não seja apenas uma “conversa celebratória”,
como afirma provocativamente Fraser (2018b).
No sentido de fazer incidir contribuições de outros campos para interrogar a psicanálise,
discutimos, no capítulo 2, as implicações de uma ênfase à esfera do discurso, das representa-
ções, articulada a uma “virada das coisas para as palavras”. Destacamos que não se tratava de
negar a importância dos discursos e de seus efeitos de produção, mas sim sublinhar que a lin-
guagem não se faz na abstração de enunciados que afirmam em ato o que realizam. Com o
objetivo de colocar em evidência práticas sociais e instituições reais, apontamos, a partir de
Rosemary Hennessy (1994), que os aspectos da vida material são discursivamente mediados,
mas sua materialidade não é meramente discursiva.
Os riscos de uma perspectiva ancorada na abstração da linguagem são evidenciados na
análise de Claudia de Lima Costa301 (2013), que traça uma contribuição importante por apontar
os riscos de despolitização. A autora propõe uma discussão sobre o conceito de “gênero”, pon-
tuando que este, articulado às correntes estruturalista e pós-estruturalistas, promoveu a negação
de qualquer tipo de essência à mulher. Costa (2013) reconhece esta como uma contribuição
importante, que já vinha do contexto de práticas e lutas dos movimentos feministas, com o
destaque para as diferenças, que possibilitam falar em “mulheres” (e não “mulher”), e o ques-
tionamento de qualquer posição essencialista.
No entanto, a autora também considera que “o gênero como categoria de análise permi-
tiu uma certa despolitização dos estudos feministas na academia latino-americana” (p. 131). Na
visão da autora, essa despolitização aconteceu porque havia uma associação entre os termos
“feminismo” e “teorias feministas” a posturas radicais, que seriam “pouco sérias em termos
científicos” (p. 131), o que levou à adoção do termo “estudos de gênero” em nome do “rigor”
científico, como algo que conferia “mais status e revelava maior sofisticação por parte da pes-
quisadora, a qual então saía definitivamente do gueto dos estudos da mulher” (p. 131). Dessa
maneira, colocava-se a possibilidade de estudar a opressão da mulher e as relações desiguais de
poder sem a necessidade de assumir um projeto político feminista.
Por seu caráter relacional (o feminino só pode ser compreendido em relação ao mascu-
lino), a ênfase no conceito de gênero levou, por exemplo, à produção de estudos sobre mascu-
linidade(s) no âmbito acadêmico, que não colocam qualquer problema a princípio, mas que,

301
Claudia de Lima Costa é professora adjunta de Teoria Literária e Estudos Culturais na Universidade Federal de
Santa Catarina (COSTA, 2002), doutora em Cultural Studies pela Universidade de Illinois. Sua pesquisa enfatiza
interseções entre teorias feministas, traducão cultural e teorias pós-coloniais e descoloniais nas Américas (infor-
mações obtidas do currículo lattes, disponível em http://lattes.cnpq.br/3755976581745095).
301
muitas vezes, deixam de fora uma perspectiva feminista e reiteram as narrativas contadas por
homens. Como afirma a autora:

Embora nada tenha contra estudos de masculinidade(s), preocupa-me o fato de que


muitas dessas pesquisas fogem completamente a um olhar crítico feminista. Para dar
um exemplo, em seminário recente em minha universidade sobre estudos de gênero,
deparei-me com um trabalho que se propunha a analisar o olhar masculino sobre o
aborto. Quando não temos sequer relatos suficientes do olhar feminino sobre o aborto,
parece-me um pouco apressado abandonarmos as mulheres diante do aborto para con-
templação dos homens. Isso para não dizer que todas as histórias contadas até o pre-
sente têm sido quase sempre narrativas a partir da perspectiva masculina. Não fosse
suficiente a mulher ter virado gênero nos anos 80, vejo o gênero virando masculini-
dade no final dos anos 90. Temo que tenhamos voltado ao ponto de partida. (COSTA,
2013, p. 131-2)

A autora coloca uma problematização da própria categoria “gênero”, que não pretende-
mos discutir no âmbito desta tese, mas que nos parece importante por apontar possíveis limita-
ções e riscos. Diante desse contexto, a proposição de Costa (2013) passa por retomar a noção
de “mulher” como categoria política, como recurso para articular as mulheres politicamente,
lembrando que se trata de uma categoria heterogênea, cuja construção se dá no interior de dis-
cursos e práticas, situada historicamente e em relação a outras categorias também instáveis
(classe, raça, etnia, sexualidade, nacionalidade, etc.). Nas palavras de Costa (2013):

Diante do “tráfico do gênero”, presente nos cenários acima expostos e com o intuito
de enfatizar o projeto político, norteando as teorias feministas em particular e o femi-
nismo (como movimento social) em geral, concluo minha reflexão de forma provoca-
tiva sugerindo um retorno à categoria mulher, entendida não como essência on-
tológica, nem mesmo no sentido restrito de mulher como essencialismo estratégico,
mas na acepção ampla de posição política (o que necessariamente implica algum tipo
de essencialismo estratégico em um primeiro momento). (COSTA, 2013, p. 132)

Para compreendermos essa perspectiva de tomar a categoria “mulher” como posição


política, é importante retomar que, como vimos nos capítulos anteriores e como lembra Costa
(2002), foram tecidas diversas críticas antiessencialistas a políticas baseadas em conceitos iden-
titários, apontando a instabilidade e fragilidade de categorias identitárias, bem como evidenci-
ando que tais políticas compartimentam a experiência vivida – que, na realidade, se expressa
de maneira diversificada e contraditória.
No bojo da crítica às noções de sujeito e de categorias identitárias a partir de perspecti-
vas de desconstrução, existem correntes feministas teórico-políticas que questionam qualquer
referência ao termo “mulher”, tendo em vista os riscos essencialistas. Na visão de Costa (2002),
as críticas são pertinentes, porém mal direcionadas, uma vez que se, de fato, é indefensável uma
“visão monolítica e estática de identidade” (p. 70), na realidade as “questões são mais sutis do

302
que a forma como foram representadas nos debates relativos ao essencialismo e à política da
identidade” (p. 70-1).
Partindo da crítica a uma concepção centrada e unificada do sujeito feminino, a uma
suposta autenticidade e identidade essencial como mulher, acaba-se chegando à proposição de
que “mulher” não passaria de uma categoria vazia, da ordem da ficção, uma identidade que não
poderia ser determinada, ou seja “em outras palavras, ‘mulher’ tornava-se uma construção dis-
cursiva que sustentava as relações opressivas de poder” (COSTA, 2002, p. 69). O problema é
que essa perspectiva acabaria levando, na visão de Costa (2002), a um “feminismo sem mulhe-
res” (p. 69). Como pontuamos no capítulo 1, Alcoff (1988) questiona como poderíamos reivin-
dicar algo para as mulheres sem fazer recurso a essa categoria.
Costa (2002) parte da consideração de que se encontra bem estabelecido, na literatura,
a diversidade de discursos, que resultam em uma multiplicidade de feminismos, mas que isso
não significa fragmentação nem enfraquecimento da importância política do feminismo. Para a
autora, “desafiar a coerência e a unidade da ‘mulher’, ou o poder explanatório dessa categoria
– até mesmo afirmar que ela é, em princípio, uma categoria vazia ou uma ficção –, não nos faz
cúmplices de um ‘feminismo ginocida’” (p. 71). Ao contrário, Costa (2002) considera que essa
categoria deve continuar sendo utilizada para articular as mulheres politicamente, reconhe-
cendo-se que “‘mulher’ é uma categoria histórica e heterogeneamente construída dentro de uma
ampla gama de práticas e discursos, e sobre as quais o movimento das mulheres se fundamenta”
(p. 71).
Recorrendo a Denise Riley, que situa a categoria “mulheres” como histórica e discursi-
vamente construída, Costa (2002) aponta instabilidades tanto quando se trata de “mulheres”
como coletividade, como quando se pensa individualmente. Se, de fato, não há base ontológica
para o “ser mulher”, as instabilidades não estão em contraposição ao feminismo, mas, ao con-
trário, constituem sua própria condição de possibilidade, senão este ficaria sem objeto.
Para discutir o recurso à categoria “mulher” no âmbito dos feminismos, a autora recorre
a diversos autores, dentre os quais destacaremos Homi Bhabha, Chantal Mouffe e Linda Alcoff.
Os dois primeiros fazem referência à psicanálise e trazem contribuições fundamentais para uma
abordagem não essencialista da identidade. Alcoff, por sua vez, propõe o conceito de posicio-
nalidade, que, a nosso ver, possibilita pensar a categoria “mulheres” em termos de posição nas
relações sociais.

303
Chantal Mouffe302 (2010) destaca que a crítica das identidades essencialistas não se li-
mita à psicanálise ou ao pós-estruturalismo, mas lembra a importância da psicanálise na crítica
ao essencialismo, a partir da problematização da categoria de sujeito como racional, transpa-
rente, que seria a fonte de sua ação e possibilitaria homogeneidade no que se refere a essa ação.
Freud questionou a ideia de transparência a partir da formulação do inconsciente, situando a
divisão que coloca em questão a racionalidade dos agentes e o caráter unificado do sujeito.
Considerando, a partir da psicanálise, que “a história do sujeito é a história de suas iden-
tificações; e além destas, não há identidade oculta a salvar”303 (MOUFFE, 2010, p. 142-3,
tradução nossa), a autora propõe um duplo movimento: um decentramento que impede a fixação
em torno de algo dado previamente e a instituição de fixações parciais, que restringiriam o fluxo
do significado sob o significante. No que se refere a esse segundo momento, Costa (2002) des-
taca, a partir de Mouffe, a importância de práticas históricas, políticas e contingentes de articu-
lação entre as várias posições que o sujeito ocupa.
Essas fixações ocorrem em decorrência da não fixidez, e é o fato de que a fixidez não
é dada previamente que possibilita o movimento e, portanto, essa dialética (MOUFFE, 2010).
Em outras palavras, é justamente por não haver algo fixo – uma identidade que fundamentaria
o sujeito – que existe a tendência a se identificar com algo, mas essas fixações são sempre
parciais e em movimento, justamente porque não existe uma fixidez. Essa concepção leva a
autora a destacar também a importância da concepção de “exterior constitutivo”, fundamentada
em conceitos derridianos, como o de différance304.
Como a identidade está articulada à diferença – a relação à alteridade é condição de
possibilidade da identidade –, coloca-se a impossibilidade de distinção absoluta entre exterior
e interior, de maneira que a “identidade é irremediavelmente desestabilizada pelo que é externo
a ela, e o interior é apresentado como algo sempre contingente”305 (MOUFFE, 2010, p. 145,
tradução nossa), o que coloca em questão qualquer concepção essencialista de identidade. A

302
Chantal Mouffe é professora de teoria política na Universidade de Westminster (Londres), responsável por
disciplinas nas áreas de “Estado, Política e Violência” (“The State, Politics and Violence”) e “Temas Atuais na
Teoria Democrática” (“Current Issues in Democratic Theory”). Suas linhas de pesquisa incluem “O espaço da
democracia e a democracia do espaço” (“The Space of Democracy and the Democracy of Space”) e “Rumo a um
mundo multipolar agonístico” (“Towards an agonistic multipolar world”) (informações obtidas em
https://www.westminster.ac.uk/about-us/our-people/directory/mouffe-chantal).
303
“[...] l’histoire du sujet est l’histoire de ses identifications; et au-delà de ces dernières il n’y a pas d’identité
cachée à sauver.” (MOUFFE, 2010, p. 142-3)
304
O conceito de différance – proposto por Derrida a partir da introdução da letra “a” na escrita da palavra
différence e utilizado pela primeira vez em 1965 – apontaria para uma diferença que não se deixa simbolizar,
portadora de uma alteridade que escaparia ao idêntico (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004).
305
“Chaque identité est donc irrémédiablement déstabilisée par ce qui lui est extérieur, et l’intérieur se présente
comme quelque chose de toujours contingent.” (MOUFFE, 2010, p. 145)
304
conceituação de identidade deve levar em conta uma complexa rede de diferenças, a multipli-
cidade de discursos e a estrutura de poder, de maneira que “ao invés de considerar identidades
diferentes como pertencimentos a uma posição ou como uma propriedade, devemos perceber
que elas são o que está em jogo em qualquer luta de poder”306 (MOUFFE, 2010, p. 145, tradução
nossa).
Se Mouffe (2010) destaca a importância da crítica ao essencialismo, ela considera, en-
tretanto, que essa crítica não é suficiente para a elaboração de um projeto político. Por isso,
recorre à concepção gramsciana de hegemonia307, de maneira a situar a natureza do poder e
suas relações com a identidade, e propõe uma política feminista a partir de uma abordagem
anti-essencialista que considere outras formas de subordinação e busque alianças com outros
grupos oprimidos.
A objetividade social se constitui através de atos de poder, e o ponto de convergência
entre objetividade e poder é o que se denomina hegemonia. O poder não deve ser concebido
como uma relação entre entidades constituídas previamente, mas como constitutivo dessas pró-
prias identidades. Nessa perspectiva, o agente social é constituído por um conjunto de posições
de sujeitos. A construção desse agente social se dá através de uma multiplicidade de discursos,
entre os quais “não existe relação necessária, mas apenas um movimento constante de sobrede-
terminação e deslocamentos”308 (MOUFFE, 2010, p. 144, tradução nossa). Segundo a autora:

A “identidade” de um sujeito tão múltiplo e contraditório é, portanto, sempre contin-


gente e precária, apenas provisoriamente fixada na interseção dessas posições de su-
jeito e dependente de formas específicas de identificação. Portanto, é impossível falar
do agente social como se estivéssemos lidando com uma entidade unificada e homo-
gênea. Devemos compreendê-lo como uma pluralidade, dependente das várias posi-
ções do sujeito através das quais ele é constituído no seio de várias formações discur-
sivas. E também devemos reconhecer que não existe a priori uma relação necessária
entre os discursos que constroem essas diferentes posições de sujeito. Mas essa plu-
ralidade não implica a coexistência, lado a lado, de um conjunto de posições de su-
jeito, mas a constante subversão e sobredeterminação de cada uma pelas outras, o que

306
“Au lieu de considérer les différentes identités comme des appartenances à une position ou comme une propri-
été, nous devons prendre conscience qu’elles sont ce qui est en jeu dans toute lutte de pouvoir.” (MOUFFE, 2010,
p. 145)
307
A noção de hegemonia se inscreve na tradição marxista, e Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, em “Hegemonia
e estratégia socialista” (2004), partem da noção de hegemonia em Gramsci. Alves (2010) situa como aproximações
entre a concepção de hegemonia em Gramsci e em Laclau e Mouffe a ênfase conferida ao momento da articulação
política e a concepção de relações sociais em torno da disputa pela hegemonia, assim como o importante papel da
ideologia, como constitutiva do social. Partindo, então, da concepção proposta por Gramsci, Laclau e Mouffe
situam a noção de antagonismo como desempenhando papel central, em uma nova abordagem de hegemonia que
considera como condições necessárias para o estabelecimento de uma articulação hegemônica a “presença de
forças antagônicas e a instabilidade das fronteiras que as separam” (ALVES, 2010, p. 92).
308
“[…] entre lesquels n’existe aucune relation nécessaire, mais seulement un constant mouvement de surdéter-
mination et de déplacements.” (MOUFFE, 2010, p. 144)
305
possibilita a geração de “efeitos totalizadores” no interior de um campo caracterizado
pela abertura e indeterminação de suas fronteiras.309 (p. 144)

Mouffe (2010) considera importante, no contexto das lutas feministas e de outras lutas
contemporâneas, essa maneira anti-essencialista de conceber a identidade a partir de um con-
junto de posições de sujeito inscritas em relações sociais (rapports sociaux). Se a categoria
“mulher” não corresponde a nenhuma essência unificada e unificadora, o problema central é
discutir como essa categoria é construída através de diferentes discursos. O dilema igualdade
versus diferença perde sentido nessa perspectiva, uma vez que não se trata de uma relação entre
duas entidades homogêneas (“mulher” e “homem”), mas uma multiplicidade de relações sociais
em que a diferença sexual é construída de várias maneiras, de maneira que “questionar se as
mulheres devem se tornar idênticas aos homens para serem reconhecidas como iguais ou se
devem afirmar sua diferença ao preço da igualdade, parece sem sentido”310 (MOUFFE, 2010,
p. 146, tradução nossa).
Diferentemente de abordagens essencialistas que tomam a identidade da mulher en-
quanto mulher, a perspectiva que Mouffe (2010) pretende abrir considera a política feminista
não como uma forma isolada de luta, que buscaria defender os interesses das mulheres enquanto
mulheres, mas dentro de uma articulação mais ampla de demandas, ou seja, “não deve ser en-
tendida como uma luta pela igualdade de um grupo empírico definível por uma essência e iden-
tidade comuns, as mulheres, mas como uma luta contra as múltiplas formas sob as quais a
categoria ‘mulher’ é construída na subordinação”311 (p. 146).
Assim, a partir das contribuições de Chantal Mouffe, Costa (2002) destaca que o fato
de não haver unidade na figura da “mulher” não implica que não possa haver base alguma para
a política feminista, uma vez que a construção de pontos nodais e fixações parciais colocam
possibilidades de identificação em torno da categoria “mulher”. Costa (2013) recorre a Mouffe

309
“‘L’identité’ d’un tel sujet multiple et contradictoire est donc toujours contingente et précaire, seulement pro-
visoirement fixée à l’intersection de ces positions de sujet et dépendante des formes spécifiques d’identification.
Il est donc impossible de parler de l’agent social comme si nous avions affaire à une entité unifiée et homogène.
Nous devons plutôt l’appréhender comme une pluralité, dépendante des diverses positions de sujet à travers les-
quelles il se constitue au sein de diverses formations discursives. Et il faut aussi reconnaître qu’il n’existe pas de
relation a priori, nécessaire entre les discours qui construisent ses différentes positions de sujet. Mais cette pluralité
n’implique pas la coexistence, côte à côte, d’un ensemble de positions de sujet, mais bien plutôt la subversion et
la surdétermination constantes des unes par les autres, ce qui rend possible l’engendrement d’ ‘effets totalisants’
au sein d’un champ que caractérisent l’ouverture et l’indétermination de ses frontières.” (MOUFFE, 2010, p. 144)
310
“[...] se demander si les femmes doivent devenir identiques aux hommes pour être reconnues comme leurs
égales, ou bien si elles doivent affirmer leur différence au prix de l’égalité, apparaît dénué de sens” (MOUFFE,
2010, p. 146)
311
“Ce qui n’est pas à comprendre comme lutte pour l’égalité d’un groupe empirique définissable par une essence
commune et une identité, les femmes, mais comme une lutte contre les multiples formes sous lesquelles la caté-
gorie ‘femme’ se construit dans la subordination.” (MOUFFE, 2010, p. 146)
306
para propor que a articulação de lutas em torno de diferentes formas de opressão, a partir da
concepção de mulher como categoria política, passa por um primeiro momento de desconstru-
ção, de maneira a destacar seu caráter não-essencial, e um segundo momento de instituição de
“pontos nodais ou materializações parciais que limitariam o fluxo do significado sob o signifi-
cante”, nos termos de Mouffe. Para Costa (2013), essas articulações “estruturariam posições de
sujeito em torno da categoria mulher (entendida como efeito político dessas articulações a partir
dos antagonismos e contradições sociais)” (p. 133).
Mas o que seriam essas “posições de sujeito”? Costa (2002) utiliza essa concepção e
recorre a Linda Alcoff312 (1988), que discute a conceitualização de “mulher” a partir da con-
cepção de posicionalidade (“positionality”). Como explica Costa (2002), essa concepção re-
fere-se “à localização do sujeito (seja ela social, cultural, geográfica, econômica, sexual e assim
por diante) e a partir da qual interpretamos o mundo e na qual nos fundamentamos” (p. 76).
Alcoff (1988) recorre a Teresa de Lauretis, por considerar que sua conceitualização da
mulher como sujeito não se fundamenta em uma caracterização essencialista da subjetividade,
ao mesmo tempo em que evita o idealismo que resulta da rejeição de análises materialistas. O
que possibilita essa perspectiva, na visão da autora, é uma teorização que leva em conta a lin-
guagem, mas considera que esta não é a única fonte e locus de sentido, uma vez que hábitos e
práticas tomam parte na construção de significado. Alcoff (1988) pontua que a maior parte das
análises anti-essencialistas parte de uma teorização a partir da linguagem, enquanto Teresa de
Lauretis procura articular também as práticas. Como afirma: “A importância desse foco nas
práticas é, em parte, o afastamento de Lauretis da crença na totalização da linguagem ou da
textualidade, com a qual a maioria das análises anti-essencialistas se casam”313 (p. 431, tradução
nossa).
Nessa perspectiva, a concepção de gênero não aparece como ponto de partida, como
pré-determinado, mas como construto “formalizável de maneira não arbitrária através de uma
matriz de hábitos, práticas e discursos”314 (ALCOFF, 1988, p. 431, tradução nossa), em uma
constelação discursiva específica. A partir disso, é possível dizer que a subjetividade feminina

312
Linda Martín Alcoff é professora da City University of New York, na área de Filosofia. Suas linhas de pesquisa
incluem feminismo, teoria decolonial, filosofia da raça e epistemologia social (informações disponíveis em
https://www.gc.cuny.edu/Page-Elements/Academics-Research-Centers-Initiatives/Doctoral-Programs/Philoso-
phy/Faculty-Bios/Linda-Martin-Alcoff).
313
“The importance of this focus on practices is, in part, Lauretis's shift away from the belief in the totalization of
language or textuality to which most antiessentialist analyses become wedded.” (ALCOFF, 1988, p. 431)
314
“[...] formalizable in a nonarbitrary way through a matrix of habits, practices, and dis- courses.” (ALCOFF,
1988, p. 431)
307
é construída de determinada maneira em determinado contexto, sem a necessidade de recorrer
a algo universalizável sobre “o feminino”.
A essa abordagem de Lauretis, Alcoff (1988) afirma que cabe articular uma “política de
identidade”, sendo que, a partir do desenvolvimento do texto, fica evidente que a autora recorre
a esse termo em um sentido bastante preciso, como sintetizado na seguinte passagem: “o con-
ceito de política de identidade não pressupõe um conjunto pré-empacotado de necessidades
objetivas ou implicações políticas, mas problematiza a conexão entre identidade e política e
introduz a identidade como fator em qualquer análise política”315 (ALCOFF, 1988, p. 433,
tradução nossa).
Como veremos, Alcoff (1988) começa argumentando em termos de identidade para, ao
final, sustentar que uma política feminista pode ser pensada a partir de posições em uma rede
de relações, e não de uma suposta “identidade feminina”. É importante destacar que, desde o
início, a autora situa “identidade” em uma perspectiva não essencialista, como evidenciamos a
partir de sua citação. Relembremos também que, na introdução da tese, apresentamos que a
autora enfatiza os riscos de, na tentativa de falar em nome das mulheres, se pressupor que já se
sabe o que as mulheres são, de maneira que “nossa própria autodefinição se baseia em um
conceito que devemos desconstruir e desessencializar em todos os seus aspectos”316 (ALCOFF,
1988, p. 406, tradução nossa).
Além disso, a autora argumenta em termos de identidade contrapondo-se à visão do
“humano genérico”. Como vimos na introdução da tese, Alcoff (1988) sublinha articulações
entre a ênfase no universal, neutro, sem perspectiva – dominante no pensamento intelectual
ocidental – e a “tese do ‘humano genérico’ do pensamento liberal clássico”317 (p. 420, tradução
nossa). Dessa maneira, consideramos que o recurso à identidade é trabalhado pela autora de
maneira cuidadosa, procurando evitar tanto os riscos de essencialismo quanto de universalismo.
Concebe-se aqui uma categoria de identidade como ponto de partida para a ação e luta política.
De acordo com a autora:

Parece-me igualmente importante acrescentar a essa abordagem uma “política de


identidade”, um conceito que se desenvolveu a partir de “A Black Feminist Statement”
do Combahee River Collective. A ideia de que a identidade é tomada (e definida)

315
“[…] the concept of identity politics does not presuppose a prepackaged set of objective needs or political
implications but problematizes the connection of identity and politics and introduces identity as a factor in any
political analysis.” (ALCOFF, 1988, p. 433)
316
“[…] our very self-definition is grounded in a concept that we must deconstruct and de-essentialize in all of its
aspects” (ALCOFF, 1988, p. 406)
317
“[…] colludes with this ‘generic human’ thesis of classical liberal thought” (ALCOFF, 1988, p. 420)
308
como um ponto de partida político, como uma motivação para a ação e como deline-
amento da política.318 (ALCOFF, 1988, p. 431-2, tradução nossa)

Recorrendo novamente a Lauretis, a autora destaca a consideração da natureza proble-


mática da identidade, mas, ao mesmo tempo, por se tratar de uma categoria politicamente pri-
mordial, deve ser reconhecida sempre como uma construção, mas também como um ponto de
partida necessário. Alcoff (1988) situa um exemplo de identidade como ponto de partida a partir
dos judeus assimilados que, como uma tática política contra o anti-semitismo, posicionaram-se
no sentido de se identificar como judeus – praticando, portanto, políticas de identidade – e
afirma que:

[...] assim como o povo judeu pode optar por afirmar sua judeidade, homens negros,
mulheres de todas as raças e outros membros de grupos mais imediatamente reconhe-
cidos como grupos oprimidos podem praticar a política de identidade escolhendo sua
identidade como membro de um ou mais grupos como ponto de partida político”319
(p. 432, tradução nossa).

Mas o que seria tomar a identidade como ponto de partida? Alcoff (1988) traça uma
distinção bastante interessante sobre esse ponto ao delinear o recurso à categoria identitária
entre mulheres feministas e antifeministas. Estas últimas muitas vezes se identificam forte-
mente como mulheres, geralmente fundamentadas em concepções essencialistas da feminili-
dade. Já entre as feministas, o recurso a essa mesma categoria é frequentemente articulado de
maneira não essencialista. A autora observa que mulheres, não tendo se articulado ao femi-
nismo, não enfatizam a questão da identidade, mas, quando começam a se reconhecer como
feministas, passam a fazer questão de situar reivindicações em termos de identidade. Essa rei-
vindicação da identidade como mulher, como ponto de partida político, torna possível perceber,
por exemplo, uma linguagem enviesada do ponto de vista de gênero – que, na ausência desse
ponto de partida, não era percebida.
Em uma análise que leva em conta, ao mesmo tempo, os riscos de essencialismo e de
universalismo, Alcoff (1988) considera que a política de identidade oferece uma resposta à tese
do “humano genérico”, como mencionamos na introdução desta tese, e à metodologia predo-
minante na teoria política ocidental, em que os interesses e necessidades do teórico são

318
“It seems to me equally important to add to this approach an ‘identity politics’, a concept that developed from
the Combahee River Collective's ‘A Black Feminist Statement’. The idea here is that one's identity is taken (and
defined) as a political point of departure, as a motivation for action, and as a delineation of one’s politics.”
(ALCOFF, 1988, p. 431-2)
319
“[…] just as Jewish people can choose to assert their Jewish-ness, so black men, women of all races, and other
members of more immediately recognizable oppressed groups can practice identity politics by choosing their iden-
tity as a member of one or more groups as their political point of departure.” (ALCOFF, 1988, p. 432)
309
supostamente deixados de lado, almejando “uma teoria de escopo universal à qual todos os
agentes desinteressados idealmente racionais concordariam se recebessem informações sufici-
entes”320 (p. 433) – impossível não notar a semelhança com psicanalistas lacanianos sugerindo
que Butler concordaria com Lacan se tivesse “informações suficientes”.
Em contraposição à tese do “humano genérico”, a autora considera que “a política de
identidade fornece uma resposta materialista a isso”321 (ALCOFF, 1988, p. 433, tradução
nossa). Ao reconhecer a materialidade e o aspecto encarnado de todos nós – inclusive do teórico
–, que toma parte nas reivindicações políticas e nas teorizações, Alcoff (1988) afirma que a
melhor teoria é a que reconhece esse fato.
A proposta de Alcoff (1988) passa, então, por articular a concepção de política de iden-
tidade à de sujeito como posicionalidade, de maneira a situar o sujeito como não essencializado
e emergente de uma experiência histórica, ao mesmo tempo em que se considera o gênero como
importante ponto de partida, ou seja, “podemos dizer ao mesmo tempo que gênero não é natural,
biológico, universal, a-histórico ou essencial e, no entanto, ainda afirmamos que o gênero é
relevante porque estamos tomando o gênero como uma posição a partir da qual agir politica-
mente”322 (p. 433, tradução nossa).
Uma definição essencialista de “mulher” delineia sua identidade independentemente do
contexto externo, atribuindo características da feminilidade que seriam ontologicamente autô-
nomas da posição em relação aos outros ou às condições históricas e sociais externas. Diferen-
temente, uma definição posicional considera “mulher” em relação a um contexto em constante
mudança, às relações com os outros, às condições econômicas objetivas, instituições culturais
e políticas etc. Como explicita Alcoff (1988):

Quando o conceito “mulher” é definido não por um conjunto particular de atributos,


mas por uma posição específica, as características internas da pessoa assim identifi-
cada não são denotadas tanto quanto o contexto externo em que a pessoa está situada.
A situação externa determina a posição relativa da pessoa, assim como a posição de
um peão no tabuleiro de xadrez é considerada segura ou perigosa, poderosa ou fraca,
de acordo com sua relação com as outras peças de xadrez.323 (p. 433, tradução nossa)

320
“[…] a theory of universal scope to which all ideally rational, disinterested agents would acquiesce if given
sufficient information.” (ALCOFF, 1988, p. 433)
321
“Identity politics provides a materialist response to this” (ALCOFF, 1988, p. 433)
322
“[...] we can say at one and the same time that gender is not natural, biological, universal, ahistorical, or essential
and yet still claim that gender is relevant because we are taking gender as a position from which to act politically.”
(ALCOFF, 1988, p. 433)
323
“When the concept ‘woman’ is defined not by a particular set of attributes but by a particular position, the
internal characteristics of the person thus identified are not denoted so much as the external context within which
that person is situated. The external situation determines the person's relative position, just as the position of a
pawn on a chessboard is considered safe or dangerous, powerful or weak, according to its relation to the other
chess pieces.” (ALCOFF, 1988, p. 433)
310
Situando as mulheres por sua posição nessa rede de relações, o argumento feminista se
fundamenta no fato de que sua posição se caracteriza, por exemplo, como menos “poderosa”
(no sentido de relações de poder em uma rede, como na metáfora do peão no jogo de xadrez) e
com menor mobilidade. Essa posição é relativa e não inata, mas não é algo que se escolhe (essa
posição é “undecidable”), como destaca Alcoff (1988).
A autora especifica que não se refere apenas à opressão das mulheres como situada a
partir de sua posição relativa, mas que a própria experiência subjetiva do que é “ser mulher” é
constituída a partir de sua posição – o que não significa que a mulher seja uma receptora pas-
siva; ao contrário, por fazer parte do movimento historizado, contribui para o contexto em que
sua posição pode ser delineada. Dessa maneira, o conceito de posicionalidade se fundamenta,
segundo Alcoff (1988), em dois pontos:

[...] primeiro, como já foi dito, que o conceito de mulher é um termo relacional iden-
tificável apenas dentro de um contexto (em constante movimento); mas, segundo, que
a posição em que as mulheres se encontram pode ser ativamente utilizada (e não trans-
cendida) como um local para a construção de significado, um local de onde o signifi-
cado é construído, em vez de simplesmente o local em que um significado pode ser
descoberto (o significado de feminilidade).324 (p. 434, tradução nossa)

Assim, a categoria “mulheres” pode ser pensada a partir de posições em uma rede de
relações, e não com base em características biológicas ou psíquicas que circunscreveriam uma
suposta “feminilidade”. Dessa maneira, é possível sustentar uma política feminista a partir
dessa posição, e não de uma “identidade feminina”, como explicita Alcoff (1988): “mulher é
uma posição da qual uma política feminista pode emergir em vez de um conjunto de atributos
‘identificáveis objetivamente’”325 (p. 435).
Alcoff (1988) explica que o conceito e a posição das mulheres não podem ser conside-
rados arbitrários. Não seria possível, por exemplo, propor uma interpretação de nossa atual
sociedade que afirmasse que as mulheres estão em condição igual ou superior aos homens no
que se refere às relações de poder. No entanto, como o contexto está em constante movimento
histórico, o conceito de posicionalidade evita o essencialismo. É possível, por exemplo, conce-
ber um futuro em que categorias oposicionais de gênero não sejam fundamentais, de maneira
que o conceito de mulher deve permanecer aberto a futuras alterações.

324
“[…] first, as already stated, that the concept of woman is a relational term identifiable only within a (constantly
moving) context; but, second, that the position that women find themselves in can be actively utilized (rather than
transcended) as a location for the construction of meaning, a place from where meaning is constructed, rather than
simply the place where a meaning can be discovered (the meaning of femaleness).” (ALCOFF, 1988, p. 434)
325
“[…] woman is a position from which a feminist politics can emerge rather than a set of attributes that are
‘objectively identifiable’” (ALCOFF, 1988, p. 435)
311
O conceito de mulher como posicionalidade é relacional, em que diferentes posições –
em suas intersecções com outras categorias sociais – são compreendidas como lugares a partir
dos quais as mulheres podem construir significados, como pontua Costa (2002) a partir de Al-
coff. Essa perspectiva de partir da concepção de lugar/posição/localização exige, portanto, a
historicização e busca colocar ênfase na construção e institucionalização das nossas diferenças,
o que sempre envolve um estranhamento. Como afirma Costa (2002): “a localização do sujeito
é sempre o resultado de vários processos de estranhamento, pois ela/ele geralmente ocupa mais
de um lugar simultaneamente em um cruzar constante de várias fronteiras e ordens” (p. 88).
Além do aspecto relacional e do estranhamento produzido pelas diferentes posições de
sujeito e suas intersecções, Costa (2002) considera que a noção de lugar/localização está arti-
culada à materialidade. Recorrendo a Grossberg, Costa (2002) destaca que nossa localização
em posições específicas autoriza determinadas possibilidades de experiência ao mesmo tempo
em que restringe outras: “a materialidade das condições de desigualdade que erguem fronteiras
em torno dos sujeitos, libertando alguns/algumas e excluindo outros/as” (COSTA, 2002, p. 88-
9).
Essas dimensões da materialidade e das múltiplas intersecções ficam evidenciadas em
uma retomada que Costa (2002) faz sobre os momentos históricos dos debates feministas nos
Estados Unidos entre o final da década de 1960 e os anos 1990. Costa (2002) recorre à organi-
zação proposta por Nancy Fraser, identificando três grandes transições teóricas. Um primeiro
momento, fundamentado na “diferença de gênero” (entre homens e mulheres) e na dominação
de gênero dá lugar, nos anos 1980, a uma discussão das diferenças, não apenas entre homens e
mulheres, mas também entre as mulheres – perspectiva que surgiu inicialmente como uma con-
traposição ao feminismo branco dominante. Um terceiro momento enfatiza as “diferenças de
intersecções múltiplas”, o que implica o reconhecimento da intersecção de camadas de subor-
dinação (raça, etnia, classe, orientação sexual, idade, religião, nacionalidade, etc.) imbricadas.
Ou seja, “cada categoria produz efeitos articulatórios sobre as outras em contextos históricos e
geográficos específicos, viabilizando, assim, posições a serem ocupadas pelos sujeitos en-
quanto estabelecem agendas teóricas e políticas” (COSTA, 2002, p. 80).
A partir dessa abordagem do terceiro momento dos feminismos e de formulações de
Butler, Costa (2002) considera que é possível pensar uma sobreposição entre as diversas dife-
renças, com deslocamentos e aberturas de espaços intermediários (in-between spaces) ou in-
terstícios em que o sujeito se posiciona provisoriamente. Homi Bhabha326, citado por Costa

326
Homi Bhabha é crítico literário e especialista em estudos pós-coloniais, professor de literatura inglesa e ameri-
cana na Universidade de Harvard (BHABHA & RUTHERFORD, 2006).
312
(2002), propõe focalizar, ao invés de supostas subjetividades originárias, momentos produzidos
na articulação das diferenças culturais, espaços in-between. Costa (2002) destaca esse autor por
propor o termo “terceiro espaço” para se referir ao lugar produtivo não de identidades, mas de
identificações.
De fato, o autor especifica que, quando fala em “terceiro espaço”, não se trata de uma
questão de identidade, mas de identificação, no sentido psicanalítico. Bhabha (2006) destaca
que “a identificação é um processo que consiste em se identificar a um outro objeto e através
desse objeto”327 (p. 99, tradução nossa), ou seja, um processo de identificação a um objeto de
diferença (alteridade), de maneira que, por conta da intervenção dessa diferença, existe sempre
uma ambivalência.
A noção de hibridismo contradiz o essencialismo de uma dada cultura ou antecedente
original, considerando que todas as formas de cultura são tomadas em um processo incessante
de hibridação. Ayouch (2018), ao abordar do conceito de “hibridez” proposto por Bhabha, des-
taca que “as culturas nunca são unitárias em si mesmas, nem simplesmente dualistas na relação
a si mesma ou ao outro”328 (p. 56, tradução nossa). Dessa maneira, “as experiências intersubje-
tivas e coletivas de pertencimento a uma comunidade são, assim, negociadas na emergência de
interstícios, e na sobreposição e deslocamento de domínios de diferença”329 (p. 56, tradução
nossa).
Nesse sentido, a concepção de “terceiro espaço” não faz referência a algo que se produ-
ziria a partir de dois antecedentes originais. De acordo com Ayouch (2018), esse “terceiro es-
paço” vem precisamente romper a concepção de identidade da cultura, como algo supostamente
homogêneo e baseado em um passado originário transmitido pela tradição. Segundo os termos
de Bhabha (2006): “não é que seja possível encontrar dois momentos originais a partir dos quais
um terceiro momento emergiria; o hibridismo é sobretudo, para mim, o ‘terceiro espaço’ que
possibilita o surgimento de outras posições”330 (BHABHA & RUTHERFORD, 2006, p. 99,
tradução nossa). Esse terceiro espaço possibilita que algo diferente, novo, possa emergir, algo

327
“[...] l’identification est un processus qui consiste à s’identifier à un autre objet et à travers cet objet” (BHABHA
& RUTHERFORD, 2006, p. 99)
328
“Les cultures ne sont jamais unitaires en elles-mêmes, ni simplement dualistes dans la relation à soi ou à l’autre”
(AYOUCH, 2018, p. 56)
329
“Les expériences intersubjectives et collectives d’appartenance à une communauté se négocient alors dans
l’émergence d’interstices, et dans le chevauchement et le déplacement des domaines de différence.” (AYOUCH,
2018, p. 56)
330
“[...] ce n’est pas qu’elle permettrait de retrouver deux moments originels à partir desquels un troisième moment
émergerait ; l’hybridité est plutôt pour moi le ‘tiers-espace’ qui rend possible l’émergence d’autres positions.”
(BHABHA & RUTHERFORD, 2006, p. 99)
313
“que não pode ser reconhecido, um novo terreno de negociação de sentido e representação”331
(BHABHA & RUTHERFORD, 2006, p. 100, tradução nossa).
Tendo apresentado a concepção de “terceiro espaço”, proposta por Bhabha, é importante
situar que Costa (2002) recorre às contribuições do autor de maneira articulada à sua preocu-
pação de retomar a noção de “mulher” como categoria política. Assim, Costa (2002) recorre à
categoria de “terceiro espaço” e propõe que deve ser compreendida com referência à materiali-
dade. Segundo seus termos:

A fronteira, ou “o terceiro espaço” de Bhabha e das teóricas feministas, portanto, de-


veria ser mais frequentemente percebida como o resultado de lutas materiais (pobreza,
racismo, homofobia, sexismo, etc.), e menos como uma conseqüência dos investimen-
tos psíquicos ou da diferenciação infinita de significantes (que, no fim das contas, nos
coloca em um lugar vazio). (COSTA, 2002, p. 89)

Como vimos no início da apresentação das ideias da autora, Costa (2013) situa histori-
camente a construção da categoria “mulher” no interior de discursos e práticas, em relação a
outras categorias também instáveis (classe, raça, etnia, sexualidade, nacionalidade, etc.). Com
a concepção de “terceiro espaço”, que vem romper com a ideia de subjetividades ou culturas
originárias, as contribuições de Bhabha possibilitam, na leitura de Costa (2002), tematizar so-
breposições entre diversas diferenças, com deslocamentos e emergências de interstícios.
Para Costa (2002), o desafio é, portanto, “evitar, por um lado, a armadilha do binarismo
e, por outro, a sedução dos apelos pós-modernos à total fragmentação e dispersão” (p. 79), e,
nessa perspectiva, abrem-se possibilidades, então, para tematizar múltiplos posicionamentos
(que podem inclusive ser contraditórios e conflitantes) nas estruturas de opressão, uma vez que
o campo das relações de poder se configura em diversos sistemas de diferença.
Assim, procuramos delinear uma conceituação de “mulheres” a partir de posições nas
relações sociais. Mas por quê proceder dessa forma? Por quê colocar em cena essa conceituação
e não outras possíveis – por exemplo, em termos de identidade ou performatividade?
Um primeiro motivo se refere à consideração de que a conceituação a partir de posições
nas relações sociais possibilita pensar a materialidade da opressão e situar opressões gênero-
específicas, como procuramos discutir nesta seção. Um segundo aspecto que nos parece funda-
mental é que esta conceituação nos permite levar em conta a posição que ocupamos em relação
a determinado objeto quando nos pronunciamos sobre ele – portanto, que nós, psicanalistas,
interroguemo-nos sobre nossa posição quando nos pronunciamos sobre qualquer objeto.

331
“[...] que l’on ne peut reconnaître, un nouveau terrain de négociation du sens et de la représentation” (BHABHA
& RUTHERFORD, 2006, p. 100)

314
Um terceiro elemento – que, de alguma maneira, articula os dois primeiros, por situar a
materialidade da opressão e o não reconhecimento dessa realidade, que pode vir articulado a
posições de privilégio que ocupamos – encontra-se na possibilidade de pensar o reconheci-
mento a partir dessa posição, que discutiremos, na próxima seção, a partir da proposta de Nancy
Fraser (2002) sobre paridade de participação.

4.4 Uma abordagem não-identitária do reconhecimento

Como veremos nesta seção, Fraser (2018b), sustenta que, para abordar as questões co-
locadas em cena pelos feminismos, precisamos de construção e desconstrução. Antes de chegar
à abordagem proposta pela autora, é importante destacar que essa afirmação passa justamente
por interrogarmos: do que precisamos?
Fraser (2018b) e Mitchell (2017) trazem contribuições interessantes para pensarmos
como Butler responderia a essa pergunta. Fraser (2018b) considera que Butler parte de uma
premissa que faz equivaler libertação com libertação da identidade, ou seja, “entende a liberta-
ção das mulheres como libertação da identidade” (p. 114, grifos da autora).
Mitchell (2017) também faz uma pontuação sobre a que se circunscreve a libertação e
traça um paralelo entre Rubin e Butler. Começando por Gayle Rubin, Mitchell (2017) conta
que a conheceu pessoalmente e que trocaram cartas, e “em uma delas, ela [Rubin] escreveu que
nossos interesses diferiam – que os dela concerniam a opressão resultante da dominação hete-
rossexual, enquanto os meus estavam centrados na dominação masculina”332 (p. 41, tradução
nossa). Logo em seguida, Mitchell (2017) afirma considerar que Butler adota essa mesma pers-
pectiva de Rubin, ou seja, a de afirmar a necessidade da libertação da dominação heterossexual.
Segundo seus termos:

Acredito que Butler expressa o mesmo ponto de vista que Rubin quando se aproxima
do meu trabalho. [...] a leitura crítica de Butler de “Psicanálise e Feminismo” como
uma análise que ataca a dominação heterossexual – leitura muito distante do meu in-
teresse pela situação das mulheres e pela “diferença de sexo”. A explicação psicana-
lítica das mulheres e aquela da homossexualidade/heterossexualidade são muitas ve-
zes confundidas, mas se trata de duas problemáticas diferentes.333 (MITCHELL, 2017,
p. 41-2, tradução nossa)

332
“Dans l’une d’elles, elle écrivait que nos intérêts divergeaient – que les siens concernaient l’oppression résultant
de la domination hétérosexuelle, là où les miens étaient centrés sur la domination masculine.” (MITCHELL, 2017,
p. 41)
333
“Je crois que Butler exprime le même point de vue que Rubin quand elle aborde mon travail. [...] la lecture
critique que Butler fait de Psychanalyse et féminisme comme une analyse qui s’attaque à la domination hétérose-
xuelle – lecture bien éloignée de mon intérêt pour la situation des femmes et la « différence des sexes ». L’expli-
cation psychanalytique des femmes et celle de l’homosexualité/hétérosexualité sont souvent confondues, pourtant
il s’agit de deux problématiques différentes.” (MITCHELL, 2017, p. 41-2)
315
Ou seja, Mitchell (2017) destaca que seu livro, “Psicanálise e Feminismo”, é lido por
Butler como uma análise da dominação heterossexual, o que difere da leitura de Mitchell (2017)
de sua própria obra. Por isso, a autora enfatiza que a questão das mulheres e a da homossexua-
lidade/heterossexualidade correspondem a duas problemáticas diferentes.
Assim, à pergunta “do que precisamos?”, a resposta de Butler seria apontar a necessi-
dade de libertação da identidade – na leitura que Fraser (2018b) faz de Butler – e a necessidade
de libertação da dominação heterossexual – na leitura que Mitchell (2017) faz de Butler. Con-
sideramos que essas duas possibilidades não são incompatíveis na leitura de Butler, uma vez
que os critérios de inteligibilidade estão articulados à heterossexualidade compulsória e a pro-
blematização das identidades aparece muito ligada à problematização da “dominação heteros-
sexual”.
Como destacamos a partir de “Meramente cultural”, no capítulo 2, talvez a resposta de
Butler não seja que precisamos apenas de libertação da identidade e da dominação heterosse-
xual. Talvez as críticas que Butler recebe sejam muito focadas em “Problemas de gênero”. Para
o nosso trabalho, o que particularmente nos interessa é que, ao menos em “Problemas de gê-
nero”, existe uma ênfase nessas dimensões de libertação da identidade e da heterossexualidade
compulsória – lembrando que enfatizar diferentemente não significa desconsiderar aquilo que
não é enfatizado.
Mas, sobretudo, o que pretendemos destacar é que a maneira como Butler é lida por
psicanalistas tende fortemente a ser pela via exclusiva da libertação da identidade e da heteros-
sexualidade compulsória. Por isso, as críticas que são direcionadas pelas autoras a Butler são
tomadas por nós como interrogações a nós, psicanalistas. A partir de trabalhos no âmbito da
psicanálise – entre os quais citamos, no capítulo 2, Zizek (2016), Saez (2004) e Cossi e Dunker
(2017) –, parece bem plausível que a resposta deles à pergunta “do que precisamos?” passaria
por libertação da identidade e da heterossexualidade compulsória. Não há dúvidas de que pre-
cisamos desta libertação, mas o que fica de fora quando adotamos exclusivamente essa pers-
pectiva da libertação da identidade e da heterossexualidade compulsória?
Ao destacar a perspectiva de Butler como visando à libertação da identidade, Fraser
(2018b) – que também mostra-se crítica às políticas de identidade, como apresentamos no ca-
pítulo 1 – considera que também há riscos na leitura de desconstrução. Nas palavras da autora:

[...] a atual proliferação de imagens e significações fungíveis, consumíveis, que des-


reificam a identidade, constitui uma ameaça tão grande à libertação das mulheres
quanto identidades fixas e fundamentalistas. Na verdade, processos de desreificação
e reificação são dois lados da mesma moeda pós-fordista. Eles exigem uma resposta

316
bilateral. As feministas precisam de construção e desconstrução, desestabilização do
significado e projeção de esperança utópica. (FRASER, 2018b, p. 114, grifos da
autora)

Assim, Fraser (2018b) não nega que precisemos de libertação da identidade, como sus-
tenta Butler, mas considera que também precisamos de algo mais, além de desconstrução e
desestabilização de sentidos. Ao longo desta seção, procuraremos discutir a abordagem de
Nancy Fraser sobre justiça social, o que possibilitará delinearmos qual seria, então, a resposta
de Fraser à questão “do que precisamos?”.
Antes de passar à resposta de Nancy Fraser, é importante destacar, também, as interro-
gações lançadas por Mitchell (2017), que questiona a leitura de Butler, apontando que “sua
abordagem à heteronormatividade leva Butler a negligenciar o que é específico à opressão das
mulheres”334 (p. 40, tradução nossa). Para compreender a opressão das mulheres, Mitchell con-
sidera importante reconhecer que “todos nós somos ‘não generificados’ boa parte do tempo,
mas também somos generificados”335 (p. 59).
Importante destacar que Mitchell não deixa de condenar a discriminação contra a ho-
mossexualidade. Não é nesse ponto, portanto, que reside a diferença entre sua perspectiva e a
butleriana, mas em uma diferença de ênfase: o problema que Mitchell (2017) sublinha é o fato
de que transformações ocorreram, mas algo impede as mulheres de avançarem. A contraposição
que Mitchell (2017) estabelece entre sua abordagem e a de Butler fica ainda mais explícita na
seguinte formulação: “Mas Butler é movida pelo desejo de conceber um mundo livre da terrível
discriminação contra a homossexualidade e eu pelo desejo de imaginar um mundo em que a
opressão das mulheres não seja mais ‘inerente’ à organização humana”336 (p. 48).
A autora afirma não conseguir visualizar como discutir a opressão das mulheres a partir
da leitura de Butler, e reitera que considera que essa impossibilidade está relacionada a uma
diferença de ênfase: Butler enfatizaria a necessidade de libertação da dominação heterossexual
e Mitchell enfatizaria a opressão das mulheres considerando que existe algo que impede trans-
formações – algo que inclui mas não se reduz à dominação heterossexual. Nos termos de Mit-
chell (2017):

[...] não vejo como esse pensamento pode nos ajudar a compreender a opressão das
mulheres. De fato: parece não haver mulheres. Talvez a lacuna “que não pode ser

334
“[...] son approche de l’hétéronormativité conduit Butler à négliger ce qui est spécifique à l’oppression des
femmes” (MITCHELL, 2017, p. 40)
335
“[…] nous sommes tous « non genrés » une bonne partie du temps, mais nous sommes aussi genrés”
(MITCHELL, 2017, p. 59)
336
“Mais Butler est animée par le souhait de concevoir un monde débarrassé de l’épouvantable discrimination
contre l’homosexualité et moi par le souhait d’en imaginer un dans lequel l’oppression des femmes n’est plus
« inhérente » à l’organisation humaine.” (p. 48) (MITCHELL, 2017, p. 48)
317
preenchida” entre Butler e eu – e o que motiva minha resposta atual – seja que a
primeira preocupação de Butler seja desenvolver uma explicação para acabar com o
tratamento cruel da homossexualidade como lida através da sexualidade, e que, em-
bora eu não subestime isso, continuo convencida de que alguma coisa outra está em
jogo para as mulheres.337 (p. 59, tradução nossa)

Como enfatizamos ao longo desta tese, Fraser (2018b) sempre destaca a materialidade
da opressão e aponta provocativamente que, diante de graves conflitos e desigualdades, “a con-
versa celebratória, sem críticas sobre as ‘diferenças’ das mulheres é uma mistificação” (p. 113-
4), como apresentamos na seção 4.3. Da mesma maneira, Mitchell (2017) enfatiza a realidade
da opressão, pontuando como as dimensões fundamentais, pelas quais analisou a opressão das
mulheres, permanecem cinco décadas mais tarde. Segundo seus termos:

Hoje, à medida que os ricos e aqueles que enriquecem se reproduzem cada vez menos,
a questão do cuidado (care) substituiu a da reprodução. Enquanto a segunda está em
declínio, o primeiro está crescendo exponencialmente e ainda é amplamente associado
às mulheres. Em todos os lugares, para os pobres e os miseráveis, a reprodução per-
manece central e as atividades do cuidado são realizadas, em seu mundo, por aquelas
e aqueles que, para os ricos, são uma espécie em declínio: os irmãos (mas principal-
mente irmãs) e ajudantes femininas (tias, avós...). A sexualidade sem reprodução para
os ricos pode eclodir em mil flores; para os outros, é o tráfico sexual globalizado,
pesando especialmente sobre as mulheres. Em cada uma das três categorias para mu-
lheres, categorias que propus em 1966 – sexualidade, reprodução e cuidados com as
crianças – algo impede o avanço das mulheres, e tudo afeta e é afetado pela economia,
um domínio ao qual a igualdade escapa a elas.338 (MITCHELL, 2017, p. 63-4,
tradução nossa)

Diante das considerações de Fraser (2018b) e Mitchel (2017) e interrogando a psicaná-


lise, cabe, a nosso ver, colocar a seguinte questão: será que a proliferação de representações
que desreificam a identidade e proclamam que “não existe definitivamente homem ou mulher”
não “constitui uma ameaça tão grande à libertação das mulheres quanto identidades fixas e
fundamentalistas” (FRASER, 2018b, p. 114)? Como esse pensamento pode nos ajudar a com-
preender a opressão das mulheres, como interroga Mitchell (2017)?

337
“[...] je ne vois pas en quoi cette pensée pourra nous aider en quoi que ce soit à comprendre l’oppression des
femmes. En effet : il semble ne pas y avoir de femmes. Peut-être que le fossé « qui ne peut être comblé » entre
Butler et moi – et ce qui motive ma présente réponse –, c’est que Butler se préoccupe en premier lieu d’élaborer
une explication pour mettre fin au traitement cruel infligé à l’homosexualité telle que lue à travers la sexualité, et
que moi, tout en ne sous-estimant pas cela, je demeure convaincue que quelque chose d’autre se joue pour les
femmes.” (MITCHELL, 2017, p. 59)
338
“Aujourd’hui, alors que les riches et ceux qui s’enrichissent se reproduisent de moins en moins, le care a rem-
placé la reproduction. Alors que la seconde décline, le premier se développe de façon exponentielle et est toujours
largement attaché aux femmes. Partout, pour les pauvres et les naufragés de la terre, la reproduction demeure
centrale et les activités du care sont réalisées, dans leur monde, par celles et ceux qui, pour les riches, sont une
espèce en déclin: à savoir, les frères (mais surtout les sœurs) et les aides féminines (tantes, grand-mères...). La
sexualité sans reproduction pour les riches peut éclore en mille fleurs; pour les autres, c’est le trafic sexuel mondi-
alisé, pesant surtout sur les femmes. Dans chacune des trois catégories pour les femmes, catégories que j’ai pro-
posées en 1966 – sexualité, reproduction et soins prodigués aux enfants – quelque chose empêche l’avancée des
femmes, et tout affecte et est affecté par l’économie, domaine dans lequel l’égalité leur échappe.” (MITCHELL,
2017, p. 63-4)

318
Consideramos que o primeiro passo corresponde a reconhecer essas realidades de opres-
são. No capítulo 1, abordamos o debate que ficou conhecido como reconhecimento versus re-
distribuição e vimos que chamar a atenção para redistribuição não significa negar o reconheci-
mento. Apresentamos, também, uma leitura a partir da psicanálise, que procura chamar a aten-
ção para uma outra ordem de reconhecimento. Um possível caminho para discutir o reconheci-
mento, por uma via diferente tanto da proposta por Honneth quanto daquela que apresentamos
a partir da psicanálise, é a proposta de Nancy Fraser sobre paridade de participação.
Conhecida pelas críticas ao modelo do reconhecimento, como discutido no capítulo 1,
Nancy Fraser não propõe a eliminação ou ultrapassamento dessa dimensão. Para evitar o pro-
blema da substituição – que se coloca quando lutas pelo reconhecimento não contribuem para
complexificar e enriquecer as lutas pela redistribuição, mas para as eclipsar e substituir, como
apontamos no capítulo1 –, Fraser (2002) propõe uma concepção bidimensional de justiça. Tal
concepção abrange tanto as preocupações tradicionais das teorias de justiça distributiva (po-
breza, exploração, desigualdade e diferenciais de classe) quanto aquelas destacadas pelas de-
mandas de reconhecimento (desrespeito, imperialismo cultural etc).
A justiça social depende tanto da distribuição justa, na dimensão da distribuição, quanto
de reconhecimento recíproco, na dimensão do reconhecimento – nenhuma basta por si só. Não
se trata, portanto, de optar por uma política de reconhecimento ou de redistribuição, mas, ao
contrário, de buscar uma política que leve em conta os dois aspectos. A autora destaca também
que essas dimensões não aparecem separadamente:

No entanto, a distribuição e o reconhecimento não estão nitidamente separados uns


dos outros nas sociedades capitalistas. Para o modelo de status, as duas dimensões são
intercaladas e interagem causalmente entre si. Questões econômicas, como a distri-
buição de renda, têm subtextos de reconhecimento: padrões de valor institucionaliza-
dos nos mercados de trabalho podem privilegiar atividades consideradas ‘masculinas’,
‘brancas’ e assim por diante em relação àquelas codificadas como ‘femininas’ e ‘ne-
gras’. Por outro lado, questões de reconhecimento – julgamentos de valor estético, por
exemplo – têm subtextos distributivos: o acesso diminuído a recursos econômicos
pode impedir a participação igualitária na produção de arte. O resultado pode ser um
círculo vicioso de subordinação, pois a ordem de status e a estrutura econômica se
interpenetram e se reforçam mutuamente.339 (FRASER, 2000, p. 118, tradução nossa).

339
“Nevertheless, distribution and recognition are not neatly separated from each other in capitalist societies. For
the status model, the two dimensions are interimbricated and interact causally with each other. Economic issues
such as income distribution have recognition subtexts: value patterns institutionalized in labour markets may priv-
ilege activities coded ‘masculine’, ‘white’ and so on over those coded ‘feminine’ and ‘black’. Conversely, recog-
nition issues – judgements of aesthetic value, for instance – have distributive subtexts: diminished access to eco-
nomic resources may impede equal participation in the making of art. The result can be a vicious circle of subor-
dination, as the status order and the economic structure interpenetrate and reinforce each other.” (FRASER, 2000,
p. 118)
319
Para tanto, Fraser (2002) propõe o princípio de paridade de participação, que implica
que a justiça está articulada à possibilidade de interação entre todos os membros da sociedade
como pares. Para isso, são necessárias duas condições. Por um lado, considerando que situações
de privação, exploração e disparidades (no que se refere a riqueza, rendimento e tempo de lazer)
implicam a negação de meios e oportunidades de interação como pares, uma primeira condição
é a “distribuição de recursos materiais que garanta a independência e ‘voz’ dos participantes”
(FRASER, 2002, p. 13). Por outro lado, considerando a necessidade de eliminar padrões insti-
tucionalizados associados à depreciação sistemática de determinadas categorias de pessoas,
uma segunda condição é “que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam igual
respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a conside-
ração social” (FRASER, 2002, p. 13).
Com o objetivo de combater a reificação, Fraser (2002) defende uma concepção não-
identitária de reconhecimento por meio do “modelo de estatuto” (ou “status”), pelo qual o que
requer reconhecimento não seria a identidade específica de um grupo, mas o “estatuto indivi-
dual dos seus membros como parceiros de pleno direito na interação social” (p. 15). Os proble-
mas de reconhecimento não estariam articulados à depreciação e deformação da identidade do
grupo, mas à subordinação social, ao impedimento da participação paritária na vida social.
Atuar contra essa injustiça requer uma política de reconhecimento – mas não uma política de
identidade –, o que significa restituir a participação como membro pleno da sociedade, no
mesmo nível dos outros. Como afirma Fraser (2002):

Considerar o reconhecimento como uma questão de status significa examinar padrões


institucionalizados de valor cultural por seus efeitos sobre a posição relativa dos atores
sociais. Se e quando esses padrões constituem atores como pares, capazes de partici-
par em pé de igualdade na vida social, podemos falar em reconhecimento recíproco e
igualdade de status. Quando, em contraste, eles constituem alguns atores como infe-
riores, excluídos, totalmente outros, ou simplesmente invisíveis – em outras palavras,
como parceiros inferiores à interação social – então podemos falar em não reconheci-
mento e subordinação de status.340 (FRASER, 2000, p. 113, tradução nossa).

Se os padrões institucionalizados constituem alguns membros como inferiores, ex-


cluídos ou invisíveis, existe falso reconhecimento ou subordinação de estatuto. Nessa perspec-
tiva, portanto, o falso reconhecimento é “uma relação social de subordinação transmitida

340
“To view recognition as a matter of status means examining institutionalized patterns of cultural value for their
effects on the relative standing of social actors. If and when such patterns constitute actors as peers, capable of
participating on a par with one another in social life, then we can speak of reciprocal recognition and status equal-
ity. When, in contrast, they constitute some actors as inferior, excluded, wholly other, or simply invisible – in other
words, as less than full partners in social interaction – then we can speak of misrecognition and status subordina-
tion.” (FRASER, 2000, p. 113).
320
através de padrões institucionalizados de valor cultural” (FRASER, 2002, p. 16). A autora
aponta como exemplos: leis matrimoniais que excluem uniões entre pessoas do mesmo sexo e
práticas de policiamento que associam determinadas pessoas por “perfil racial” com a crimina-
lidade.
Os padrões institucionalizados de valor cultural constituem determinadas categorias
como normativas e outras como inferiores, sendo negado a alguns membros da sociedade a
participação na interação no mesmo nível que os outros. A reivindicação de reconhecimento
nesse caso “não visa a valorização da identidade do grupo, mas a superação da subordinação,
procurando instituir a parte subordinada como membro pleno na vida social, capaz de interagir
paritariamente com os outros” (FRASER, 2002, p. 16). Para combater os problemas de reco-
nhecimento, não se privilegia, então, a valorização das identidades de grupo existentes, o que
possibilita evitar a essencialização.
Um elemento importante a ser destacado para os objetivos de nosso trabalho é o esforço
da autora em pensar a questão do reconhecimento a partir de padrões institucionalizados de
valor cultural. Ou seja, busca-se discutir uma materialidade, colocar em cena práticas instituci-
onalizadas, como procuramos situar no capítulo 2. Como afirma a autora:

[...] no modelo de status, o não-reconhecimento não é transmitido por meio de repre-


sentações ou discursos culturais flutuantes. Ele é perpetrado, como vimos, por meio
de padrões institucionalizados – em outras palavras, através do funcionamento de ins-
tituições sociais que regulam a interação de acordo com normas culturais que impe-
dem a paridade.341 (FRASER, 2000, p. 114, tradução nossa).

Um exemplo que evidencia a análise em termos de padrões institucionalizados de valor


cultural são as leis de casamento que negam paridade participativa para gays e lésbicas. Consi-
derando que existem perspectivas afirmativas e transformativas (FRASER, 2006) de aborda-
gem aos problemas de reconhecimento – e também de distribuição –, como discutimos no ca-
pítulo 1, esse problema de reconhecimento pode ser corrigido por meio da legalização do casa-
mento entre pessoas do mesmo sexo ou da desinstitucionalização do casamento. Segundo a
autora:

Como vimos, a raiz da injustiça é a institucionalização na lei de um padrão heterosse-


xista de valor cultural que constitui os heterossexuais como normais e os homossexu-
ais como perversos. Reparar a injustiça requer desinstitucionalizar esse padrão de va-
lor e substituí-lo por uma alternativa que promova a paridade. Isso, no entanto, pode
ser feito de várias maneiras: uma forma seria conceder o mesmo reconhecimento às
uniões de gays e lésbicas que as uniões heterossexuais desfrutam atualmente,

341
“On the status model, moreover, misrecognition is not relayed through free-floating cultural representations or
discourses. It is perpetrated, as we have seen, through institutionalized patterns – in other words, through the
workings of social institutions that regulate interaction according to parity-impeding cultural norms.” (FRASER,
2000, p. 114).
321
legalizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo; outra seria a desinstituciona-
lização do casamento heterossexual, dissociando direitos como seguro de saúde do
estado civil e designando-os de alguma outra forma, como a cidadania. Embora possa
haver boas razões para preferir uma dessas abordagens à outra, em princípio ambas
promovem a paridade sexual e corrigem essa instância do não reconhecimento.342
(FRASER, 2000, p. 115, tradução nossa).

Ao focalizar padrões institucionalizados de valor cultural, o princípio de paridade de


participação proposto por Fraser (2002) delimita uma perspectiva não-identitária do reconhe-
cimento. Não se trata de uma leitura do reconhecimento nos termos de relações intersubjetivas,
como aparece em Honneth (tal como apresentamos no capítulo 1), mas como relação social
institucionalizada. Esse deslocamento é fundamental por afastar a concepção de reconheci-
mento da esfera intersubjetiva e do psiquismo, isto é, de representações, crenças ou atitudes em
relação aos outros. Como afirma Fraser (1997/2017): “o falso reconhecimento [misrecognition]
é uma relação social institucionalizada, não é um estado psicológico” (p. 279).
Como vimos no diálogo com Butler (1996/2017), apresentado no capítulo 2, Fraser
(1997/2017) sustenta que os prejuízos econômicos experienciados por gays e lésbicas consti-
tuem “a essência mesma do falso reconhecimento: a construção material, por meio da institu-
cionalização de normas culturais, de uma classe de pessoas desprivilegiadas que são privadas
da paridade participativa” (p. 284, grifos da autora). Esse ponto é particularmente importante
para nosso trabalho, por situar a materialidade tanto de injustiças de redistribuição quanto de
injustiças de reconhecimento.
Assim, retornando à questão “do que precisamos?”, acreditamos que a resposta de Fra-
ser (2002) passa por indicar que precisamos de justiça social – ou, no caso mais específico,
justiça de gênero –, o que abarca a necessidade de redistribuição e de reconhecimento. Sua
leitura não circunscreve os objetivos das lutas sociais unicamente à esfera da representação, o
que não significa que representação não seja importante.
A ênfase na representação como objetivo aparece no feminismo liberal, com a colocação
em evidência da ascensão de um pequeno número de mulheres, que deixa de lado as restrições
que fazem com que tal ascensão seja impossível para a maioria das mulheres – de maneira que

342
“As we saw, the root of the injustice is the institutionalization in law of a heterosexist pattern of cultural value
that constitutes heterosexuals as normal and homosexuals as perverse. Redressing the injustice requires de-insti-
tutionalizing that value pattern and replacing it with an alternative that promotes parity. This, however, might be
done in various ways: one way would be to grant the same recognition to gay and lesbian unions as heterosexual
unions currently enjoy, by legalizing same-sex marriage; another would be to de-institutionalize heterosexual mar-
riage, decoupling entitlements such as health insurance from marital status and assigning them on some other
basis, such as citizenship. Although there may be good reasons for preferring one of these approaches to the other,
in principle both of them would promote sexual parity and redress this instance of misrecognition.” (FRASER,
2000, p. 115).
322
quem se beneficia são mulheres já privilegiadas, como apontamos, na introdução deste capítulo,
a partir de Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019).
Atualmente, com a importância das redes sociais, a exposição de supostas “histórias de
sucesso individual” caminha de mãos dadas com a concepção de meritocracia. Lembremos que
iniciamos este capítulo destacando que Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019) pontuam que não
devemos confundir feminismo com ascensão individual das mulheres. O mundo das mídias
sociais evidencia como, muitas vezes, a ascensão de mulheres enquanto indivíduos aparece
como “veículo de autopromoção, menos aplicado a libertar a maioria do que a promover a
minoria” (ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 39).
Afirmar que precisamos de justiça social significa, então, enfatizar que não precisamos
de “dominação com oportunidades iguais”, nos termos de Arruzza, Bhattacharya e Fraser
(2019). Como vimos no início deste capítulo, vertentes vinculadas à ideia de “dominação com
oportunidades iguais” buscam que “a opressão no todo social seja compartilhada igualmente
por homens e mulheres da classe dominante” (ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER,
2019, p. 26). Portanto, as autoras pontuam que “seu verdadeiro objetivo não é igualdade, mas
meritocracia” (ARRUZZA, BHATTACHARYA & FRASER, 2019, p. 37).
Enfatizar justiça social significa estar atento às realidades de opressão e de como existe
uma dimensão material que não pode ser desconsiderada. Não significa desconsiderar a esfera
do discurso e das representações, nem recusar as propostas de desconstrução e desestabilização
de sentidos. Significa levar em conta como os efeitos produzidos pelo discurso dependem da
mediação de instituições e de práticas sociais institucionalizadas, o que também precisa ser
considerado nas estratégias pela via da desconstrução. Significa, a nosso ver, considerar que
diante da complexidade dos problemas, precisamos considerar suas múltiplas dimensões e pro-
curar estabelecer articulações. Diante do problema redistribuição versus reconhecimento,
Nancy Fraser aponta que esses dois objetivos podem sim agir um contra o outro, mas nem por
isso opta por uma “solução fácil” de enfatizar um ou outro. Ao contrário, a autora encara todas
as dificuldades que se colocam ao se pensar em redistribuição e reconhecimento, e não um ou
outro.
Lembremos que, como apresentamos no capítulo 1, para Fraser (2002), “A ameaça de
substituição surge quando as duas perspectivas da justiça são consideradas mutuamente incom-
patíveis. Nesse caso, as reivindicações de reconhecimento desligam-se das reivindicações de
redistribuição, acabando por as eclipsar” (p. 12). Os processos não são necessariamente exclu-
dentes, a substituição tende a acontecer justamente quando os consideramos incompatíveis. A

323
nosso ver, a autora chama nossa atenção para um pensamento que evita as dicotomias, que se
afasta de um pensamento em termos de ou isso ou aquilo.
Caberia perguntar, então, se essa teorização é compatível com a psicanálise. Rose (2005)
situa que é frequente a ideia de que o conceito de uma subjetividade dividida seria incompatível
com demandas políticas: “a ideia de uma subjetividade dividida e conflituosa, presa no registro
da fantasia, se opõe diretamente à idéia de protesto legítimo, como é politicamente enten-
dido”343 (p. 13, tradução nossa). No entanto, a autora se contrapõe a essa leitura e lembra que o
fato de a psicanálise se voltar para a fantasia não equivale a desacreditar o enunciado do paci-
ente. Freud não considerou que os relatos de suas pacientes seriam “fantasias de mulheres his-
téricas que inventaram histórias e contaram mentiras” (p. 13, tradução nossa).
Como discutimos no capítulo 3, Elliot (1991) destaca como contribuição importante de
Jacqueline Rose a colocação da subjetividade como problema, perspectiva que tende a não apa-
recer em outras abordagens do debate político. A proposição de Mitchell (2001) sobre sexuali-
dade e inconsciente como causalmente entrelaçados (“causatively intertwined”) indica um pos-
sível caminho para se colocar a subjetividade como problema, como também apresentamos no
capítulo 3. Rose (2005) considera, então, que um problema mais geral para uma análise política
seria:

[...] reconciliar o problema da subjetividade que atribui atividade (mas não culpa),
fantasia (mas não erro), conflito (mas não estupidez) a sujeitos individuais – neste
caso mulheres – com uma forma de análise que também pode reconhecer a força das
estruturas na necessidade urgente de mudança social.344 (p. 14, tradução nossa)

Nesse sentido, Rose (2005) aponta que “talvez para as mulheres seja de particular im-
portância encontrarmos uma linguagem que nos permita reconhecer nossa parte em estruturas
intoleráveis – mas de uma maneira que não nos torne nem as vítimas puras nem as únicas agen-
tes de nossa desgraça”345 (p. 14, tradução nossa). Ou seja, é preciso reconhecer as posições nas
relações sociais, que remetem a algo de ordem estrutural, de uma maneira que não se considere
a mulher como vítima, mas também não como responsável individualmente por sua condição.
Muito diferente do que é proposto por Rose (2005), os relatos, que apresentamos na seção 4.2,

343
“[...] the idea of a conflictual, divided subjectity, caught up in the register of fantasy, is directly opposed to the
idea of legitimate protest as it is politically understood” (ROSE, 2005, p. 13)
344
“[…] reconcile the problem of subjecvity which assigns activity (but not guilt), fantasy (but not error), conflict
(but not stupidity) to indivual subjects – in this case women – with a form of analysis which can also recognise
the force of structures in urgent need of social change” (ROSE, 2005, p. 14)
345
“Perhaps for women it is of particular importance that we find a language which allows us to recognise our part
in intolerable structures – but in a way which renders us neither the pure victims nor the sole agents of our distress.”
(ROSE, 2005, p. 14)

324
sobre a reprodução de situações de opressão no contexto da clínica, evidenciam justamente a
responsabilização do indivíduo, a desconsideração de seu enunciado e da realidade de opressão.
No que se refere à psicanálise, consideramos que o desafio passa, então, pela possibili-
dade de articular isto que é tomado como sendo “uma outra dimensão” e que muitas vezes é
reivindicado como sendo o que seria propriamente psicanalítico – quer seja a singularidade, a
diferença, a não-identidade, o Real, o que está para além da representação – com as dimensões
de reconhecimento e redistribuição. Se enfatizarmos apenas esse “para além da representação”,
a desestabilização de sentido, o “não existe definitivamente homem ou mulher”, corremos o
risco de cair em uma “conversa celebratória” que pode fazer sucesso entre nossos pares, mas
que diz muito pouco ao mundo para além dos nossos consultórios. Ou ainda de incorrer no
problema apontado por Fraser (2002), qual seja, aquele de, ao enfatizarmos exclusivamente
essa dimensão do “para além da representação”, deslocarmos e eclipsarmos as dimensões do
reconhecimento e da redistribuição.

325
Considerações finais

Iniciamos esta tese articulando o desconforto que nos mobilizou para este trabalho e
orientou determinadas tomadas de posição. Ao longo da tese, procuramos evidenciar como as
incidências de perspectivas feministas nos possibilitaram interrogar a psicanálise, e esperamos
que tenha sido possível compreender nosso posicionamento como uma autocrítica, no sentido
proposto por Butler, tal como apresentamos no capítulo 2.
Recordemos que, no prefácio à segunda edição de “Problemas de gênero”, Butler (2005)
pontua que considera o livro feminista, voltado para “examinar criticamente o vocabulário bá-
sico do movimento de pensamento ao qual ele pertence”346 (p. 16, tradução nossa). A autora
destaca que se trata de uma autocrítica, que, a seu ver, “promete uma vida mais democrática e
inclusiva para esse movimento de pensamento”347 (BUTLER, 2005, p. 16, tradução nossa).
Assim como Butler (2005) em relação aos feminismos, nossa intenção, em relação à
psicanálise, foi analisar criticamente o “vocabulário básico do movimento de pensamento ao
qual pertence”, porque acreditamos que uma autocrítica da psicanálise “promete uma vida mais
democrática e inclusiva para esse movimento de pensamento”. Com a visada de uma psicanálise
“mais democrática e inclusiva”, pretendemos assinalar os riscos de reprodução de realidades de
opressão, no âmbito da clínica e de teorizações psicanalíticas, bem como de uma postura enun-
ciativa pretensamente neutra na psicanálise. Na realidade, embora utilizemos o termo “psica-
nálise” no singular, seria mais apropriado falar em “psicanálises”, pois, como vimos, existem
diferentes possibilidades de leitura de Freud, que produzem psicanálises muito diferentes entre
si.
Iniciamos nosso percurso situando o contexto contemporâneo: embora o atual campo da
luta por direitos não se reduza a lutas mobilizadas em torno de categorias identitárias, a afirma-
ção de identidades de grupos socioculturais que reivindicam o reconhecimento de suas especi-
ficidades para que seus direitos sejam assegurados marca uma configuração específica, que
adquire centralidade a partir do final do século XX. Ganha importância, então, uma perspectiva

346
“Je l’ai écrit dans l’esprit de la critique immanente qui cherche à faire l’examen critique du vocabulaire de base
du mouvement de pensée auquel il appartient.” (BUTLER, 2005, p. 16)
347
“Il y avait, et il y a toujours, de bonnes raisons pour entreprendre ce genre de critique et pour distinguer l’auto-
critique – qui promet une vie plus démocratique et inclusive pour ce mouvement de pensée – de la critique qui
cherche à le miner de l’intérieur.” (BUTLER, 2005, p. 16)

326
em que o reconhecimento é concebido predominantemente em termos de reconhecimento da
identidade (FRASER, 2002).
Não estando o conceito de “identidade” delimitado conceitualmente no campo teórico
psicanalítico, sustentamos, a partir de Freud e de autores contemporâneos – como Joel Birman
(1997; 2003), Eduardo Leal Cunha (1992; 2000; 2009) e Yannis Stavrakakis (1999) –, que a
concepção de identificação coloca a impossibilidade da identidade. Enquanto a problematiza-
ção de integridade e permanência, na perspectiva psicanalítica, chama a atenção para o que está
para além da representação, abordagens não-essencialistas da categoria “identidade”, em cam-
pos do conhecimento estrangeiros à psicanálise, situam a discussão no âmbito da representação.
Se essas perspectivas não são, portanto, equivalentes, o que nos parece importante é discutir
em que medida essas formulações estrangeiras à psicanálise possibilitariam interrogar as teori-
zações psicanalíticas.
Situamos essa interrogação a partir dos riscos de “universalismo imaginário”, como pro-
posto por Brubaker (2001). Se pretendemos sustentar um “para além da identidade”, não se
deve, por outro lado, “cegar-se à particularidade” (BRUBAKER, 2001, p. 85, tradução nossa).
Se, por um lado, existem os riscos de essencialismo, por outro, é importante estarmos atentos
para que a problematização da categoria “identidade” não se faça em detrimento da considera-
ção das particularidades nem “em nome de um universalismo imaginário” (BRUBAKER, 2001,
p. 85, tradução nossa).
Consideramos que as conceituações estrangeiras à psicanálise, ao estabelecerem uma
análise que enfatiza a interdependência de diferentes sistemas de opressão na produção de de-
sigualdades, possibilitam interrogar a concepção de identidade enquanto integridade e perma-
nência afastando-se da ideia de um universal, supostamente “neutro”. Nancy Fraser, uma das
interlocutoras do debate que ficou conhecido como reconhecimento versus redistribuição, situa
uma problematização das identidades que, a nosso ver, não se faz em nome de um universa-
lismo, mas da “clareza conceitual que a análise social e a inteligência política exigem”, como
lembra Brubaker (2001, p. 85, tradução nossa).
Fizemos a opção por nos deter no debate reconhecimento versus redistribuição, por con-
siderar que, se, na atual configuração dos movimentos sociais, tem havido uma tendência de
deslocamento da redistribuição para o reconhecimento, isso não significa que necessariamente
seja ou continuará sendo dessa forma. Também não significa que forçosamente exista um des-
locamento ou substituição entre redistribuição e reconhecimento, o que justifica a importância
do debate.

327
A formulação proposta por Honneth (2003c; 2007) do reconhecimento intersubjetivo,
nas esferas de relações afetivas, jurídicas e de estima, culmina na proposição de que “mesmo
injustiças ligadas à distribuição devem ser entendidas como a expressão institucional de des-
respeito social ou, melhor dizendo, de relações não justificadas de reconhecimento” 348
(HONNETH, 2003a, p. 114, tradução nossa).
Essa leitura, que compreende a má distribuição como efeito do falso reconhecimento, é
problematizada por Nancy Fraser (2000). Concordamos com a autora no que se refere aos riscos
que se colocam quando “as reivindicações de reconhecimento desligam-se das reivindicações
de redistribuição, acabando por as eclipsar” (FRASER, 2002, p. 12). A nosso ver, leituras que
colocam toda a ênfase na dimensão ligada às representações podem acabar esvaziando a dimen-
são articulada a algo de ordem estrutural ou institucional.
Atenta a esses riscos, Fraser (2002) sustenta que o reconhecimento em termos de iden-
tidade tenderia a ocultar eixos entrecruzados de subordinação, e, portanto, as relações entre
problemas de reconhecimento e a má distribuição, o que produziria o deslocamento do para-
digma da redistribuição. A autora considera que esse deslocamento é contingente e tende a
acontecer quando “as duas perspectivas da justiça são consideradas mutuamente incompatíveis”
(FRASER, 2002, p. 12).
Fraser (2000) procura, então, evidenciar os termos pelos quais o reconhecimento se-
gundo o modelo da identidade deslocaria o paradigma da redistribuição. Com isso, vimos que
a autora não faz equivaler reconhecimento e identidade: quando essa equivalência se estabelece
e as políticas de reconhecimento se fazem pelo modelo da identidade, colocam-se os riscos de
deslocamento.
O desafio seria, então, articular reconhecimento e redistribuição. No entanto, pode haver
uma interferência entre esses dois tipos de luta, e eles podem acabar por agir um contra o outro.
Inicialmente, Fraser (2006) associa lutas por redistribuição a uma desestabilização da diferença
e lutas por reconhecimento à valorização da especificidade de determinado grupo. Tal catego-
rização, como a própria autora indica, tornaria difícil a busca por esses dois objetivos.
Em seguida, Fraser (2006) afirma que pretende “complicar essas posições” (p. 236) a
partir de duas abordagens: “afirmação”, que busca corrigir efeitos desiguais sem transformar a
estrutura que os produz, e “transformação”, que visa à transformação dessa estrutura.

348
“[...] even distributional injustices must be understood as the institutional expression of social disrespect – or,
better said, of unjustified relations of recognition” (HONNETH, 2003a, p. 114)

328
Mobilizando essas duas concepções, a autora evidencia que lutas por reconhecimento podem
desestabilizar diferenças, assim como lutas por redistribuição podem enfatizar diferenças.
A nosso ver, a problematização do reconhecimento pelo modelo da identidade, proposta
por Nancy Fraser, afasta-se de um universalismo e aponta para a importância da consideração
das particularidades. Na visão da autora, precisamos de redistribuição e reconhecimento, o que
leva a autora a reformular o problema da redistribuição-reconhecimento a partir da paridade de
participação, que retomamos no final da tese.
Também a partir de Fraser (2003a), pudemos situar a existência de uma vulnerabilidade
diferenciada das mulheres, que aparece na leitura da autora por meio da teorização sobre injus-
tiças distributivas e de reconhecimento que são “gênero-específicas”. A luta contra opressões
gênero-específicas organiza demandas que se articulam por e em nome de “mulheres”, catego-
ria que pode ser compreendida em termos de identidade ou em outros termos, como performa-
tividade e posições nas relações sociais.
Considerando os riscos de essencialismo que se colocam a partir da categoria identitária
“mulheres”, o capítulo 2 foi marcado pela tentativa de circunscrever outras possibilidades – não
identitárias – de se pensar essa categoria. Nosso percurso passou por discutir a concepção de
performatividade em Judith Butler, procurando situar relações sociais específicas que tornam
possíveis determinadas performances, bem como pela análise em termos de posições nas rela-
ções sociais a partir de perspectivas feministas materialistas.
No que se refere à performatividade, Butler (1990/2013) sustenta que a identidade seria
efeito de práticas discursivas, da mesma maneira que o gênero é compreendido como perfor-
mativo, não existindo uma essência ou algo pré-discursivo que o fundamentaria. Partindo das
contribuições de Butler, procuramos situar, acompanhando a argumentação de Bourdieu (1982)
e Hennessy (1994), a importância de pensar as mediações que fazem com que determinados
discursos tenham efeito de produção.
A existência de condições de eficácia para que enunciações sejam performativas é assi-
nalada por Bourdieu (1982), com o objetivo de sublinhar que a linguagem não se faz na abstra-
ção de enunciados que afirmam em ato o que realizam, sem um conjunto de práticas sociais e
instituições reais. Partindo da consideração de que aspectos da vida social são discursivamente
mediados, mas sua materialidade não é meramente discursiva, Hennessy (1994) nos possibilita
pensar uma análise em termos de performance que leve em conta as relações sociais que torna-
ram possível tal performance.
Buscamos, então, situar uma compreensão em termos de performance que articule dis-
cursos que produzem aquilo que nomeiam, inscrevendo o campo das representações em práticas
329
socialmente institucionalizadas. Consideramos que existem elementos a partir das próprias for-
mulações de Judith Butler que nos ajudam a pensar essas mediações, assim como nos parecem
particularmente relevantes, nesse sentido, as perspectivas feministas materialistas.
A possibilidade de pensar a categoria “mulheres” em termos de posições nas relações
sociais constitui contribuição de perspectivas feministas materialistas. Ressaltamos que,
quando mobilizamos a concepção de “posições nas relações sociais”, não se trata de posições
fixas, mas de um entrecruzamento dinâmico de relações sociais múltiplas e imbricadas.
A delimitação entre as concepções de “relações interindividuais” (“relations sociales”)
e “relações sociais” (“rapports sociaux”) – que se referem, respectivamente, aos níveis micro e
macro, interindividuais e estruturais (FALQUET, 2016) – possibilita explicitar aspectos da
opressão vivenciada pelas mulheres que ficam obscurecidos na ocorrência de confusões entre
esses dois níveis de análise. Se, de fato, aconteceram mudanças nas relações interindividuais,
as relações sociais continuam a operar sob a forma de exploração, dominação e opressão, o que
explica a permanência das diferenças salariais entre homens e mulheres, bem como a maior
vulnerabilidade das mulheres a violências (KERGOAT, 2010b).
A centralidade é conferida ao trabalho, em uma leitura que evidencia a divisão sexual
do trabalho – com mulheres predominante na esfera reprodutiva e homens na esfera produtiva
e em funções a que se confere maior valor social – como a questão (“enjeu”) das relações sociais
de sexo. Em torno dessa questão, constituem-se os grupos sociais homens e mulheres, de ma-
neira que nem as questões nem os grupos sociais estão dados previamente. Os grupos se cons-
tituem em torno de uma questão, na dinâmica das relações sociais, que são múltiplas e imbri-
cadas (KERGOAT, 2009) – o que situa uma perspectiva crítica em relação à categoria “identi-
dade”.
A perspectiva de imbricação das relações sociais, possibilita, portanto, pensar a opressão
das mulheres a partir da materialidade que se apresenta em relações sociais (rapports sociaux),
a partir de uma dimensão estrutural caracterizada pela organização injusta e desigual do traba-
lho, com base na lógica de sexo, de raça e de classe. Essa imbricação é evidenciada por Falquet
(2008) ao discutir o momento atual do capitalismo e como se configuram as relações de poder
(relações sociais de sexo, de “raça” e de classe) a partir do “trabalho considerado feminino”.
Na introdução da tese, trouxemos alguns dados reveladores de desigualdades e injustiças
a que estão submetidas as mulheres no Brasil. Essa dimensão da opressão não corresponde a
“capturas imaginárias”, mas, ao contrário, a realidades de opressão inscritas em uma materiali-
dade, discursivamente mediada, ao mesmo tempo em que os discursos não são sem articulação
a uma base material. A nosso ver, a análise proposta por perspectivas feministas materialistas
330
possibilita situar uma compreensão possível dessas realidades, a partir da centralidade do tra-
balho e de uma divisão sexual do trabalho.
Essa dimensão material da opressão é retomada na seção que finaliza o capítulo 2,
quando apresentamos o debate entre Judith Butler (1996/2017) – com o texto o texto “Mera-
mente cultural” – e Nancy Fraser (1997/2017) – com a réplica “Heterossexismo, falso reconhe-
cimento e capitalismo: uma resposta a Judith Butler”.
Butler (1996/2017) considera que, a partir do paradigma redistribuição/reconhecimento,
haveria uma tendência que localizaria determinadas opressões como articuladas à esfera eco-
nômica e outras como “meramente culturais”, estando as lutas queer situadas como “mera-
mente culturais”. Por isso, procura interrogar a articulação redistribuição-classe e reconheci-
mento-sexualidade, retomando correntes feministas que articulam a concepção de família ao
modo de produção capitalista, para circunscrever a heterossexualidade normativa como neces-
sária para este modo de produção. Considerando a articulação entre regimes de normatividade
e modo de produção, Butler (1996/2017) argumenta que a homofobia, por exemplo, não poderia
ser considerada “meramente cultural”, mas “localizada no aparato e na prática de sua instituci-
onalização, isto é, em sua dimensão material” (p. 244).
Fraser (1997/2017) discorda do argumento da necessidade da heterossexualidade com-
pulsória para o capitalismo, por considerar que este argumento perde a especificidade da soci-
edade capitalista como forma de organização social e por apresentar uma visão desta sociedade
como um sistema totalizante de estruturas de opressão que se reforçariam umas às outras. No
que se refere ao argumento butleriano de que o paradigma redistribuição/reconhecimento leva-
ria a situar determinadas lutas como “meramente culturais”, Fraser (1997/2017) considera que
sua contraposição entre redistribuição e reconhecimento é lida por Butler como uma distinção
entre material e cultural. Diferentemente, Fraser (1997/2017) explicita que compreende as in-
justiças de redistribuição referidas ao âmbito econômico e as injustiças de reconhecimento ao
cultural, mas ambas são materiais. A autora reforça que considera as injustiças de reconheci-
mento tão materiais quanto as de redistribuição.
Esse ponto é particularmente importante para nosso trabalho, por situar a materialidade
tanto de injustiças de redistribuição quanto de injustiças de reconhecimento. Como vimos, Bu-
tler (1996/2017) sustenta que gays e lésbicas também experienciam prejuízos econômicos, de
maneira que suas lutas não podem ser compreendidas sem uma articulação com a dimensão
material. Fraser (1997/2017) concorda com Butler, reforça que são incontestáveis os dados que
evidenciam a desvantagem material desses grupos, e afirma que esses prejuízos materiais cons-
tituem justamente falso reconhecimento, uma vez que são efeito da institucionalização de
331
significados e normas – o que aparece nas leis, nas políticas etc –, ou seja, “é a essência mesma
do falso reconhecimento: a construção material, por meio da institucionalização de normas
culturais, de uma classe de pessoas desprivilegiadas que são privadas da paridade participativa”
(p. 284, grifos da autora).
O que particularmente nos interessa, a partir dessas contribuições de Butler (1996/2017)
e Fraser (1997/2017), é a possibilidade de pensar opressões gênero-específicas –injustiças de
redistribuição e reconhecimento experienciadas por mulheres – a partir de padrões institucio-
nalizados de interpretação e avaliação, como elemento de mediação. Uma articulação entre
materialidade e discurso é oferecida por Fraser (1997/2017) ao indicar que injustiças de reco-
nhecimento são institucionalizadas – na lei, nas políticas de bem-estar social, na medicina, na
cultura popular –, ou seja, a autora afirma uma “construção material, por meio da instituciona-
lização de normas culturais”.
Como vimos, Kergoat (2010a) evidencia o naturalismo como ideologia da legitimação
da divisão sexual do trabalho, de maneira que a materialidade se revela discursivamente medi-
ada. Por outro lado, o discurso é materialmente mediado, mediação que se faz por meio de
instituições e práticas sociais institucionalizadas, como afirma Fraser (1997/2017), ou como
pontua Butler (1996/2017) ao sustentar que a homofobia “deveria ser localizada no aparato e
na prática de sua institucionalização, isto é, em sua dimensão material” (p. 244). Essa articula-
ção entre materialidade e discurso possibilita, também, uma análise em termos de performance
que leve em conta as condições materiais que possibilitam determinadas performances.
Assim, nosso esforço, ao longo do capítulo 2, foi o de situar outras possibilidades de
pensar a categoria “mulheres”. Não pretendemos pensar tal categoria como uma identidade,
porque concordamos com Ayouch (2018) que “a psicanálise concebe qualquer construção iden-
titária como unificação imaginária que, se é politicamente real, é ontologicamente fantasmática
(p. 124, tradução nossa). No entanto, concordamos também que “a abordagem psicanalítica não
pode simplesmente afastar a questão das identidades minoritárias, referindo sua etiologia à fan-
tasia”349 (AYOUCH, 2018, p. 124, tradução nossa). No caso das mulheres, consideramos que
a psicanálise não pode simplesmente afastar qualquer discussão sobre a opressão vivenciada
pelas mulheres a partir da afirmação do caráter imaginário da identidade “mulheres”. Se, de

349
“La psychanalyse conçoit en effet toute construction d’identité comme unification imaginaire, qui, si elle peut
être politiquement réelle, est ontologiquement fantasmatique. Mais l’approche psychanalytique ne peut se con-
tenter de balayer d’un revers de main cette question des identités minoritaires en renvoyant leur étiologie au fan-
tasme.” (AYOUCH, 2018, p. 124)
332
fato, identidade é uma unificação imaginária, existem realidades de opressão que não corres-
pondem a “capturas imaginárias”.
Buscamos, então, situar uma compreensão da opressão vivenciada pelas mulheres – a
partir de articulações entre materialidade e discurso – e sustentar que “mulheres” não é apenas
uma categoria completamente vazia de conteúdo. Concordamos que não existe nada de “auten-
ticamente feminino” que delimitaria uma identidade. Entretanto, existe uma vulnerabilidade
diferenciada, que não deve ser analisada isoladamente, mas, ao contrário, como vimos com
Kergoat (2009), só pode ser compreendida a partir de relações sociais múltiplas e imbricadas.
Dessa maneira, a categoria “mulheres” não pode ser definida senão em virtude de sua opressão,
o que corresponde à proposição de Butler (1990/2013) ao interrogar: “existiriam traços comuns
entre as ‘mulheres’, preexistentes à sua opressão, ou estariam as ‘mulheres’ ligadas em virtude
somente de sua opressão?” (p. 21).
No sentido de lançar interrogações à psicanálise a partir da consideração dessa dimensão
material da opressão, recorremos, no capítulo 3, a formulações de Freud e Laplanche e a autores
que trabalham o campo da psicanálise em diálogo com os feminismos, entre os quais destaca-
mos Gayle Rubin, Juliet Mitchell, Jacqueline Rose, Patricia Elliot, Laurie Laufer, Pascale Mo-
linier e Thamy Ayouch.
Partimos de uma retomada de momentos da obra freudiana em que podemos encontrar
tematizações da opressão vivida pelas mulheres naquele momento histórico, sobretudo em suas
teorizações sobre neuroses atuais, que são retomadas em “Moral sexual ‘civilizada’ e doença
nervosa moderna” (FREUD, 1908a/1996). Se essas formulações evidenciam a materialidade da
opressão vivida pelas mulheres, não podemos dizer o mesmo de toda a obra freudiana. Como
vimos, Ayouch (2019b) observa em Freud um “movimento pendular, oscilando entre posturas
revolucionárias que rompiam com o seu contexto epistemológico e retrocessos inevitáveis que
inscreviam o seu discurso nas formações discursivas do seu tempo” (p. 79).
A tematização da masculinidade e feminilidade parece, a nosso ver, um desses momen-
tos em que o discurso de Freud aparece inscrito nas formações discursivas do seu tempo. Pon-
tuamos que a articulação entre passividade e feminilidade é apresentada de maneira que parece
ser pressuposta desde o início, e, nesse sentido, concordamos com Rubin (1975/2017), que vê
nos textos freudianos uma descrição da realidade da opressão das mulheres, mas aponta que
existem momentos em que há uma racionalização daquilo que é descrito, que a autora considera

333
problemática. Por isso, Rubin (1975/2017) afirma que “a psicanálise é uma teoria feminista que
não chegou a se configurar plenamente como tal”350 (p. 36).
No que se refere ao “tornar-se mulher” em Freud, retomamos sobretudo suas proposi-
ções nos texto “Sexualidade feminina” (FREUD, 1931/1996) e “Feminilidade” (FREUD,
1933c[1932]/1996), assinalando que existem momentos que evidenciam um naturalismo e ou-
tros em que Freud “se torna mais ‘materialista’”351 (LAUFER, 2014a, p. 18, tradução nossa),
por exemplo, ao tratar de organizações sociais que forçariam a mulher a uma situação passiva.
Considerando o aspecto dialético e de movimento na obra freudiana, tal como sustenta
Laufer (2014a), situamos a possibilidade de diferentes leituras sobre o “tornar-se mulher”, a
partir de Freud. Leituras que sustentam uma concepção essencialista sobre “mulher” e “femi-
nilidade” acabam, muitas vezes, tomando como universal o que é contingente, além de tender
a deslizar para um discurso de mestria. Na contramão dessas leituras e concordando com Freud
que “a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher” mas “indagar como é que a mulher se
forma” (FREUD, 1933c[1932]/1996, p. 117), situamos perspectivas que não buscam “resolver”
o “enigma da feminilidade”.
Nesse sentido, as contribuições de Juliet Mitchell e Jacqueline Rose são fundamentais
por resgatarem proposições freudianas fundamentais – como sexualidade e inconsciente –,
compreendidas como causalmente entrelaçados (“causatively intertwined”), como propõe Mit-
chell (2001), e da articulação entre a concepção de subjetividade – dividida e precária – e a
feminilidade em Freud, como propõe Rose (2001). Nessa perspectiva, abrem-se possibilidades
de leituras não essencialistas que não pretendem descrever o que seria “mulher” a partir de algo
“especificamente feminino”, ou, em outros termos, que não buscam “resolver” as dificuldades
que se colocam a partir da formulação freudiana da feminilidade pela visada da própria femi-
nilidade.
A ideia do “tornar-se mulher” como “tornar-se algo que não se pode descrever” possi-
bilita pensar que não é possível descrever uma região do especificamente feminino que carac-
terizaria a mulher, o que nos remete novamente à concepção de que “mulher” não é definida
senão pela realidade de sua opressão. Como podemos, então, pensar esse “tornar-se mulher” na
perspectiva psicanalítica? Propusemos fazê-lo a partir de normas que operam e falham, como
propõe Rose (2005). Normas que operam por um princípio de hierarquia, como propõe Molinier

350
Na versão francesa, “La psychanalyse est une théorie féministe manquée” (RUBIN, 1975/2010, p. 17).
351
“[...] il se fait plus « matérialiste »” (LAUFER, 2014a, p. 18)
334
(2008), e que falham porque essa hierarquia se coloca para a criança como um enigma a tradu-
zir.
A partir da “teoria da sedução generalizada”, Laplanche (2014c) destaca que, ao realizar
os cuidados da criança, o adulto transmite mensagens “comprometidas”. Como pontua Molinier
(2008), essa “comunicação enigmática” desencadeia um trabalho psíquico na tentativa de tra-
duzir as mensagens que recebe. Para essa tradução, a criança recorre a códigos fornecidos pelo
ambiente cultural (LAPLANCHE, 2014c). No entanto, “esse trabalho de tradução não retraduz
tudo, há um resto, um resíduo”352 (MOLINIER, 2008, p. 162, tradução nossa).
A atribuição de gênero é acompanhada por essas mensagens enigmáticas. Como afirma
Ayouch (2014), o adulto atribui um gênero à criança e envia mensagens prescritivas sobre o
que seria “homem” ou “mulher”, mas há sempre uma ambiguidade em tais mensagens, visto
que “carregam tudo aquilo que o adulto pensa acerca das mulheres e dos homens, mas também
todas as suas dúvidas, ambivalências, incertezas e conflitos inconscientes” (p. 67).
Por enfatizar o que é transmitido de maneira “comprometida”, a leitura de Laplanche
sublinha que as normas operam, ao mesmo tempo em que falham – sendo que a especificidade
da psicanálise seria chamar a atenção para essa falha. Falha no sentido de uma tradução que
deixa restos e que nunca é uma reprodução, porque há deformação do lado do adulto que trans-
mite “mensagens comprometidas” e tradução do lado da criança.
A partir da leitura de Molinier (2008) sobre Laplanche, situamos que as normas operam
por um princípio de hierarquia. A atribuição de gênero não se refere apenas a um masculino e
a um feminino “não socialmente determinados”, mas a uma inscrição na hierarquização que
circunscreve a inferioridade social das mulheres. Essa hierarquia se coloca para a criança como
um enigma a traduzir e, como a tradução sempre é imperfeita e deixa restos, coloca-se a falha,
o imprevisto, o impossível de dizer, o que aponta para aquilo que constituiria a especificidade
de uma leitura psicanalítica.
Ao ler as contribuições de Laplanche a partir da concepção de uma hierarquia, marcada
pela inferiorização das meninas, Molinier (2008) destaca lugares atribuídos – pelas fantasias
parentais ou pelas relações sociais (rapports sociaux) – dos quais não podemos facilmente “es-
capar”. A nosso ver, Molinier (2008), abre a possibilidade de pensar o “tornar-se mulher” en-
quanto fazer a experiência da opressão de uma maneira que possibilita articular o que seria
específico da psicanálise às dimensões da materialidade e do discurso.

352
“[...] ce travail de traduction ne retraduit pas tout, il y a un reste, un résidu” (MOLINIER, 2008, p. 162)

335
A partir dessas articulações que procuramos desenvolver ao longo da tese, o capítulo 4
foi organizado de maneira a trazer a discussão mais especificamente para o campo da clínica e
das teorizações psicanalíticas, situando os riscos de que as tematizações de questões relativas
às mulheres possam acabar circunscritas a uma minoria, bem como a possibilidade de reprodu-
ção de realidades de opressão.
A partir do relato de situações de violência que aparecem na clínica, determinadas teo-
rizações psicanalíticas propõem leituras em termos de “vitimização”. Interrogamos essas pers-
pectivas a partir da necessidade de estabelecer articulações entre o que é tomado como “espe-
cificidade da psicanálise” e outras dimensões de análise, sempre levando em conta relações
sociais específicas, bem como da pontuação de que há uma distância entre, por um lado, “con-
dição de vítima” e, por outro, “vitimizar-se” ou “vitimização”. Como discutimos, a leitura em
termos de “vitimização” pode revelar-se uma maneira de negar as realidades de injustiça, desi-
gualdade e violência.
Essa negação de realidades de opressão pode se fazer presente no contexto da clínica e
de teorizações psicanalíticas, e vem sendo colocada em evidência a partir da busca por um
profissional “psi” orientada por critérios que buscariam garantir que tal reprodução não acon-
tecesse nos espaços da clínica. Santos e Polverel (2016), ao discutirem o que seria um analista
“não seguro”, consideram que o risco estaria associado à expressão de juízos normativos pelo
profissional “psi” ao paciente, de maneira que se trataria de um profissional “cuja escuta estaria
excessivamente comprometida pelo ruído das certezas derivadas do regime de normas de seu
tempo” (SANTOS e POLVEREL, 2016, p. 3).
Observamos relatos sobre a reprodução de situações de opressão no contexto da clínica,
que evidenciam justamente a responsabilização do indivíduo, a desconsideração de seu enun-
ciado e da realidade de opressão. Considerando que as realidades de opressão se impõem –
sendo fundamental poder falar sobre elas – e que pode ocorrer uma reprodução dessas realida-
des no contexto da clínica, o desafio é articular os conceitos fundamentais da psicanálise à
compreensão de regimes de normatividade inscritos em condições sociais de produção.
Como pensar, então, a categoria “mulheres” como constituída em virtude de sua opres-
são? Costa (2013) propõe retomar a noção de “mulher” como categoria política, heterogênea,
cuja construção se dá no interior de discursos e práticas, situada historicamente, e em relação a
outras categorias também instáveis (classe, raça, etnia, sexualidade, nacionalidade, etc.). A au-
tora especifica que não se trata nem de uma essência ontológica, nem de essencialismo es-
tratégico, embora a acepção de posição política implique inicialmente algum essencialismo es-
tratégico.
336
Se é importante a crítica do essencialismo, Mouffe (2010) considera que essa crítica não
é suficiente para a elaboração de um projeto político. Por isso, propõe um duplo movimento:
um descentramento – que impede a fixação em torno de algo dado previamente – e a instituição
de fixações parciais. Essas fixações ocorrem em decorrência da não fixidez: é justamente por
não haver algo fixo – uma identidade que fundamentaria o sujeito – que existe a tendência a se
identificar com algo, mas essas fixações são sempre parciais e em movimento.
Costa (2013) recorre a Mouffe para propor que a articulação de lutas em torno de dife-
rentes formas de opressão, a partir da concepção de mulher como categoria política, passa por
um primeiro momento de desconstrução – destacando seu caráter não-essencial – e um segundo
momento de instituição de pontos nodais ou fixações parciais. Para Costa (2013), essas articu-
lações “estruturariam posições de sujeito em torno da categoria mulher (entendida como efeito
político dessas articulações a partir dos antagonismos e contradições sociais)” (p. 133).
Essas “posições de sujeito” podem ser pensadas a partir da conceitualização de “mulher”
a partir da concepção de posicionalidade (“positionality”), proposta por Alcoff (1988). En-
quanto uma definição essencialista de “mulher” delinearia características da feminilidade – ti-
das como ontologicamente autônomas da posição em relação aos outros ou às condições histó-
ricas e sociais externas –, uma definição posicional considera uma posição em um contexto em
constante mudança, levando em conta as relações com os outros, as condições econômicas ob-
jetivas, instituições culturais e políticas etc. Como posição em uma rede de relações, “mulher é
uma posição da qual uma política feminista pode emergir em vez de um conjunto de atributos
‘identificáveis objetivamente’”353 (ALCOFF, 1988, p. 435).
Assim, procuramos delinear uma conceituação de “mulheres” a partir de posições em
relações sociais múltiplas e imbricadas, em seu aspecto de entrecruzamento dinâmico. Mas por
que proceder dessa forma? Por que colocar em cena essa conceituação e não outras possíveis –
por exemplo, em termos de identidade ou performatividade?
Um primeiro motivo se refere à consideração de que tal conceituação possibilita pensar
a materialidade da opressão e situar opressões gênero-específicas, aspecto que nos leva à uma
segunda dimensão que consideramos fundamental: levar em conta a posição que ocupamos em
relação a determinado objeto quando nos pronunciamos sobre ele, uma vez que o não reconhe-
cimento de realidades de opressão pode vir articulado a posições de privilégio que ocupamos.

353
“[…] woman is a position from which a feminist politics can emerge rather than a set of attributes that are
‘objectively identifiable’” (ALCOFF, 1988, p. 435)
337
Uma terceira possibilidade no que se refere à conceituação a partir de posições nas re-
lações sociais encontra-se na colocação em cena do reconhecimento a partir dessas posições, o
que discutimos a partir da proposta de Nancy Fraser (2002) sobre paridade de participação.
Partimos do dilema redistribuição versus reconhecimento para chegar, ao final, às proposições
de Nancy Fraser que articulam o que discutimos ao longo de nosso trabalho.
A discussão do reconhecimento a partir de padrões institucionalizados de valor cultural
é fundamental para situar tanto as injustiças de redistribuição quanto as de reconhecimento
como materiais. Nancy Fraser (2002) enfatiza a necessidade de justiça social, em uma leitura
que, diante da complexidade dos problemas, busca considerar suas múltiplas dimensões e pro-
curar estabelecer articulações. Diante do problema redistribuição versus reconhecimento, a au-
tora reconhece que esses dois objetivos podem sim agir um contra o outro, mas nem por isso
deixa de pensar em termos de redistribuição e reconhecimento, e não um ou outro.
No que se refere à psicanálise, consideramos que o desafio é articular o que seria a
“especificidade da psicanálise” com a consideração da imbricação entre discurso e materiali-
dade, sendo esta discursivamente mediada da mesma maneira que os discursos são material-
mente mediados. Quais os riscos de não buscar tais articulações e enfatizar apenas o “para além
da representação”, a desestabilização de sentido, o “não existe definitivamente homem ou mu-
lher”?
Como apontamos no capítulo 2, quando Cossi e Dunker (2017) afirmam que “Mulher é
uma construção normativa que promove a ilusão de uma identidade de que tanto Butler quanto
Lacan denunciam a precariedade” (p. 7), perguntamos: mas e “homem”, não é igualmente uma
“construção normativa que promove a ilusão de uma identidade”? Que identidade – majoritária
– funciona nessa enunciação pretensamente neutra? Concordamos com Ayouch (2018) que a
“desconstrução do fantasma da identidade [...] deve ser acompanhada de uma análise da ma-
neira pela qual funciona, na postura enunciativa pretensamente neutra da psicanálise, uma iden-
tidade implícita” (p. 124, tradução nossa).
Ao aproximar as formulações de Butler e a psicanálise exclusivamente a partir do assi-
nalamento do caráter normativo e ilusório de identidades, o que fica de fora? Como discutimos,
consideramos que fica de fora a materialidade da opressão vivenciada pelas mulheres, dimensão
sintetizada brilhantemente por Laura Lee Downs (1993) no título de seu artigo intitulado “Se
‘mulher’ é apenas uma categoria sem conteúdo, por que tenho medo de andar sozinha à noite?”
(“If ‘Woman’ is Just an Empty Category, Then Why Am I Afraid to Walk Alone at Night?”).
Quando Cossi e Dunker (2017) assinalam os riscos articuladas a categorias identitárias,
de fato tais riscos se fazem presentes e de fato existem “capturas imaginárias” que produzem
338
identidades como “unificações imaginárias”. No entanto, como procuramos discutir ao longo
da tese, a existência de realidades de opressão evidencia que nem tudo são “capturas identitá-
rias”. Da mesma maneira, quando Zizek (2016) enfatiza “uma perda comum em razão da qual
uma mulher nunca é plenamente uma mulher e um homem nunca é plenamente um homem”
(p. 291), reconhecemos que existe algo de fundamental em tal proposição, já que aponta para a
divisão e o conflito, que marcam a leitura da subjetividade em uma perspectiva psicanalítica.
Porém, colocam-se, a nosso ver, os riscos de reduzir “mulheres” a uma categoria sem conteúdo.
Ao longo da tese, buscamos evidenciar a pluralidade e a complexidade da discussão
sobre mulheres e feminismos. Toda essa problemática corre o risco de ter sua complexidade
reduzida a partir de uma ênfase exclusiva em “capturas imaginárias” que se insiste em “denun-
ciar”. Se a categoria “mulheres” coloca problemas articulados aos riscos de essencialismo, por
que não pensar essa categoria a partir de uma perspectiva não identitária, ao invés de simples-
mente “denunciar sua precariedade”?
Além disso, lembremos que a perspectiva de imbricação das relações sociais rompe com
qualquer ilusão de integridade e permanência, de maneira que, como propõe Falquet (2014a),
a partir do trabalho de Norma Alarcón e de Gloria Anzaldúa, a ideia de “sujeito unificado” seria
privilégio daqueles que ocupam posição de dominação. Talvez seja interessante também buscar
desconstruir a ilusão de “unidade imaginária” do homem branco, heterocentrado, cisgênero, de
classe privilegiada – afinal são aqueles que ocupam posição de dominação que aparecem como
supostamente “neutros”, “não marcados”, “unificados”.
Diante do “não existe definitivamente homem ou mulher”, talvez caiba perguntar, com
Sojourner Truth: E eu não sou uma mulher? Não sou uma mulher em um país em que a renda
das mulheres é 41,5% menor que a dos homens? Em que homens brancos têm o maior rendi-
mento médio do trabalho e mulheres negras o menor, o que não se alterou significativamente
em um período de 20 anos? Em que a pobreza é maior em famílias de mães solo, e, entre elas,
maior ainda entre as mães solo negras? Em que as mulheres ocupadas despendem, em média,
mais horas semanais às tarefas de casa e cuidados de pessoas do que os homens não ocupados?
Em que, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida? Em que que 11 milhões de brasileiras
são responsáveis, sozinhas, pela criação dos filhos? Se as posições nas relações sociais circuns-
crevem formas concretas e variadas de opressão, eu não sou uma mulher? E eu não sou uma
mulher que, ao assim tornar-me, fazendo a experiência de nossa opressão, deparei-me com o
enigma de nossa inferiorização social, um enigma a traduzir?
Por quais exclusões se produzem determinadas afirmações, elevadas a um estatuto de
universal, “em nome da psicanálise”? O que é condenado ao silêncio? Como interroga Ayouch
339
(2019a) “Por que ponto cego, por qual narcisismo defensivo um(a) analista evacua de sua escuta
os efeitos psíquicos dessas questões sociais e políticas?”354 (p. 5, tradução nossa).
Como vimos, Costa (2002) aponta os riscos de um “feminismo sem mulheres” (p. 69)
articulado a uma perspectiva nominalista. Tal perspectiva “tem o efeito deletério de remover o
gênero de nossa análise, de tornar o gênero invisível mais uma vez”355 (ALCOFF, 1988, p. 420,
tradução nossa). Da mesma maneira, consideramos que é preciso cuidado para não produzirmos
uma “psicanálise sem mulheres”, nesse sentido delimitado por Alcoff (1988) em relação aos
feminismos. Quando mobilizamos a expressão “psicanálise sem mulheres”, nossa intenção é
interrogar uma psicanálise que remove ou invisibiliza questões relacionadas a mulheres – rei-
terando que compreendemos “mulheres” em uma perspectiva não essencialista, como caracte-
rizada por uma posição nas relações sociais que circunscreve formas concretas e variadas de
opressão.
Se é fundamental colocar em cena o “para além da representação”, a desestabilização
de sentido, o “não existe definitivamente homem ou mulher”, os riscos se produzem, a nosso
ver, quando se coloca toda a ênfase nessa análise do que seria “especificamente psicanalítico”.
Pode-se, então, acabar caindo nos riscos de uma posição nominalista, que obscureceria o fato
de que existem diferentes posições nas relações sociais e que a categoria “mulheres” não é vazia
de conteúdo, mas definida por sua opressão. Nosso esforço ao longo da tese passou por susten-
tar que existem outras possibilidades de compreensão da categoria “mulheres”, que não em
termos de identidade. É possível trabalhar em termos de performatividade, situando as relações
sociais específicas que tornam possíveis determinadas performances, e de posições nas relações
sociais. Podemos, assim, afastar-nos do “universalismo imaginário” e de uma postura enuncia-
tiva pretensamente neutra. Contrapondo-nos a uma “psicanálise sem mulheres”, lembramos,
mais uma vez, que Sojourner Truth, no século XIX, já interpelava um suposto universalismo
que só se produz a partir de exclusões. Não nos esqueçamos e façamos reverberar sua interro-
gação: E eu não sou uma mulher?

354
Par quel point aveugle, par quel narcissisme défensif un·e analyste évacue-t-il de son écoute les effets psychi-
ques de ces questions sociales et politiques ? (AYOUCH, 2019a, p. 5)
355
“A nominalist position on subjectivity has the deleterious effect of de-gendering our analysis, of in effect mak-
ing gender invisible once again” (ALCOFF, 1988, p. 420)

340
RÉSUMÉ SUBSTANTIEL
Identités et positions dans les rapports sociaux selon des perspectives féministes :
Questions à la psychanalyse à partir d’articulations entre matérialité et discours

Introduction
Dans une configuration du champ politique devenue centrale à la fin du XXe siècle, les
revendications de droits se structurent de plus en plus autour de la catégorie « identité ». Ainsi,
différents groupes socio-culturels réclament la reconnaissance de leurs spécificités pour que
leurs droits soient garantis, comme l’affirme Fraser (2006). Malgré son importance dans la lutte
politique, le recours aux catégories identitaires suscite des dilemmes, y compris au sein des
mouvements sociaux, dus à la complexité d’un « monde social marqué par de multiples diffé-
rences et inégalités – de classe, “race”, ethnie ou culture, genre, sexualité, entre autres », pour
reprendre les mots d’Almeida (2006, p. 228, nous traduisons).
Si, d’une part, la représentation – au sens discursif – constitue un terme opératoire visant
visibilité et légitimité pour les femmes, elle joue par ailleurs un rôle normatif du langage,
comme le met en évidence Butler (1990/2006). Selon Alcoff (1988), la notion de « femme »
apparaît comme problématique jusque dans les féminismes : alors même qu’il fonctionne
comme la cheville ouvrière des mouvements et théories féministes, sa définition précise est
impossible. Dans la tentative de parler au nom des femmes, on suppose souvent savoir d’emblée
ce qu’elles sont. Or Alcoff (1988) met en garde contre les risques induits par cette supposition :
la misogynie et le sexisme font partie intégrante de la connaissance produite sur les femmes,
par conséquent « notre autodéfinition même se base sur un concept que nous devons décons-
truire et désessentialiser sous tous ses aspects356 » (ALCOFF, 1988, p. 406, nous traduisons).
Toutefois, une fois reconnue l’importance de la désessentialisation et de la déconstruc-
tion, nous ne pouvons nier l’existence de vulnérabilités différenciées – liées aux manières dont
les individus sont perçus ou assignés socialement (par exemple, une personne identifiée comme
un homme noir a plus de chance de subir un contrôle de police, même si aucun contenu identi-
taire ne vient préciser ce qu’« homme noir » veut dire). Que ce soit dans le champ de la psy-
chanalyse ou dans celui des études féministes et queer, différents courants perçoivent l’identité
des femmes uniquement comme une sorte d’unification imaginaire, sans qu’elle ne recèle rien

356
“[…] our very self-definition is grounded in a concept that we must deconstruct and de-essentialize in all of its
aspects” (ALCOFF, 1988, p. 406)
341
de spécifique. Tout au long de cette thèse, nous tenterons d’étayer l’hypothèse selon laquelle
ce qui définit les « femmes » n’est rien d’autre que la réalité des oppressions qui se traduisent
socialement par ces vulnérabilités différenciées.
Face à l’importance de considérer la matérialité des oppressions, nos chemins se sont
tournés vers des perspectives féministes matérialistes – ce qui a suscité à son tour des question-
nements à certaines théories psychanalytiques. Si les psychanalystes ne nient pas l’existence de
dimensions sociales et historiques à l’œuvre dans les phénomènes psychiques, le défi reste celui
d’une articulation effective de ces dimensions aux lectures psychanalytiques. Souvent, ces di-
mensions demeurent dans le domaine de ce que l’on « considère sans considérer », c’est-à-dire
dont l’existence est reconnue sans être abordée par la psychanalyse.
À partir de la problématique sous-tendant cette thèse, un objectif général se dessine :
penser autrement la catégorie « femmes ». Il n’y a certes rien d’« authentiquement féminin ».
Or, il existe en même temps des vulnérabilités différenciées. Alors, la catégorie « femmes » ne
peut être définie qu’en vertu des oppressions qu’elles éprouvent – sachant qu’elles sont inscrites
dans une matérialité autant qu’elles sont médiées discursivement. Aussi, nous tenterons d’exa-
miner comment ces oppressions président à la fabrique de normes qui sont à la fois opérantes
et défaillantes (car toujours déjouées, négociées, rejouées par le sujet, du point de vue psycha-
nalytique notamment, dans ce qui passe par le refoulé et l’indicible). In fine, il s’agira de resituer
différemment les conceptualisations d’identité, performativité et positions dans les rapports so-
ciaux, de sorte à interroger la psychanalyse quant aux risques de reproduction de situations
d’oppression dans le cadre de la clinique et dans les théories psychanalytiques. Il est important
de préciser que, quand nous affirmons prétendre « resituer autrement », l’intention est de mon-
trer qu’il n’existe pas une seule et unique manière d’appréhender les notions d’identité, perfor-
mativité et positions dans les rapports sociaux. Une spécificité découle de l’approche de la ca-
tégorie « femmes » comprise à partir des oppressions subies.
Nos objectifs spécifiques sont alors les suivants :
1. Cerner les problèmes épistémologiques et politiques qu’entraînent des énonciations fon-
dées sur des catégories identitaires ;
2. Débattre des concepts de performativité, de genre et de positions dans les rapports so-
ciaux, selon le constat suivant : si les aspects de l’oppression des femmes sont médiés
discursivement, sa matérialité, elle, n’est pas simplement discursive ;
3. Mettre à l’épreuve la compréhension de la catégorie « femmes » à partir de la réalité des
oppressions et du « devenir femme » en tant qu’expérience de celles-ci ;

342
4. Penser la manière spécifique dont la psychanalyse thématise les questions d’oppression,
à savoir, en éclairant les normes qui en émergent dans leur caractère opérant et défaillant
à la fois ;
5. Montrer dans quelle mesure le fait de ne pas considérer la réalité des vulnérabilités
différenciées entraîne un risque de reproduction des situations d’oppression dans le
cadre de la pratique clinique et des théorisations psychanalytiques.

Méthodologie
En dialogue avec des auteurs qui tentent une transposition de la théorie de la performa-
tivité du genre pour penser les questions raciales, Butler (2005) affirme que « la question n’est
pas de savoir si la théorie de la performativité du genre est transposable à la race, mais plutôt
de voir ce qui arrive à la théorie quand elle est confrontée à la question de la race » (p. 28). Tout
comme Butler, nous considérons plus productif de réfléchir à ce qu’il arrive à la psychanalyse
quand celle-ci vient se frotter à d’autres champs théoriques. Dès lors, nous nous adressons aux
psychanalystes, et notre méthodologie consiste à interroger la psychanalyse à partir de perspec-
tives féministes.
Nous nous inscrivons dans le sillon creusé par Haraway (2009) et sa définition des « sa-
voirs situés » (situated knowledge) – autrement dit, l’idée selon laquelle l’objectivité n’existe
que dans la mesure où l’on reconnaît que toute connaissance est partiale, critique et déterminée
par le lieu depuis lequel elle est produite. Selon cette perspective, quand nous entreprenons
d’examiner un objet, il est nécessaire de nous interroger quant à notre propre position à l’égard
de celui-ci. Alors, il s’agit ici de prendre à bras le corps la question de notre position en tant
que psychanalystes face aux questions de genre et d’oppression.

Structuration des chapitres


Dans le premier chapitre, il est question de différentes conceptions de l’identité et de
la manière dont cette catégorie se présente dans le scénario politique contemporain. Dans le
champ psychanalytique, il y a une mise en avant des risques d’essentialisation et de normalisa-
tion entraînés par la notion d’identité – que le concept d’identification vient précisément mettre
en échec. Cependant, il est primordial de considérer les vulnérabilités différenciées qui fondent
les mouvements sociaux structurés autour de catégories identitaires. L’une des possibles lec-
tures de ces catégories en tant que colonne vertébrale des mouvements est au cœur du débat
autour de la redistribution versus la reconnaissance, que nous présentons dans cette ouverture
de thèse, puis reprendrons à sa conclusion.
343
Nancy Fraser, l’une des interlocutrices de ce débat, insiste sur le fait que les injustices
de redistribution, mais aussi celles liées à reconnaissance, sont matérielles. Cette considération
a ouvert la voie de notre réflexion à des perspectives féministes matérialistes, dont il sera ques-
tion dans le deuxième chapitre. Nous y présenterons les contributions de Judith Butler, en
retraçant différents moments de la pensée de l’auteure. Dans le champ psychanalytique, ses
travaux autour du genre, de sa performativité et de la problématisation des identités sont le plus
souvent mobilisés – notamment l’ouvrage Trouble dans le genre. Cependant, dans son article
« Simplement culturel ? », l’auteure adopte un prisme matérialiste. Celui-ci permet une analyse
en termes de performance tout en désignant les rapports sociaux qui rendent possible une telle
performance, et les médiations nécessaires à un discours pour qu’il soit producteur d’effets.
Pour souligner les conditions sociales de (re)production de différents discours, il nous
importait de d’appréhender le « devenir femme » en tant qu’expérience de l’oppression. Dans
le troisième chapitre, nous reprendrons certains moments de l’œuvre freudienne dans lesquels
cette thématique se dessine. Et ce, à partir notamment de la lecture qu’en fait l’anthropologue
Gayle Rubin (1975/2010) qui y souligne une description de la réalité de l’oppression des
femmes de l’époque. En outre, nous parcourrons également la pensée de psychanalystes qui
établissent un dialogue avec les féminismes. Surtout, nous nous pencherons sur les propositions
de Jean Laplanche et sur la lecture qu’en propose Pascale Molinier, qui nous a permis de repo-
sitionner les contributions de Laplanche quant à l’idée d’un « devenir femme » en tant qu’ex-
périence de l’oppression. Plus précisément, à partir de ces deux auteurs, nous examinons le
processus de socialisation (donc, de devenir) et tout ce qui y est « compromis » dès la transmis-
sion – parce qu’il existe quelque chose de refoulé, d’indicible chez les acteurs de ce processus.
Nous tentons ainsi d’élargir la compréhension de l’oppression vécue par les femmes à
partir d’une matérialité, discursivement médiée – et ce, parce que tout se transmet toujours déjà
de manière « compromise ». Dans le quatrième chapitre, cette façon d’appréhender de la ca-
tégorie « femmes » à partir de la réalité de l’oppression nous conduit aux propositions de Chan-
tal Mouffe et Linda Alcoff. Avec elles, nous pouvons saisir la notion de « femmes » en termes
de positions dans les rapports sociaux. Notre but est ainsi d’interroger la psychanalyse, quant à
la possible reproduction des réalités d’oppression dans le cadre de la pratique clinique et des
théories psychanalytiques. Nous conclurons en reprenant les propositions de Nancy Fraser, qui
permettent d’articuler l’attention aux réalités de l’oppression à la dimension matérielle de celle-
ci.

344
Chapitre 1. Identités et entrecroisements multiples à travers la scène politique contem-
poraine : redistribution et reconnaissance contre un « universalisme imaginaire »

Dans la philosophie occidentale, il existe une longue histoire du terme « identité », mais
son ample usage socio-analytique de ce terme est récent, comme l’affirme Brubaker (2001).
Nous ne faisons ici d’analyse détaillée sur l’évolution historique des sens de ce concept, nous
nous cantonnons plutôt à la compréhension de cette catégorie telle qu’elle apparaît dans les
mouvements sociaux contemporains.
Nous partons ainsi de la proposition de Voegtli (2010), qui comprend la notion d’iden-
tité comme « la résultante provisoire des identifications et des appartenances, résultante qui, à
son tour, a un impact contraignant sur les perceptions et les possibilités d’actions des individus
à l’intérieur des groupes » (p. 206). Plutôt que de recevoir cette idée en tant qu’assertion, il est
intéressant de la retourner en question : l’identité est-elle vraiment la résultante (provisoire,
contingente) de quelque chose qui se donne dans les processus réunissant des personnes au sein
d’un mouvement ? Autrement dit, relève-t-elle de l’ordre de la production ? Si cela est vrai, ce
« quelque chose », qui est certes produit, restreint tout de même d’une certaine manière les
possibilités de ses membres. Ce qui veut dire qu’il produit à son tour. Tout ce qui est de l’ordre
de la production a forcément des effets dans la réalité.
Le concept d’« identité » recèle une tension exprimée par l’idée d’essentialisme. Selon
Woodward (2014), une perspective essentialiste reposerait sur un ensemble de caractéristiques
supposément « authentiques », partagées par tous les membres du groupe, qui ne s’altéreraient
jamais. Une perspective non essentialiste, au contraire, soulignerait l’existence de ressem-
blances et dissemblances entre les membres du groupe, aussi bien que des caractéristiques par-
tagées avec d’autres groupes. En outre, il y aurait une insistance sur les transformations pos-
sibles de la définition même d’appartenance au cours du temps.
L’approche proposée par les Cultural Studies357 se base sur une compréhension non
essentialiste de la catégorie « identité », insistant sur son caractère relationnel, établi par une
marquage symbolique de la différence. Selon la psychanalyse et les perspectives ouvertes par
les Cultural Studies, nous tentons de comprendre comment le travail de constitution d’un

357
Mouvement intellectuel dont les premières manifestations ont lieu en Angleterre à la fin des années 1950, et
qui se constitue, de manière organisée, avec le Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), fondé en 1964,
rattaché à l’université de Birmingham. Ses études se consacrent aux relations entre culture contemporaine et so-
ciété; elles examinent les formes des pratiques culturelles et les institutions, tout comme leurs liens avec la société
et les changements sociaux (ESCOSTEGUY, 2010).

345
« nous » passe par la définition des frontières par rapport à ce qui est considéré comme extérieur
– ce qui implique des mécanismes d’inclusion et exclusion, la désignation d’adversaires, la
solidarité interne, etc. (VOEGTLI, 2010).
La sociologue Avtar Brah établit une articulation entre identité et différence : en lieu et
place d’une identité fixe, elle avance plutôt l’existence de différentes positions du sujet, cons-
tituant une multiplicité relationnelle en transformation constante. Face aux contingences per-
sonnelles, sociales et historiques, les identités prennent différentes formes. Brah (2006) les
compare aux motifs d’un kaléidoscopique – dont images changent à mesure qu’on le fait tour-
ner, même si un motif peut susciter, l’espace d’un instant, l’impression de permanence. Il s’agit
d’une simple impression, car ce motif est provisoire et situé – c’est-à-dire, intrinsèquement lié
à la position du kaléidoscopique au moment de son apparition.
Pour reprendre les mots de Brah (2006), le concept de différence « a trait à la variété
des manières dont les discours spécifiques de la différence sont constitués, contestés, reproduits,
resignifiés » (p. 374, nous traduisons à partir du portugais). Selon ses multiples constructions,
ce concept peut avoir des effets « d’inégalité, d’exploitation et d’oppression » ou, au contraire,
renvoyer à des idées « d’égalité, de diversité et de formes démocratiques d’action / agentivité
politique » (BRAH, 2006, p. 374). Cependant, Brah (2006) avertit quant à la difficulté à « dé-
mêler ces différents mouvements du pouvoir. Des discours nationalistes peuvent servir aux
deux fins » (p. 375).
Que ce soit dans le cadre de la pratique intellectuelle ou dans les processus sociaux, la
réification demeure toujours une possibilité : ce qui n’était qu’identité supposée est cristallisé,
de façon à transformer une fiction politique en essence, selon l’analyse de Brubaker (2001). Et
ce, parce que la notion d’identité (tout comme la « race », la « nation », la « citoyenneté »)
constitue une catégorie à la fois dans la pratique et dans l’analyse sociale et politique. Brubaker
(2001) comprend les « catégories de la pratique » du point de vue bourdieusien, à savoir comme
des catégories développées par des acteurs dans leur expérience sociale quotidienne. Il s’agirait
ainsi de catégories « populaires », par opposition aux catégories « scientifiques », utilisées par
les analystes, bâties souvent assez loin de l’expérience.
En tant que catégorie pratique, l’« identité » peut être utilisée au quotidien, à travers un
« discours identitaire » qui tente de rendre compte de soi, de ce que l’on partage ou pas avec
les autres. Au sein de luttes politiques, elle peut être mobilisée pour exprimer les intérêts et les
difficultés des personnes qui y sont engagées, en montrant en quoi leur situation diffère ou se
rapproche de celle d’autres, pour canaliser l’action collective dans une direction déterminée –
ce que nous pouvons appeler des « politiques identitaires » (BRUBAKER, 2001).
346
L’auteur attire l’attention à l’importance de ne pas reproduire ou renforcer une réifica-
tion quand l’on adopte des catégories pratiques dans un but analytique. Il est tout à fait possible
d’étudier un discours ou une politique nationaliste, raciste ou identitaire, sans pour autant pré-
supposer l’existence de la « nation », la « race » ou l’« identité ». (BRUBAKER, 2001). Le
débat autour de la question de l’identité devient ainsi un problème à la fois politique et épisté-
mologique.
Au long de la thèse, nous analysons de manière détaillée la notion d’identité et la façon
dont elle apparaît dans les mouvements sociaux contemporains. Nous mettons également à
l’épreuve l’idée selon laquelle, sous prétexte que l’identité n’est pas une catégorie psychanaly-
tique, le débat autour de cette catégorie n’aurait pas sa place dans le champ psychanalytique ou
que cela dispenserait d’articuler les notions d’identité et d’identification. Dans le cadre de ce
résumé, nous ne nous attarderons pas sur ces détails, mais nous contenterons d’examiner l’une
des possibles lectures du problème des identités en tant que catégorie structurante pour les mou-
vements collectifs : le débat de la redistribution versus la reconnaissance. Celui-ci est impor-
tant, car il permet de mettre à l’épreuve la question des identités, comme le fait Nancy Fraser,
sans pencher vers l’universalisme.
Les notions d’identités et de particularités comportent certes des risques – l’essentiali-
sation, le communautarisme, entre autres périls également abordés au long de la thèse. Toute-
fois, en leur absence, le surgissement d’un « universalisme imaginaire », pour reprendre les
mots de Brubaker (2001), paraît tout aussi problématique. À la fin des années 1970 aux États-
Unis, le mouvement féministe noir (Black feminism) met en lumière l’interdépendance des rap-
ports de pouvoir avec les questions de race, sexe et classe – rendant visible la fausse neutralité
du féminisme blanc, bourgeois et hétéronormatif (HIRATA, 2014).
Pour mettre en avant des risques liés à l’universalisme, Brubaker (2001) exhorte à ne
pas négliger les particularités au nom de l’universalité. Celles-ci ne doivent être gommées par
la notion d’identité lors d’aucune analyse sociale : « Il est temps maintenant d’aller au-delà de
l’“identité” – non pas au nom d’un universalisme imaginaire, mais au nom de la clarté concep-
tuelle que requièrent l’analyse sociale et l’intelligence politique », (FRASER, 2000, p. 85).
C’est précisément ce que fait Nancy Fraser, à nos yeux, en mettant en tension les questions
d’identité et d’universalisme, dans le débat redistribution versus reconnaissance.
Si le philosophe Charles Taylor a été le premier à élaborer le concept de reconnaissance,
l’approche d’Axel Honneth a connu un plus grand écho dans champ de la théorie sociale
(GARRET, 2013a), avec l’ouvrage La Lutte pour la reconnaissance, publié en 1992 et traduit
en français aux éditions du Cerf en 2000. Le point d’orgue du débat a donné lieu à la publication
347
de Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange, en 2003, un dialogue
entre Axel Honneth e Nancy Fraser (AMADEO, 2017).
La sociologue Brigitte Fowler (2009) établit un parallèle entre les propositions de Nancy
Fraser et la tradition marxiste, et celles de Honneth et la pensée hégélienne. Elle affirme que
« la théorie de la reconnaissance [d’Axel Honneth] est encore trop hégélienne. Fraser, au con-
traire, est moins idéaliste. Sur ce point, elle s’approche plus de Marx, dont les écrits […] tour-
nent autour de deux éléments irréductibles : le capital matériel (économique) et la reconnais-
sance358 » (p. 146-7, nous traduisons). Au regard de l’influence majeure de ces deux auteurs,
nous avons pris le temps, au cours de la thèse, de présenter de manière étayée la dialectique du
maître et de l’esclave de Hegel et certains concepts fondamentaux de la théorie marxiste – tels
que le travail et les mouvements sociaux. Nous ne le ferons pas ici.
Axel Honneth (2003c ; 2007) se base sur la notion de reconnaissance formulée par He-
gel, selon laquelle il existerait des préconditions intersubjectives au surgissement de la cons-
cience de soi individuelle. Ces préconditions impliqueraient l’expérience de la reconnaissance
sociale. Ce processus est articulé à une interrelation dynamique des luttes intersubjectives dans
lesquelles « les sujets tentent de gagner l’acceptation pour revendiquer le respect de leur propre
identité », (HONNETH, 2007, p. 83, nous traduisons du portugais). Autrement dit, la subjecti-
vité se constitue en reconnaissant et en étant reconnue par un autre sujet, dans les relations
interactives, donc.
Honneth (2003c ; 2007) théorise ces relations selon trois sphères distinctes de la socia-
bilité : les relations affectives (l’amour et l’amitié) participent au développement de la con-
fiance en soi ; les relations juridiques (les droits) suscitent le respect de soi ; enfin, les relations
d’estime (la communauté de valeurs, la solidarité) génèrent l’estime de soi. D’après ce modèle
identitaire, comme le rappelle Spinelli (2016), la formation de l’identité individuelle dépend de
la reconnaissance dans ces trois sphères de relations intersubjectives.
Selon cette perspective, la dévalorisation de certains groupes par la culture dominante
constitue un problème de manque de reconnaissance. Quand celui-ci concerne les relations pri-
maires, il entraîne des atteintes à l’intégrité physique (maltraitance et violations) ; dans la sphère
juridique, le manque de reconnaissance affecte l’intégrité sociale par la privation de droits et

358
“[…] his recognition theory is still too Hegelian. Fraser, in contrast, is less idealist. In this respect she is closer
to Marx, whose writings – from the Early Writings to the critique of the slave-like subdivision of labour in Capital
– revolve around the two irreducible elements: material (economic) capital and recognition” (FOWLER, 2009, p.
146-7)

348
l’exclusion ; enfin, en ce qui concerne les communautés de valeurs, ce problème s’exprime par
dégradations et offenses, et porte atteinte à l’honneur et la dignité (HONNETH, 2003c).
Fraser critique l’approche d’Axel Honneth qu’elle considère psychologisante. En effet,
l’analyse proposée par Honneth se cantonne, selon Fraser, aux dimensions psychiques du pro-
blème et à des explications simplement liées aux dimensions identitaires (2003b). Par ailleurs,
elle insiste sur les risques entraînés par le modèle identitaire, qui peuvent conduire à la réifica-
tion et au communautarisme (2002). En outre, réduire la question de la reconnaissance à sa
simple dimension culturelle revient à occulter les problèmes de mal distribution. L’approche
identitaire occulterait ainsi, selon Fraser, certains axes entrecroisés de subordination.
Nancy Fraser associe alors à la compréhension de la justice sociale la notion de redis-
tribution. L’injustice sociale peut alors être comprise d’un point de vue économique, par l’ex-
ploitation – c’est-à-dire par l’expropriation du fruit de son propre travail. Elle se manifeste
également dans la marginalisation sociale – à savoir, le fait d’être contraint à un travail non
désiré et mal rémunéré ou ne pas avoir accès au travail rémunéré. Enfin, cette injustice peut se
traduire par la privation – soit, par un niveau de vie insuffisant. Ce sont toutes des inégalités
basées sur la structure économique. La nature de ces injustices socioéconomiques a été exami-
née à partir de la théorie marxiste sur l’exploitation capitaliste. Ainsi, la lutte contre ces injus-
tices passe par la restructuration politico-économique – pouvant impliquer la redistribution de
revenus, la réorganisation de la division du travail, la transformation des structures qui sous-
tendent le système économique et produisent des inégalités (la financiarisation et la privatisa-
tion des biens publics, la fiscalité etc.). Ces actions font partie de ce que Fraser (2006) appelle
redistribution.
Par conséquent, quand l’auteure en vient à considérer l’injustice sociale sous le prisme
de la reconnaissance, elle l’articule aux hiérarchies institutionnalisées de la valeur culturelle.
Elle relie le champ culturel ou symbolique à la question de l’injustice à travers les normes
sociales de représentation, d’interprétation et de communication. Celles-ci entraînent la domi-
nation culturelle – c’est-à-dire, la soumission à des normes d’interprétation et de communica-
tion d’une autre culture ; l’occultation – soit, l’invisibilisation causée par des pratiques com-
municatives, interprétatives et de représentation ; enfin, le manque de respect – à savoir, la
dévalorisation par des représentations culturelles publiques stéréotypées et/ou dans les interac-
tions de la vie quotidienne, ce qui produit des problèmes de reconnaissance (FRASER, 2006).
L’injustice sociale doit être combattue par certains changements culturels ou symbo-
liques – autrement dit, par la reconnaissance. Celle-ci implique la revalorisation des identités
dépréciées et la mise en valeur de la diversité culturelle. Ou, « plus radicalement encore, elle
349
peut nécessiter un vaste changement des normes sociales de représentation, d’interprétation et
de communication, de sorte à transformer le sens du moi et de toutes les personnes »,
(FRASER, 2006, p. 232, l'auteure souligne, nous traduisons du portugais). Dès lors, il y a ten-
tative de transformation de l’ordre symbolique par la déconstruction des termes sous-jacents
aux différenciations produites par les discours de valorisation identitaire (FRASER, 2002).
À chaque dimension de l’injustice, il faut envisager une forme spécifique et non exclu-
sive du combat. Selon Fraser (2002), « la menace de substitution surgit quand les deux pers-
pectives de la justice sont considérées comme mutuellement incompatibles. Dans ce cas, les
demandes de reconnaissance se déconnectent des revendications pour la redistribution, et finis-
sent par éclipser ces dernières » (p. 12, nous traduisons du portugais). L’auteure défend la thèse
selon laquelle la redistribution ne peut être subsumée à la reconnaissance ; elle cherche au con-
traire à « développer une approche de la reconnaissance qui puisse accommoder toute la com-
plexité des identités sociales, au lieu de promouvoir la réification et le communautarisme359 »
(FRASER, 2000, p. 109, nous traduisons).
Cependant, la coexistence de ces deux luttes ne va pas sans tensions, et elles peuvent
agir l’une contre l’autre. C’est pourquoi Fraser (2006) aborde ce problème sous le terme de
« dilemme redistribution / reconnaissance » (p. 233). Dans le contexte capitaliste, Fraser émet
l’hypothèse selon laquelle les résultats escomptés par la lutte pour la reconnaissance sont par-
fois contreproductifs :

[…] Il n’est absolument pas évident que les luttes actuelles pour la reconnaissance
contribuent à compléter ou approfondir celles pour la redistribution égalitaire. Bien
au contraire, dans le contexte d’ascension du néolibéralisme, ces luttes-là peuvent
contribuer à disloquer celles-ci. Alors, les victoires récentes selon notre compréhen-
sion de la justice sont peut-être enchevêtrées à une défaite tragique. Au lieu d’arriver
à un paradigme plus vaste et riche, capable d’embrasser aussi bien la redistribution
que la reconnaissance, nous substituons un paradigme tronqué à un autre : un écono-
misme tronqué par un culturalisme également tronqué. (FRASER, 2002, p. 9, nous
traduisons du portugais)

Ce dilemme touche à la question du genre développée au cours de la thèse. Selon Fraser


(2003a), le genre « est une différenciation sociale bidimensionnelle. Ni simplement une classe
ni purement un groupe statutaire, le genre est une catégorie hybride enracinée simultanément
dans la structure économique et dans l’ordre statutaire de la société360 » (p. 19, nous traduisons).

359
“[…] developing an account of recognition that can accommodate the full complexity of social identities, in-
stead of one that promotes reification and separatism” (FRASER, 2000, p. 109)
360
“Gender, I contend, is a two-dimensional social differentiation. Neither simply a class nor simply a status group,
gender is a hybrid category rooted simultaneously in the economic structure and the status order of society”
(FRASER, 2003a, p. 19)
350
En effet, le genre organise le fonctionnement économique de la structure sociale capi-
taliste. La division structurelle du travail passe par lui : avec, d’un côté, les activité « produc-
tives », donc rémunérées ; et de l’autre, les tâches « reproductives » et domestiques, exécutées
gratuitement, principalement par les femmes. La répartition genrée opère également dans le
cadre du travail rémunéré : les postes à haute valeur rémunératrice sont majoritairement occu-
pés par des hommes et ceux les moins rémunérés sont réservés surtout aux femmes – principa-
lement, pour reprendre les mots de Fraser (2003a), dans des métiers de type « col rose » (p. 20),
à savoir, ceux liés aux services domestiques et de soin.
La structure économique produit alors des formes « genrées » d’injustice distributive
(FRASER, 2003a), avec des modes d’exploitation, de marginalisation et de privation articulés
au genre. Fraser affirme ainsi que « le genre se manifeste comme une différenciation apparentée
à la classe, qui est enracinée dans la structure économique de la société361 » (FRASER, 2003a,
p. 20, nous traduisons). Pour éradiquer cette injustice, l’auteure souligne l’importance « d’abo-
lir la division du travail selon le genre – en ce qui concerne à la fois la répartition genrée entre
travail rémunéré et non rémunéré et la division selon le genre au sein même du travail rému-
néré362 » (FRASER, 2003a, p. 20, nous traduisons).
Outre le genre, la différenciation de l’évaluation culturelle – qui renvoie également à la
question de la reconnaissance – constitue également un marqueur économico-politique. Il est
alors indispensable de considérer l’androcentrisme en tant que norme institutionnalisée. Autre-
ment dit, tout ce qui est associé à la masculinité est valorisée socialement, contrairement au
« féminin », qui est disqualifié – ce qui inclut, sans s’y limiter, les « femmes ». Selon Fraser
(2003a) « non seulement les femmes, mais tous les groupes au statut social inférieur risquent la
féminisation, et donc la dépréciation363 » (p. 20, nous traduisons).
En raison des normes d’interprétation et d’évaluation androcentrées, les femmes « su-
bissent des formes genrées de subordination statutaire364 » (FRASER, 2003a, p. 21, nous
traduisons). L’auteure met cette dévalorisation en relation avec des situations telles que la vio-
lence, l’exploitation sexuelle et domestique, les représentations réifiantes dans les médias, le
harcèlement et la disqualification dans la vie quotidienne, l’exclusion et la marginalisation dans
les sphères publiques et les processus décisionnels, etc.

361
“[…] gender appears as a class-like differentiation that is rooted in the economic structure of society”
(FRASER, 2003a, p. 20)
362
“[…] abolishing the gender division of labor – both the gendered division between paid and unpaid labor and
the gender divisions within paid labor” (FRASER, 2003a, p. 20)
363
“[…] not just women but all low-status groups risk feminization ad thus depreciation” (FRASER, 2003a, p. 20)
364
“[…] suffer gender-specific forms of status subordination” (FRASER, 2003a, p. 21)
351
Ces injustices sont « relativement indépendantes de l’économie politique, et pas simple-
ment “supra-structurelles”. C’est pourquoi elles ne peuvent être surmontées par la seule redis-
tribution, mais exigent de mesures additionnelles et indépendantes, liées à la reconnais-
sance365 » (FRASER, 2003a, p. 21, nous traduisons). Cette situation exige la transformation des
valeurs culturelles, un décentrement des normes androcentrées, la reconnaissance positive d’un
groupe déprécié et des normes qui expriment un respect égalitaire envers les femmes.
Il existe des corrélations entre les deux sphères d’injustice : dès lors que les normes
culturelles sexistes et androcentrées sont institutionnalisées, le désavantage économique res-
treint la « voix » des femmes. C’est alors que surgit le dilemme posé par les directions opposées
que poursuivent les mesures en faveur de la reconnaissance et celles en faveur de la redistribu-
tion, comme l’explique Fraser (2006) :

Tandis que la logique de la redistribution cherche à en finir avec cette affaire de genre,
la logique de la reconnaissance est de valoriser la spécificité du genre. Voici alors la
version féministe du dilemme redistribution-reconnaissance : comment les féministes
peuvent-elles lutter à la fois pour abolir la différenciation de genre et pour valoriser la
spécificité de celui-ci ? (p. 235, nous traduisons du portugais)

À cet égard, les contributions de Joan Wallach Scott (1998) sont indispensables. Dans
La citoyenne paradoxale : les féministes françaises et les droits de l’homme, l’auteure aborde
la difficulté qu’entraîne la prise de parole de « femme(s) » dans le cadre des mouvements so-
ciaux féministes. Alors que celle-ci se fait au nom d’une défense de l’égalité, elle doit pourtant
recourir à la différence :

[Le but du féminisme] était d’éliminer la « différence sexuelle » de la politique et


pourtant il devait le faire au nom de « femmes » (qui sont elles-mêmes un produit dans
le discours de la « différence sexuelle »). Et dans la mesure où il œuvrait en faveur
des « femmes », le féminisme reproduisait cette « différence sexuelle » qu’il tentait
d’éradiquer. Toute son histoire en tant que mouvement politique repose sur ce para-
doxe : la nécessité d’affirmer et de refuser à la fois la « différence sexuelle. »
(SCOTT, 1998, p. 20)

En protestant contre la discrimination des femmes, le mouvement promeut des actions


tournées vers elles. En agissant en leur faveur, le féminisme finit par produire la différence
sexuelle qu’il cherchait à éliminer, parce qu’il attire l’attention sur cela même qu’il cherchait à
éradiquer, selon les mots de Scott (2005). Dans le but d’interroger ce paradoxe dans le deu-
xième chapitre de la thèse ainsi que ci-dessous, nous introduirons certaines idées portées par
Judith Butler et des théoriciennes du féminisme matérialiste. Nous cherchons ainsi à élargir les

365
“[…] relatively independent of political economy and are not merely ‘superestructural’. Thus, they cannot be
overcome by redistribution alone but require additional, independent remedies of recognition” (FRASER, 2003a,
p. 21)
352
possibilités de compréhension de l’oppression des femmes et de la notion même de « femmes »
en tant que sujet des féminismes.

Chapitre 2. Qu’est-ce qui reste après la déstabilisation des identités ? Dialogue


entre les perspectives matérialistes et queer

Puisque l’idée même d’identité repose sur des fictions produites de manière discursive,
les conséquences des politiques basées sur les identités interrogent de nombreuses auteures dans
les études féministes et queer. La notion même de féminité est à déconstruire, car les contenus
associés à la catégorie « femmes » ont été définis selon les termes de ceux qui perpétuent la
domination, comme l’affirme l’historienne Laura Lee Downs (2008).
Toutefois, dans son texte au titre extrêmement significatif, « Si “femme” n’est rien de
plus qu’une catégorie sans contenu, alors pourquoi ai-je peur de rentrer seule le soir ? », Downs
(2008) souligne les limitations de la voie déconstructiviste. Cette catégorie ne relève pas sim-
plement de l’attribution, mais aussi de l’imposition – ou, dirions-nous volontiers, de l’oppres-
sion. Malgré l’importance de sa déconstruction, la notion de féminité fait partie intégrante de
l’expérience ; elle est opérante car des individus concrets éprouvent ses effets, dans un monde
sensiblement organisé selon des catégories de genre. Downs affirme :

La résistance par la déconstruction ne peut, par conséquent, nous offrir qu’une demi-
stratégie : une stratégie ôtant à la catégorie « femme » sa centralité en montrant que
c’est un construit textuel et social, mais laissant de côte les dilemmes des femmes
concrètes, lesquelles ont à vivre comme sujets dans le temps de l’histoire. Ce n’est
pas un point négligeable car, comme Denise Riley le souligne, la catégorie « femme »
englobe toujours non seulement ce qui est « attribué » aux femmes, mais aussi ce qui
leur est imposé et ce qu’elles vivent. Pour les individus concrets qui vivent en société,
la différence sexuelle n’est pas seulement quelque chose qu’on peut débattre dans un
coin avant de l’y abandonner. Car les individus ont à incarner ces catégories sexuées,
même lorsqu’ils s’efforcent de les défaire. (DOWNS, 2008, p. 72)

Dans le deuxième chapitre de la thèse, les problèmes liés à la déconstruction ont été
l’occasion d’examiner à la fois des perspectives féministes matérialités et les propositions de
Judith Butler dans Trouble dans le genre. Cette dernière établit un dialogue avec Nancy Fraser,
qui apparaît en filigrane dans le texte « Simplement culturel ? », dans lequel Butler adopte une
position matérialiste.

Genre et performativité selon Judith Butler


Joan Scott a creusé le sillon de l’usage historien de la catégorie analytique « genre ».
Elle reprend à son compte la différence établie entre sexe et genre dans les années 1960, par le

353
psychanalyste Robert Soller. Mais celui-ci les distingue dans un contexte de promotion des
interventions chirurgicales visant à « l’adaptation » de l’anatomie génitale à l’identité sexuelle
des sujets, dans les cas où le « genre » ne coïncide pas avec le « sexe » (par exemple chez les
personnes intersexes ou trans) (PEDRO, 2005). Scott, elle, va plus loin, en montrant à quel
point le genre se constitue à l’intérieur des relations de pouvoir. En effet, selon Scott « le genre
est l’organisation sociale de la différence sexuelle » : il ne reflète en rien des supposées diffé-
rences physiques ou naturelles entre hommes et femmes, mais établit des significations histori-
quement situées pour ces différences. Dès lors, le genre, selon Scott, consiste en « un savoir
concernant les différences sexuelles » (SCOTT, 1994, p. 12, nous traduisons du portugais).
Scott (1994) utilise le terme « savoir » au sens foucaldien, autrement dit, « une compré-
hension produite par les cultures et les sociétés sur les relations humaines, en l’occurrence, entre
hommes et femmes » (p. 12, nous traduisons du portugais). Selon cette acception, le savoir n’est
pas synonyme d’idées, mais se réfère aux institutions et aux structures, à des pratiques quoti-
diennes, aux relations sociales. Il est ainsi relatif, construit par une processus historique com-
plexe. En ce sens, ce savoir renvoie aux rapports de pouvoir. Scott (1994) l’affirme : « Ses
usages et ses sens naissent d’une dispute politique, et ils sont les moyens par lesquels les rap-
ports de pouvoir – de domination et de subordination – sont construites » (p. 12).
Cette acception du genre nous conduit à Butler (1990/2006) et son ouvrage majeur
Trouble dans le genre. Le féminisme et la subversion de l’identité. Butler y questionne l’idée
selon laquelle il existerait d’abord un sexe biologique et prédiscursif, et ensuite un genre cultu-
rellement constitué. Comme l’affirme Simone Perelson (2004), la lecture de Butler met en cause
« la notion même d’une identité fondée sur la division de genre et, plus encore, l’idée de l’iden-
tité comme fondement du genre » (p. 158, nous traduisons).
Selon Butler (1990/2006), la production de l’identité relève de la performativité. Elle se
donne par un processus contraignant le sujet à répéter les normes qui le produisent. Cette per-
formativité ne consiste pas en un « acte » isolé, il s’agit au contraire d’une pratique itérative et
citationnelle, selon laquelle le discours produit les effets qu’il nomme. C’est ce que Butler
(2000) appelle la « citationnalité ». Les théories féministes se sont développées dans un con-
texte où il n’y avait pas ou peu de représentations des femmes, il a été alors nécessaire de
développer un langage capable de les représenter. Selon Butler, si la représentation consiste en
un terme opératoire qui vise la légitimité et la visibilité des femmes, elle exerce également une
fonction normative du langage. L’auteure rapproche par là les théories féministes à la concep-
tion foucaldienne des systèmes juridiques – à savoir, des institutions qui produisent les sujets
qu’ils en viennent à représenter. Elle affirme : « le sujet féministe est-il en réalité
354
discursivement constitué par le système politique, celui-là même qui est supposé permettre son
émancipation » (BUTLER, 1990/2006, p. 61).
Le pouvoir juridique produit donc le sujet qu’il prétend représenter, ce qui comporte des
procédures de légitimation et d’exclusion. Celles-ci sont naturalisées, donc quelque part, invi-
sibles. Si la représentation n’est pas seulement descriptive, mais productrice de la réalité, le
pouvoir qui en découle est également productif, même s’il agit parfois de manière indécelable.
L’identité serait ainsi un effet des pratiques discursives, à l’opposé de l’idée d’une « identité
personnelle » avec des caractéristiques internes, qui garantiraient une forme de continuité
(BUTLER, 1990/2006).
Les personnes sont assignées à des genres selon des critères d’intelligibilité qui définis-
sent des normes reconnaissables. Les genres « intelligibles » sont ceux qui garantissent une
cohérence entre sexe, genre, pratique sexuelle et désir. C’est ce que Butler appelle une matrice
d’intelligibilité, qui fonctionne comme s’il y avait une « vérité » du sexe. Ce processus avait
déjà été mis à jour et critiqué par Foucault, car il induit des pratiques régulatrices qui produisent
des identités cohérentes (BUTLER, 1990/2006).
Cette matrice s’inscrit, selon Butler (1990/2006), dans un système à hétérosexualité
obligatoire. Ce qui entraîne un modèle de genre binaire et essentialiste, reposant sur la relation
entre deux termes compris comme positifs et représentables. Ce que l’on pourrait appeler « l’hé-
térosexualisation » du désir entraîne une matrice culturelle du genre qui annihile la possibilité
d’existence de certains types d’identités – simplement parce qu’ils ne se conforment pas à l’in-
telligibilité culturelle.
Un horizon désirable, d’après Butler (1990/2006), serait l’extension du champ d’intel-
ligibilité. Ce qui passerait par l’inclusion de celles et ceux qui sont aujourd’hui écartés des
normes socialement instituées – autrement dit, il s’agirait d’élargir le champ des représentations
possibles. La tâche politique ne consiste pas en le refus de la politique représentationnelle –
selon Butler, nous n’en serions pas capables de toute façon, quand bien même nous voudrions
le faire. Les structures juridiques du langage et de la politique forment le champ du pouvoir,
hors duquel aucune position n’est possible.
Dans Trouble dans le genre, Butler insiste autant sur le discours et les représentations
que sur les solutions possibles à l’intérieur de ce champ. Quant aux féminismes, la question est
de savoir si ces théories sur le genre et la sexualité – insistant sur la performativité – peuvent
rendre compte des dimensions historique, sociale et économique (ADKINS, 2002).

355
Rosemary Hennessy (1994) affirme que discours normatifs et institutions ne s’équiva-
lent pas : les institutions telles que la famille, l’armée et l’école sont structurées à partir de bien
plus que les seuls discours. Certains aspects de la vie matérielle doivent être pris en compte – à
l’instar du travail, la santé et le modèle social. Ils sont médiés par le discours, mais leur maté-
rialité ne se réduit pas à une dimension discursive. Une analyse basée sur la notion de perfor-
mance doit introduire également les relations sociales qui rendent possible une telle perfor-
mance.
La dimension qui nous intéresse le plus, pour cette thèse, dans de l’analyse d’Hennessy
(1994) est la question de la médiation des relations sociales par des pratiques institutionnalisées.
Pour l’expliciter, nous examinerons la législation sur le travail domestique au Brésil à l’aune
du film brésilien Une Seconde Mère366 (2015). Ce film dépeint la relation entre des patrons qui,
dans la sphère discursive, traitent leur employée comme faisant « presque partie de la famille ».
Ce flou statutaire entraîne une série d’exploitations – par exemple, puisqu’il s’agit d’un
« membre de la famille », il n’y a pas à distinguer le travail de nuit, car un proche est disponible
de façon ininterrompue. Cela s’oppose radicalement au cadre légal qui stipule une durée déter-
minée pour une journée de travail, et le payement de toute heure supplémentaire travaillée. La
question de la médiation nous semble ici fondamentale : au Brésil, il a fallu attendre 2015 pour
que les droits du travail s’appliquent aux employées domestiques367. Le langage, le discours
qui désigne l’employée domestique comme « presque un membre de la famille » n’est pas pure
abstraction, il s’accompagne d’un ensemble de pratiques sociales et de réelles institutions.
Ce sont ces considérations qui ont conduit cette thèse jusqu’aux perspectives matéria-
listes. Une précision est ici indispensable : dans la psychanalyse, le terme « matérialité » ren-
voie souvent au corps. Il ne s’agit pourtant pas de cela ici, mais plutôt d’aspects économiques,
sociaux, institutionnels et des pratiques sociales institutionnalisées. Dans les prochaines sec-
tions, nous présenterons les manières dont ces aspects apparaissent dans l’œuvre de Jules
Falquet et Danièle Kergoat, mais aussi dans un dialogue entre Judith Butler et Nancy Fraser,
traversé par la question du matérialisme.

366
Anna Muylaert, Que horas ela volta?, 2015. Regina Casé incarne Val, employée domestique chez une famille
de la haute bourgeoisie carioca. Le film met en scène les conflits entre les patrons et l’employée, révélant les
injustices sociales, notamment à partir du regard de Jéssica, la fille de Val.
367
Les modifications de la Constitution ont eu lieu en 2013, mais seulement en 2015 le projet de loi a été rendu
effectif, « garantissant aux employées domestiques les mêmes droits de l’ensemble des travailleurs », selon le texte
informatif publié sur la page de la Chambre des députés. Disponible : https://www.camara.leg.br/noticias/460723-
sancionada-lei-que-regulamenta-novos-direitos-de-empregados-domesticos/ (consulté le 13 décembre 2019).
356
Relations sociales et rapports sociaux : l’apport des perspectives féministes maté-
rialistes
Les théories matérialistes proposées par ces courants féministes ouvrent des perspec-
tives pour une compréhension des questions relatives aux femmes en termes de positions dans
les rapports sociaux – et non pas en termes d’identité. Ces questions n’y sont pas tributaires
d’une (auto)définition en tant que « féminine » ou d’une prétendue authenticité, de ce qui ca-
ractérise le fait d’« être femme », etc. C’est la manière dont les relations s’organisent sociale-
ment qui y devient centrale.
Cette lecture se rapproche des perspectives ouvertes par les féministes noires aux États-
Unis, qui ont théorisé la profonde imbrication de différents rapports sociaux – de sexe, de race
et de classe –, sans hiérarchie d’importance. Selon cette théorie, ces différents rapports doivent
être analysés conjointement exigeant chacun la même attention – autant d’un point théorique
que politique et méthodologique. Aucune dimension des rapports sociaux ne peut être considé-
rée comme principale, venant être simplement « complétée » par les autres (FALQUET, 2016).
Il faut y voir une critique à la perspective blanche, occidentale et bourgeoise prédomine dans
les études sur les femmes et le féminisme (DAVIDS & DRIEL, 2003).
Parmi les perspectives féministes matérialistes, nous avons travaillé à partir d’un cou-
rant développé en France, auquel ce travail a été conduit par les réflexions de Jules Falquet368.
Il est important de préciser que l’auteure adhère à la critique butlerienne de la construction du
genre à partir du sexe, tout en insistant sur les perspectives françaises des années 1970, qui
évitaient déjà ce problème. Pour reprendre les mots de Falquet (2014a):

[Le système sexe-genre] a été critiqué dans les années 1990 par Judith Butler, à raison,
quand elle a affirmé que le genre était construit à partir d’une base, en réalité, inexis-
tante (en disant que le genre n’est qu’un discours réitéré sans base réel). Cependant,
je pense que les féministes matérialistes, plusieurs années avant, avaient déjà anticipé
ce problème – mieux, elles avaient déjà évité l’appropriation de la logique « du genre
social construit sur la base naturelle du sexe » – pour concevoir, dans une perspective
purement sociale, les rapports sociaux de sexe comme ce qui crée les femmes et les
hommes. (p. 250, nous traduisons)

Falquet (2014a) attire ainsi l’attention aux aspects, selon elle, négligés par Butler dans
sa lecture : « les réflexions de Butler, qui sont antinaturalistes et s’appuient partialement sur
Wittig, sont plus tardives et bien moins radicales que les analyses matérialistes francophones,
parce qu’elles se situent sur un plan bien plus individuel, interpersonnel et interactionniste »
(p. 251, nous traduisons du portugais). En contrepoint à cette dimension interindividuelle, Jules

368
Jules Falquet est chercheure en Sciences sociales, activiste féministe, professeure à l’Université Paris Diderot
rattachée au Centre de documentation, recherche et études féministes (CEDREF).
357
Falquet (2016) insiste sur la dimension structurelle, centrée sur l’imbrication des rapports so-
ciaux.
Dans sa définition des rapports sociaux, Kergoat (2010a) met en évidence une tension
qui traverse la société, et se cristallise autour d’un enjeu. Ni les questions ni les groupes sociaux
ne sont constitués au préalable, les groupes se constituent autour d’un enjeu, dans les dyna-
miques des relations sociales, qui sont multiples. L’auteure parle ainsi de « consubstantia-
lité369 » pour se référer à l’imbrication des relations sociales de sexe, de race et de classe.
En français, les termes « relations sociales » et « rapports sociaux » permettent de dis-
tinguer, selon Falquet (2016), les niveaux micro et macro, interindividuels et structurels. En
portugais, un seul mot existe pour désigner ces deux niveaux, la distinction devient alors assez
floue. Il est intéressant de noter l’hypothèse émise par Falquet (2016), lors de l’entretien donné
en 2016, que les théories sexe-genre ont surgit précisément dans des pays où cette distinction
est moins claire que dans la langue française.
Le concept de rapports sociaux est fondamental dans notre recherche. Si la lecture de
Butler serait davantage tournée vers le niveau micro-structurel, vers les relations sociales, la
perspective matérialiste, dans laquelle s’inscrit Falquet (2016), attire également l’attention à la
dimension structurelle des rapports sociaux – plus difficilement modifiables. Falquet (2016)
l’affirme : « L’un des points fondamentaux de la démarche matérialiste, c’est donc d’être anti-
naturaliste et de distinguer clairement les relations sociales (interindividuelles) des rapports so-
ciaux, structurels et bien plus difficiles à “troubler”, surtout individuellement » (p. 5).
Pour conceptualiser les rapports sociaux, la notion de travail devient alors centrale –
notion à comprendre ici au sens large, incluant le travail considéré comme productif, reproduc-
tif, procréatif, sexuel, émotionnel, etc. (FALQUET, 2014a). Le moment capitaliste actuel, selon
Falquet (2008), est traversé par la manière dont les rapports de pouvoir (rapports sociaux de
sexe, de race et de classe) sont organisés autour du « travail considéré comme féminin ». Ce
dernier englobe le travail sexuel, le soin apporté aux membres du foyer, la garde des enfants –
toutes des tâches qui combinent travail domestique et émotionnel.
Falquet (2008) analyse la division sexuelle du travail, qui réserve aux femmes des fonc-
tions mal rémunérées, tels que le travail domestique et la garde des enfants, quand celle-ci ex-
ternalisée et réalisée par une nounou. Cela doit être articulé à l’idée d’« amour maternel », pensé
comme une caractéristique naturelle des femmes. Selon Falquet, la crise de l’État-providence,

369
Notre objectif, à travers ce concept, est d’examiner l’imbrication dans les rapports sociaux. Il existe une dis-
cussion autour des concepts de « consubstantialité » et « intersectionnalité » que nous n’aborderons pas ici.
358
surtout à partir des années 1990, entraîne une surcharge de travail dans le secteur privé et dans
les foyers. La classe « hommes » transfère ce travail à la classe « femmes » ; celle-ci, qu’elle
vienne de pays riches ou qu’elle fasse partie des couches privilégiées des pays pauvres, trans-
fère à son tour cette charge aux femmes les moins favorisées (surtout migrantes). Falquet (2008)
montre comment les rapports de pouvoir (rapports sociaux de sexe, de race et de classe) per-
mettent la continuité du système à travers le « travail considéré comme féminin » :

De fait, il ne s’agit pas seulement de constater que les femmes sont la marge de ma-
nœuvre rêvée par le système, amortissant la crise au moyen de leur travail mal rému-
néré […], mais de savoir comment le sexe, la « race » et la classe sont mobilisés et
réorganisés pour construire une nouvelle division sociale du travail au niveau familial,
au niveau de chaque État et de l’ensemble du globe (p. 128, nous traduisons du por-
tugais).

Il est nécessaire, cependant, de présenter une réserve, formulée par l’anthropologue


Gayle Rubin (1975/2010). Certains travaux affilient l’oppression des femmes aux dynamiques
capitalistes, insistant sur la relation entre le travail domestique et la reproduction du travail. Or,
selon Rubin, la littérature ethnographique est remplie de descriptions de pratiques révélant l’op-
pression des femmes dans des sociétés qui ne peuvent être décrites comme capitalistes. Il y a
donc une nuance entre l’affirmation de l’utilité des femmes pour le capitalisme et l’idée de
genèse de l’oppression des femmes, qui n’est pas à chercher dans les dynamiques capitalistes.
L’intention de Jules Falquet ne semble pas être celle-là, il est cependant important de
formuler cette réserve. Il existe en effet une ligne ténue qui nous y sépare de l’idée que le
capitalisme produit l’oppression des femmes. Nous voulions attirer l’attention à la matérialité
de l’oppression, et l’analyse de Jules Falquet permet de la penser dans notre moment historique,
dans l’actuelle configuration du système capitaliste.
Falquet tient également une position critique par rapport à la catégorie d’identité. Elle
déplace ainsi la focale de la discussion : l’important n’est pas de travailler autour des sujets du
féminisme ou de leur identité, mais de le concevoir en tant que projet politique, en réfléchissant
au positionnement social et éthique de ses actrices et acteurs. Falquet (2014a) affirme : « le
féminisme est un projet politique, c’est ça dont il faut débattre, et non pas de l’“identité” de
celles et ceux qui le construisent, il faut débattre plutôt du projet politique, de la position sociale
(dominante ou pas) et de l’éthique de celles et ceux qui le construisent, bien plus que de l’iden-
tité de ces personnes » (p. 254, nous traduisons du portugais).
Falquet (2014a) insiste sur « ce qui signifie être un sujet selon sa position dans la so-
ciété » (p. 255, nous traduisons du portugais). L’auteure renvoie ainsi au travail de Norma
Alarcón e de Gloria Anzaldúa pour affirmer que la division de la subjectivité entre différentes

359
cultures et réalités englobe également la question de la classe, des pratiques sexuelles, entre
autres. Ainsi, le questionnement sur la conception même de sujet place l’idée de « sujet unifié »
du côté d’un privilège de celles et ceux qui occupent une position de domination. Falquet
(2014a) affirme :

En ce sens, [Norma Alarcón e de Gloria Anzaldúa] ont fait une critique de l’idée selon
laquelle le sujet est quelque chose de simple, nécessairement unitaire, monolithique,
non problématique. Se sentir comme un sujet unifié, ont-elles dit, est un privilège des
dominantes. Dans ce cas, les femmes blanches de classe privilégiée prétendaient, au
moyen du féminisme libéral devenir aussi privilégiées que les hommes blancs de la
classe dominante, sans réfléchir un seul instant aux autres femmes (ni aux hommes
prolétarisés et, ou racialisés). (p. 255-6, nous traduisons du portugais)

Ce que nous retenons ici du travail de Jules Falquet, c’est la possibilité de penser l’op-
pression des femmes en termes de position dans les rapports sociaux. Selon la sociologue An-
dreia Galvão (2011), dans la société capitaliste, les femmes font l’objet d’une oppression spé-
cifique articulée à des appartenances de classe diverses. Au regard de leurs origines sociales
variées, les femmes ne partagent pas toutes la même vision de l’émancipation. Galvão a recours
aux théories du sociologue Ralph Miliband selon lesquelles la position dans la structure sociale
détermine les manières dont les personnes éprouvent l’oppression. C’est pourquoi il est impor-
tant de parler de féminismes au pluriel.
Nancy Fraser considère également la question des oppressions spécifiques, très précisé-
ment avec l’idée d’oppressions spécifiques au genre. Cette notion est fondamentale pour le
débat redistribution versus reconnaissance, que reprend Judith Butler dans un texte en dialogue
avec le travail de Nancy Fraser. Une perspective matérialiste apparaît alors dans l’œuvre de
Butler.

Butler et Fraser : un dialogue traversé par le matérialisme


Les critiques formulées par Hennessy et Falquet à la pensée de Judith Butler nous sem-
blent particulièrement pertinentes quand nous nous intéressons à ses usages psychanalytiques,
qui cherchent des ponts avec les théories queer. Cependant, ces critiques nous semblent plus
discutables au regard d’autres textes de Butler, au-delà de Trouble dans le genre. Dans son
article « Simplement culturel? » (1997/2010), ses théories s’écartent largement des perspectives
souvent reprises dans les travaux psychanalytiques.
Ce texte est issu d’une conférence donnée dans le cadre de l’événement « Repenser le
marxisme », aux États-Unis, en 1996. L’article paraît l’année suivante dans la revue Social Text.
Dans ce même volume, Nancy Fraser répond aux critiques qui lui sont adressées par Butler
dans un article intitulé « Heterosexism, Misrecognition and Capitalism: A Response to Judith
360
Butler » (BRETAS, 2017). Malgré leurs divergences, Fraser et Butler empruntent toutes les
deux une voie matérialiste dans ce débat.
Adkins (2002) en présente les grandes lignes dans son ouvrage Revisions: towards a
Sociology of Gender and Sexuality in late Modernity. Selon Adkins, Butler interroge l’articu-
lation entre redistribution/classe et reconnaissance/sexualité, en reprenant le raisonnement des
théories féministes socialistes selon lequel l’hétéronormativité fonctionne comme pilier du
mode de production capitaliste. Celui-ci reposerait ainsi sur la famille hétéronormée. Fraser met
en question cette lecture, car celle-ci avance une vision sociale capitaliste comme système to-
talisant de structures d’oppression qui se renforcent les unes les autres.
Butler (1997/2010) y perçoit une tendance à réduire certains nouveaux mouvements so-
ciaux à leur dimension « simplement culturelle ». Ce qui revient à disqualifier et marginaliser
certaines formes d’activisme politique, notamment par l’assignation à l’identitarisme et au par-
ticularisme. Les luttes queers feraient partie de cette forme « simplement culturelle » des mou-
vements sociaux contemporains.
Butler (1997/2010) reproche à Nancy Fraser de catégoriser les oppressions comme re-
levant du plan soit économique soit exclusivement culturel. Selon Butler, Fraser finit par placer
les luttes LGBTQIA sur ce dernier pôle, articulé aux injustices liées à la reconnaissance. Butler
mobilise des courants féministes qui associent la notion de la famille au mode de production
capitaliste. Ainsi, dans un modèle social hétéronormatif, la production du genre n’est pas dis-
sociée de la reproduction. Butler (1997/2010) l’explique :

De fait, à cette époque, les féministes cherchaient souvent non seulement à identifier
la famille comme faisant partie intégrante du mode de production, mais aussi à mon-
trer comment la production même du genre devait se comprendre comme faisant par-
tie de la « production des êtres humains eux-mêmes », selon des normes qui reprodui-
saient la famille hétérosexuelle normative. (p. 177)

Dans les années 1970 et 1980, le féminisme socialiste et la recherche scientifique défi-
nissent la famille comme un arrangement social spécifique, historiquement contingent. La re-
production normative du genre apparaît comme condition pour la reproduction de l’hétéro-
sexualité et de la famille, de sorte que « la division sexuelle du travail ne pouvait alors se com-
prendre séparément de la reproduction d’individus sexués » (BUTLER, 1997/2010, p. 177). La
régulation de la sexualité est donc articulée au mode de production, car sur elle repose le fonc-
tionnement de l’économie. Autrement dit, la normativité du genre garantit la normativité de la
famille qui, à son tour, assure la « production des êtres humains » entretenant le mode de pro-
duction capitaliste. Les luttes contre cette hétéronormativité représenteraient donc, selon Butler,
une menace au système capitaliste lui-même.

361
Fraser (1997/2017) voit dans cet argumentation une perte de la spécificité de la société
capitaliste en tant qu’organisation sociale. Selon l’auteure, les relations économiques y sont
relativement dissociées des liens de parentés. Voir dans l’hétérosexualité une condition sine
qua non du système capitaliste revient à se cantonner à un aspect fonctionnaliste de l’analyse.
L’auteure observe, par exemple, que les détracteurs des droits LGBTQIA sont des conserva-
teurs, au sens religieux et culturels, tandis que les multinationales, elles, développent des poli-
tiques favorables à ces groupes. Puisque la société capitaliste contemporaine est hautement dif-
férenciée, avec des écarts entre les ordres économique et de parenté, il est bien possible qu’un
nombre considérable de personnes vivent en dehors du modèle familial hétérosexuel sans que
cela représente une véritable menace au système.
Cependant, Butler (1997/2010) interroge la distinction même entre matériel et culturel.
Elle se base sur les analyses de Marx qui, fondées sur l’histoire de formations économiques
précapitalistes, avaient montré que la séparation entre ces deux sphères est une caractéristique
du capitalisme. Si l’on prend en considération l’articulation entre les régimes de normativité et
les modes de production capitalistes, ce qui échappe à ce régime subit des conséquences maté-
rielles, et pas simplement culturelles. Butler affirme (1997/2010) : « même si l’on ne concevait
l’homophobie que comme une attitude culturelle, il serait néanmoins nécessaire de situer cette
attitude dans l’appareil et la pratique de son institutionnalisation, en d’autres termes, dans sa
dimension matérielle » (p. 181).
Fraser (1997/2017) estime ne pas avoir séparé ces deux sphères dans son analyse. Même
si l’auteure distingue les injustices de redistribution, qui concernent le champ économique, et
celles de reconnaissance, qui sont liées au champ culturel, elle les considère toutes comme des
atteintes matérielles. Fraser (1997/2017) commente les exemples de sociétés précapitalistes
mobilisés par Butler. Il s’agit de sociétés présentées par Marcel Mauss et Claude Lévi-Strauss,
dans lesquelles la parenté régissait les relations sociales, et organisait les mariages, la division
du travail et la distribution des biens, les relations d’autorité, les hiérarchies symboliques de
statut et de prestige, etc. Il n’y avait donc pas de relation caractérisée exclusivement comme
économique ou culturelle – la distinction n’avait pas lieu d’être. Fraser souligne cependant que
cette distinction existe dans la société capitaliste, donc il ne suffit pas simplement de venir
l’ébranler, il est plus pertinent de l’historiciser, en montrant la spécificité historique du capita-
lisme.
Selon l’auteure, « loin de rendre ces distinctions instables, [l’historicisation] permet de
les utiliser de manière plus précise ». (p. 291, nous traduisons du portugais) dans la production
d’une analyse historiquement spécifique, en l’occurrence, de la société contemporaine. Cette
362
lecture historique permet de comprendre les lacunes, les contradictions, la transformation « non
pas en une propriété abstraite et trans-historique du langage, comme “resignification” ou “per-
formativité”, si ce n’est dans l’effectif contradictoire des relations sociales spécifiques »
(p. 292). L’auteure défend ainsi une approche qui va à l’encontre de l’idée de déconstruction :
« l’historicisation consiste en une meilleure approche de la théorie sociale que les idées de dé-
stabilisation ou de déconstruction » (FRASER, 1997/2017, p. 292).
Après avoir présenté les principaux arguments du débat, nous aimerions souligner le fait
que, dans le texte en question, Butler se révèle, de façon assez surprenante, matérialiste. Elle
cite explicitement Marx, reprend les théoriciennes féministes du courant matérialiste des années
1970, et organise sa thèse autour de l’articulation entre la famille et le mode de production
capitaliste, en plus d’insister à plusieurs reprises sur la dimension matérielle des luttes des
femmes, gays et lesbiennes. En voilà une Judith Butler très différente de celle d’habitude mon-
trée dans les théories psychanalytiques.
Après avoir traversé ce très productif débat, nous nous tournons à nouveau vers l’ou-
vrage Trouble dans le genre, ayant en tête la question suivant : est-ce que ce que Butler dé-
montre dans « Simplement culturel » en 1997 entre en contradiction avec son livre-phare de
1990 ? À notre sens, il n’y a pas d’incompatibilité, mais plutôt des axes d’analyses assez diffé-
rents, car les problèmes traités le sont également.
Dans les dialogues entre la psychanalyse et la théorie queer, la pensée de Butler autour
de l’intelligibilité des genres est souvent mobilisée. Toutefois, il est important de rappeler que
l’ouvrage Trouble dans le genre débute par une réflexion sur la catégorie « femmes », en tant
que sujet des féminismes. L’auteure part du constat d’une certaine fragmentation au sein du
mouvement féministe, elle en veut pour preuve le fait que certaines femmes s’opposent au mou-
vement même censé les représenter. Ce qui ne contribue pas à l’objectif d’amplifier les reven-
dications de représentation.
Tout d’abord, il importe de rappeler que la représentation est un des objectifs des luttes
féministes, mais pas le seul. Si nous adoptons le point de vue de Nancy Fraser, la justice sociale
serait une visée, qui peut ou pas être articulée à une plus grande représentation des femmes.
Autrement dit, il se peut qu’il soit nécessaire d’accroître la représentation pour parvenir à la
justice sociale, il se peut au contraire que les deux soient en opposition. En s’intéressant à la
question de la représentation, Butler insiste autant sur ce qui serait le « diagnostic du pro-
blème » que sur les possibles solutions.
Cela dit, il faut aussi s’interroger sur la nature de cette fragmentation au sein de la caté-
gorie « femmes », qui produit des effets dans la représentation recherchée. Butler (1990/2006)
363
considère qu’elle existe pour cause de l’intersection entre le genre, la race, la classe, et ainsi de
suite. C’est pourquoi les débats contemporains sur une supposée universalité de « l’identité
féminine » débouchent sur des « critiques de la part de femmes pour qui la catégorie “femme”
était normative et exclusive et que celle-ci était univoque sans aucune mention des rapports de
classe ou des privilèges raciaux » (BUTLER, 1990/2006, p. 80). Faire de cette catégorie le seul
sujet des mouvements féministes reviendrait à s’en remettre à une universalité qui ne rend pas
compte de ces intersections. Autrement dit, « à force d’insister sur la cohérence et l’unité de la
catégorie “femme”, on a fini par exclure les multiples intersections culturelles, sociales et po-
litiques où toutes sortes de “femmes” en chair et en os sont construites » (BUTLER, 1990/2006,
p. 80).
Nous nous trouvons ainsi assez proches de l’idée d’imbrications des rapports sociaux,
avancée par Kergoat et Falquet, qui peut s’articuler à ce que propose Butler (1997/2010) dans
son article « Simplement culturel? ». Trouble dans le genre peut ainsi être appréhendé de deux
manières, au moins : à partir de l’idée de la « dissolution et déconstruction des identités
sexuelles », mais aussi par la perspective des multiples appartenances et traversées qui, à la
fois, constituent et mettent en question une identité cohérente, comme l’affirme Butler
(1990/2006).
Dans « Simplement culturel? », Butler (1997/2010) écrit : « J’accorderais volontiers
qu’une interprétation étroitement identitaire de ces mouvements [sociaux ] entraîne un resser-
rement du champ politique, mais il n’y a aucune raison de penser que ces mouvements […]
doivent être limités à leur formation identitaire » (p. 172, l’auteure souligne). Butler insiste sur
le fait que ces mouvements n’existent pas de manière isolée. Bien au contraire, des superposi-
tions provoquent des moments où un mouvement peut trouver ses conditions d’existence dans
un autre, ouvrant à la rupture, au conflit. Ces mouvements peuvent ainsi trouver d’autres fon-
dements non identitaires.
Quand Butler (1997/2010) affirme que la différence peut émerger entre une identité et
une autre – produisant ainsi des factions, de l’exclusion d’autres identités pour renforcer sa
propre unité et cohérence. Mais cette différence peut aussi être vue comme la condition d’exis-
tence de l’identité en même temps que sa limite. Dire que ces écarts par rapport à l’identité
relèvent de « particularités », c’est ignorer que la catégorie « universel » ne peut exister qu’au
prix d’effacements, d’exclusions. Dans Trouble dans le genre, un passage permet de tirer
quelques fils du débat :

Y a-t-il une région « spécifiquement féminine » qui soit à la fois distincte du masculin
à proprement parler et distinctement reconnaissable en vertu de ce principe déclaré́

364
neutre – autant dire une « pétition de principe » – qu’est l’universalité des
« femmes » ? La dichotomie masculin/féminin ne fait pas que constituer la grille de
lecture exclusive qui permet de reconnaître une telle spécificité ; plus généralement,
la « spécificité » du féminin est à nouveau détachée de tout contexte, sans compter
qu’elle est analytiquement et politiquement dissociée des rapports de classe, de race,
d’ethnicité et des autres axes de pouvoir qui constituent autant « l’identité » qu’ils
rendent cette notion seule impropre. (BUTLER, 1990/2006, p. 64)

Il est important de noter le questionnement de Butler (1990/2006) quant à l’existence


même de quelque chose de « spécifiquement féminin ». Elle recourt ainsi aux intersections
entre divers rapports de pouvoir et appartenances de race, classe, entre autres, pour le réfuter.
L’auteure pose une question qui nous semble fondamentale : « Y a-t-il un dénominateur com-
mun aux “femmes” qui préexiste à leur oppression ou “les femmes” n’ont-elles de lien qu’en
vertu de leur oppression ? » (p. 63). En effet, rien de « spécifiquement féminin » qui puisse
constituer une identité n’existe, selon nous ; ce qui ne veut pas dire que la catégorie « femmes »
soit complètement vide de contenu. Comme l’affirme Butler (1990/2006), signaler le caractère
construit du genre ne revient pas à lui conférer le statut d’illusoire ou d’artificiel. Car, comme
le rappelle Fraser, des oppressions genrées existent.
C’est précisément la matérialité de l’oppression qui circonscrit ce qui nous permet de
parler en tant que « femmes ». En ce sens, dans le troisième chapitre de la thèse (présenté dans
la section suivante), il s’agira de la manière dont cette réalité de l’oppression apparaît dans les
textes freudiens. Nous aurons recours à la pensée de psychanalystes qui établissent un dialogue
avec le féminisme, telles que Juliet Mitchell et Jacqueline Rose, pour tenter de comprendre à la
fois la catégorie « femmes » en ce qu’elle se constitue à partir de la réalité de l’oppression et le
« devenir femme » en tant qu’expérience même de l’oppression.

Chapitre 3. Le « devenir femme » selon la perspective psychanalytique : des


normes opérantes et défaillantes à la fois

D’un point de vue théorique, aussi bien dans la psychanalyse que selon la théorie queer,
il est possible de questionner les idées d’intégrité et de permanence de l’identité. Cependant,
malgré sa dimension fictionnelle, nous ne pouvons nier que cette catégorie opère dans la réalité.
Souligner le caractère normatif des identités, en proposant leur déconstruction, est fondamental
dans la dénonciation de l’exclusion de celles et ceux qui ne trouvent pas une place dans les
champs d’intelligibilité en vigueur. Toutefois, quelque chose échappe à cela : la possibilité de
prendre en considération la matérialité de l’oppression, qui a historiquement conduit les mou-
vements sociaux à s’organiser autour de catégories identitaires.

365
L’existence d’oppressions genrées a organisé et organise encore les revendications des
mouvements féministes. Autrement dit, il existe une articulation entre l’identification des
formes spécifiques de l’oppression et les demandes qui s’énoncent pour et au nom des
« femmes ». Si l’identité n’existe pas, s’il n’est pas possible de définir une entité « femme »
comme sujet et objet des féminismes, il n’en reste pas moins qu’il existe une vulnérabilité dif-
férenciée qui concerne les femmes. L’importance des féminismes réside dans l’articulation des
normes qui nous désignent en tant que « femmes » ou « hommes » aux réalités d’inégalité,
comme le rappelle Rose (2005) : « féminisme parce que la manière dont les individus se recon-
naissent comme étant masculins ou féminins, l’exigence qu’ils le fassent, paraît être en lien
étroit avec les formes d’inégalités et de subordination que le féminisme entend changer370 » (p.
5, nous traduisons).
La matérialité de l’oppression engendrerait d’une certaine forme une certaine unité –
même si celle-ci est produite, instable et provisoire. Pour interroger la psychanalyse à partir
de la considération de cette dimension matérielle, dans le troisième chapitre de la thèse (et
comme nous le présenterons ci-dessous), il nous a semblé essentiel d’examiner des textes freu-
diens et l’œuvre de psychanalystes qui établissent un dialogue avec le féminisme. Elliot (1991)
souligne cependant qu’il n’existe pas un groupe homogène tel que les « féministe psychanaly-
tiques » (psychoanalytic feminists). Dans notre travail, nous serons en compagnie de Juliet Mit-
chell et de Jacqueline Rose. Nous travaillerons également à partir de la pensée de Gayle Rubin
et son texte fondateur « Le marché aux femmes371 », issu d’un ouvrage collectif que Laurie
Laufer (2014a) considère comme inaugural pour l’Anthropologie féministe. Enfin, nous aurons
recours aux propositions du psychanalyste Jean Laplanche pour articuler les concepts fonda-
mentaux de la psychanalyse à la compréhension des régimes de normativité inscrits dans les
conditions sociales de production – à la fois materielles et discursives.

Psychanalyse et féminismes
Laufer (2014a) attire l’attention sur un passage de la conférence de Freud sur la Féminité
qui aborde l’idée du « devenir femme », en affirmant qu’il n’incombe pas à la psychanalyse de
« résoudre l’énigme de la féminité ». Elle trace ainsi un parallèle avec la célèbre phrase de

370
“Feminism because the issue of how individuals recognise themselves as male or female, the demand that they
do so, seems to stand in such fundamental relation to the forms of inequality and subordination which it is femi-
nism’s objective to change” (ROSE, 2005, p. 5)
371
Traduit en français sous le titre : « L’économie politique du sexe : transactions sur les femmes et systèmes de
sexe/genre » (1975/2010).
366
Simone de Beauvoir : « On ne naît pas femme, dit Freud en substance, on le devient, devançant
de quelques années la célèbre formule beauvoirienne » (LAUFER, 2014a, p. 18).
Dans notre travail, nous entendons discuter une compréhension du « devenir femme »
en tant qu’expérience même de l’oppression. C’est pourquoi nous reprenons certaines périodes
de l’œuvre freudienne dans lesquels l’oppression vécue par les femmes à ce moment historique-
là apparaît thématisée. Tout d’abord, Freud met l’accent, dans ses premiers textes sur les res-
trictions vécues par les femmes dans le champ de la sexualité, surtout en ce qui concerne les
névroses actuelles. Freud (1894d/1996) précise que la cause de l’angoisse se trouve dans l’ac-
cumulation de tension sexuelle, en conséquence de l’abstinence sexuelle ou l’excitation
sexuelle non consumée.
Il est possible d’articuler les origines de la névrose d’angoisse chez les hommes et les
femmes au contexte du contrôle de la sexualité des femmes. Cette oppression, vécue certes par
les femmes, impacte les deux côtés – même s’il existe une vulnérabilité différenciée que Freud
perçoit parfois comme innée chez les femmes, mais qui doit être reliée aux conditions sociales.
Comme le souligne Ayouch (2018), alors qu’il restait aux hommes une parcelle de liberté
sexuelle en dehors du mariage, les femmes se trouvaient dans une condition moins favorisée.
C’est pourquoi l’auteur estime que, bien que de manière indirecte, Freud aborde la question de
l’oppression des femmes quand il parle de l’imposition de l’abstinence et de la sexualité tournée
vers la reproduction dans le contexte de la « morale sexuelle “civilisée” ».
De fait, l’observation des effets négatifs de la morale sexuelle sur la vie des femmes
semble avoir causé une forte impression chez Freud. Un cas clinique paraît particulièrement
intéressant sur ce point. Il s’agit d’Emmy Von N. dans les Études sur l’hystérie (BREUER &
FREUD, S., 1893-95/1996). À l’époque où elle était suivie par Freud, Emmy Von N. avait
environ quarante ans, et était affectée par un trouble dépressif, par l’insomnie et des douleurs
d’intensité variable depuis la mort de son mari, qu’elle a épousé à l’âge de vingt-trois ans. Freud
associe la crainte de chocs inattendus ressentie par Emmy Von N. au fait que celle-ci a vu son
mari sain d’apparence être victime d’une attaque cardiaque.
Dans Études sur l’hystérie, l’approche de Freud diffère dans la section de présentation
du cas et dans celle plus générale où il expose ses théories. Il se demande d’abord si le cas doit
ou pas être considéré comme relevant de l’hystérie. En le décrivant, Freud établit des pondéra-
tions, des nuances, mais finit par le caractériser comme de l’hystérie. Cette vision tranche avec
ce que Freud présenté dans la section « Psychothérapie de l’hystérie », où il voit dans les symp-
tômes présentés par Emmy Von N. des signes d’une névrose d’angoisse qui trouverait ses

367
origines dans l’abstinence sexuelle. Celle-ci se combinerait avec l’hystérie selon Freud dans
cette section.
Quand Freud s’attèle à présenter le cas, il ne fait jamais référence à la névrose d’an-
goisse, bien qu’il mentionne l’abstinence sexuelle. Freud affirme qu’il est nécessaire d’y ajouter
l’abstinence sexuelle vécue par Emmy Von N. comme un facteur d’explication de la persistance
des symptômes. Cependant, cette interprétation se heurte au fait que Freud constate l’absence
de l’élément sexuel parmi toutes les informations partagées par l’analysante. Malgré cela, Freud
estime que les excitations dans ce champ ont immanquablement porté à conséquence. Il ne peut
donc s’empêcher de « soupçonner » que les tentatives de suppression de la pulsion sexuelle
étaient en lien avec les symptômes et avec le cadre clinique (BREUER & FREUD, S., 1893-
95/1996).
Il est alors possible de dire que les affirmations de Freud à l’égard du cas d’Emmy Von
N. sont assez déconnectées du récit de celle-ci. Autrement dit, les effets de l’abstinence sexuelle
apparaissent comme quelque chose de l’ordre du « soupçon » plutôt qu’une conclusion liée au
récit d’Emmy Von N. – cela en dit certainement plus sur Freud que sur Emmy Von N. elle-
même. En tout cas, cela dévoile les présupposés freudiens sur les effets de la morale sexuelle
sur les femmes : il en est si profondément convaincu qu’il « soupçonne » qu’il s’agit de cela,
bien que ce point soit absent du récit.
Si la matérialité de l’oppression vécue par les femmes apparaît comme une évidence
dans les passages discutés jusqu’où ici, il n’en va pas de même pour l’ensemble de l’œuvre
freudienne, qui a été critiquée par féministes. Thamy Ayouch (2019b) observe chez Freud un
« mouvement pendulaire, oscillant entre des postures révolutionnaires qui rompaient avec son
contexte épistémologique et des régressions inévitables inscrivant son discours dans les forma-
tions discursives de son temps » (p. 79, nous traduisons).
Une reproduction des présupposés de genre apparaît, selon nous, dans le cas de Dora :
lors de ses séances avec Freud, celle-ci accuse son père de l’avoir offerte à Monsieur K. en
dédommagement de la relation que le père entretenait avec Madame K. Freud estime que Dora
avait raison de penser que son père ne voulait pas clarifier le comportement de Monsieur K.
envers elle, pour éviter de questionner sa propre relation avec Madame K. Cependant, Freud
croit que Dora agissait de la même manière, en favorisant la relation de son père avec Madame
K. Ce n’est que dans un deuxième temps que Freud propose une autre lecture : Dora s’identi-
fierait à son père, et son amour s’adresserait non pas à Monsieur K., mais à Madame K.
(FREUD, 1905b/1996).

368
Mitchell (2001) considère le traitement de l’amour de Dora pour Monsieur K. par Freud
comme un substitut de l’amour œdipien. Les origines de cette approche se trouvent, selon Mit-
chell, dans la dimension normative de l’attirance hétérosexuelle comme naturelle : « Ici, la po-
sition de Freud est conventionnelle : les garçons seront des garçons et aimeront les femmes, les
filles seront des filles, et aimeront les hommes372 » (p. 10, nous traduisons). Freud présume que,
si Dora n’avait pas été hystérique, elle aurait été attirée par Monsieur K., tout comme elle aurait
éprouvé de l’attirance pour son père, selon le complexe d’Œdipe. L’interprétation d’El-
liot (1991) emprunte le même chemin : Freud serait parti du présupposé selon lequel Dora
éprouvait de l’amour pour Monsieur K., et n’a cherché qu’à le confirmer. Elliot (1991) affirme
que « la demande de Freud pour que Dora se conforme à ses attentes selon lesquelles elle était
amoureuse de Herr K. non seulement ont méconstruit son désir, mais aussi ont reproduit la
relation dans laquelle Dora a été transformée en objet du désir de l’autre373 » (p. 95, nous tra-
duisons).
Ce faisant, Freud finit par suggérer à Dora l’objet de son désir, ce qui n’incombe pas à
l’analyste, en plus de s’opposer à l’idée d’un désir qui demeure une question ouverte.
Rose (2001) écrit :

Ainsi, en insistant auprès de Dora sur son amour pour Herr K, Freud ne fait pas sim-
plement que la définir selon un concept normatif de l’hétérosexualité génitale. Il ne
parvient pas non plus à percevoir sa propre place dans la relation analytique, et réduit
celle-ci à une dimension duelle en faisant fonctionner les axes d’identification et de
demande. En demandant à Dora qu’elle réalise son « identité » à travers Herr K, Freud
lui demande simultanément de satisfaire ou de tenir compte de sa propre demande.
Dans les deux cas, il l’attache à une relation duelle dans laquelle le problème du désir
n’a pas sa place374. (ROSE, 2001, p. 35-6, nous traduisons de l'anglais)

Elliot (1991) analyse ce même point en renvoyant à la notion de désir en tant que ques-
tion permanente : il ne revient pas à l’analyste de proposer des « objets appropriés ». Elliot
(1991) part des propositions de Jacqueline Rose pour amener la discussion sur le champ même
de la théorisation freudienne de la sexualité. Elle signale l’erreur de Freud à désigner le pénis
(ou n’importe quel autre objet) en tant qu’objet de désir, parce que « l’exaspération de Freud

372
“Here, Freud’s position is a conventional one: boys will be boys and love women, girls will be girls and love
men” (MITCHELL, 2001, p. 10)
373
“Freud’s demand that Dora conform to his expectations that she loves Herr K not only misconstrued her desire,
but also repeated the relationship in which Dora as made the object of another’s desire” (ELLIOT, 1991, p. 95).
374
“Thus by insisting to Dora that she was in love with Herr K, Freud was not only defining her in terms of a
normative concept of genital heterosexuality, he also failed to see his own place within the analytic relationship
and reduced it to a dual dimension operating on the axes of identification and demand. By asking Dora to realise
her ‘identity’ through Herr K, Freud was simultaneously asking her to meet, or reflect, his own demand. On both
cases, he was binding her to a dual relationship in which the problem of desire has no place.” (ROSE, 2001, p. 35-
6)
369
par rapport à la persistance du supposé désir des femmes envers le pénis et sa tentative de les
persuader à l’abandonner constituent une incompréhension de la nature même du désir. Le désir
n’existe que dans “l’interstice entre la demande et son impossibilité”375 » (p. 95, nous tradui-
sons).
La présomption de savoir ce que veut la femme marque une inversion du discours ana-
lytique en discours du maître376, et quand la psychanalyse est considérée comme un discours
de maîtrise, détenteur de vérités universelles, la relation entre le sexe et le genre devient rigide,
selon Elliot (1991) :

Tout d’abord, la présupposition de l’analyste selon laquelle il ou elle sait ce que veut
une femme (un bébé, un phallus ou n’importe quelle autre chose) soutient l’illusion
de que l’objet du désir peut être atteint. Deuxièmement, la demande de l’analyste à ce
que la patiente se conforme à la norme de féminité empêche l’analyse de son désir
ailleurs377 (p. 95, nous traduisons).

Les considérations sur Dora nous conduisent ainsi aux théories freudiennes sur la fémi-
nité et la sexualité féminine, qui peuvent être lues, selon Elliot (1991), comme un sacrifice exigé
des femmes de se conformer à la position féminine, à l’ordre social en vigueur. Freud
(1931/1996) étaye deux spécificités du développement des femmes : le changement d’objet
amoureux (de la mère au père) et de zone érogène principale (du clitoris au vagin).
Le premier objet d’amour de l’enfant serait la mère, selon Freud, car c’est elle qui prend
soin et qui nourrit. Les premières expériences sexuelles de l’enfant par rapport à la mère seraient
passives, car l’enfant est soigné et alimenté par la mère. Plus qu’un simple changement d’objet,
l’éloignement entre mère et fille consisterait, pour la fille, en un abaissement des pulsions
sexuelles actives et l’ascension des pulsions passives (FREUD, 1931/1996). Un autre facteur
de complication pour le développement sexuel féminin résiderait dans la tâche d’abandonner le
clitoris en tant que zone génitale principale en faveur du vagin. Pour Freud, la féminité repose

375
“[…] Freud’s exasperation at the persistence of women’s supposed desire for the penis and his attempt to
persuade them to give it up, constitute a misunderstanding of the nature of desire itself. Desire exists only ‘in the
gap between the demand and its impossibility’” (ELLIOT, 1991, p. 95).
376
L’examen détaillée de la théorie lacanienne des discours n’aurait pas sa place dans ce travail, mais pour nos
objectifs, nous soulignons que la relation entre l’analyste et l’analysant constitue une sorte particulière de relation
sociale dans laquelle le désir l’analysant est privilégié. Le discours de l’analyste diffère des autres car il crée un
espace où ce désir peut être formulé. L’analyste ne fait pas de l’autre son esclave (comme dans le discours du
maître), pas plus qu’il ne le réduit à un reflet de son image (discours universitaire), ou à un symptome du désir de
l’analyste (discours de l’hystérique). Par opposition, le discours du maître est le discours est celui de la loi au nom
de laquelle parle le maître. (ELLIOT, 1991).
377
“First, the analyst’s assumption that he/she knows what a woman wants (a baby, the phallus, or whatever) plays
into the phantasy that the object of desire can be attained. Second, the analyst’s demand that the woman patient
conform to the norm of femininity precludes an analysis of her desire elsewhere” (ELLIOT, 1991, p. 95).
370
sur la réussite de réaliser ce transfert du clitoris au vagin, en termes de sensibilité et d’impor-
tance (FREUD, 1933c[1932]/1996).
En voyant l’organe sexuel masculin, la fille découvrirait son « handicap » et la féminité
souffrirait une dépréciation (FREUD, 1931/1996). L’anthropologue Gayle Rubin (1975/2010)
considère l’idée freudienne de l’envie du pénis est cantonnée à un contexte spécifique, qui pré-
suppose l’hétérosexualité de la mère, face à qui la fille devine sa propre infériorité dans l’im-
possibilité de la satisfaire. Si elle « n’était pas confrontée à l’hétérosexualité́ de la mère, peut-
être pourrait-elle avoir des conclusions différentes quant au statut relatif de ses organes géni-
taux » (RUBIN, 1975/2010, p. 18).
Rubin (1975/2010) cite la psychanalyste Jeanne Lampl-de Groot et sa théorie selon la
quelle la crise œdipienne implique une souffrance narcissique autant pour le garçon que pour
la fille. En outre, la fille éprouverait un sentiment d’infériorité à l’égard de ses organes génitaux,
en considérant que le pénis est indispensable si elle veut satisfaire à sa mère. Ainsi, « la dispo-
sition hiérarchique des organes génitaux mâles et femelles provient des définitions de la situa-
tion – la règle de l’hétérosexualité obligatoire » (RUBIN, 1975/2010, p. 22). Autrement dit,
Rubin (1975/2010) montre dans quelle mesure les théories freudiennes s’inscrivent dans un
contexte culturel où l’hétérosexualité et le rôle culturellement attribué à la femme sont tenus
pour acquis :

Si la division sexuelle du travail était telle que les adultes des deux sexes s’occupent
à égalité des enfants, le choix d’objet primaire serait bisexuel. Si l’hétérosexualité
n’était pas obligatoire, cet amour précoce n’aurait pas à être réprimé́ et le pénis ne
serait pas surévalué. (RUBIN, 1975/2010, p. 25)

En outre, l’auteure montre à quel point l’association entre organes et activité/passivité


est problématique. Dans Trois essais sur la théorie sexuelle, Freud (1905a/1996) affirme que
le devenir femme dépend d’un refoulement préparant la femme à l’échange de zone génital
dominante. Le chemin vers la féminité suivrait alors une intensification de la passivité – par la
répression de l’érotisme clitoridien, considéré comme actif, en faveur de l’érotisme vaginal,
passif. Cependant, Rubin (1975/2010) signale à quel point « dans ce schéma, les stéréotypes
culturels ont été́ plaqués sur une cartographie des organes génitaux » (p. 23). Cette association
n’a rien d’une évidence, et n’importe quel organe peut être locus d’érotisme actif ou passif. Dès
lors que cette articulation entre clitoris/actif et vagin/passif est considéré comme contingente,

371
« ce n’est pas un organe qui est réprimé, mais un segment de possibilité érotique », écrit Rubin
(p. 23).
Freud indique donc trois chemins au développement de la fille. Elle peut soit réprimer
complètement sa sexualité, soit protester et devenir « masculine » ou homosexuel, ou encore
accepter et conquérir la « normalité ». Comme l’écrit Rubin (1975/2010) : « Si la phase œdi-
pienne se passe normalement et que la fille “accepte sa castration”, sa structure libidinale et son
choix d’objet sont désormais en congruence avec son rôle de genre. Elle est devenue une petite
femme – féminine, passive, hétérosexuelle » (p. 23).
Rubin (1975/2010) considère ainsi que la construction de la « féminité » consiste en un
« acte de brutalité psychique ». Ainsi, « les essais de Freud sur la féminité, nous dit Rubin,
peuvent être lus comme des descriptions de la manière dont un groupe est préparé psychologi-
quement, depuis la tendre enfance, à vivre avec son oppression » (RUBIN, 1975/2010, p. 23).
C’est pourquoi l’auteure affirme que « la psychanalyse est une théorie féministe manquée »
(RUBIN, 1975/2010, p. 17). Autrement dit, il y aurait déjà dans l’œuvre freudienne des élé-
ments qui permettraient de thématiser la question de l’oppression :

Les effets que des systèmes sociaux domines par les hommes produisent sur les
femmes ne sont nulle part mieux attestés que dans la littérature clinique. Selon l’or-
thodoxie freudienne, la conquête de la féminité « normale » est extorquée aux femmes
au prix fort. (RUBIN, 1975/2010, p. 17)

De fait, en 1932, dans la conférence « La féminité », Freud s’interroge sur la façon dont
une fille passe de la phase masculine vers celle féminine, considérant que cette adaptation n’est
pas exempte de lutte. Mitchell (2001) et Laplanche (2014b) mettent en exergue une citation de
Freud, issue de cette conférence, également reprise par Laufer (2014a) : « Il répond à la spéci-
ficité de la psychanalyse de ne pas prétendre décrire ce qu’est la femme – tâche dont on elle ne
pourrait guère s’acquitter – mais d’examiner comment elle le devient » (FREUD, 1932/2004,
p. 199). Laplanche (2014b) établit un parallèle entre la proposition de Simone de Beauvoir dans
Le Deuxième Sexe : « On ne naît pas femme, on le devient. » L’auteur questionne dans quelle
mesure ces énoncés se rapprochent ou s’écartent, car Beauvoir, nous dit-il, comprend
« femme » comme ce qu’« elle vient à être », alors que Freud écrit : « Elle devient ce que nous
sommes incapables de définir » (LAPLANCHE, 2014b, p. 164-5).
La tâche de la psychanalyse serait alors de débattre autour de la manière dont on devient
quelque chose que l’on ne peut pas décrire. Selon Rose (2001), les psychanalystes s’engagent
dans « une tentative de résoudre les difficultés posées par la position de Freud à l’égard de la

372
féminité, en visant résoudre la question de la féminité elle-même378 » (ROSE, 2001, p. 28, nous
traduisons). À l’opposé, Rose (2001) ne prétend pas expliquer ce que serait une femme ou la
féminité – suivant les recommandations de Freud lui-même –, mais de mettre en avant l’inter-
dépendance entre la subjectivité (divisée et précaire) et la féminité chez Freud.
Mitchell (2001) propose également de réhabiliter les propositions freudiennes fonda-
mentales, telles que la sexualité et l’inconscient, et les analyser comme unies par un lien de
cause à effet (causatively intertwined). Selon son approche, il n’y aurait rien de consubstantiel
ou d’essentiel dans ces concepts : « ni l’inconscient ni la sexualité ne peuvent, à quelque degré
que ce soit, être pris pour des faits préétablis, ce sont des constructions ; c’est-à-dire, ce sont
des objets avec des histoires et le sujet humain même n’est formé que dans ces histoires379 »
(MITCHELL, 2001, p. 4, nous traduisons). Cette affirmation établit le cadre dans lequel la
question de la sexualité féminine peut être comprise.
Selon l’idée du « devenir femme » comme « devenir quelque chose que l’on ne peut
décrire », il n’est pas possible de décrire une région spécifique du féminin. Ce qui nous renvoie
à la notion de que « femme » n’est définie que par la réalité de son oppression. Un parallèle
entre « devenir femme » chez Beauvoir et dans la psychanalyse soutient l’idée, avancée par
Pascale Molinier, que « devenir femme » c’est faire l’expérience de l’oppression vécue en tant
que femme 380.
Il est possible d’établir des parallèles entre cette idée et les propositions de Rubin. Celle-
ci considère que les textes freudiens mettent en évidence des aspects de cette oppression qui
seraient mal perçus sans eux. L’auteure analyse les critiques reçues par Freud depuis les lectures
féministes, les séparant en deux sortes :

La théorie de Freud sur la féminité a été soumise à la critique féministe dès sa première
publication. Dans la mesure où elle est une rationalisation de la subordination des
femmes, ces critiques ont été justifiées. Dans la mesure où elle est une description du
processus qui subordonne les femmes, cette critique est une erreur. En tant que des-
cription de la manière dont la culture phallique domestique les femmes, et description
des effets que produit sur les femmes leur domestication, la théorie psychanalytique
n’a pas d’égal. (RUBIN, 1975/2010, p. 24)

En ce qui concerne ces aspects descriptifs, Rubin (1975/2010) estime que les critiques
féministes se trompent car la théorie psychanalytique est, selon l’auteure, une bonne

378
“[…] an attempt to resolve the difficulties of Freud’s account of femininity by aiming to resolve the difficulty
of femininity itself” (ROSE, 2001, p. 28)
379
“[…] neither the unconscious nor sexuality can in any degree be pre-given facts, they are constructions; that is
they are objects with histories and the human subject itself is only formed within these histories” (MITCHELL,
2001, p. 4).
380
Intervention de Pascale Molinier du 10 avril de 2019 dans le séminaire « Genre, normes, psychanalyse », assuré
par les professeurs Laurie Laufer, Thamy Ayouch e Pascale Molinier à l’Université Paris Diderot.
373
« description de la manière dont la culture phallique domestique les femmes ». D’un autre côté,
certains moments théoriques rationalisent cette réalité décrite, prenant pour nécessaire ce qui
n’est que contingence. Ce qui rend, selon Rubin, les critiques féministes pertinentes.
Ainsi, il est possible de lire dans les positions de Freud sur la sexualité féminine et la
féminité une description du « devenir femme » dans un certain régime de normes, en vigueur à
ce moment historique-là, qui ne se présenterait pas forcément de la même manière dans d’autres
contexte. Pour le dire autrement dit avec Ayouch (2018), il convient de à distinguer la dimen-
sion descriptive de celle prescriptive : Freud décrivait à partir de ce qui apparaissait dans la
clinique, mais ne prescrivait pas ce qui devrait être, a toujours été ou serait toujours de la même
manière. Il fournit une image de la manière dont les femmes éprouvaient cette oppression dans
la sphère de la sexualité à ce moment précis de l’histoire. Il se contredit souvent, et souligne
des aspects tantôt prétendument constitutifs, tantôt culturels.
Ces différentes perspectives adoptées par Freud peuvent se lire comme un problème ou,
au contraire comme une potentialité. Laufer (2014a) emprunte, à nos yeux, le deuxième chemin,
percevant dans les textes de Freud des passages qui permettent de comprendre quelque chose
et son contraire. Ce qui, selon l’auteure, constitue « une pensée dialectique sans cesse en mou-
vement » (p. 18). Certains extraits de la conférence sur la féminité arborent une forme de natu-
ralisme, alors que dans d’autres Freud « se fait plus “matérialiste” » (LAUFER, 2014a, p. 18)
en abordant les organisations sociales qui forceraient la femme à des situations de passivité.
Laufer renvoie à un passage où Freud (1932/1996) exhorte à ne pas sous-estimer l’influence
des mœurs qui contraignent les femmes à une situation passive.
De la même manière, Rubin (1975/2010) perçoit ces contradictions, et affirme que
Freud a défié la morale conventionnelle. Cependant, quant il s’agit de masochisme et de la
passivité associée aux femmes, cet esprit du défi ne tient pas. L’auteure considère que Freud
recourt à un « double modèle d’interprétation » (RUBIN, 1975/2010, p. 26), considérant le ma-
sochisme et la passivité comme quelque chose de négatif pour les hommes, mais nécessaire
pour les femmes. Autrement dit, selon la lecture de Rubin (1975/2010), Freud décrit un système
sexiste, mais ne le questionne pas :

Il y a des moments dans les discussions analytiques sur la féminité́ où il serait possible
de dire : « Ceci est l’oppression des femmes » ou « Nous pouvons dire sans façon à
la société que ce qu’elle appelle féminité coûte plus de sacrifices que cela n’en vaut ».
Et c’est précisément là que les implications de la théorie sont ignorées et remplacées
par des formulations dont le but est de conserver ces implications solidement logées
dans l’inconscient théorique. (p. 27)

374
Il devient à nouveau évident que Rubin (1975/2010) considère les textes freudiens
comme une opportunité de description de l’oppression des femmes. Il conviendrait de se de-
mander « pourquoi les analystes n’argumentent-ils pas en faveur de dispositions nouvelles au
lieu de rationaliser les anciennes ? » (p. 24). Nous considérons que pour « défendre de nouvelles
dispositions » et « mettre en mouvement » la psychanalyse, il est nécessaire de prendre en con-
sidération le fait que, comme l’affirme Laufer (2014a), « la psychanalyse est un savoir situé et
constitué historiquement » (p. 25). Il faudrait donc chercher à faire répercuter sur elle les com-
préhensions de champs qui lui sont étrangers. L’auteure suggère alors « de puiser dans les gen-
der studies les critiques faites à la psychanalyse afin de mettre en mouvement la psychanalyse
elle-même, qui ne peut s’exclure de l’histoire dans laquelle elle s’inscrit » (LAUFER, 2014a,
p. 20).
Ainsi, nous considérons que le défi consiste en l’articulation des concepts fondamentaux
de la psychanalyse à la compréhension des régimes de normativité inscrits dans des conditions
sociales de production. Les contributions du psychanalyste Jean Laplanche sur le genre nous
paraissent constituer un possible chemin pour cette articulation.

Normes opérantes et défaillantes à la fois


Selon la pensée de Jean Laplanche, la spécificité de la psychanalyse se formule à partir
de l’éclairage des normes en ce qu’elles sont opérantes et défaillantes à la fois. Partons de la
proposition de l’« identification par » en ce qui concerne le genre. Le psychanalyste considère
celui-ci d’abord comme « un message, d’abord une assignation (on le verra : énigmatique), une
assignation dans le social, au sens le plus général du terme, par le socius, c’est-à-dire par un
proche, un parent, ou un ami ou un groupe de personnes » (LAPLANCHE, 2014a, p. 105-6,
l’auteur souligne). Cette assignation est articulée à une altérité ; il s’agit d’une « identification
par » et non pas d’une « identification à » : « elle n’est pas un “s’identifier à” mais un “être
identifié par”. Ainsi, le sujet est identifié par l’assignation à un certain genre » (LAPLANCHE,
2014a, p. 106, l’auteur souligne).
Cette notion laplanchienne de l’identification par se trouve dans l’œuvre Sexual. La
sexualité élargie au sens freudien, qui réunit des textes écrits entre 2000 et 2006. « Sexual » est
un néologisme créé par Laplanche à partir de « sexuel », utilisé dans une forme substantivée
pour désigner la dimension infantile de la sexualité : « ce que je nomme “sexual” (par différence
avec sexuel), c’est tout ce qui est du ressort de la théorie freudienne de la sexualité élargie, et
au premier plan la sexualité infantile dite “perverse polymorphe” » (p. 5).

375
Selon Laplanche, la notion d’assignation est fondamentale pour comprendre ce qu’est
le genre : elle révèle le primat de l’autre dans le processus, dès le registre civil. Mais il ne s’agit
pas d’un procédé ponctuel, limité à un seul acte ; il ne s’agit pas d’une « détermination par le
nom ». L’assignation est un « ensemble complexe d’actes qui se prolonge dans le langage et
dans les comportements significatifs de l’entourage » (LAPLANCHE, 2014b, p. 167). Il s’agit
plutôt d’une désignation continue qui fonctionne comme prescription, ou encore des messages
prescriptifs. La désignation s’inscrit dans le social, lors du registre initial auprès des structures
institutionnelles d’une société déterminée, mais elle se rapporte au groupe des socii proches
(parents proches, amis), et non pas au social en général.
En reprenant la théorie de la séduction généralisée, Laplanche met en avant l’existence
de messages préconscientes-conscientes – que l’inconscient des parents vient perturber, comme
un bruit de fond, compromettant de tels messages. La communication entre parents et enfants
ne passe pas simplement par les soins corporels ; il existe également une langue et un code
social, ainsi que des « messages du socius » qui « sont notamment des messages d’assignation
du genre » (LAPLANCHE, 2014b, p. 170). Cette communication est marquée par des « bruits »
émanant des fantasmes et des expectatives inconscientes ou préconscientes des adultes. La-
planche affirme (2014c, p. 199, l'auteur souligne) : « Les messages de l’adulte sont des mes-
sages préconscients-conscients, ils sont nécessairement “compromis” (au sens du retour du re-
foulé), par la présence du “brouillage” inconscient. Ces messages sont donc énigmatiques, à la
fois pour l’émetteur adulte et pour le récepteur, infans ».
En se référant au sexual, Laplanche souligne l’idée que les adultes réactivent leur sexua-
lité infantile en présence de l’enfant et, par conséquent, « toute assignation comporte, avec elle,
le désir inconscient des parents, les désirs les plus baroques et le plus incroyables qui viennent
en contradiction avec l’assignation manifeste. En d’autres termes, le langage du genre est com-
promis par le sexué et encore plus par le sexuel infantile des parents et, plus généralement, des
adultes » (LAPLANCHE, 2014a, p. 106).
Selon Ayouch (2014), les contenus de genre prennent la forme d’une énigme, parce que
l’adulte envoie des messages prescriptifs sur ce que serait un « homme » ou une « femme »,
mais une ambiguïté vient s’y glisser, portant « tout ce que l’adulte pense autour des femmes et
des hommes, mais aussi tous ses doutes, ambivalences, incertitudes et conflits inconscients »
(p. 67, nous traduisons).
La théorie de la séduction généralisée implique une traduction, qui présuppose un code.
Initialement, les codes dont dispose l’enfant sont ceux de l’autopréservation mais, comme les
messages ne sont pas exclusivement traduits par eux, le jeune sujet recourt à « […] son
376
environnement culturel général (et pas seulement familial), des codes, des schémas narratifs
performés » (LAPLANCHE, 2014c, p. 208). Pour traduire les messages, il recourt en effet aux
codes fournis par l’environnement culturel : « Les grands schémas narratifs transmis puis mo-
difiés par la culture viennent aider le petit sujet humain à traiter, c’est-à-dire à lier et symboliser,
ou encore à traduire, les messages énigmatiques traumatisants qui lui viennent de l’autre
adulte » (LAPLANCHE, 2014c, p. 212).
Cette lecture permet de comprendre comment les femmes font l’expérience de l’oppres-
sion selon une perspective psychanalytique. Considérer que les femmes ne font qu’apprendre
ou que se conformer aux normes reproduisant l’oppression, c’est adopter une perspective qui
accorde le primat à la socialisation et la constitution des rôles de genre, plutôt cognitivo-com-
portementale – soit, qui expliquerait le comportement des femmes à partir de l’histoire des
apprentissages et des cognitions associées.
Quelle est la spécificité de l’approche proprement psychanalytique ? Laplanche ouvre
une brèche de lecture qui met l’accent non seulement sur ce qui est transmis – et qui pourrait
être expliqué par la socialisation et l’apprentissage des rôles – mais précisément sur ce qui est
transmis de manière « compromise », qui demeure en tant que « résidu de la traduction toujours
imparfaite du message » (LAPLANCHE, 2014c, p. 213). Cela n’est évidemment pas détaché
de ce qui est transmis. Laplanche affirme que l’enfant recourt aux codes culturels dans la ten-
tative de traduction. Si les codes culturels changent – tant sur le champ des normes, des repré-
sentations que sur celui de la matérialité caractéristique d’un contexte spécifique –, d’autres
« restes de traduction » apparaîtront. Toutefois, cela ne se donne pas de manière linéaire, plutôt
au contraire de manière absolument imprévisible. Il n’y aura jamais une reproduction parfaite,
parce qu’il y a des déformations du côté de l’adulte qui transmet des « messages compromis »
et traduction du côté de l’enfant. En s’interrogeant sur la spécificité de la psychanalyse par
rapport à l’approche sociologique du genre, Rose (2005) affirme :

Ce qui distingue la psychanalyse des approches […] sociologiques du genre, c’est que
ces dernières considèrent que l’intériorisation des normes fonctionne à peu près ; la
prémisse la plus basique et, en effet, le point de départ de la psychanalyse, c’est de
considérer que cela ne fonctionne pas. L’inconscient révèle constamment l’« échec »
de l’identité. Puisqu’il n’y a pas de continuité de la vie psychique, il n’y a pas de
stabilité de l’identité sexuelle, il n’y a pas de position pour les femmes (ou les
hommes) qui puissent être simplement atteinte381 (p. 90-1, nous traduisons).

381
“What distinguishes psychoanalysis from sociological accounts of gender […] is that whereas for the latter, the
internalisation of norms is assumed roughly to work, the basic premise and indeed starting-point of psychoanalysis
is that it does not. The unconscious constantly reveals the ‘failure’ of identity. Because there is no continuity of
psychic life, so there is no stability of sexual identity, no position for women (or for men) which is ever simply
achieved.” (ROSE, 2005, p. 90-1)
377
Pour le dire autrement, selon Laplanche et Rose, les normes sont opérantes en même
temps qu’elles sont défaillantes. La spécificité de la psychanalyse c’est d’attirer l’attention sur
cet échec – qui se traduit par la division, l’imprévu, la traduction qui laisse des restes, qui n’est
jamais une reproduction. Ce qui ne revient pas à négliger en quoi ces normes opèrent.
Outre cette perspective, la lecture de Laplanche que fait Pascale Molinier (2008) offre
une contribution fondamentale pour notre propos. L’auteure met en lumière l’idée selon la-
quelle les normes opèrent selon un principe de hiérarchie :

Sur le plan psychologique, le genre ne signifie donc pas seulement une quelconque
implantation psychique d’un masculin et d’un féminin non socialement déterminés,
mais implantation psychique du système sexe/genre avec suprématie accordée au
mâle/masculin sur toutes les autres valeurs du système. Ainsi le performatif « C’est
une fille » ne salue pas seulement l’entrée dans le monde d’un individu classé dans la
catégorie femme – comme le pense Jean Laplanche (2003) – mais performe simulta-
nément la place de cet individu dans la hiérarchisation des sexes. Si c’est l’adulte
génitalisé qui implante le sexuel dans l’inconscient de l’enfant, ce même adulte est
également engendré (en-gendered). (MOLINIER, 2008, p. 163)

Comme l’affirme Ayouch (2018), Molinier apporte un regard importante « ajoutant ici
à la théorisation du genre par Laplanche l’idée d’une hiérarchisation (infériorisation des filles) »
(p. 144). Selon Molinier (2008), qui s’appuie sur le travail de Laplanche, ce qui s’offre à la fille,
c’est « l’énigme de son infériorité, une énigme à traduire » (p. 164). Puisque cette hiérarchie
fonctionne comme une énigme à traduire, et que la traduction est toujours imparfaite et laisse
des restes, surgissent la faille, l’imprévu, l’indicible.
Le recours aux considérations formulées par la psychanalyste Irene Meler (2018) permet
d’éclairer la manière dont nous comprenons cette idée ici. L’auteure renvoie à un exemple cli-
nique d’une femme « forte, leader, indépendante, entrepreneuse, sûre d’elle, belle, intéressée
par la sexualité et qui a réussi. Elle était la fille d’une mère orpheline, effacée, soumise à son
mari » (p. 135, nous traduisons). Le cas aurait pu être considéré par la psychanalyse comme
une hystérie phallique narcissique : « la lecture clinique serait que les femmes qui ont une per-
sonnalité masculine désirent être reconnues par les hommes comme quelqu’un d’égale à eux »
(p. 136). La lecture de l’auteure, à l’inverse, propose que cette femme tente d’être l’opposé de
sa mère, d’éviter ce même destin – et non pas vouloir être un homme, mais vouloir être reconnue
pour sa valeur.
Il faut, tout d’abord souligner, qu’il s’agit de quelqu’un ayant reçu des messages d’idéa-
lisation du masculin et de dévalorisation du féminin. Cela renvoie à l’hypothèse de Nancy Fra-
ser (2003a) selon laquelle il existe des formes d’injustice distributive genrées de subordination
de statut. Elles peuvent être articulées à la dévalorisation du féminin.

378
En mettant l’accent sur l’apprentissage des rôles et la socialisation, nous pouvons sup-
poser que cette femme aurait appris à se comporter d’une certaine manière par une socialisation
dans un régime de normes qui valorise le masculin et dévalorise le féminin. La spécificité de la
psychanalyse réside précisément en la considération que ces normes sont opérantes, mais fail-
libles à la fois. La fille, inscrite dans ce régime de normes, reçoit des messages d’idéalisation
du masculin et de dévalorisation du féminin, des messages qui arrivent « compromis », qui
seront traduits, selon Laplanche, de sorte à produire quelque chose de singulier et d’imprévi-
sible.
Enfin, dans un régime normatif, différentes femmes font l’expérience de l’oppression
de différentes manières – mais elles le font toutes, ce qui permet de dire « nous, les femmes ».
« Femmes » non dans le sens d’une essence, ni nécessairement en tant qu’identité, mais comme
une position dans les rapports sociaux. Une fois assignée au genre féminin, une fille reçoit des
messages prescriptifs de dévalorisation de son genre, contrairement au garçon, qui reçoit des
messages de valorisation du sien. Les « messages compromis » et les « restes de la traduction »,
selon Laplanche, permettent de penser que ces normes sont opérantes et défaillantes à la fois.
La traduction n’est jamais une reproduction. Toutefois, la traduction n’est pas sans relation avec
les codes culturels, de sorte que si ceux-ci changent concernant le genre, il y aurait des « mes-
sages compromis » autrement, et d’autres restes de traduction.
La matérialité de l’oppression que nous soulignons ici rejoint l’idée avancée par Butler
(1990/2006) selon laquelle les « femmes » seraient reliées par leur oppression, et qu’il n’existe
rien de « spécifiquement féminin » qui constituerait une identité. Ce qui ne veut pas dire cepen-
dant, que la catégorie « femme » soit complètement vide de contenu – d’autant plus que pointer
le caractère construit du genre ne revient à défendre ni son illusion ni son artificialité, comme
l’affirme Butler (1990/2006). Fraser nous rappelle également l’existence d’oppression genrée.
Il est fondamental de rappeler l’impossibilité de l’identité pour nous mettre en garde
contre les risques de prendre de telles identités pour des essences. Cependant, cela n’empêche
pas de constater que les femmes affrontent une série d’inégalités et d’oppressions dont il faut
parler, d’une manière ou d’une autre (que ce soit ou pas à travers le terme d’identité). Affirmer
que « personne n’est pleinement homme ou femme », comme le fait Zizek (2016) et comme il
est si commun d’entendre, surtout dans des cercles lacaniens, a de l’intérêt. Ces positions ren-
voient à la division, au conflit, et marquent la spécificité de la lecture psychanalytique de la
subjectivité. Toutefois, demeure la question choisie par Laura Lee Downs (2008) comme titre
de son texte : Si « femme » n’est rien de plus qu’une catégorie sans contenu, alors pourquoi ai-
je peur de rentrer seule le soir ?
379
Dans le quatrième chapitre de la thèse, que nous présenterons dans la section suivante,
nous présenterons la conceptualisation de « femmes » depuis la notion de position dans les rap-
ports sociaux. L’objectif est d’articuler ce que nous avons étudié au long de la thèse à des ques-
tions adressées à la psychanalyse – notamment concernant des situations de reproduction des
réalités de l’oppression dans le cadre de la clinique.

Chapitre 4. Matérialité, représentation et « au-delà de la représentation » : est-ce pos-


sible de penser la spécificité psychanalytique sans éluder la reconnaissance et la redistri-
bution ?

Les perspectives féministes matérialistes ont mené nos chemins vers l’idée de perfor-
mativité du genre chez Butler – surtout dans son appropriation par les psychanalystes. Nous
avons cherché à penser les médiations qui rendent un discours productif, aussi bien que ses
conditions sociales de production et reproduction. Selon la lecture de Rosemary Hennessy
(1994), les aspects de la vie matérielle sont discursivement médiés, mais sa matérialité n’est
pas simplement discursive. D’où l’importance de prendre en compte les rapports sociaux qui
permettent certaines performances. Faute de quoi, nous risquerions de tomber dans l’abstraction
des discours et de perdre les spécificités des réalités d’oppression.
Claudia de Lima Costa (2013) attire l’attention sur les risques de dépolitisation de toute
analyse ancrée dans une abstraction du langage. L’auteure propose de reprendre la notion de
« femme » comme catégorie politique, en tant qu’outil pour articuler politiquement les femmes
– tout en rappelant qu’il s’agit d’une catégorie hétérogène, construite au sein de discours et de
pratiques, située historiquement et en rapport avec d’autres catégories également instables
(classe, race, ethnie, sexualité, nationalité, etc.). Pour reprendre les mots de Costa (2013) :

[...] je conclus ma réflexion par une provocation en suggérant de revenir à la catégorie


femme, comprise non pas comme essence ontologique, ni même au sens stricte de
femme comme essentialisme stratégique, mais dans l’ample acception de position po-
litique (ce qui implique nécessairement un certain essentialisme stratégique dans un
premier temps) (COSTA, 2013, p. 132, nous traduisons).

Pour mener ce débat, l’auteure mobilise la pensée de plusieurs auteurs, parmi lesquels
nous retenons Chantal Mouffe et Linda Alcoff. La première se réfère à la psychanalyse pour
bâtir des contributions fondamentales à une approche non essentialiste de l’identité. Alcoff,
elle, propose le concept de positionnalité qui, selon nous, permet de penser en termes de posi-
tion dans les rapports sociaux.

380
Mouffe (2010) met en avant la critique des identités essentialistes, qui ne se limite ni à
la psychanalyse ni au poststructuralisme. L’auteure rappelle tout de même l’apport de la psy-
chanalyse dans la critique à l’essentialisme. En effet, les théories psychanalytiques mettent à
l’épreuve l’idée d’un sujet rationnel, transparent, qui présiderait à toute action de façon homo-
gène. Freud interroge l’idée de transparence en élaborant l’hypothèse de l’inconscient, il met
ainsi en avant la division des acteurs par la mise en question de leur rationalité et leur caractère
unifié.
Cependant, tout en lui restant attachée, l’auteure considère que la critique de l’essentia-
lisme ne suffit pas à l’élaboration d’un projet politique. Celui-ci demande un double mouve-
ment, selon Mouffe (2010) : un décentrement qui empêche la fixation à ce qui est donné au
préalable et l’institution de fixations partielles, qui restreignent le flux du signifié sur le signi-
fiant. Ces fixations découlent directement de la non fixité : c’est précisément parce qu’il n’y a
rien de fixe – une identité qui fonderait le sujet – qu’il y a tendance à s’identifier avec quelque
chose. Toutefois, ces identifications sont toujours partielles et en mouvement, précisément
parce qu’il n’y a pas de fixité.
En lisant Chantal Mouffe, Costa (2002) souligne que l’absence d’unité de la figure
« femme » n’implique pas l’impossibilité d’une base pour une politique féministe. La construc-
tion des points nodaux et des fixations partielles permettent l’identification autour de la caté-
gorie « femme ». Costa (2013) mobilise la pensée de Mouffe en proposant une articulation entre
les luttes contre différentes formes d’oppression, à partir de la notion de femme comme caté-
gorie politique. Cette articulation passe d’abord par un premier moment de sa déconstruction,
de sorte à mettre en évidence son caractère non-essentiel, pour ensuite instituer des « points
nodaux ou matérialisations partielles qui limiteraient le flux du signifié sur le signifiant », pour
reprendre les mots de Chantal Mouffe que nous traduisons du portugais. Selon Costa (2013),
ces articulations « structureraient les positions du sujet autour de la catégorie femme (comprise
comme un effet politique de ces articulations à partir des antagonismes et contradictions so-
ciales) » (p. 133, nous traduisons).
Mais que sont-elles, ces « positions du sujet » ? Costa (2002) utilise cette notion, en
mobilisant les travaux d’Alcoff (1988). Celle-ci examine la conceptualisation de la « femme »
à partir de la notion de positionnalité (positionality), de sorte à appréhender le sujet non pas
comme essentialisé, mais émergeant d’une expérience historique. Une définition essentialiste
de la « femme » esquisserait son identité indépendamment du contexte, lui attribuant des ca-
ractéristiques de la féminité qui seraient ontologiquement autonomes quant à sa position par
rapport aux autres ou à ses conditions historiques et sociales.
381
À contre-pied, une définition positionnelle considère l’identité par rapport à un contexte
en constant changement, aux relations avec les autres, aux conditions économiques objectives,
aux institutions culturelles et politiques, etc. Selon les mots d’Alcoff (1988) :

Quand le concept « femme » se définit non par un ensemble particulier d’attributs,


mais par une position spécifique, identifier ainsi une personne en dit moins sur ses
caractéristiques internes que sur le contexte extérieur dans lequel elle se situe. La si-
tuation extérieure détermine la position relative de la personne – tout comme la posi-
tion d’un pion sur un échiquier est considérée sûre ou périlleuse, puissante ou faible,
selon sa relation avec les autres pièces du jeu d’échecs382 (p. 433, nous traduisons).

« Être femme » peut ainsi se définir à partir de la position dans un réseau de relations,
et non à partir de caractéristiques biologiques ou psychiques qui constitueraient une certaine
féminité. Il devient alors possible de défendre une politique féministe qui prenne en compte
cette position, et non pas une « identité féminine ». Alcoff (1988) affirme : « femme est une
position depuis laquelle une politique féministe peut émerger, plutôt qu’un ensemble d’attributs
“objectivement identifiables”383 » (p. 435, nous traduisons).
Selon Alcoff (1988), le concept et la position des femmes ne sont pas arbitraires ; il ne
serait pas possible, par exemple, de proposer une interprétation de notre société actuelle affir-
mant que les femmes sont en condition égale ou supérieure à celle des hommes aux rapports de
pouvoir. Cependant, puisque le contexte est en constant mouvement historique, le concept de
positionnalité évite l’essentialisme. Il est possible, par exemple, d’envisager un avenir dans
lequel les catégories oppositionnelles de genre ne seront plus fondamentales. C’est pourquoi le
concept de femme doit rester ouvert aux futures modifications. Mais pourquoi procéder de la
sorte ? Quel intérêt de mettre en lumière cette manière de concevoir la catégorie femme parmi
d’autres possible ?
Tout d’abord, conceptualiser la catégorie à partir de la position dans les rapports sociaux
permet de penser la matérialité de l’oppression, et situer les oppressions genrées, comme le
préconise Nancy Fraser. Cet aspect nous conduit à un deuxième point fondamental : le fait de
considérer notre propre position par rapport à un objet quand nous tâchons de l’examiner. Costa
(2013) prend l’exemple des études sur les masculinités dans le cadre universitaire : sans poser

382
“When the concept ‘woman’ is defined not by a particular set of attributes but by a particular position, the
internal characteristics of the person thus identified are not denoted so much as the external context within which
that person is situated. The external situation determines the person's relative position, just as the position of a
pawn on a chessboard is considered safe or dangerous, powerful or weak, according to its relation to the other
chess pieces.” (ALCOFF, 1988, p. 433)
383
“[…] woman is a position from which a feminist politics can emerge rather than a set of attributes that are
‘objectively identifiable’” (ALCOFF, 1988, p. 435)
382
de problème a priori, elles excluent souvent les perspectives féministes et réitèrent les narra-
tions proposées par les hommes. L’auteure affirme :

Bien que je n’aie rien contre les études sur les masculinités, cela m’inquiète que nom-
breuses de ces recherches échappent complètement à un regard critique féministe. Par
exemple, dans un séminaire récent sur les études de genre dans mon université, je suis
tombée sur un travail proposant d’analyser le regard masculin sur l’avortement. Alors
même que nous n’avons pas encore de récits suffisants du regard des femmes sur
l’avortement, il me semble un peu précipité d’abandonner les femmes à la contempla-
tion des hommes à l’égard de l’avortement. Pour ne pas dire que toutes les histoires
racontées jusqu’à présent adoptent toujours une narration selon la perspective mascu-
line. (COSTA, 2013, p. 131-2, nous traduisons)

Selon la perspective des savoirs situés, nous considérons que si un homme prétend pren-
dre position par rapport à l’avortement, en l’occurrence, il se doit d’interroger la position qu’il
occupe concernant ce sujet. Il s’agit d’une position privilégiée, contrairement à la position des
femmes, compte tenu des sens très différents, attribués culturellement à la paternité et à la ma-
ternité.
Il en va de même de notre position, en tant que psychanalystes, quand nous nous pro-
nonçons sur n’importe quel sujet. Cette nécessité a été vivifiée par le phénomène de la quête
d’un « psy safe384 » – qui a fait l’objet d’une réflexion des psychanalystes Beatriz Santos et
Elsa Polverel (2016) dans le contexte français – ou d’un professionnel selon l’appartenance à
certaines catégories identitaires, qui se produit de plus en plus au Brésil.
Dans un texte publié dans une revue journalistique385, l’auteure Jarrid Arraes (2015)
résente les témoignages de patients sur la reproduction de situations d’oppression dans des es-
paces de la clinique. Parmi les témoignages, des récits de femmes noires racontent la manière
dont leur parole a été interprétée comme de la « victimisation » et de la transformation de si-
tuations « normales » en racisme. Elles ont parfois fait face à des hésitations de la part des
clinicien·nes à « croire » ou pas dans l’existence actuelle du racisme au Brésil jusqu’à l’affir-
mation « le racisme n’existe pas ».
Dans un travail considérable sur la question de la négritude dans la psychanalyse, Ana
Paula Musatti Braga et Miriam Debieux Rosa (2017) interrogent le silence de la plupart des
études psychanalytiques face à différentes formes d’inégalité au Brésil (sociale, de genre, ra-
ciale). Les auteures considèrent que cette omission constitue une sorte de consentement, et at-
tirent notre attention sur notre implication dans de telles questions.

384
En France, le site Psysafe liste des professionnels de santé mentale considérés safe, au sens d’une non-repro-
duction des oppressions existantes dans le champ social.
385
ARRAES, J. “Meu psicólogo disse que racismo não existe”. Revista Fórum, 25 jun. 2015. Disponible en ligne :
https://www.revistaforum.com.br/meu-psicologo-disse-que-racismo-nao-existe. [consulté le 19 décembre 2019].
383
Braga et Rosa (2017) montrent comment les psychanalystes passent sous silence les
questions raciales, alors même qu’ils cherchent à prendre en considération les différences entre
le contexte actuel et celui dans lequel a écrit Freud, concernant les nouvelles configurations
familiales, par exemple. Cependant, ils « “oublient” de préciser que nous ne sommes pas tous
dans des positions équivalentes ou à des places égales dans la structure sociale dans le réseau
discursif » (p. 92, nous traduisons). Selon les auteures, ce type de positionnement est à associer
aux privilèges de la blanchité et à la position occupée par ces psychanalystes – à savoir, une
place privilégiée quant à l’accès aux recours matériels et symboliques.
Santos et Polverel (2016) considèrent qu’un analyste « non safe » serait celui qui ex-
prime des jugements normatifs envers le patient, faisant de lui un professionnel « dont l’écoute
serait excessivement compromise par le bruit des certitudes dérivées du régime de normes de
son temps » (SANTOS et POLVEREL, 2016, p. 3, nous traduisons).
N’est-ce pas le cas dans les témoignages cités par Arraes ? Un professionnel qui inter-
prète la souffrance liée au racisme comme « victimisation » ou qui questionne l’existence même
du racisme ne ferait-il pas preuve d’une écoute excessivement compromise par « le bruit des
certitudes dérivées du régime de normes de son temps » ? La situation vécue par la patiente qui
a eu sa parole interprétée comme une victimisation et son récit traduit comme une « transfor-
mation de situations “normales” en racisme » ne dénote-t-elle pas une négation de la réalité des
discriminations sous la forme d’une prétendue intervention psychanalytique pointant la non
implication de l’analysante dans ce dont elle se plaint ? Ne sommes-nous pas face à la repro-
duction de la réalité de l’oppression dans le contexte clinique ? Comme le diraient Braga et
Rosa (2017), ne s’agit-il pas d’un positionnement autorisé par les privilèges associés à la posi-
tion de ces psychanalystes ?
Rappelons-nous le récit de Susanne Hommel386 qui, dans une séance d’analyse chez
Lacan, raconte qu’elle se réveillait tous les jours à cinq heures, ce qu’elle associe au fait que la
Gestapo cherchait les juifs chez eux à cette même heure. Lacan se lève et lui fait une caresse
sur le visage. Elle comprend cette caresse comme la transformation de « Gestapo » en « geste
à peau ». Elle affirme que ce geste n’a pas réduit sa douleur, mais l’a transformée en « quelque
chose de différent ». Face à la brutalité d’une réalité d’oppression, il y a là une réaction très
différente de celles qui mettent en doute l’énoncé de l’analysant ou qui proposent des interpré-
tations supposant son implication dans ce dont il se plaint.

386
Suzanne Hommel est interviewée par Gérard Miller, dans le documentaire Rendez-vous chez Lacan. Extrait en
question disponible en ligne : https://www.youtube.com/watch?v=VA-SXCGwLvY [consulté le 19 décembre
2019].
384
Un troisième point ayant trait aux positions dans les rapports sociaux, s’exprime dans
la possibilité de penser la reconnaissance à partir de cette position, selon la proposition de
Nancy Fraser sur la parité de participation. Cette idée se lie aux deux premiers points car la
matérialité de l’oppression et la non reconnaissance de cette réalité peuvent découler des posi-
tions de privilège que nous occupons.
Fraser (2002) propose une conception bidimensionnelle de la justice, qui porte autant
sur des préoccupations traditionnelles des théories de la justice distributive (pauvreté, exploita-
tion, inégalités, différences de classe…) que sur celles soulignées par les demandes de recon-
naissance (irrespect, impérialisme culturel, etc.). Fraser (2002) propose ainsi que la justice soit
articulée à la possibilité d’intégration de tous les membres de la société en tant que pairs.
Fraser (2002) défend une conceptualisation non-identitaire de la reconnaissance au
moyen du « modèle du statut », selon lequel ce qui requiert la reconnaissance ne serait pas
l’identité spécifique d’un groupe, mais le « statut individuel de ses membres en tant que parte-
naires de plein droit dans l’interaction sociale » (p. 15, nous traduisons du portugais). Agir
contre les injustices liées à la reconnaissance requiert une politique de reconnaissance – non
pas une politique identitaire –, c’est-à-dire restituer la participation dans la société en tant que
membre plénier de celle-ci, au même niveau que les autres. Fraser (2002) affirme :

Considérer la reconnaissance comme une question de statut veut dire examiner les
normes institutionnalisées de valeur culturelle pour leurs effets sur la position relative
des acteurs sociaux. Si et quand ces normes constituent des acteurs comme des pairs,
capables de participer sur un pied d’égalité dans la vie sociale, alors nous pourrons
parler de reconnaissance réciproque et égalité de statut. Tant que, au contraire, ces
normes constitueront certains acteurs comme inférieurs, exclus, absolument autres, ou
simplement invisibles – autrement dit, comme des partenaires inférieurs dans l’inte-
raction sociale – alors nous parlerons de non reconnaissance ou subordination de sta-
tuts387 (FRASER, 2000, p. 113, nous traduisons).

L’effort fourni par l’auteure pour penser la reconnaissance à partir des normes institu-
tionnalisées de valeur culturelle est primordial pour le sujet qui nous occupe ici. Fraser s’attèle
à la matérialité de ces normes et met en lumière les pratiques institutionnalisées :

[...] dans le modèle du statut, la non reconnaissance n’est pas relayée par des repré-
sentations ou des discours culturels flottants. Elle est perpétrée, comme nous l’avons
vu, au moyen de normes institutionnalisées – autrement dit, à travers le

387
“To view recognition as a matter of status means examining institutionalized patterns of cultural value for their
effects on the relative standing of social actors. If and when such patterns constitute actors as peers, capable of
participating on a par with one another in social life, then we can speak of reciprocal recognition and status equal-
ity. When, in contrast, they constitute some actors as inferior, excluded, wholly other, or simply invisible – in other
words, as less than full partners in social interaction – then we can speak of misrecognition and status subordina-
tion.” (FRASER, 2000, p. 113).
385
fonctionnement des institutions sociales qui régulent l’interaction selon des normes
culturelles qui empêchent la parité388 (FRASER, 2000, p. 114, nous traduisons).

Si nous revenons au débat entre Butler et Fraser (1997/2017), cette dernière met en
avant le fait que les injustices de reconnaissance sont tout aussi matérielles que celles de redis-
tribution. Le principe de parité de participation proposé par Fraser (2002) implique deux con-
ditions. Tout d’abord, les situations de privation, d’exploitation et d’inégalités (de richesse, de
revenu et de temps de loisir) entraînent la négation de moyens et d’opportunités d’interaction
en tant que pairs, alors la première condition est la « distribution de recours matériels qui ga-
rantissent l’indépendance et la “voix” des participants » (FRASER, 2002, p. 13, nous traduisons
du portugais). Ensuite, les normes institutionnelles de dépréciation systématique de certaines
catégories de personnes doivent être remplacées par des « normes institutionnelles de valeur
culturelle exprimant un respect égal envers tous les participants et garantissant des opportunités
égales pour atteindre la considération sociale » (FRASER, 2002, p. 13, nous traduisons du
portugais).
Cette perspective non-identitaire de la reconnaissance, ne serait-elle pas compatible
avec la psychanalyse ? Rose (2005) remarque que le concept de subjectivité divisée est tenu
pour incompatible avec des demandes politiques : « l’idée d’une subjectivité divisée et conflic-
tuelle, prise dans le registre du fantasme, s’oppose directement à l’idée de protestation légitime
au sens politique389 » (ROSE, 2005, p. 13, nous traduisons). Pourtant, selon l’auteure, le fait
que la psychanalyse se concentre sur le fantasme ne revient pas à discréditer l’énoncé du patient.
Freud n’a pas considéré que les récits de ses patientes étaient des « fantasmes de femmes hys-
tériques ayant inventé des histoires et raconté des mensonges » (p. 13, nous traduisons).
C’est pourquoi Rose (2005) considère que la tâche plus globale de l’analyse serait de
« réconcilier le problème de la subjectivité qui assigne activité (et non faute), fantasme (et non
erreur), conflit (et non stupidité) à des sujets individuels – en l’occurrence, des femmes – avec
une forme d’analyse qui puisse aussi reconnaître la force des structures dans le besoin urgent
de changement social390 » (ROSE, 2005, p. 14, nous traduisons).

388
“On the status model, moreover, misrecognition is not relayed through free-floating cultural representations or
discourses. It is perpetrated, as we have seen, through institutionalized patterns – in other words, through the
workings of social institutions that regulate interaction according to parity-impeding cultural norms.” (FRASER,
2000, p. 114).
389
“[...] the idea of a conflictual, divided subjectity, caught up in the register of fantasy, is directly opposed to the
idea of legitimate protest as it is politically understood” (ROSE, 2005, p. 13)
390
“[…] reconcile the problem of subjecvity which assigns activity (but not guilt), fantasy (but not error), conflict
(but not stupidity) to indivual subjects – in this case women – with a form of analysis which can also recognise
the force of structures in urgent need of social change” (ROSE, 2005, p. 14)
386
Rose (2005) affirme : « Il est sans doute particulièrement important, pour les femmes,
de trouver un langage qui nous permette de reconnaître notre part dans d’intolérables structures
– mais sans faire de nous ni de pures victimes ni les seules actrices de notre détresse391 » (p. 14,
nous traduisons). Autrement dit, reconnaître notre position dans les rapports sociaux, qui ren-
voie à quelque chose de structurel, de façon à ne pas considérer le sujet comme victime, pas
plus que le seul responsable de sa condition.
À l’opposé de ce que propose Rose (2005), les récits sur la reproduction de situations
d’oppression dans le cadre de la clinique montrent précisément la responsabilisation du sujet,
le discrédit jeté sur son énoncé et sur la réalité de l’oppression. Ce qui nous amène à notre
dernier point essentiel : la perspective de l’analyste sur la théorie psychanalytique peut partici-
per aux visions préconçues reproduites. Laufer (2014a) souligne l’idée formulée par Lacan sur
le transfert dans Le Séminaire, tome I : Les écrits techniques de Freud : le psychanalyste y
reprend de façon critique la notion de contre-transfert. Lacan (1953-4/1975) affirme que « le
contre-transfert n’est rien d’autre que la fonction de l’ego de l’analyste, ce [qu’il] a appelé “la
somme des préjugés de l’analyste” » (p. 31). Parmi ces préjugés, il peut y avoir des idées pré-
conçues qui débouchent sur une négation de la réalité de l’oppression – comme nous l’avons
vu avec les exemples concernant le racisme, mais qui peuvent également concerner le sexisme,
l’homophobie, la condition socio-économique, etc.
En outre, la vision même de l’analyste sur la théorie psychanalytique peut fonctionner
comme un contre-transfert, selon le psychanalyste Bruce Fink (2017). Celui-ci raconte une si-
tuation dans laquelle l’analysant se sentait inconfortable avec des retards fréquents de l’ana-
lyste, il considère que cet agacement ne peut pas être considéré comme du transfert, affirmant
que « les analystes doivent reconnaître leurs propres contributions dans ces situations » (p. 225,
nous traduisons du portugais) – ce qui ne veut pas dire parler des raisons du retard avec l’ana-
lysant, mais plutôt s’engager à ne plus être en retard, le faire et travailler sur ses raisons en
analyse ou en supervision.
Fink (2017) ajoute à la formule de Lacan l’idée d’« information inappropriée » (p. 226).
C’est-à-dire, il propose le contre-transfert comme la somme des préjugés de l’analyste ou de
son information inappropriée : « la vision de l’analyste sur la théorie psychanalytique peut fonc-
tionner comme un contre-transfert ». Par exemple, si l’analyste part de la croyance en

391
“Perhaps for women it is of particular importance that we find a language which allows us to recognise our part
in intolerable structures – but in a way which renders us neither the pure victims nor the sole agents of our distress.”
(ROSE, 2005, p. 14)

387
« l’identification projective », il supposera sans doute que l’analysant, agacé par ses retards,
projetterait chez l’analyste l’idée que tout monde profite de lui – c’est une manière pour l’ana-
lyste de renvoyer la responsabilité de cet agacement à l’analysant. Or l’auteur considère que,
dans ce cas, « à mesure que [les analystes] embrassent des concepts psychanalytiques, ils trans-
fèrent la charge des difficultés dans le traitement d’eux-mêmes vers les patients. Le contre-
transfert inclut les préjugés et tout ce qui aveugle » (FINK, 2017, p. 226, nous traduisons du
portugais).
Laufer (2014a) part du principe que « la psychanalyse est un savoir situé et constitué
historiquement » (p. 25), elle propose ainsi la nécessité de réfléchir sur les théories psychana-
lytiques elles-mêmes :

La psychanalyse, en tant que méthode, théorie et pratique, peut-elle se passer de sa


propre réflexivité ? Qu’est-ce qu’un dispositif qui ne met pas en perspective son
propre mode de fabrication, ses propres conditions d’apparition ? Qu’est-ce qu’un
discours qui ne se confronte pas à ce qu’il a voulu oublier de lui-même ou exclure de
lui-même ? Le dispositif de pouvoir reviendrait-il comme refoulé de la psychana-
lyse ? (p. 25)

Le point de vue de l’analyste sur la théorie psychanalytique peut donc avoir une in-
fluence sur la reproduction de ses idées préconçues. C’est pourquoi nous considérons fonda-
mentale la réflexion sur les théories psychanalytiques à partir des apports d’autres champs. Le
chemin tracé tout au long de cette recherche est passé par les théories féministes matérialistes
parce que celles-ci attirent l’attention sur la matérialité de l’oppression – une dimension à être
examinée, à nos yeux, dans les débats psychanalytiques.
Notre réflexion a débuté par le dilemme de la redistribution versus la reconnaissance
pour arriver, enfin, aux propositions de Nancy Fraser : insister sur la justice sociale revient à
être attentif aux réalités de l’oppression et au fait que celle-ci ne doive jamais être négligée.
Cela ne veut pas dire abandonner la sphère du discours et des représentations, mais les articuler
aux institutions et aux pratiques sociales institutionnalisées. À nos yeux, face à leur complexité,
nous devons considérer les problèmes sous leurs multiples dimensions et chercher à établir des
liens entre celles-ci. Nancy Fraser explique que, dans le dilemme de la redistribution versus la
reconnaissance, deux objectifs peuvent parfois agir l’un contre l’autre : « la menace de substi-
tution surgit quand deux perspectives de la justice sont considérées mutuellement incompa-
tibles. Dans ce cas, les revendications de reconnaissance se déconnectent des revendications de
redistributions, finissant par les éluder » (FRASER, 2002, p. 12). Fraser affronte toutes les dif-
ficultés qui se posent quand nous tentons de penser la redistribution et la reconnaissance, plutôt
que la redistribution ou la reconnaissance.

388
Le défi de la psychanalyse est d’articuler ce qui est souvent revendiqué comme « pro-
prement psychanalytique » avec les relations entre discours (ou le champ de la représentation)
et matérialité. Il ne s’agit pas d’une causalité ou d’une direction unique, mais au contraire d’une
imbrication. Autrement dit, la matérialité est discursivement médiée de la même manière que
les discours sont matériellement médiés.
Si nous nous concentrons seulement sur « l’au-delà de la représentation », la déstabili-
sation de sens, l’idée qu’il n’existe pas « définitivement homme ou femme », nous risquons de
tomber dans une « conversation célébratoire » qui peut avoir du succès auprès de nos pairs.
Cependant, cette conversation parle assez peu au monde au-delà de nos cabinets. Nous risquons
encore de nous confronter au problème soulevé par Fraser (2002) : en soulignant la dimension
« au-delà de la représentation », qui serait supposément « proprement psychanalytique », nous
pouvons disloquer et éluder les dimensions de reconnaissance et de redistribution – d’où la
nécessité d’une immense réflexivité sur nos propres théories psychanalytiques.

389
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