Edição+n.59
Edição+n.59
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SENTIDOS E INTERPRETAÇÕES SOBRE O BRASIL,
SOBRE OS BRASILEIROS E A BRASILIDADE
Fragmentum
www.ufsm.br/fragmentum – fragmentum.corpus@gmail.com
Apoio
Centro de Artes e Letras - CAL/UFSM
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PRPGP/UFSM – Edital Pró-Revistas
Pró-Reitoria de Extensão – PRE/UFSM
Fragmentum
Publicação do Laboratório Corpus – Laboratório de Fontes de Estudos da
Linguagem, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM
POLÍTICA EDITORIAL
Fragmentum é um periódico científico publicado trimestralmente nas
versões impressa (ISSN 1519-9894) e on-line (ISSN 2179-2194) e destinado
a pesquisadores e estudantes em nível de pós-graduação. O periódico divulga
textos produzidos por pesquisadores que desenvolvem, como escopo e/ou
resultado de pesquisas, as seguintes problemáticas:
a) Na Linguística, questões enunciativas e/ou discursivas, tendo por
eixo diretor o campo do saber sobre a história da produção do conhecimento
linguístico, a partir da análise de instrumentos linguísticos bem como de
outras textualidades alicerçadas pela História das Ideias Linguística em sua
relação com a Análise de Discurso de linha francesa;
b) Na Literatura, estudos comparados que têm evidenciado a relação
do texto literário não apenas com seu contexto de produção como também
com outras artes, mídias, saberes e formas, aproximação esta que articula
artes e conhecimentos em suas especificidades, demonstrando processos de
leitura, compreensão, interpretação e análise envolvidos no acesso a obras
de arte e à recepção de um público especializado.
Admitem-se textos em português, francês, inglês ou espanhol. Não
são aceitos textos de pesquisadores que não tenham a formação mínima
de doutor. Acadêmicos de doutorado podem submeter textos à avaliação,
desde que em coautoria com o professor orientador.
Com periodicidade semestral, cada novo dossiê temático será
organizado por dois pesquisadores e constituído de um conjunto de artigos
somados a uma resenha e à divulgação, em formato de resumo, de duas teses
já defendidas, que apresentem relevância para a temática em foco. Afora
essa estrutura preestabelecida, Fragmentum se reservará o direito de publicar
entrevistas e outras textualidades inéditas, de caráter artístico e ensaístico,
quando convier. Originais em francês, português e espanhol deverão
apresentar título, resumo e palavras-chave na língua em que foi escrito o
texto e em inglês. Para originais em inglês, título, resumo e palavras-chave
deverão ser apresentados em inglês e em português.
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Enéias Farias Tavares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
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Editora-Gerente
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Giuseppe D'Ottavi, Institut des Textes et Manuscrits Modernes, Paris
(ENS/CNRS), França
Gladys B. Morales, Universidad Nacional de Río Quarto, Argentina
Héliane Kohler, Université de Franche-Comté, França
Irène Fenoglio, Centre National de la Recherche Scientifique, França
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Brasil
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José Horta Nunes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
Brasil
José Luís Jobim de Salles Fonseca, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Juan Manuel López-Muñoz, Universidad de Cadiz, Espanha
Juliana Steil, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil
Larissa Montagner Cervo, Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, RS, Brasil
Lucília Maria Sousa Romão, Universidade Estadual de São Paulo, USP-
Ribeirão, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Mara Ruth Glozman, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Márcia Helena Saldanha Barbosa, Universidade de Passo Fundo (UPF),
Brasil
Maria Cleci Venturini, Universidade Estadual do Centro-Oeste, Guarapuava,
PR, Brasil
Maria da Glória Bordini, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil
Maria da Glória Corrêa Di Fanti, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Brasil
Maria José R. Faria Coracini, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
SP, Brasil
Marianne Rossi Stumpf, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Mariarosaria Zinzi, Università degli Studi di Firenze, Itália
Marilene Weinhardt, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
Marluza da Rosa, Universidade Federal de Santa Maria - Campus Frederico
Westphalen
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SC, Brasil
Nádia Régia Maffi Neckel, Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
Orna Messer Levin, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
Brasil
Paola Capponi, Università di Torino, Italia.
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Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Regina Zilberman, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil
Rejane Pivetta de Oliveira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Brasil
Silmara Dela Silva, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Taís da Silva Martins, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,
RS, Brasil
Valdir do Nascimento Flores, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Brasil
Valdir Prigol, Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil
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ISSN 1519-9894
APRESENTAÇÃO
Randal Johnson
University of California, UCLA, Los Angeles, United States of America
Luiz Carlos Martins de Souza
Universidade Federal do Amazonas, UFAM, Manaus, AM, Brasil
REFERÊNCIAS:
Ben Burt
Pitzer College, Claremont, CA, USA
Abstract: This article examines João Almino’s novels Idéias para onde passar o fim do mundo (1987)
and As cinco estações do amor (2001), considering how the author refuses the anti-utopian consensus
that defined criticism of Brasília in the late twentieth century. In both works, the Federal District’s
legacy of utopian projection is understood to have failed. This same legacy, however, continues
to resonate, counterbalancing individual and collective disillusionment. The article argues that
Almino’s nuanced, ambiguous portrait of utopianism represents a post-utopian approach to social
change that nonetheless meaningfully defies prevailing disregard for utopia at the time of the
novels’ publication.
Resumo: Este artigo aborda dois romances de João Almino, Idéias para onde passar o fim do mundo
(1987) e As cinco estações do amor (2001), para examinar como o autor rejeita o consenso anti-
utópico respeito a Brasília no final do século XX. Nas duas obras, o legado de projeção utópica
no Distrito Federal se entende como falido, porém ainda ressoa e contrabalança a desilusão
individual e coletiva. O artigo argumenta que este retrato matizado e ambíguo do utopianismo
representa uma abordagem pós-utópica da transformação social que, não obstante, desafia
significativamente o desprezo prevalecente para a utopia na época da publicação dos romances.
present, and possible futures approximate his literary project with the national
historical, sociological, or anthropological analyses known as “interpretações
do Brasil,” defined by José Carlos Reis (2006, p. 15) as “sínteses [que] têm
um duplo objetivo: criar uma representação global do Brasil... [e] ‘refigurar’ o
presente e imaginar um futuro possível, uma utopia realizável” . These texts,
translated into multiple languages, have indeed spread awareness of Brasília’s
history and culture both domestically and internationally. Almino likewise
insists on contemplating constructive social transformation, defying the anti-
utopian zeitgeist of the late twentieth and early twenty first centuries and the
critical consensus that Brasília was a failed experiment. Given the city’s close
associations with national cohesion, power, and the public sphere, Almino’s
portraits of brasiliense society and identity also reflect upon the state of the
Brazilian nation (BEAL, 2020, p. 8-9). Still, the specificity of the geography,
history, and aspirations on display confirm the primacy of the local in the
author’s early works.
This article investigates the representation of utopianism in Almino’s
first and third novels: Idéias para onde passar o fim do mundo (1987) [Idéias] and
As cinco estações do amor (2001) [As cinco]5. The fantastical, narratively fractured
Idéias and the realist, memorialist As cinco each integrate a profound interest in
Brasília’s history that likewise characterizes much of of Almino’s non-fictional
production. The essay “Brasília, o mito; anotações para um ideário estético-
literário,” for instance, recounts the Federal District’s history as a repository
of utopian desire before asking: “E o que Brasília simboliza? A democracia.
A racionalidade. A nação. O moderno. O futuro. E também, claro, o poder,
a alienação, o encastelamento, a corrupção, o autoritarismo, o misticismo
e a irracionalidade” (ALMINO, 2008, p. 10). Almino’s understanding of
utopianism in the capital is complex. While fully conscious of the city’s failed
foundational aspirations, the author nonetheless believes that Brasília can
inspire renewed utopian thought: “...é possível extrair um resto de esperança,
a constante lembrança de seus mitos e utopia e a insatisfação com a realidade
que alimenta a boa leitura” (ALMINO, 2008, p.19). This irrepressible
hopefulness does not override the undesirable aspects of life in the capital, but
rather informs a critical perspective that refuses anti-utopian resignation. The
grandiose goals of Brasília’s origins recurrently inspire elite and working-class
7 Developed since 1979, this article cites the version of Campos’s theory of post-
utopia from 1997’s O arco-íris branco.
26 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília
8 Alongside Almino, poet Nicolas Behr, filmmaker Adirley Queirós, and playwright
Alexandre Ribondi have imagined Brasília’s destruction (BEAL, 2020, p. 13).
28 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília
hope, yet later adopts a surprisingly balanced view of the capital that reflects
the ongoing inspirational capacity of the city’s foundational aspirations:
9 The fictional Jardim da Salvação recurs throughout Almino’s oeuvre and shares
many characteristics with the Vale do Amanhacer religious community.
30 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília
10 The revised version of Meira’s article translated into English excludes this
quotation.
BURT, B. | 33
As cidades adquirem o ar dos tempos por que passam. Brasília, que tinha
sido promessa de socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não
usava mais disfarce. A desolação de suas cidades-satélites já a asfixiava.
Respirávamos vinte e quatro horas por dia o ar envenenado da ditadura
militar (ALMINO, 2001, p. 21-22).
(ALMINO, 2001, p. 158). And yet, such pure despair remains fleeting in
Almino’s capital, as Ana sees an “esperança” cricket that she interprets as
a hopeful sign: “Esta esperança deve ter um significado para mim, neste
primeiro dia do milênio. Por pequena que seja, por mais que tente negá-
la e a reconheça como pura ilusão, a esperança teima em sobreviver. Sem
ela, qual presente seria possível suportar?” (ALMINO, 2001, p. 159).
Despite her prior insistence on the sovereignty of the present moment,
Ana recognizes the importance of hopeful aspiration. The calendrical turn,
represented only pages prior as the culmination of an inexorable process of
disillusionment, now conveys the possibility of renaissance.
This recognition is short-lived, however, once Ana discovers Berta
was murdered the night before. The protagonist becomes obsessed with
death and associates Brasília’s design with the futility of personal aspiration:
“Por um instante ainda penso na aventura que me trouxe ao Planalto
Central, como para cumprir uma missão. Logo me ocorre que, desde o
começo, a estrutura monumental de Brasília traçava os limites daquela
minha aventura” (ALMINO, 2001, p. 169). Feeling powerless in the grand
scale of the Plano Piloto, Ana’s past resentments resurge. She angrily
describes destroying Brasília, “Esta é minha revolta, minha revolução. Chega
de sobrevida medíocre e acomodada. Tivesse uma bomba aqui, explodia a
casa, Brasília, o mundo, esta obra de um Deus mal-humorado” (ALMINO,
2001, p. 170). This nihilistic, destructive apocalyptic rhetoric marks the
protagonist’s nadir. Convinced that both she and Brasília are irredeemable
failures, she sets fire to her house and shoots herself.
As Ana convalesces, her friend Marcelo outlines a fundamental
principle of Almino’s Brasília: “Está errado dizer que a esperança é a
última que morre. Ela não morre nunca” (ALMINO, 2001, p. 175). The
protagonist’s reengagement with hopefulness begins via an unlikely
connection to Brasília’s mystical utopian origins. When visiting the ruins
of her house, Ana discovers a vial of dirt collected with the inúteis at the
Jardim da Salvação compound in their youth (ALMINO, 2001, p. 179). This
physical symbol of both Ana and Brasília’s history of grand ambition does
not instigate an instantaneous return to uninhibited social dreaming but does
foreshadow her unlikely turn to post-utopianism in the new millennium.
Back in Brasília after a brief stay in her hometown, Ana revises
instantaneísmo for the final time. In a major departure, the protagonist
accepts a hopeful perspective on the future that recognizes the importance
BURT, B. | 35
and cracked down on civil liberties after 1968. The consequent uncertainty
in the wake of redemocratization is only compounded by the perceived
breakdown of grand utopian narratives and the seeming impossibility of
fundamental social change.
Despite recall to the exuberant social dreams of the 1960s, Almino’s
novels reflect the challenges of utopianism in the comparatively depoliticized
period of their publication. Still, his commitment to crafting nuanced
depictions of Brasília as a site of social dreaming defies the negative view
of the capital prominent at the time. This ambiguous depiction in both
novels thus serves as a bulwark against passively accepting the capital as
condemned to apartheid and alienation. Almino is undeniably among the
“well-healed [sic], white, male, heterosexual artists who lived in the Plano
Piloto” that dominated brasiliense art in the twentieth century, while most of
his characters are from a similar social milieu (BEAL, 2020, p. 18). Still, the
author’s refusal to accept the anti-utopian status quo creates a throughline
between his early novels and a subsequent generation of diverse artists who
engage the capital’s legacy of utopian aspiration to contest socioeconomic
inequality in the Federal District. Almino’s critique may seem bloodless
compared to the radical vision of filmmaker Adirley Queirós’s Branco sai,
preto fica (2014), for instance, yet the author’s inconformity with the fatalistic
vogue of decades prior conveys a belief in Brasília’s transformation that
continues to resonate among younger artists in the new millennium.11
Almino’s vision of utopian thought as inextricable from doubt
represents a productive response to a historical zeitgeist defined by
resignation to the status quo. By acknowledging that utopianism is an
ambiguous, rather than binary, phenomenon, Almino conveys belief in
constructive reform, however unlikely. The capital will never be as heavenly
as Dom Bosco’s dream nor initiate a new era of social egalitarianism, yet
its history of social dreaming need not be disregarded as naïve. Almino
reframes the debate about Brasília’s legacy as a utopian city by recognizing the
validity of these inspirations alongside credulity in their continued relevance.
By tracing the trajectories of characters who re-engage with utopian thought
despite full awareness of the city’s flaws, both Idéias and As cinco illustrate
productive post-utopianism inspired by the city’s failed, radical utopian origins.
11 Unlike the imagined destruction of the Plano Piloto in Idéias and As cinco, Queirós’s
impoverished, Afro-Brazilian characters from the satellite city of Ceilândia successfully avenge
police violence by annihilating the Plano Piloto with a sonic bomb.
38 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília
Works Cited
_______. Idéias para onde passar o fim do mundo. Brasília: Brasiliense, 1987.
CURTIS, C. Postapocalyptic Fiction and the Social Contract: We’ll Not Got Home
Again. Lanham: Lexington Books, 2010.
FUKUYMA, F. The End of History and the Last Man. Portland: Bard, 1998.
BURT, B. | 39
RESENDE, Beatriz. Preface. In: ALMINO, J. Idéias para Onde Passar o Fim
do Mundo. 2nd ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.
SCOTT, J. Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human
Condition Have Failed. New Haven: Yale University Press, 1998.
Abstract: The place of affiliation of this work is Discourse Analysis (DA) of materialist
orientation, considering the work of Michel Pêcheux (France, in the 1960s), which sought
to answer some questions about extralinguistic factors articulating Historical Materialism,
Linguistics and Psychoanalysis; and the work of Eni Orlandi (Brazil, from the 1980s), which
seek to investigate the relations language-society-ideology and the production of meanings and
subjects in different ways of meaning. It is from this place that we intend to weave our reading
gesture about Brasis, analyzing a set of Vogue covers we question: How is the black-female
body discursivized?
Palavras iniciais
É na e pela ideologia que se dá o que pode e o que deve ser visto ou que
não se pode ver, o que deve se tornar invisível, aquilo que não corresponde
à um certo padrão. E esses regimes de visibilidade ou de invisibilidade se
marcam também nos dispositivos, como as mídias e a moda, por exemplo.
Logo, entendemos que a história dos corpos femininos negros não é contada
apenas por palavras, também são contadas pela via das imagens, dos corpos,
das memórias, exclusões, práticas e pelos discursos.
Compreendemos que os sentidos dados ao corpo mantêm uma
relação direta não só com a história e a ideologia, mas com o próprio
sujeito, por ser seu suporte material. Logo, o conceito de corpo se constitui
44 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura
O Corpus
Gestos de Leitura
[...] quando a pele é exposta em trajes usados para evocar sexual, a modelo
que os veste não é branca. De acordo com a mitologia sexual/ racista, ele
corporifica o melhor da mulher negra selvagem, temperada com elementos
de branquitude que suavizam a imagem, conferindo uma aura de virtude
e inocência. Na imaginação pornográfica racializada, ela é a combinação
perfeita da virgem e da puta, a sedutora perfeita.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das
roupas. 2. ed. São Paulo: Editora Senac, 2009.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
André Cavalcante
Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, PE, Brasil
Resumo: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o imaginário do sujeito-indígena sobre
língua e povos indígenas a partir da escrita de dois livros Índios na visão dos índios: Fulniô e
Índios na visão dos índios: Potiguara. Livros que surgiram com o propósito de ser um espaço para
que os indígenas falassem por si, um discurso de, para além do já estabilizado no imaginário
brasileiro sobre os indígenas. Embasados teórico-metodologicamente na Análise do Discurso
materialista, serão analisadas sequências discursivas recortadas dessas duas obras, questionando
a constituição da brasilidade e quais os espaços possíveis para se dizer indígena e brasileiro. As
análises nos fazem compreender que o discurso do indígena é atravessado pelo discurso sobre estes
povos e o imaginário destes sobre língua e identificação se faz pela retomada de já-ditos para
refutá-los ou ratificá-los.
Abstract: This article aims to discuss the discourse of the indigenous-subject about indigenous
people and language from the writings of two Indigenous books: Indians from the point of
view of Indians: Fulniô and Indians from the point of view of Indians: Potiguara. Books that
have the purpose of being a space for the indigenous to speak for themselves, in addition
to the already stabilized Brazilian imaginary about them. Theoretically and methodologically
based on the Materialist Discourse Analysis, discursive sequences taken from these two works
will be analyzed, questioning the constitution of Brazilianness and what are the possible
spaces to say indigenous and Brazilian. The analyses make us understand that the indigenous
discourse is crossed by the discourse about these peoples, and their imaginary about language
and identification is made by the resumption of the already-said to refute or reinforce them.
2 A apresentação de Txai Suruí na COP26 pode ser acessada no seguinte link https://
www.youtube.com/watch?v=1gnUH7HNBAU, acesso em 23/12/21. Parte de sua fala foi
traduzido pela indígena e publicado na sua página do Instagram, https://www.instagram.com/
txaisurui .
3 Disponível em:< https://www.indioeduca.org/>. Acesso em: 29 dez. 2021.
CAVALCANTE, A. |
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Discursos em confronto
3. Culturas congeladas;
4. Os indígenas pertencem ao passado; e
5. O brasileiro não é indígena.
No primeiro equívoco, os indígenas são vistos como um grupo
homogêneo, com as mesmas crenças e língua. Há, dessa maneira, um
apagamento de cerca de 200 etnias e 188 línguas indígenas (FREIRE,
2009). No segundo, não é sabido ou se desconsidera os diversos saberes
produzidos por esses povos. A produção de ciência, arte, literatura e música
pelos indígenas não fazem parte do que é considerado como cultura. O
terceiro equívoco diz respeito a uma imagem cristalizada do indígena como
sujeito isolado e nu nas florestas. No quarto, pensa-se que os indígenas
vivem no passado, são seres primitivos e são um obstáculo à modernidade
ou, ainda, não existem atualmente. Por último, a quinta ideia equivocada é
que o indígena não é brasileiro, nega-se, assim, a nacionalidade desse povo.
Na história do Brasil, mesmo que em alguns momentos não nos demos
conta, há sempre uma luta diária de sobrevivência dos povos originários,
resistência à invisibilização pelo Estado, que remonta à época da invasão
dos portugueses. Nos séculos XX e XXI, as disputas e violências contra os
indígenas continuam, como podemos lembrar: a morte Galdino, do grupo
Pataxó, queimado vivo, em 1997, na capital federal; a divulgação da carta
de genocídio dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, em 2012; os
protestos contra a destruição do antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro,
entre 2006 e 2013, e contra a aprovação da PEC 2154, por diversos povos
indígenas, inclusive nas redes sociais, entre 2014 e 2015, a luta contra a PL
490 que prevê a alteração da demarcação das terras indígenas, entre outros
episódios, relembraram, outra vez, aos incautos a existência do sujeito-
indígena, aquele que sempre esteve nessas terras, à margem, mas produzindo
sentidos, resistência e não submissão.
Sentidos e(m) disputas que retomam o discurso da colonização, a
quem pertence as terras, quem são esses sujeitos, qual o imaginário desses
sujeitos sobre si mesmos, sobre a brasilidade, sobre as línguas no Brasil. Parte
das discussões que faremos aqui retomam algumas pesquisas minhas que, até
então, tinham sido deixadas de lado, como o projeto de iniciação científica
4 Projeto de emenda Constitucional (PEC) que consiste numa revisão da decisão da
demarcação das terras indígenas do poder executivo para o legislativo. Ao longo da história do
Brasil, nos deparamos com diversos projetos e emendas com vistas a tomar (mais uma vez) as
terras indígenas, como ocorre hoje com o Projeto de Lei 490.
CAVALCANTE, A. |
69
data em que esse grupo indígena foi aldeado7. São também chamados de
Carnijós ou Carijós e sabe-se que, desde o século XVIII, já se chamavam assim.
Possivelmente e, como contam eles, nessa aldeia, fundiram-se diferentes
grupos étnicos que se organizaram em forma de clãs e, posteriormente,
adotaram o nome do grupo anfitrião, Fulni-ô. Nessas fontes encontradas
pelo instituto, os dados mais antigos acerca desse povo são do ano 1749,
registrados em “Informações Geral da Capitania de Pernambuco” (1906),
que contabilizava 323 pessoas desse grupo.
Ainda conforme o Instituto Sociambiental, durante o período colonial,
os indígenas que habitavam o litoral falavam majoritariamente línguas Tupi;
já os que viviam em outros lugares falavam outras línguas, vistas, para os
colonizadores, como línguas mais truncadas e de difícil aprendizado. Eram
chamados de tapuias. A partir disso, a língua tupinambá, popularmente
conhecida por tupi, foi tomada como protótipo de língua indígena brasileira.
Nessa mesma época, esses povos começaram a ser afastados para o interior
do Brasil, e a região litorânea transformou-se no lugar dos colonizadores.
Assim, vários aldeamentos e povoados indígenas tiveram como sede as áreas
mais interioranas dos estados.
Supostamente, o aldeamento dos Fulni-ô ocorreu no período pós-
expulsão dos holandeses de Pernambuco. A partir de então, as disputas
por terra e a relação conflituosa entre os indígenas e não-indígenas se
intensificaram.
Em trabalho anterior (CAVALCANTE, 2013), comecei a observar as
práticas de linguagem dos Fulni-ô, os quais vivem no território indígena em
Águas Belas, Pernambuco, a 270 km de Recife. Estão agrupados na família
linguística Macro-jê e são falantes da única língua indígena nordestina8. É
importante salientar que a aldeia indígena está muito próxima da cidade,
500 m, e essa relação entre indígenas e não-indígenas é bastante conflituosa,
por questões políticas, religiosas, de propriedade da terra, etc. Portanto, para
os fulni-ô, é de extrema importância marcar a sua identidade em oposição
7 Desde os primeiros anos de colonização, havia a política de aldeamento indígena,
que consiste no agrupamento de índios que, pela legislação, tem sua “liberdade” garantida. No
entanto, o que se observou é que os aldeamentos facilitavam a busca de mão-de-obra para os
colonos e jesuítas, além da interferência cultural e religiosa.
8 Os estudos indigenistas e as fontes pesquisadas discutem que, com a exceção das
línguas indígenas no Maranhão, o Yaathê é a única língua indígena nordestina (SILVA, 2019).
Há, pelo menos, 4 línguas indígenas no Maranhão, como guajajara, guaja; tembé e ka’apor,
entre Maranhão e Pará, todas da família linguística Tupi.
72 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória
Fulni-ô significa em Yaathê “povo que vive ao lado do rio”. Esses índios
têm duas moradias: a primeira é a reserva, próxima à cidade, onde está
localizada a aldeia que possui aproximadamente 11 mil hectares, com lotes
individuais; a segunda é um local mais distante onde passam três meses
do ano para a prática do ritual religioso Ouricuri. Tal ritual é uma prática
necessária aos indígenas para se afirmarem como Fulni-ô. Por isso, é sigiloso,
não permitido aos não-índios. Esta prática religiosa é realizada em Yaathê
que, segundo a FUNASA (2010), é falada por 4.336 pessoas, tendo funções
rituais e sociais. Eles foram catequizados de 1681 a 1685 e cederam parte
de seu território aos seus catequizadores. Assim, foi construída a igreja e
formou-se a cidade de Águas Belas. Mas, com os conflitos ocorridos ao longo
do tempo, só em 1877 as terras foram demarcadas. Há, na aldeia, escolas
bilíngues para um povo também bilíngue.[...] O interesse da linguística
pelo povo fulni-ô, sobretudo pela língua deles, não é novo. Já houve muitos
outros estudos sobre essa língua indígena (Lapenda, 1968; Costa, 1993;
Cabral, 2009 e outros), porém esses estudos abordaram a língua Yaathê
apenas do ponto de vista da fonologia, morfologia e antropologia. Desses
estudos observou-se que, segundo Costa (1993), a identidade étnica desse
povo é preservada e definida a partir de dois aspectos da cultura: a língua e a
religião. (CAVALCANTE, 2013, p, 1-2)
Referências
SURUÍ, Txai. “Devemos estar nos centros das decisões”, diz Txai
Suruí na COP26. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=1gnUH7HNBAU>. Acesso em: 23 dez. 2021.
Resumo: O texto investiga o impacto da literatura e outras produções indígenas sobre o conceito
de “brasilidade” e de “cultura brasileira”, a partir da análise de obras escritas por intelectuais
indígenas. Se durante muitas décadas as culturas originárias permaneceram ignoradas pelos
grandes intérpretes do Brasil, no século XXI já não é possível ignorar essas diferenças. O tema da
“literatura nos trópicos”, por sua vez, que foi pensada por Silviano Santiago, Antonio Candido,
Luiz Costa Lima, ganha novos olhares e interpretações com a intervenção das produções nativas
e dos estudos antropológicos, conforme atesta estudo recente de Luís Augusto Fischer.
Abstract: In this essay I reflect on the impact of Brazilian Indigenous literature and arts on
the concept of “Brazilian culture”, based on the analysis of Indigenous theories. For many
decades native cultures were ignored by the intelligentsia, but in the 21st century this attitude
is no longer possible. In this sense, a recent book by Luís Augusto Fischer shows how the
theme of “literature in the tropics”, traditionally debated by Silviano Santiago, Antonio
Candido, and Luiz Costa Lima, may be read under new prospect thanks to native thinking
and anthropological studies.
Que o movimento indígena educou após ser educado parece ser uma verdade
incontestável. Certamente é perceptível que muito do que acontece hoje dentro
da sociedade brasileira - em termos educacionais, políticos e sociais – é fruto da
sociedade civil organizada (MUNDURUKU, 2012, p. 222).
raramente incorporadas pela literatura escrita por esses povos. Ou seja, os fazeres
nas comunidades originárias são rizomáticos, não se restringindo a um objetivo
específico e não se submetendo à divisão de “campos do conhecimento”, tão
cara às culturais ocidentalizadas.
Se essas especificidades foram, quando não ignoradas pelos intérpretes
da “cultura brasileira”, reduzidas à folclorização, a literatura indígena se
estabelece não apenas como contraponto ao mainstream, levando, finalmente, à
compreensão de aspectos culturais difundidos por nosso território geográfico e
abordados por autores consagrados, a exemplo de Guimarães Rosa. Cito, a esse
respeito, o recente Duas formações, uma história (2021) de Luís Augusto Fischer,
obra cuja principal tese consiste em revisar os pontos falhos do clássico Formação
da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), de Antonio Candido. Fischer
sustenta, em oposição a Candido, que houve dois pontos de elaboração literária
no Brasil: 1) uma alicerçada no meio urbano (e este reconhecido como exclusivo
por Candido), tendo em Machado de Assis seu marco inaugural; e 2) outra,
com base no relato rural, do qual Guimarães Rosa seria o máximo representante.
Sem adentrar nos pormenores dessa teoria, chamo atenção para a
valorização que Fischer imprime à contribuição indireta do antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro aos estudos literários. O teórico percebe a importância das
pesquisas de Viveiros de Castro para compreender que defender a inexistência
dos indígenas em nosso território é uma forma de “[...] negar umas tantas
evidências óbvias da forte permanência de práticas sociais e de visões de mundo
de origem ameríndia” (FISCHER, 2021, p.327). Interessa particularmente
a Fischer aquilo que o supracitado antropólogo nomeou “perspectivismo
ameríndio”, ou, mais recentemente, “multiculturalismo”, certa característica
recorrente em diversas cosmogonias dos povos da Amazônia. Dando a palavra
ao autor:
REFERÊNCIAS
BASTOS, Elide Rugai. “A história nunca se fecha”. In: sociol. antropol. Rio de
Janeiro, v.10.02: 677–694, may.–aug., 2020. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/sant/a/Dy7NnKNxTWHZq6YqwrghW3m/ Acesso em: 11 nov. 2021.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo:
Cosac Naif, 2016.
FISCHER, Luís Augusto. Duas formações, uma história. Porto Alegre: Arquipélago,
2021.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
LIMA, Luiz Costa. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
SOUZA, Ana Paula Lemes de. et al (Org). Ecologia das águas: o futuro em corrosão.
Cambuquira: Nova Cambuquira, 2019.
Vanise Medeiros
Universidade Federal Fluminense, UFF, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo: Neste artigo, parto do livro Água de barrela, de Eliana Cruz, um romance inscrito na
formação discursiva da descolonização, para promover uma reflexão sobre um enunciado,
corrente em nossa sociedade, que sustenta e justifica desigualdades sociais profundas. Inscrito
na formação discursiva da branquitude, trata-se de um enunciado que institucionaliza certos
sentidos e encobre outros. Pode ser submetido a leituras outras que foram impedidas de circular.
É o que o livro põe em cena. Neste exercício, retorno à virada do século XIX para trazer três
posições que permitem pensar na ancoragem, nos efeitos e nos silenciamentos de tal enunciado.
Abstract: This article starts from the book Água de barrela, by Eliana Cruz, a novel inscribed
in the discursive formation of decolonization, to promote a reflection on current statements
in our society, that sustains and justifies deep social inequalities. Inscribed in the discursive
formation of whiteness, these statements institutionalizes certain meanings and covers up
others. They can be subjected to other readings that have been prevented from circulating.
That’s what the book brings into play. In this exercise, I return to the turn of the 19th century
to bring three positions that allow us to think about the anchoring, the effects and the silencing
of such statements.
1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no evento III Colóquio Internacional
Museus, Arquivos e Lugares de Memória no/do espaço urbano, em agosto de 2021.
O que trago com este artigo são algumas reflexões a partir de leituras
que tenho feito e de inquietações que dizem respeito a desigualdades
sociais profundas na nossa sociedade. Se as perguntas que nos fazemos são
sempre perguntas do presente, este presente não é sem fios entrecortados
de memória, sem história, como nos fala Courtine. É sobre tais fios que
me debruço ao eleger um certo enunciado corrente na nossa atualidade: Eu
trabalhei, eu venci. Parto de um romance emblemático, Água de Barrela, de
Eliana Alvez Cruz.
Vencedor, em 2015, do prêmio Oliveira Silveira, da Fundação
Palmares2, Água de Barrela é um romance memorialístico que narra a saga
de uma linhagem escravizada. Pelo horror da captura e do aprisionamento
de corpos em uma aldeia africana e da travessia dos antepassados da autora
que ao Brasil chegam em 1850 – ano da lei Eusébio de Queiroz que abole o
tráfico de escravizados e que resulta na intensificação desta prática dantesca
tornada ilegal e ampliada em sua ilegalidade –, somos levados a percorrer
a vida de vários membros desta família. Vamos conhecer de perto suas
mulheres – sim, as mulheres negras são centrais. Elas rememoram uma
história que tem sido silenciada, nos contam de uma ancestralidade; por
elas, somos conduzidas a conhecer os homens da família. Mas não somente,
por elas nos vemos diante um já sabido: da exploração dos corpos negros e
da força de seu trabalho; das crueldades praticadas por homens brancos. Por
elas, acompanhamos as escaramuças dos homens e mulheres brancos para se
manter na posição de domínio.
Com efeito, esse romance percorre o universo de desumanização que
as práticas escravagistas, inscritas na formação ideológica da colonização,
teceram e marcaram de forma constitutiva (MODESTO, 2020) nossa
sociedade, nossas relações, nosso imaginário. Vamos rever o pós-abolição e
a condição de abandono e desamparo dos sem direito à terra, sem direito ao
produto de seu trabalho, sem direito à própria vida. Esse romance também
nos joga diante de diferentes posições discursivas relativas às formas de lutar,
de resistir, de tentar sobreviver e também de morrer. Diria tratar-se de um
livro de memórias que se abre com fotos de: Damiana; Pedro, irmão de
Adônis; Damiana e João Paulo.
diz a legenda (CRUZ, 2018, p. 313). Foto de objetos que não se perderam
enunciando as perdas. Concretude simbólica de objetos outros, de haveres
que lhes foram interditados.
Figura 8: dois objetos
Sentada na cadeira de rodas, ela [Damiana] olhava aquela gente ao seu redor.
(...)
Seus olhos também já não eram os mesmos, mas registravam muito bem o
brilho das roupas imaculadas naquele dia de festa. Aqueles moços e moças que
ali estavam, certamente, nunca tinham visto uma barrela – aquela água com
cinzas de madeira que se colocava na rouparia para branqueá-la. (...)
No fundo achava que o que se queria mesmo era que tudo fosse mergulhado
nessa água que branqueia. As roupas, as vidas, as pessoas... Todos mergulhados
na água de barrela. Riu intimamente, imaginando a cena. (...) (CRUZ, 2018,
p.15)
Um enunciado
Eu trabalhei, eu venci.
Eu trabalhei, por isso eu venci.
Eu trabalhei, eu venci.
Eu não trabalhei, eu não venci.
Eu trabalhei, por isso não venci e Eu não trabalhei, por isso eu venci não
tecem uma rede parafrástica com Eu trabalhei, eu venci. Com efeito, Eu
trabalhei, eu venci impede que se possa dizer que se venceu sem trabalho.
Aí reside, como sabemos, o discurso da meritocracia. Merecem os que
trabalham.
O mesmo vai ocorrer com a relação explicativa, correlata da conclusiva:
Eu venci, porque recebi fruto do meu trabalho; porque recebi terras; porque
era branco; porque tive direito a saúde, educação, a salário...
Eu não venci, porque não recebi nenhum fruto do meu trabalho; porque
não recebi terras; porque não era branco e porque não tive direito à saúde, à
educação, ao salário...
Através das estruturas que lhe são próprias, toda língua está necessariamente
em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca
estará” da percepção imediata: nela se inscreve a eficácia omni-histórica da
ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins
últimos, o alhures, o além e o invisível.
Referências
Marcelo Peloggio
Universidade Federal do Ceará, UFC, Fortaleza, CE, Brasil
Resumo: O texto aborda, a partir de uma visão histórica e literária, a figura do chamado “homem médio
brasileiro”, procurando mostrar que as concepções de mundo do mesmo não se restringem a uma classe
altamente despolitizada, mas, antes, desdobram-se em algo moralista, pernóstico e violento.
Abstract: The text addresses, from a historical and literary view, the figure of the so-called “Brazilian average
man”, trying to show that his world conceptions are not restricted to a highly depoliticized class, but rather
unfold into something moralistic, pernicious and violent.
1. A descrição de um conceito
Não nos valemos aqui do pronome quem, já que não partimos de uma
pessoa em particular ou de uma soma delas e, de resto, de uma classificação
baseada em um empirismo empobrecedor. Poderíamos mesmo ceder a essa
tentação: na fila dos bancos, no comércio, nas repartições, enfim, no âmbito
da vida de relação alguém exclama: “Sou um cidadão de bem! Pago meus
impostos em dia!”.
Tal radiografia parecer ser, de fato, em um primeiro momento,
algo que, neste ensaio, podemos muito facilmente sondar e exibir, dada a
particularidade social do tipo considerado. Assim, ao “homem de bem”, é
costume associar, grosso modo, um sem-número de palavras e ideias a partir
de descrições exteriores. Em geral, o homem de bem primaria, antes do mais,
por seu reacionarismo, direitismo e catolicismo; sua visão de mundo seria
incrivelmente curta ou irreflexiva, operando sempre mecanicamente, o que
faria dele, por extensão, uma criatura imbecilizada ou, em outros termos,
profundamente rude. Por outro lado, ligar-se-ia tanto à figura do servidor
público de carreira quanto à do profissional liberal (na ativa, mas, sobretudo,
aposentados), que teriam por característica comum a despolitização em
elevadíssimo grau – o que parece se justificar por conta de seus bonés,
bermudas, camisetas alusivas à nossa seleção de futebol, tênis de solado
grosso e deselegante.
Ora, considerado a partir dessas exterioridades – indumentária, modus
vivendi, mundividência – não haveria a razão e o porquê para se tentar a
radiografia de um suposto modelo. Daí a necessidade de se enfatizar que
o chamado “homem de bem” está presente, outrossim – e não são poucos
(todavia, como desdobramento ou deformidade do seu ethos) –, nos setores
empobrecidos e mesmo nas classes cultas da sociedade brasileira. Ele é,
então, mais do que um fato social concreto mediano; com efeito, parece ter se
tornado uma mística coletiva.
A que se destina, então, um “homem de bem”? Decerto, a indagação
precisa ser refeita. Não “a que se destina”, uma vez que as exterioridades
mencionadas colocam-nos diante de dada concepção política que as forças
progressistas já formularam e então reproduzem. Pelo contrário: não “a
que se destina”, todavia, os fatores histórico-sociais que o viabilizaram,
determinando-lhe o curso ulteriormente.
Uma possibilidade de análise se abre ante o modo pelo qual é
encarado, de forma genérica, o dito “homem de bem”. Contrário, por
exemplo, à imigração e a favor do uso da truculência para coibir e desbaratar
PELOGGIO, M. | 119
vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror
de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou
coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o
chapéu de couro.
– Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo
(RAMOS, 1982, p. 107, grifos nossos).
Referências
MATOS, Gregório de. Poemas. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 48ª ed. Rio de Janeiro e São Paulo:
Record, 1982.
Resumo: Este artigo é um estudo do romance Desde que o samba é samba, de Paulo Lins, e toma o
campo literário como espaço de discussão das formações ideológicas em torno da contribuição
negra, particularmente do samba, para nossa formação cultural. A integração dos negros em
uma sociedade de classes opõe ordem social moderna e ordem estamental, conforme Florestan
Fernandes (2007). Neste sentido, o diálogo com o pensamento social toma o romance de
Lins como locus privilegiado da discussão sobre as modernidades negras no Brasil e o discurso
literário como uma arena de múltiplas narrativas postas em debate.
Palavras-chave: Desde que o samba é samba. Pensamento social. Modernidades negras. Teoria.
Abstract: This article is a study of the novel Desde que o samba é samba, by Paulo Lins, and takes
the literary field as a space in the discussion of the ideological formations around the black
contribution, particularly of the samba, to Brazilian cultural formation. The integration of
blacks into a class society opposes modern social order and state order, according to Florestan
Fernandes (2007). Therefore, the dialogue with Brazilian social thinking takes Lins’ novel as a
privileged locus in the discussion on Brazilian black modernities and the literary discourse as an
arena in which multiple narratives clash.
Keywords: Desde que o samba é samba. Social thinking. Black modernities. Theory.
Introdução
Aquele povo fazia parte de contingentes livres e libertos que, com a Abolição,
se instalaram nas precárias casas de cômodos das ruas vizinhas à Praça, e
que depois, com os espaços esgotados, começaram a levantar casebres
improvisados nas encostas dos morros, como o da Providência – que, depois
da Guerra de Canudos, acabou ganhando o apelido de morro da Favela,
como todo mundo sabe (LOPES, 2018, p. 16).
O poeta não tinha voz para falar sobre os sambas daquele crioulo de fala
mansa, educado, simples, com tanta riqueza de arte e tanta sabedoria com
as palavras.
– Você que inventou esse ritmo?
– Sim, eu venho pensando nisso há muito tempo.
– É dois por quatro também. Mesmo compasso. Ficou mais bonito mesmo,
o ritmo mais elaborado na percussão, tudo redondamente tocado, boa a
harmonia, as letras são maravilhosas.
– Puxa, Seu Manuel.
– Que Seu Manuel, rapaz! Senhor aqui é você, meu rei! O senhor é que
merece pronome de tratamento à altura de sua vocação artística, inovadora,
de vanguarda – E voltando-se para o garçom: – Por gentileza, meu querido,
pode servir mais um uísque aqui pro meu amigo.
– Vanguarda é o pessoal de São Paulo, são os senhores da literatura, do
Modernismo, eu tô sabendo.
– Pare, por gentileza, de me chamar de senhor. Cante mais um samba, cante,
cante, por favor (LINS, 2012, p. 231-232).
que pela primeira vez escreveu como se fala no Brasil”, mas “teve a sua obra
inteiramente deturpada, quase irreconhecível”. Em 1941, Mário de Andrade
reconhecia em Almeida o caráter pioneiro de documentarista excepcional e
folclorista musical, precursor de estudos de música popular, tendo inclusive
descoberto que o fado, derivado do lundum afro-colonial nacionalizado por
Portugal, já era dança muito usada pelos ciganos do Brasil. Quanto à escrita
de Almeida, ao defendê-lo da pecha de escrever mal, Mário concorda que ele
“se exprimia numa linguagem gramaticalmente desleixada”, mas adverte que
era “coisa aliás muito comum no tempo dele” (ANDRADE, 1941, p. 14).
Ao “desleixado da linguagem”, Andrade contrapõe “um vigoroso estilista”,
de “vocabulário variadíssimo e coerente”, o que as Memórias testemunham,
com seus “brasileirismos, prolóquios, modismos, ditos e frases-feitas”, sem
esquecer as “transformações fonéticas populares”, que fazem com que as
“pílulas” da tradição escrita sejam pronunciadas pela comadre como “pírulas”
(ANDRADE, 1941, p. 14).
Parece-nos sintomático que o romance de Lins também tenha sido alvo
das mesmas críticas. De fato, a edição é descuidada. Há inúmeros problemas
de revisão, inclusive nas “Principais referências do texto” (LINS, 2012, p. 296),
nas fontes bibliográficas e a linguagem por vezes parece ser “desleixada”. Se
Andrade estranhou que no romance de Almeida, tão rico documentalmente,
além da citada tradição afro-colonial do lundu, “haja ausência quase total de
contribuição negra” (ANDRADE, 1941, p. 11), e sequer haja um personagem
negro, embora se saiba que os barbeiros de então, que aparecem no romance,
eram geralmente negros, assim como eram negras as baianas dançarinas da
procissão dos Ourives, sendo o romance prodigioso em “referências desatentas
a escravos e às crias de d. Maria” (ANDRADE, 1941, p. 12), o protagonismo
dos sujeitos negros no romance de Lins é total.
Entretanto, devemos observar que reações à homossexualidade de
Ismael Silva (CABRAL, 2012), no romance, revelam outras faces da recepção
das obras artísticas que tomam a história como interlocutora. É mérito de
Lins não evitar a polêmica, como se lê na passagem: “Esse tempo na vida
de Silva foi de felicidade daquelas que se quer para sempre. Quem diria que
aquele sifilítico, homossexual, negro, pobre iria trabalhar com o maior cantor
da época” (LINS, 2012, p. 230). Sem atentar para o crivo moral, o modo de
entrada na obra requer novas formas de abordagem. A despeito de falhas,
encontramos nele “uma” história do samba muito mais representativa da
realidade de um grupo social do que polêmica.
144 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins
A Umbanda só fala coisa boa, mesmo quando é ruim, porque nada é por
acaso na eternidade. É a reunião de toda espiritualidade que andou por essa
terra nas religiões. A junção de tudo, tá tudo mudando, a espiritualidade vai
mudando também. Umbanda é uma religião de vanguarda, modernista, que
nem o samba. Tá me entendendo? A fila anda. Umbanda é evolução (LINS,
2012, p. 243).
A Mangueira de Cartola
Velhos tempos do apogeu
OLIVEIRA, P. C. S. de | 147
O Estácio de Ismael
Dizendo que o samba era seu
Em Oswaldo Cruz
Bem perto de Madureira
Todos só falavam
Paulo Benjamin de Oliveira
Conclusão
Referências
CABRAL, Sergio. Apesar do título, livro de Paulo Lins tem mais intriga que
samba. Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 29 de abril de 2012. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/39878-apesar-do-titulo-
livro-de-paulo-lins-tem-mais-intriga-que-samba.shtml. Acesso em 12 de
julho de 2020.
CANDEIA FILHO, Antônio. Sou mais samba. In: CANDEIA et al. Quatro
grandes do samba. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1977.
LINS, Paulo. Desde que o samba é samba. São Paulo: Planeta, 2012.
LOPES, Nei. O preto que falava iídiche. Rio de Janeiro: Record, 2018.
Mônica Gama1
Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, Mariana, MG, Brasil
Resumo: Em Grande Sertão: Veredas, romance que oferece uma interpretação da formação do
Brasil, Riobaldo discorre, entre tantos assuntos, sobre a pobreza, a doença e a retórica da
modernização. A partir de uma sequência narrativa (do encontro com os catrumanos ao
pacto com o diabo), analisa-se como Riobaldo surpreende-se na relação com o Outro. Ao
deparar-se com a pobreza extrema, passar por um povoado devastado pela varíola e encontrar
um fazendeiro que queria os jagunços como escravos, Riobaldo sente-se convocado a tornar-
se pactário, o que coloca em questão a subjetividade e a ética na dinâmica envolvida na
responsabilidade por outrem (Lévinas,1988).
Abstract: In The Devil to Pay in the Backlands (1956), a novel that offers an interpretation of the
formation of Brazil, the narrator discusses his confrontation with illness, misery and the rhetoric
of modernization. The narrative sequence that goes from the encounter with the catrumanos to
the pact with the devil we analyze how Riobaldo surprises himself in his relationship with the
Other. When facing extreme poverty, passing through a small village devastated by smallpox,
and meeting a farmer who wanted the jagunços as slaves, Riobaldo feels summoned to become
a pact-maker, whenwe see how subjectivity and ethics are called into question in the dynamics
involved in responsibility for others (Lévinas, 1988).
Keywords: The Devil to Pay in the Backlands; Alterity; pact; disease; interpretations
of Brazil
Em 2020, revisitamos muitos livros que tematizavam o papel
1 Atualmente faz Pós-Doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais.
O flagelo e o Outro
“O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido de
estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?”
“Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça. – “Vim
departir alçada e foro: outra lei – em cada esconso, nas toesas deste sertão...”
(ROSA, 1970, p. 293)
É aí que Riobaldo se junta novamente a Zé Bebelo, pois este volta para vingar o
grande chefe, reconhecido por todos por sua justiça, tornando-se, para tanto, ele mesmo
um chefe jagunço, anunciando sua disposição com a fórmula singular quanto ao novo
papel que desempenhará: “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...”
(ROSA, 1970, p. 71).
Quando Riobaldo, acompanhando Zé Bebelo como chefe, encontra o grupo de
catrumanos, é essa linha narrativa que está por trás: órfão; agregado; descobre-se filho
bastardo e sente vergonha; torna-se professor e secretário/amanuense; luta ao lado de Joca
Ramiro e guerreia no grupo de Zé Bebelo. O encontro é da ordem da desorientação, pois
o narrador não alcança uma compreensão acerca desses homens, os catrumanos:
Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os
outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito
de roupas de vestir. [...]
Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam
escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses
homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão,
os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que explicou, o Acauã sabia deles. (ROSA,
1970, p.290-1)
Acauã, sábio, explica esse outro sertão para Riobaldo. Catrumano, em sentido
geral é caipira, matuto, mas é uma palavra que retoma o sentido animal de como são
vistos, pois vem de quadrúmano – aquele que tem quatro mãos5. Contudo, se há na
palavra catrumano uma diminuição do outro em certa escala evolutiva, o encontro
remete Riobaldo para a situação de um embate com uma Esfinge, pois encontra uma
nova qualidade de medo, inquietação que o consome como se fora o “decifra-me ou
devoro-te”6.
5 “A vinculação do catrumano com o caipira deve-se ao fato deste ser um sertanejo,
ou seja, um habitante do sertão. Esta denominação − catrumano −, foi cunhada pelo viajante
europeu Auguste de Saint-Hilaire (1975, p. 307 e passim), que, percorrendo o sertão,
chamado por ele de deserto, surpreendeu-se ao ver que os sertanejos sempre estavam a cavalo,
independentemente de sua situação econômica. Aos poucos, ao longo de seu relato, ele constrói
o termo. Quando constrói o quadro geral do sertão, em um dado momento, ele afirma que o
sertanejo se parece com um homem de quatro mãos, ou melhor, de quatro patas. Deriva daí,
etimologicamente, a palavra catrumano. Porém, dada a força da ficcionalização construída por
João Guimarães Rosa que tomou a realidade regional norte mineira para discutir o Brasil [...],
a palavra passou a conter apenas os significados vinculados aos habitantes do mais fundo do
sertão, ou seja, a região Urucuiana que possuía homens, considerados de pouca instrução e de
convívio e modos rústicos e canhestros” (COSTA, 2021, p. 143).
6 O encontro com os catrumanos ocorre no romance depois de um momento em
GAMA, M. | 159
7 Para Walnice Nogueira Galvão, Riobaldo “intui que a miséria excessiva está aquém
de qualquer possibilidade de convivência, de qualquer padrão moral, de qualquer romantização:
ela é feia, suja e perigosa. Sente a ânsia do miserável pela posse, pelo gozo imediato, mesmo ao
preço da destruição total”. (GALVÃO, 1972, p. 67).
GAMA, M. | 161
A doença e o nós
Casas – coisa humana. [...] Voz nem choro não se ouviu, nem outro rumor
nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas mortas, e até os cachorros,
cada morador. [...] Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não saiam,
não saudavam. Do perigo mesmo que estava maldito na grande doença,
eles sabiam ter quanta cláusula. Sofriam a esperança de não morrer.
Soubesse eu onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos?
Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, com
um fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme. [...] Deus
que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado povo.
(ROSA, 1970, p. 297)
Ser comandado por modos que regem sua vida sem que se perceba é
estarrecedor. Fazer o pacto com o diabo vai surgindo como ideia em parte
por ser algo que, estando em seu controle, daria para Riobaldo a única fonte
de poder capaz de lidar com o real, o que se realiza pelo último encontro
com o outro dessa sequência que determina o pacto: o proprietário de terras.
Seô Habão, o dono das terras onde estavam, observava tudo com “olhares
de dono”, “espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão,
homem carecesse de cuidar comercial.” (ROSA, 1970, p. 312).
Não era só Riobaldo quem percebia essa distinção. Zé Bebelo ajusta
sua linguagem para agradá-lo, dobrando-se aos assuntos de interesse de
seu interlocutor, que, “diferido, composto em outra séria qualidade de
preocupações”, não se interessa pela coragem e valores jagunços. Desprezando
as mortes do Sucruiú, interessa-se pelas notícias quanto ao estado de sua
plantação, expondo o plano de fazer os sobreviventes trabalharem na lavoura
para produzir algo que eles mesmos consumiriam e pagariam com o dobro
do trabalho. Trata-se de um homem para manter distância – ele é o que
sustenta as iniquidades do mundo: “Eu pensei! enquanto aquele homem
vivesse, a gente sabia que o mundo não se acabava” (ROSA, 1970, p. 312);
e se sujeitos como Seô Habão sustentam o mundo, é porque ele se nutre
da descartabilidade das pessoas – “conheci que fazendeiro-mór é sujeito da
terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
(ROSA, 1970, p. 312-3).
164 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade
espiou para mim, com aqueles olhos baçosos — aí eu entendi a gana dele!
que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente
pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele.
Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos;
e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal! cobiçava a gente para
escravos! (ROSA, 1970, p. 314)
8 Se os catrumanos são referidos como estando próximos à natureza, Seô Habão teria
algo de natural também, sua capacidade de subjugar: “A raiva não se tem duma jibóia, porque
jibóia constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo”
(Rosa, 1970, p.314). Vemos aqui um uso irônico do autor, já que não se trata de fato de
natureza, mas de cultura de dominação, de relação social de organização das formas produtivas
particulares que se apresentam como naturais.
GAMA, M. | 165
O outro e a palavra
9 “Eu era diferente de todos? Era. [...] Sei que eles deviam de sentir por outra forma
o aperto dos cheiros do cerradão, ouvir desparêlhos comigo o comprido ir de tantos mil grilos
campais. Isso me dava ojeriza, mas também com certo consolo misturado” (ROSA, 1970, p.
430).
10 Não se trata aqui de concordarmos com o argumento de Willi Bolle de que as
diferenças de classe são resolvidas com o pacto. O desejo de estar acima revela suas contradições,
não uma solução.
GAMA, M. | 167
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o
inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem
duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar
o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda
é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer
quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
(CALVINO, 1990, p. 150)
sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. [...] a minha
responsabilidade não cessa, ninguém pode substituir-me. De facto, trata-se
de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade
[...]. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que,
humanamente, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade
Referências
INDUSTRIALIZAÇÃO, INTIMIDADE E
DESLOCAÇÕES: OS USOS SEXUAIS NO AMAZONAS
BRASILEIRO E A COSTA NORTE HONDURENHA
Resumo: Neste artigo descreve-se a representação das atitudes e agires sexuais dos trabalhadores
das Bananeiras em Honduras e o Ciclo da Borracha do Amazonas brasileiro. Tomam-se as obras
de Ramón Amaya Amador (Enfatizando-se na obra “Biografía de un machete”); e as obras de
Álvaro Maia (Principalmente o romance “Beiradão”); ambos autores destacados pelo exercício
político, jornalista e romancista. Aplicando a teoria da sexualidade de Michel Foucault e a
literatura comparada, procuram-se as representações da intimidade e da sexualidade dos atores
principais destas etapas socioeconômicas: os campenhos das Bananeiras em Honduras, e os
seringueiros do Ciclo da Borracha no Amazonas brasileiro.
Abstract: This article describes the representation of sexual attitudes and actions of workers in
banana trees in Honduras and the Brazilian Amazon Rubber Cycle. For such representation, the
works of Ramón Amaya Amador are taken (Emphasizing the work “Biografía de un machete”);
and the works of Álvaro Maia (Mainly the novel “Beiradão”); both authors standing out for
their political, journalist and novelist labour. Applying Michel Foucault’s theory of sexuality
and comparative literature, representations of the intimacy and sexuality of the main actors
of these socioeconomic stages are sought: the banana farmers in Honduras, and the rubber
tappers of the Rubber Cycle in the Brazilian Amazon.
Como uma pequena resenha dos autores, podemos dizer que Ramón
Amaya Amador foi um romancista e jornalista hondurenho, nascido em
1916, ano no qual La Standard Fuit Company (de agora em diante SFC)
já estava instalada em Olanchito, Yoro, seu lugar de nascimento. Como
a maioria dos nascidos no norte do país, Amaya Amador trabalhou nas
bananeiras antes de se tornar jornalista. Álvaro Maia, pela sua parte, nasceu
em 1893 em Humaitá, no interior do Amazonas. Ao igual que Amaya
Amador, foi jornalista e romancista, mas também, poeta: em 1925, a revista
Redenção daria para ele o galardão de “príncipe dos poetas amazonenses”.
Ambos autores se destacaram por sua sensibilidade às realidades da sociedade
na que viveram. Assim, a maioria de suas obras representam as vivências,
vicissitudes e acontecimentos dos trabalhadores dos Ciclo da Borracha e as
Bananeiras.
Neste contexto antes mencionado, da deslocação às regiões onde
se produzia a banana e o látex, é importante a lembrar a complexidade
do que nós chamaríamos intimidade ou privacidade: os campenhos e os
seringueiros careciam disso, basta explorar as obras de Amaya Amador e
Álvaro Maia sobre as relações e modos de viver dos trabalhadores, agrupados
em barracões sobrepovoados, compartilhando redes, talheres, cozinha,
banheiros e demais, incapazes de uma vida privada como tal. Casais como
no conto “El Nido” de Amaya Amador, tinham mantinham suas relações
conjugais ainda compartilhando o quarto com outros campenhos:
Los dos estábamos jóvenes. Él casado y yo soltero. Para los casados era un
problema la vivienda pues no había en los barrancones cuartos especiales
para el matrimonio sino para solteros. Vivíamos en grupo. Y en nuestro
cuarto, donde nos apretábamos ocho compañeros, tenía Lucas su catre y su
mujer. No sé lo que el matrimonio sentía en las noches, pero sí sé lo que
nosotros, solteros jóvenes, privados durante semanas del goce sexual —las
prostitutas sólo llegaban una vez al mes, el día del pago—, padecíamos al
escuchar los crujidos del destartalado catre de Lucas. (AMAYA, 2017, p. 30)1
1 Tradução nossa: “os dois éramos jovens. Ele casado e eu solteiro. Para os casados
era um problema a morada, pois não havia nos barracões quartos especiais para o casal, mas
para solteiros só. Morávamos em grupo. E em nosso quarto, onde nos apertávamos oito
companheiros, Lucas tinha sua cama dobrável e sua mulher. Não sei o que o casal sentia
nas noites, mas sei o que nós, solteiros jovens, privados durante semanas do gozo sexual —as
prostitutas chegavam só uma vez ao mês, o dia do pago—, padecíamos ao escutar os rangidos
da dilacerada cama dobrável de Lucas”.
196 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha
“El Nido” conta história de um casal, Lucas e Anita, sua esposa, que
compartilhavam o quarto com oito campenhos2 mais. Lucas e seu amigo, o
narrador, Moncho, encontram um ninho de aves no “corredor do morto”,
apelidado assim porque semanas antes tinham encontrado os corpos sem
vida de outros campenhos, que se reuniam nos tempos livres para criar um
sindicato3. Lucas cuidaria do ninho das aves, e o ninho tornar-se-ia uma
metáfora do casamento de Lucas e Anita. Um dos outros oito campenhos
era Sabino, um campenho solteiro, bom cantor, tocava o violão e era muito
popular com os outros empregados (AMAYA, 2017, p. 31). Depois de uma
festa de pagamento, caminhando em direção ao campo bananeiro, Lucas
falaria com Moncho as suspeitas que ele tinha sobre Anita:
—Tú tienes tu nido, Lucas: nuestro cuarto. O, mejor dicho, tu catre. Ese es
tu nido. Palomo y paloma.
—Eso es lo triste, compa, que no es ni nido, ni somos palomas, pero tenemos
zorrillos a montones.
—Ustedes no tienen huevos para que los zorrillos se los coman…
—Estos zorrillos no comen huevos, comen palomas, compa, ¡palomas! Y eso
es lo triste. —Y con un deje nostálgico, concluyó: —Me están comiendo mi
paloma. (AMAYA, 2017, p. 38)4
sexual, que vai estar condicionada pelo status do indivíduo, sua necessidade e
sua oportunidade de satisfazer essa necessidade. Sempre baseado na tradição
greco-latina e nesta correlação tripartida, Foucault descreve três estratégias
do prazer: da necessidade, do momento e do status.
A estratégia da necessidade
Como uma apologia à tese de Diógenes “o cínico”, que defendia que assim
como temos necessidades de dormir, comer, e demais, também as temos sexuais, a
estratégia da necessidade é satisfazer essa carência. O aphrodisia, portanto, regulado
pela necessidade, o objetivo não é o de anular o prazer; trata-se, ao contrário, de
sustentá-lo e de sustentá-lo pela necessidade que o desejo suscita; sabe-se muito
bem que o prazer se embota quando não oferece satisfação à vivacidade de um
desejo (FOUCAULT, 1984, p. 53). O prazer é uma necessidade humana e,
portanto, é um bem que é desejado e que deve ser comprazido. Nas bananeiras e
os seringais, a obtenção deste bem cobiçado, era regulado, assim como o álcool, a
comida e demais bens, pelas transnacionais e pelos coronéis:
¿Quién se lucra con la venta de ese opio del trópico que es el guaro? ¿Quiénes
cobran impuestos a las prostitutas en noches de pago, y lo principal, dime, por
qué han llegado esas mujeres hasta el fango? ¿A qué arcas van tantas multas que
las autoridades imponen a los campeños cuando, ebrios, dan “vivas” y “mueras”?
(AMAYA, 2019, p. 61)7
Ou as andejas, que, com seus favores sexuais, pagavam nos portos suas
passagens:
7 Tradução nossa: “quem lucra com a venta desse ópio do trópico que é o licor?
Quem cobra os impostos às prostitutas nas noites de pago, e o principal, me diz, porque
têm chegado essas mulheres até a lama? A que cofres vão as tantas multas que as autoridades
impõem aos campenhos quando, bêbados, dão “vivas” e “morres”?”
200 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha
— Isso nem chega a ser crime para causar espanto. É outro, bem diferente.
Mané Onça vivia com a boliviana que arranjou nas festas da igreja. Comia
bem e dormia bem. Tinha um companheiro de colocação, mais novo, espécie
de tutelado. Começou a namorar a falsa madrasta, e ela servia a ambos. Foi
descoberta em pleno terreiro, debaixo de umas palhas. Mané Onça caceteou
os dois, mas não matou logo. (MAIA, 2019, p. 80)
É verdade que todo homem, qualquer que seja ele, casado ou não,
deve respeitar uma mulher casada (ou uma jovem sob poder paterno);
mas é porque ela está sob o poder de um outro; não é seu próprio status
que o detém, mas o da jovem ou da mulher contra a qual ele atenta; sua
falta é essencialmente contra o homem que tem poder sobre a mulher.
(FOUCAULT, 1984, p. 131)
Dessa forma, para recuperar seu honor, Lucas, Mané Onça e o Caboclo
Sabino, têm que resolver violentamente esses abusos a sua propriedade. As
mulheres, nestas estruturas sociais, das bananeiras e a borracha, eram vistas
como um bem sumamente cobiçado e, portanto, devia ser protegido e até
vingado. Por outro lado, além da dinâmica socioeconômica, está também a
particularidade ética: também pode ser entendida como uma transgressão à
dinâmica entre desejo e necessidade:
Sem muito que adicionar, como o nome diz, o kairos é saber satisfazer os
prazeres quando estes sejam convenientes: Deve-se ter em mente que esse tema
do “quando convém” sempre ocupou, para os gregos, um lugar importante, não
somente como problema moral, mas também como questão de ciência e de
técnica (FOUCAULT, 1984, p. 55). Se nós retomamos ao Diógenes “o cínico”,
seu jeito de satisfazer seus prazeres no momento que sentia a necessidade, seria
uma intemperança mesma, pela impossibilidade de contrastar em que momento
poderia os satisfazer.
Saber o momento oportuno, pelo exemplo, podemos representa-lo com as
aventuras amorosas do Padre Silveira, do romance Beiradão, com a Zefa Mixira e
a Senhora Maroca, ambas casadas. O Padre Silveira aguardava à saída dos esposos
para se instalar nos barracões das esposas.
Zefa Mixira era a esposa do João Caboclo, quem se dedicava à pesca,
especialmente do peixe-boi, e daí o apelido de sua esposa: Zefa Mixira trouxera a
antonomásia do marido, que era arpoador de peixe-boi. Sabia preparar a mixira:
segundo suas explicações, tem carne de peixe, de porco e de boi (MAIA, 2019, p.
53). Aproveitando os dias em que o João Caboclo não estava em casa, o Padre
Silveira aguardava às horas da noite em que ninguém poderia vê-lo para ir à barraca
da Zefa Mixira:
Uma vez foi surpreendido, altas horas da madrugada, nos cerrados marginais à
cachoeira. Fábio imaginou-o em delírio febril e saiu-lhe no encalço, receoso que se
despenhasse das ribanceiras e se ferisse nas lajes.
Padre Silveira dirigiu-se simplesmente à barraca da Zefa Mixira, escondida entre
goiabeiras e capim alto. Demorou-se e, ao regressar, olhando para os lados,
viu Fábio na maqueira de tucum em embalos lentos, Zefa Mixira trouxera a
antonomásia do marido, que era arpoador de peixe-boi. (MAIA, 2019, p. 53)
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 203
– Consolava três?
– Sim. É costume naquelas bandas. Certas velhas, sem marido, ganhavam a
vida assim e olhe que são procuradas. Um dia para cada um. Velha demais,
não gosta de nenhum e não dá em ciumada. É mesmo que um caco quebrado.
Melhor que moça, rondada pela macharada. Velha Quintéria não acende mais
fogo no cupim, e serve por servir, sem prestar atenção a nenhum. (MAIA, 2019,
p. 94)
A estratégia do status
Esta estratégia que explica Foucault é a mais relacionada com sua fala do
poder, já que o “status” é uma ferramenta, aqui, para alcançar o prazer, por uma
parte, mas também para regula-lo: É sem dúvida um traço comum a muitas
sociedades que as regras de conduta sexual variem segundo a idade, o sexo, a
condição dos indivíduos, e que obrigações e interdições não sejam impostas a
todos da mesma maneira (1984, p. 57). O status, que pode se entender como
o poder e autoridade que um indivíduo numa sociedade, se exerce neste caso
como uma estratégia de satisfazer seu prazer.
Se seguimos analisando ao Padre Silveira, ele utilizava seu status de
“homem de fé” como uma forma de alcançar seu prazer: os esposos confiavam
nele, e não suspeitavam que poderia acontecer alguma coisa entre ele e as esposas.
A temperança no Padre Silveira, revela-se como o segredo de seus encontros:
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 205
—Dou mil-réis pelo pitiú assado de dona Zefa Mixira- Está cheiroso e gostoso.
—Dou cinco. É pro padre Silveira, que gosta de dormir na barraca da Zefa. Até
parece um peixe-boi à noite, quando troca a batina por uma roupa escura para
andar melhor.
—Vocemecê não prova que o padre dorme na barraca da Zefa. Está mentindo
e vai engolir.
Padre Silveira estava lívido, ouvindo aquela ameaças, à entrada do telheiro, que,
naquela hora, era salão de igreja. (MAIA, 3019, p. 62)
—Sabem que sou amigo de todos. O nosso leiloeiro não errou. O pitiú foi
assado por dona Zefa e deve estar gostoso. É o último lance da festa e, dentro
de minutos, iremos recomeçar as danças de despedida. Mas há um engano.
O leiloeiro viu, talvez em mais de uma ocasião, um sujeito vestido de escuro
enveredar para a barraca de dona Zefa. Deviam saber também que resido na
casa do padre Silveira. Fácil o engano. Quem ia à barraca referida não era o
nosso bom reverendo. Quem era? Dirão vocês. Natal a pergunta. Era o amigo
Fábio, sem nenhum mal.
A seringueirada deu uma risada, aumentando o preço da oferta.
[...]
—Perdão, padre! Aquilo foi brincadeira de mau gosto. Logo com o padre! Não
deixe de vir no ano que vem. O senhor já está acostumado com as besteiras da
gente.
Padre Silveira agradecia sorrindo, abençoando mulheres e crianças. Distribuía
água benta, santinhos e conselhos.
Olhou para o terreiro: admirou, com enternecimento, aquele rapaz de poucos
anos, que, para salvá-lo, assumira responsabilidade de atos que não praticara.
(MAIA, 2019, p. 64)
206 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha
8 Tradução nossa:
“—Arrumou o assunto de Jones?
—Ser inútil. Juana não aceitar. Ela dizer tem marido. Mim lhe oferecer boa grana. Ela
teimosa, mister. Por isso, eu dizer a mister Jones, se ele quer transar Juana, primeiro tirar
marido. Marido atrapalhar.
[...]
—Eu conhece um homem que por cem dólares e uma pistola, diz que tirar de em médio ao
Amadeo.
—Tu lhe conheces? É de confiança? Olha não nos entrar num problema.
—Ser corajoso. Lhe conhecer eu em Costa Abajo. Tem matado mais de uma dúzia. Trabalhar
limpo e vai embora daqui.
—Sendo assim, então, fala com ele.
—Já falei, mister. Falta a arma só.
Foxter meteu sua mão no bolso e colocou os cem dólares na mesa, de onde os pegou o Capi-
tão com sorriso de malandro.”
208 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha
[…]
Las uñas de Catuca Pardo taladran la tierra esponjosa y remueven raíces de yerbas
muertas porque las estrellas que sus ojos atisban sobre el hombro de Benítez, se
ha pintado de rojo con lápices labiales de sexualidad. Cierra los ojos y oye a lo
lejos una canción que, hasta ahora, nunca había escuchado en la noche.
Hay neblinas y hace frío cuando Catuca Pardo se acuesta en su catre de lona.
Tiene húmedos los ojos y desgarrado el camisón. En sus uñas, tierra y sangre de
gente. ¡La sangre de su virginidad perdida! Varias horas la ha retenido el seductor.
(AMAYA, 2019, p. 114)9
Qual malandragem? Bebida, mulher, rixa? São até válvulas contra maiores
males. Temos que escurecer a vista e esquecer certos pecados. O mesmo
pecador, em outro ambiente, não os cometeria. Para que a reclusão e a
abstinência? Já é uma prova de esforço terem vivido. Sem essas válvulas,
praticariam maiores crimes. (MAIA, 2019, p. 54)
Considerações finais
filho mais velho da Justina. Assim, os romancistas nos mostram que nas
interações pessoais, as intemperanças às estratégias do prazer, resultam em
desarmonias do coletivo social, e consequências negativas aos actantes.
Bibliografia
AMAYA A., Ramón. Las violetas del hambre, 2ª edição. Honduras: ERAA,
2017.
Éder Cabral
Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, Brasil.
Ernani Mügge
Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, Brasil.
Resumo: Este trabalho discute, a partir de uma exceção linguística – o termo “brasileiro” –,
aspectos da identidade e da cultura do território nacional. Para tal, apresenta noções de trabalho
e exploração, as quais têm uma singularidade própria no contexto brasileiro desde sua origem
como nação. O estudo parte da etimologia da palavra “brasileiro” e perpassa pelas áreas da
história, da sociologia, entre outras. Ademais, traz referências literárias diversas, as quais
apontam e problematizam questões que estão no cerne do eixo literatura-trabalho-cidadania.
Para embasar tal reflexão, centra-se, em especial, no capital teórico de Giorgio Agamben,
Roberto Damatta, Byung-Chul Han, Darcy Ribeiro e Roberto Vecchi. A reflexão evidencia
que o trabalhador brasileiro sempre enfrentou uma trajetória de atrocidades, tanto no âmbito
do trabalho quanto no da cidadania.
Abstract: This article deals with the aspects of identity and the culture of the national
territory, departing from a linguistic exception of the term “Brazilian”. In order to do that,
it is presented the notions of work and exploitation, which have a singular characteristic
in the Brazilian context since its origin as a nation. The study moves from the etymology
of the word “Brazilian” along with the areas of history, sociology and others. Moreover,
it includes a variety of literary references, which deals with issues that are in the core of
the realm of literature-work-citizenship. In order to sustain such questioning, this study is
based on the theoretical capital of Giorgio Agamben, Roberto Damatta, Byung-Chul Han,
Darcy Ribeiro and Roberto Vecchi. The results show that the Brazilian worker has always
had a cruel trajectory, in the realm of both work and citizenship.
À guisa de introdução
O gentilício brasileiro
[...] dado que é o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona
de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, que é a resposta imediata
do poder estatal aos conflitos internos mais extremos. No decorrer do século
XX, pode-se assistir a um fenômeno paradoxal que foi bem definido como
uma ‘guerra civil legal’ [...]. O totalitarismo moderno pode ser definido,
nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma
guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários
políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer
razão, pareçam não integráveis ao sistema político (AGAMBEN, 2004, p.
13-14).
[...] como uma exclusão inclusiva (uma exceptio) da zoé na pólis, quase como
se a política fosse a lugar em que o viver deve se transformar em viver bem, e
aquilo que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua. A vida nua tem,
na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão
se funda a cidade dos homens.
Nomes enterrados
Por onde não parece reação que lhe neguemos este nome, nem que nos
esqueçamos dele tão indevidamente por que lhe deu o vulgo mal considerado,
depois que o pau da tinta começou de vir a estes Reinos: ao qual chamaram
Brasil por ser vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este
nome de Brasil. Mas para que nesta parte magoemos ao Demônio, que tanto
trabalhou e trabalha por extinguir a memória a Santa Cruz e desterrá-la dos
corações dos homens [...] (GANDAVO, 2008, p. 93).
Há mil anos [...], de lá para o ano mil, tem cartas que falam da Ilha Brasil
e isso significa que o nome Brasil não vem do pau-brasil não. Isso aqui era
a Ilha Brasil, que alguns navegantes sabiam, mas, um dia, os portugueses
precisaram fazer uma descoberta oficial, mandando até um escrivão do
cartório: “declarar que foi descoberto [...]”. Isso foi em 1500, mas preexistia
há muito fisicamente, biotericamente, biologicamente e humanamente
5 O lugar foi chamado de Hy-Brasil por São Brandão e designado como o lugar
dos abençoados, ilha dos afortunados, em irlandês, que, aos olhos do monge, parecia o Éden
terrestre.
6 Darcy Ribeiro, no registro audiovisual citado anteriormente, fala sobre a Ilha
Brasil. Ele também faz referência à Ilha Brasil no livro homônimo, mas não chega a adentrar
nas questões sobre o imaginário que Lilia Schwarcz e Heloisa Starling exploram em Brasil: uma
biografia (2015).
220 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho
[...] “Hy Bressail” e “O’Brazil” — cujo significado era “ilha afortunada”. [...]
Ilhas são lugares, por excelência, da projeção idealizada na utopia. A ilha do
“Brazil” dos irlandeses é originalmente uma ilha fantasmagórica que sofre
um deslocamento e reaparece no século XV próxima aos Açores e ao mito
da ilha dos Bem-Aventurados de São Brandão. A perfeição do lugar descrito
por Caminha aproxima-se da utopia da ilha do “Brazil”. Essa explicação
daria conta, também, do nome “Obrasil”, encontrado em vários mapas do
início do XVI. A inspiração irlandesa era religiosa e de tradição paradisíaca, e
perseguiria com teimosia os cartógrafos do período. Apareceria pela primeira
vez em 1330 designando uma ilha misteriosa, e ainda em 1353 estaria
presente numa carta inglesa (SCHWARCZ; STARLING, 2015 p. 33).
O brasileiro da Rita Chasca, que chegou agora, diz que ele tem quatrocentos
contos fortes, para riba, que não para baixo (CASTELO BRANCO,1984,
n.p.).
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 223
nua.
Embora, como apontou Kathryn Woodward em “Identidade e
diferença”, a respeito da mídia, a qual, na atualidade, “diz como se deve
ocupar uma posição-de-sujeito particular” (WOODWARD, 2000, p. 18),
como “o trabalhador em ascensão” (WOODWARD, 2000, p. 18), nota-se
que o Brasil não é um lugar para a melhoria da classe trabalhadora. Em
relação ao âmbito do trabalho, o Brasil não se deixa comparar com outros
contextos que não tenham um passado colonial similar.
Woodward (2000) afirma que as formas de representação dos sujeitos,
em qualquer sociedade, seja como mulheres, como homens, como pais, como
pessoas trabalhadoras, têm mudado radicalmente nos últimos anos. Segundo
a autora, pode-se passar por experiências de fragmentação nas relações
pessoais e no trabalho, as quais são vividas no contexto de mudanças sociais
e históricas, tais como mudanças no mercado de trabalho e nos padrões de
emprego. Essas mudanças e experiências implicam a heterogeneidade dos
sujeitos. No Brasil, entretanto, há uma constante degradação8 em relação aos
trabalhadores, à classe trabalhadora, pois, mesmo que se fragmentem suas
relações, ou tenham jornadas infinitas e esforços descomunais, a dignidade
que viria pelo viés do trabalho9 é apenas uma ilusão, pois essa classe e a
pobreza, ao longo do tempo, continuam de mãos dadas. Em outras palavras,
a identidade do trabalhador está, geralmente, em determinada continuidade,
conjugada com a condição de pobreza, seja ela vista dentro da ótica de uma
sociedade disciplinar, ou do controle ou do desempenho (FOUCAULT,
2007, DELEUZE, 2010, HAN, 2018).
Louis Althusser, em Aparelhos ideológicos de Estado, indica que o salário10
“é determinado pelas necessidades de um mínimo histórico (Marx sublinhava:
é preciso cerveja para os operários ingleses e vinho para os proletários franceses)
– portanto historicamente variável” (ALTHUSSER, 1985, p. 56-57). No
entanto, ao se pensar no salário-mínimo do trabalhador brasileiro, vê-se o
trágico, pois, nesse mínimo, nem se poderia pensar que a cachaça está inclusa.
Sem retirar a ironia, no Brasil, o salário, visto dessa forma, apresenta-se como
pena e como chiste, pois não vai ao encontro de uma remuneração ajustada
pela prestação de serviços em razão de contrato de trabalho. O trabalhador
brasileiro, na esfera das urbes, muitas vezes, ainda está na posição de migrante,
como Fabiano, personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2018): sem
salário (ou sub-remunerado), sem endereço, sem sobrenome, sem dignidade,
em busca de uma esperança de vida, ou melhor, de uma sobrevivência, na qual
a cachaça, a cerveja ou vinho são uma suntuosidade.
Assim, tem-se representações em produtos culturais de uma classe
trabalhadora cercada por um envoltório do trágico, geralmente em queda,
buscando a manutenção da vida dentro de uma lógica social exploratória, a
qual raramente dá chance para ascensões e bem-estar.
[...] c’è il tragico quando è in gioco un’idea che sta al di sopra ed è più forte della
stessa vita umana, che le viene perciò sacrificata [...]. Il tragico è il tentativo
di dare un nome al nome al dolore. Il che non si può fare senza il nome degli
dèi [...] i nomi o il nome di Dio [...]. Dire che c’è stato un ‘tragico’ incidente
stradale è un absurdo, se riferito all’incidente in sé. Ma poterebbe non esserlo,
se nominasse per chi e per quale la perdita è [...]11 (MAJ, 2003, p. 9).
11 Tradução nossa: [...] existe o trágico quando se tem uma ideia, a qual está acima e é
mais forte que a própria vida humana, que, portanto, é sacrificada [...]. O trágico é a tentativa
de dar um termo ao nome da dor. Isto não pode ser feito sem o nome dos deuses [...] os nomes
ou o nome de Deus [...]. Dizer que houve um “trágico” acidente de carro é um absurdo, se se
refere ao incidente em si. Mas poderia não ser, se nomeasse para quem e para os quais tiveram
a perda [...].
226 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho
que ele tem uma orientação mais genérica, pois é trágico que as sociedades
contemporâneas (que antes foram colônias) carreguem, como um traço
constituinte, essa marca.
O trágico geralmente é relacionado à polis (VERNANT, 1999),
sendo, assim, um fato político, no qual as pessoas que pertencem a um
determinado contexto possuem, também, os códigos para entender o núcleo
trágico de um discurso específico. Portanto, neste artigo, não se está apenas
diante de um fato genericamente trágico, como também de um trágico
histórico, que remete a uma história que não consegue ir além das próprias
contradições: uma história que gira em falso é, mesmo assim, uma história,
e, sob essa ótica, remete a um trágico – por mais redundante que isso possa
parecer. Não se pode dizer que esse trágico nada tenha a ver com tragédia
convencional, porém é a ideia de um trágico que inclui toda a negatividade
que ele tenta representar. Para Roberto Vecchi (2004, p. 88), há
Fui içado à carroça por Charles e Arthur, junto com uma carga de
moribundos, de quem eu não me sentia muito diferente. Chuviscava, e
o céu estava baixo e fosco. Enquanto o lento passo dos cavalos de Yankel
me conduzia para a tão distante liberdade, desfilavam pela última vez sob
os meus olhos os barracões, onde eu sofrera e amadurecera, a praça da
convocação, onde ainda se erguiam, lado a lado, a forca e uma gigantesca
árvore de Natal, e a porta da escravidão, na qual, agora inúteis, liam-se ainda
as três palavras de escárnio: “Arbeit macht frei”, “Só o trabalho liberta”.
Sobrevivendo no inferno
são destinadas a apenas trabalhar para viver e viver para trabalhar, à custa da
vida nua, a qual é excluída e “incluída” – conforme a necessidade do capital.
Ainda sobre a vida nua (AGAMBEN, 2007) vale dizer que esse
conceito entra em uma dimensão de natureza histórica. Nesse viés, insere-
se, neste estudo, o conceito no interior do processo de formação do Brasil,
no qual há toda uma residualidade colonial que, apesar das provações
históricas, acabam sendo uma espécie de permanência. O período colonial,
assim, torna-se um elemento para pensar o contemporâneo, tendo a vida
nua como uma factualidade constante. Agamben (2007), quando pensa a
vida nua, traz uma citação de Walter Benjamin, a qual se encaixa muito bem
no que é posto sobre a vida desqualificada (o mínimo viver, apenas viver17),
sobre a vida nua no Brasil dos últimos séculos (ainda mais na atualidade):
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de ‘exceção’ em que
vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN apud AGAMBEN, 1987,
p. 226). Pensar a formação do Brasil conjuga essas duas realidades, essas duas
temporalidades, como se fosse possível uma inscrição do passado colonial no
tempo presente. Caso se pense na formação, há uma dialética captada, mas
também se pode acrescentar a possibilidade de verificar o uso do passado
(TRAVERSO, 2012).
A reutilização do passado funda outros passados, na maioria das
vezes, com interesses específicos. Tal uso do passado conduz, geralmente, a
uma discursividade complexa e, portanto, compreender os mecanismos (de
construção) do passado é a forma ideal e crítica para pensar o que a história
divulgará sobre ele. A história, portanto, sob esse ângulo, pode ser percebida
como uso possível do passado.
Nessa ordem, a literatura, como manifestação cultural, também pode
ser tocada pelo passado (por exemplo, nos romances históricos). Uma reflexão
sobre a economia ou capital18 do passado tanto é instigante quanto relevante.
Mais importante, entretanto, é estar ciente dos riscos eminentes do uso do
passado, ou seja, é ter a capacidade crítica de entender os mecanismos nos
quais esses usos são engendrados, pois, entender os dispositivos desse uso
significa construir uma posição crítica para revê-los e avaliá-los. A literatura
17 Agamben (2017) faz uma série de dicotomias entre vida política, a vida protegida
e a vida nua, isto é, a vida sob constante ameaça de morte. A vida nua também se resume ao
“viver”, de modo desamparado, assim como a vida política, a forma-de-vida, está ampliada para
o “viver bem”.
18 Acúmulo de informações e invenções sobre o passado.
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 231
Referências
ANDRADE, Mario de. In: ANDRADE, Mario de. Contos novos. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1983.
FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
bdsf/bitstream/handle/id/188899/Tratado%20da%20terra%20do%20
Brasil.pdf>. Acesso em: 28 de jan. de 2022.
MAJ, Barnaba. Idea del tragico e coscienza storica nelle “fratture” del
Moderno. Macerata: Quodlibet, 2003.
MATRIZ TUPI (episódio 1). Direção: Isa Grinspum Ferraz. In: O povo
Brasileiro [série]. São Paulo: Distribuidora Versatil Digital, 2005. 2 DVDs.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rQOPdiEdX24>.
Data de acesso: 28 de jan. 2022.
Resumo: Esta leitura, fundamentada nos pressupostos teóricos de Pêcheux, conforme a Análise de
Discurso Materialista, leva em conta um discurso dominante, cujos efeitos de sentido negam a
gravidade da situação epidemiológica da Covid-19 no Brasil e promovem movimentos de (in)
visibilização de uma parcela da sociedade. A expressão “distanciamento social” analisada, ao ser (re)
significada, materializa um gesto de resistência e de denúncia, direcionando a atenção à pandemia
e à constituição da sociedade brasileira dividida em classes. É necessário compreender a produção
de sentidos que problematizam as determinações sócio-históricas, e, também, aqueles sentidos que
funcionam discursivamente reforçando e naturalizando as condições materiais de produção.
Abstract: This reading, based on Pêcheux’s theoretical assumptions, according to the Materialist
Discourse Analysis, takes into account a dominant discourse, whose sense effects deny the seriousness
of the epidemiological situation of Covid-19 in Brazil and promote movements of (in)visibility
of a part of society. The expression “social distancing” analyzed, when (re)signified, materializes a
gesture of resistance and denunciation, directing attention to the pandemic and to the constitution
of Brazilian society divided into classes. It is necessary to understand the production of senses
that problematize socio-historical determinations, and also those senses that function discursively
reinforcing and naturalizing the material conditions of production.
“distanciamento social”6.
Ao que nos interessa, na produção e na circulação de sentidos,
atentamos para o uso de “distanciamento social”, na seleção do léxico, para
a formulação de um enunciado que, ao (re)significar a expressão, materializa
um gesto de resistência a um discurso dominante, cujos efeitos de sentido
negam a gravidade da situação epidemiológica e promovem movimentos
de (in)visibilização de uma parcela da sociedade brasileira. Com isso,
no enunciado em estudo, os efeitos de sentido produzidos direcionam a
atenção não só à pandemia, mas a nossa constituição social, estruturalmente
dividida em classes, num contexto em que uma parcela da população é, com
recorrência, desamparada.
Resistência, neste texto, é um conceito chave para nossa análise. Do
lugar da AD, entendemos que resistência é a marca da subjetividade que se
materializa, aqui, por meio da língua. Com amparo teórico em Soares et al.,
entendemos que resistência “é a possibilidade de, ao dizer outras palavras
no lugar daquelas prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados.
É ressignificar sentidos e rituais enunciativos, deslocando processos
interpretativos já inscritos historicamente” (2015, p. 10).
A esse respeito, ressaltamos as palavras de Fernandes (2021, p. 146-7)
sobre a relação entre resistência e dominação:
Vejamos o enunciado:
Figura 1: Sequência discursiva imagética.
discursivos que atribuem sentido a uma classe social que, por sua vez, são
parte do funcionamento imaginário da sociedade brasileira e fazem emergir
o caráter excludente dessa formação social.
Distinguindo compreensão de interpretação, conforme ensinamentos de
Orlandi (2012), ao nos aproximarmos do nosso objeto de análise, atentamos
para a primeira parte desta oração - “Distanciamento social sempre existiu”
(grifo nosso) - em que o sintagma, usualmente atrelado aos discursos sobre a
Covid-19, é utilizado no fio do discurso acompanhado de uma sequência que
traz um advérbio e um verbo (sempre e existir, respectivamente), formando um
enunciado de caráter afirmativo. Tal formulação, assim proposta, indica uma
determinada posição-sujeito em relação às condições materiais de produção da
sociedade brasileira.
O advérbio de tempo “sempre”, que caracteriza/modifica o verbo que o
precede, “existiu”, sinaliza, pela leitura que fazemos, que embora o sintagma tenha
agora recebido visibilidade e repercussão quando relacionado à crise sanitária, o
sentido que também produz não se trata de uma novidade na realidade social
brasileira no que tange aos aspectos sociais e econômicos. Nessa leitura, o termo
“sempre” funciona no nível intradiscursivo como um operador que reforça e
intensifica a ideia de que o “distanciamento social” entre os sujeitos brasileiros
existe, ou seja, trata-se de uma realidade material já vivenciada e já conhecida
por uma parcela da sociedade (apesar do índice de pobreza e de desemprego ter
aumentado consideravelmente em tempos de Covid-19).
O advérbio marca, no fio do discurso, a existência passada e presente
daquilo que é representado no/pelo sintagma precedente (distanciamento social),
por meio da retomada de um discurso que nega a existência de diferenças sociais
de classe. Dito de outra forma, este enunciado afirma o que poderia ser negado/
silenciado ou o que é negado/silenciado. O uso do tempo verbal no pretérito
perfeito do modo indicativo, em “existiu”, complementa o efeito de sentido
sobre uma realidade concreta e factual em relação à ação (existir), evidenciando
a posição do sujeito enunciador.
Nessa perspectiva, “distanciamento social” move-se para outra matriz
de sentido que faz o sintagma funcionar discursivamente como possibilidade
parafrástica para a expressão “exclusão social”, por exemplo. Também, no
eixo parafrástico, podemos pensar em possibilidades de paráfrase como:
distanciamento social/ desigualdade social/ exclusão social. Instaura-se,
portanto, uma relação metafórica entre os referidos sintagmas. Ou, conforme
Indursky (2011, p. 76),
184 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”
Considerações finais
Referências
HERBERT, Thomas. Observações para uma teoria geral das ideologias. Revista
Rua. Campinas. v. 1. 1995 [1967]. p. 63-89.
VINHAS, Luciana. O messias que não faz milagre: notas sobre a ideologia da
destruição. Revista da Abralin. v.19. n. 3. 2020. p. 455-474.
Randal Johnson é um renomado acadêmico de cinema e literatura luso-brasileiros. O referido professor foi diretor do Instituto
de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Foi também chefe do Departamento de
Espanhol e Português e do Programa sobre o Brasil da UCLA, bem como Diretor do Centro de Estudos do Programa
de Educação no Exterior da Universidade da Califórnia. Antes de ir para a UCLA em 1994, o professor Johnson
serviu no corpo docente da Rutgers University e da University of Florida, onde foi chefe do Departamento de Línguas e
Literaturas Românicas.
A experiência acadêmica de Johnson concentra-se, principalmente, no estudo do cinema e da literatura brasileira. Ele é
o autor ou editor de onze livros e dezenas de artigos de pesquisa. Entre suas publicações, estão Cinema Brasileiro (com
Robert Stam), Cinema Novo x 5, A Indústria Cinematográfica no Brasil: Cultura e o Estado, Brasil Negro: Cultura,
Identidade e Mobilização Social (com Larry Crook) e O Campo da Produção Cultural, uma coleção editada de ensaios
por Pierre Bourdieu. Também publicou um livro sobre o cineasta português Manoel de Oliveira. A pesquisa de Johnson foi
apoiada pela Fundação Tinker, pelo Conselho Conjunto para a América Latina do Conselho de Pesquisa em Ciências
Sociais, pelo Conselho Americano de Sociedades Eruditas e pelo National Endowment for the Humanities [Fundo
Nacional para as Humanidades]. Foi condecorado, em 1999, com a Ordem do Cruzeiro do Sul, e, em 2018, com
a Ordem de Rio Branco, ambos pelo governo brasileiro. O PhD de Johnson é da Universidade do Texas em Austin.1
Introdução
2 Dimas, Antônio. “Sobre letras e cinema: uma entrevista com Randal Johnson”.
Teresa: Revista de Literatura Brasileira, n. 16 (2015), 277-285.
MORAES, F. R. de | 241
do Macunaíma (1973). Isso plantou a semente para o que viria a ser minha
tese de doutorado, sobre a adaptação que Joaquim Pedro de Andrade fez do
romance em 1969. Assisti ao filme pela primeira vez em uma sala de cinema
na Galeria Alaska, em Copacabana. Isso deve ter sido no segundo semestre
de 1971, quando tive uma bolsa da Fulbright para fazer pesquisa para minha
dissertação de mestrado sobre o romancista baiano Adonias Filho. Hoje, a
sala onde vi o filme é uma igreja evangélica. A tese, que defendi em 1977,
seria publicada como livro com o título Literatura e Cinema: Macunaíma do
Modernismo na literatura ao cinema novo (T. A. Queiroz, 1982).
3 Algumas cartas trocadas entre Alceu Amoroso Lima e Mário de Andrade geraram
questionamentos sobre a aplicabilidade do romance ao movimento antropofágico por questões
temporais.
4 Há muitos que entendem existir conexões entre o Tropicalismo e o Modernismo.
MORAES, F. R. de | 243
O país devora os seus cidadãos, que devoram o país, que, portanto, devora
a si mesmo.
No episódio do Currupira, há uma imagem que mostra isso muito
bem. Quando Macunaíma, fugindo do Currupira, finalmente consegue
expelir o pedaço de carne da perna do ogro que havia comido, ele o
vomita numa poça de lama. O enquadramento mostra a poça como um
losango, com a carne borbulhando no meio. Parece-me claro que é uma
representação da bandeira brasileira. Isso ecoa no final, quando Macunaíma
morre, consumido pela Uiara, e sua jaqueta verde se espalha pela água com
sangue borbulhando por baixo. Enfim, a leitura política do filme tem a ver
com todos esses elementos. Sem mencionar o episódio anterior da anta, no
qual Sofará está usando um vestido-saco com o emblema da Aliança para o
Progresso. Macunaíma, o suposto herói brasileiro, caça a anta, mas, no final,
só recebe as tripas para comer.
Há quem diga que Joaquim Pedro nega esse flerte com o Tropicalismo.
Qual a opinião do Sr.?
A adaptação de Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos) seria outro bom
exemplo de respeito e diálogo de uma obra literária adaptada ao cinema?
Com certeza. O Nelson disse mais de uma vez que, com o filme,
queria ser fiel ao espírito do livro de Graciliano Ramos, mas também queria
que fosse uma contribuição aos debates que estavam acontecendo na época
sobre a reforma agrária. O filme segue a narrativa do romance, com alguns
deslocamentos, e acrescenta alguns elementos, como o som do carro de boi,
a festa de bumba-meu-boi e a cena da cadeia, que existe no romance de uma
forma muito mais reduzida. Aliás, no artigo mencionado antes, Literatura e
Cinema, Diálogo e Recriação, tento mostrar que a cena da cadeia, a festa de
bumba-meu-boi e o encontro com o grupo armado na estrada fazem parte
da leitura política que o Nelson faz do romance. Em primeiro lugar, desloca
o episódio do começo na narrativa (é o capítulo três, no romance) para perto
do final. No romance, Fabiano está na cadeia com um bêbado que falava alto
e alguns homens agachados em redor de um fogo. No filme há, apenas outro
prisioneiro na cela com Fabiano que não diz uma palavra. Quando não está
ajudando Fabiano, ele olha calmamente pela janela da cadeia. A luz tende a
iluminá-lo de cima, dando a impressão de que ele representa alguma forma
de salvação. Ao nascer do sol, o bando armado, ao qual ele pertence, entra
na cidade e o solta. O fazendeiro vê Fabiano e manda soltá-lo. Logo depois,
Fabiano e a família encontram o bando armado na estrada, e o jovem que
estava na cadeia com Fabiano lhe oferece o seu cavalo e o convida a se juntar
ao bando. O vaqueiro se recusa, sentindo, talvez, uma responsabilidade maior
por sua família.
248 | Entrevista com o professor Randal Johnson
O Cinema Novo teria tido três fases: a primeira entre 1960 e 19646, a
segunda entre 1964 e 19687 e a terceira entre 1968 e 19738. Em 1967,
é criado o Instituto Nacional de Cinema (INC) e, em 1969, é criada
a Embrafilme, a maior empresa pública de distribuição de filmes da
América Latina. O filme Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade,
é exibido, justamente, em 1969. A escolha de Joaquim pela principal
obra do escritor (modernista) Mário de Andrade teria alguma relação
com o contexto político vigente? Existiu alguma relação entre o regime
militar e a valorização de Mário de Andrade, um expoente da literatura
nacional brasileira?
No seu livro, Cinema Novo X 5, o Sr. aduz que “a semente do cinema novo”
teria vindo com dois congressos: um em 1952 (em São Paulo) e outro em
1953 (no Rio de Janeiro). Gostaria que o Sr. falasse um pouco sobre a im-
portância desse momento para o Cinema Novo (ainda pretérito ao Cinema
Novo propriamente dito).
Cacá Diegues disse várias vezes que o Cinema Novo queria apenas três
coisas: mudar o cinema brasileiro, mudar o Brasil e mudar o mundo. Vou
deixar de fora o desejo de mudar o mundo, mas, de fato, o Cinema Novo
queria mudar o Brasil e o cinema brasileiro. Os participantes do movimento
não estavam interessados no tipo de filme que estava sendo feito no país, nem
pelos filmes europeizados da Vera Cruz, nem pelas chanchadas da Atlântida.
Queriam fazer um cinema social e político ao invés de um cinema comercial.
A ideia era explorar, de uma perspectiva crítica, as contradições do país – a
pobreza, a fome, a marginalização, a violência – e assim contribuir para os
debates que estavam ocorrendo no país, naquela época. Além desse aspecto
político, também queriam explorar novas linguagens cinematográficas e
não aderirem às convenções do cinema comercial. Acharam modelos no
Neorrealismo Italiano (a ideia de filmar nas ruas, com equipes pequenas, e
orçamentos baixos) e na Nouvelle Vague francesa (o conceito do cinema de
autor), mas cada diretor seguia suas próprias preferências. Por isso, Raquel
Gerber podia falar, em relação ao movimento, de uma “ortodoxia nuclear”
(uma visão crítica sobre a realidade brasileira) e de uma “heterodoxia
expressiva” (em termos de estilos cinematográficos). De certa forma, é
isso que tento mostrar no meu livro sobre o Cinema Novo, focalizando
as distintas trajetórias, preocupações e abordagens estilísticas dos cinco
escritores escolhidos.
duas gerações literárias – uma que surgiu nos anos 20, outra, nos anos 30
– e ocupam quatro posições diferentes no campo literário: dois na direita
(Ricardo e Faria) e dois na esquerda (Ramos) ou centro-esquerda (Andrade).
Os quatro também levavam vidas públicas ativas, trabalhando com agências
governamentais, a imprensa e/ou partidos políticos (fariam menos que os
outros). Portanto, suas respectivas posições no campo são, eminentemente,
representativas de constelações mais amplas de escritores e intelectuais.
Minha ideia era escrever um livro sobre o assunto, mas a pesquisa nem
sempre segue uma linha reta. Publiquei artigos sobre os quatro escritores,
além do que seria o capítulo introdutório do livro, que saiu na Revista USP,
numa tradução de Antônio Dimas (A dinâmica do campo literário brasileiro,
1930-1945), e ensaios sobre assuntos relacionados ao projeto. Mas outras
coisas interferiram, e não cheguei a terminar o livro. Por exemplo, em
meados dos anos 80, criei, junto com outros colegas, um grupo de estudos
sobre a relação entre cultura e Estado. O primeiro livro que lemos foi A
Reprodução, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Aí comecei a me
interessar pela obra de Bourdieu, e, graças ao contato com Sérgio Miceli,
que foi à Universidade da Flórida como professor visitante, acabei passando
vários meses em Paris acompanhando as discussões do grupo de Bourdieu
na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Numa reunião com
Bourdieu, sugeri a organização de um livro que reunisse os seus ensaios
principais sobre literatura e arte, que estavam dispersos em revistas na
França e outros países. Ele gostou tano da ideia que o resultado foi o livro
The Field of Cultural Production: Essays on Art and Literature (O campo de
produção cultural: ensaios sobre arte e cultura), que saiu em 1993. Servi
como organizador, tradutor e editor de tradução do livro, além de escrever
uma longa introdução. Depois disso, traduzi a parte de Bourdieu, no seu
longo diálogo com o artista alemão, Hans Haacke, que foi publicado em
1995 com o título Free Exchange (Intercâmbio livre), além de servir como
tradutor e editor de tradução para outro livro de Bourdieu, Practical Reason:
On the Theory of Action (Razão prática: sobre a teoria da ação), que saiu em
1998. Também, em mais um desvio do projeto iniciado, comecei a ver os
filmes de Manoel de Oliveira, o que resultou num livro publicado em 2007.
MORAES, F. R. de | 257
Essa questão, de alguma forma, conecta-se com aquilo que o Sr. levan-
tou nos artigos: A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945) e
The Institutionalization of Brazilian Modernism11. Nesses ensaios, o Sr.
fala que os textos literários constituiriam uma rede de relações sociais
vinculadas a relações de poder12. O que é exatamente isso?
campo literário, que teria sido o primeiro capítulo do livro não terminado,
um de Lúcio Cardoso, outro de Marques Rebelo e o terceiro de Jorge
Amado. Escrevendo sobre Em Surdina, de Lúcia Miguel-Pereira, Amado diz
o seguinte: “Espero que a Srta. Lúcia Miguel-Pereira [...] decida-se a escrever
romances e deixe para trás suas ideias preconcebidas e suas explicações, que
são ótimas em artigos, mas inúteis nas páginas de um romance”. Enfim,
através do estudo dos quatro escritores que mencionei, minha ideia era
mapear as estruturas de poder do campo literário nos anos 30.
Mário Cravo Neto, José Adário dos Santos (Zé Diabo), Éder Muniz, entre
vários outros. O livro, que é muito bonito, com muitas ilustrações, conta
com contribuições sobre a arte baiana, enfatizando os artistas presentes na
exibição. Levou-nos quatro anos – várias viagens à Bahia e muitas horas de
discussões sobre quem e o que incluir – para organizar a exposição, mas
valeu a pena.
Bibliografia
https://digital.library.pitt.edu/islandora/object/pitt%3A31735057894150/
viewer#page/34/mode/2up
em la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas
Paulo Leminski (2013, p. 93)
Referências:
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.