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ISSN (Versão Impressa): 1519-9894

ISSN (Versão Online): 2179-2194

- 59 -
SENTIDOS E INTERPRETAÇÕES SOBRE O BRASIL,
SOBRE OS BRASILEIROS E A BRASILIDADE

Luiz Carlos Martins de Souza (UFAM - Brasil)


Randal Johnson (UCLA - Estados Unidos)
Organizadores
Fragmentum / Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e
Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Laboratório Corpus.
N. 1 (set 2001) - . Santa Maria, 2001- .

Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/fragmentum


Semestral
ISSN 1519-9894 (versão impressa)
e-ISSN 2179-2194 (versão online)
N. 59 (jan./jul. 2022). “Sentidos e interpretações sobre o Brasil, sobre
os brasileiros e a brasilidade”, organizado por Luiz Carlos Martins de
Souza (UFAM - Brasil) e Randal Johnson (UCLA - Estados Unidos).

1. Brasilidade 2. História 3. Memória 4. Universidade Federal de


Santa Maria (UFSM) 5. Centro de Artes e Letras (CAL)

Ficha catalográfica elaborada por Luciano Rapetti - CRB 10/2031


Biblioteca Central da UFSM

Editora do Programa de Pós-Graduação em Letras


Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade Federal de Santa Maria
Prédio 16, CE, sala 3222 – Bloco A2
Campus Universitário - Bairro Camobi
CEP 97105-900 – Santa Maria, RS – Brasil
Fones: 55 3220 8359 – 55 3220 8025
Email: ppgletras@ufsm.br
Site: www.ufsm.br/ppgletras

Fragmentum
www.ufsm.br/fragmentum – fragmentum.corpus@gmail.com

Apoio
Centro de Artes e Letras - CAL/UFSM
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PRPGP/UFSM – Edital Pró-Revistas
Pró-Reitoria de Extensão – PRE/UFSM
Fragmentum
Publicação do Laboratório Corpus – Laboratório de Fontes de Estudos da
Linguagem, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM

ANO DA PRIMEIRA PUBLICAÇÃO


2001

POLÍTICA EDITORIAL
Fragmentum é um periódico científico publicado trimestralmente nas
versões impressa (ISSN 1519-9894) e on-line (ISSN 2179-2194) e destinado
a pesquisadores e estudantes em nível de pós-graduação. O periódico divulga
textos produzidos por pesquisadores que desenvolvem, como escopo e/ou
resultado de pesquisas, as seguintes problemáticas:
a) Na Linguística, questões enunciativas e/ou discursivas, tendo por
eixo diretor o campo do saber sobre a história da produção do conhecimento
linguístico, a partir da análise de instrumentos linguísticos bem como de
outras textualidades alicerçadas pela História das Ideias Linguística em sua
relação com a Análise de Discurso de linha francesa;
b) Na Literatura, estudos comparados que têm evidenciado a relação
do texto literário não apenas com seu contexto de produção como também
com outras artes, mídias, saberes e formas, aproximação esta que articula
artes e conhecimentos em suas especificidades, demonstrando processos de
leitura, compreensão, interpretação e análise envolvidos no acesso a obras
de arte e à recepção de um público especializado.
Admitem-se textos em português, francês, inglês ou espanhol. Não
são aceitos textos de pesquisadores que não tenham a formação mínima
de doutor. Acadêmicos de doutorado podem submeter textos à avaliação,
desde que em coautoria com o professor orientador.
Com periodicidade semestral, cada novo dossiê temático será
organizado por dois pesquisadores e constituído de um conjunto de artigos
somados a uma resenha e à divulgação, em formato de resumo, de duas teses
já defendidas, que apresentem relevância para a temática em foco. Afora
essa estrutura preestabelecida, Fragmentum se reservará o direito de publicar
entrevistas e outras textualidades inéditas, de caráter artístico e ensaístico,
quando convier. Originais em francês, português e espanhol deverão
apresentar título, resumo e palavras-chave na língua em que foi escrito o
texto e em inglês. Para originais em inglês, título, resumo e palavras-chave
deverão ser apresentados em inglês e em português.
Reitor da Universidade Federal de Santa Maria
Luciano Schuch

Diretor do Centro de Artes e Letras


Cláudio Antônio Esteves
Vice-Diretora do Centro de Artes e Letras
Cristiane Fuzer

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras


Prof. Dr. Gil Roberto Costa Negreiros

Coordenadora Geral do Laboratório Corpus


Taís da Silva Martins
Larissa Cervo Montagner
Comitê Editorial

Comissão Editorial
Amanda Eloina Scherer, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Enéias Farias Tavares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Verli Petri, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Editora-Chefe
Amanda Eloina Scherer, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

Editora-Gerente
Maria Iraci Sousa Costa, Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Editores de Língua Estrangeira
Francês - Amanda Eloina Scherer, UFSM, RS, Brasil
Inglês - Enéias Farias Tavares, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Espanhol - Germán García Bermúdez, Universidad de la República,
Montevideo, Uruguay
Conselho Editorial
Alcides Cardoso dos Santos, Universidade Estadual Paulista, Araraquara,
SP, Brasil
Ana Paula El-Jaick, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Ana Zandwais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS, Brasil
Anne-Gaëlle Toutain, Université de Berne, Suisse.
Beatriz Maria Eckert-Hoff, Universidade do Distrito Federal, Brasília, DF,
Brasil
Bethania Mariani, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Caciane Souza de Medeiros, Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, RS, Brasil
† Carme Regina Schons, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS,
Brasil
Caroline Mallmann Schneiders, Universidade Federal da Fronteira Sul -
Campus Cerro Largo/RS, Brasil
Célia Marques Telles, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Chloé Laplantine, Laboratoire Histoire des Théories Linguistiques, França
Christian Puech, Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3, França
Cristiane Dias, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
Eduardo Guimarães, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
Brasil
Enéias Farias Tavares, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,
RS, Brasil
Eni Puccinelli Orlandi, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP;
Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre, MG, Brasil
Estanislao Sofia, Professor Visitante Estrangeiro Universidade Federal de
Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
Evandra Grigoletto, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Flavio Felicio Botton, Universidade Federal do ABC, Santo André, SP, Brasil
Flávio Loureiro Chaves, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil
Gema Sanz Espinar, Universidad de Madrid, Espanha
Gerson Luiz Roani, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, SP, Brasil
Gesualda Rasia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
Giuseppe D'Ottavi, Institut des Textes et Manuscrits Modernes, Paris
(ENS/CNRS), França
Gladys B. Morales, Universidad Nacional de Río Quarto, Argentina
Héliane Kohler, Université de Franche-Comté, França
Irène Fenoglio, Centre National de la Recherche Scientifique, França
Isabel Cristina Ferreira Teixeira, Universidade Federal do Pampa, Bagé, RS,
Brasil
José Edicarlos de Aquino, Universidade Federal do Tocantins
José Horta Nunes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
Brasil
José Luís Jobim de Salles Fonseca, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Juan Manuel López-Muñoz, Universidad de Cadiz, Espanha
Juliana Steil, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil
Larissa Montagner Cervo, Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, RS, Brasil
Lucília Maria Sousa Romão, Universidade Estadual de São Paulo, USP-
Ribeirão, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Mara Ruth Glozman, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Márcia Helena Saldanha Barbosa, Universidade de Passo Fundo (UPF),
Brasil
Maria Cleci Venturini, Universidade Estadual do Centro-Oeste, Guarapuava,
PR, Brasil
Maria da Glória Bordini, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil
Maria da Glória Corrêa Di Fanti, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Brasil
Maria José R. Faria Coracini, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
SP, Brasil
Marianne Rossi Stumpf, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Mariarosaria Zinzi, Università degli Studi di Firenze, Itália
Marilene Weinhardt, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
Marluza da Rosa, Universidade Federal de Santa Maria - Campus Frederico
Westphalen
Mary Neiva Surdi da Luz, Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó,
SC, Brasil
Nádia Régia Maffi Neckel, Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
Orna Messer Levin, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
Brasil
Paola Capponi, Università di Torino, Italia.
Paulo Ricardo Kralik Angelini, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Regina Zilberman, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil
Rejane Pivetta de Oliveira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Brasil
Silmara Dela Silva, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Taís da Silva Martins, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,
RS, Brasil
Valdir do Nascimento Flores, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Brasil
Valdir Prigol, Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil
Vanise Gomes de Medeiros, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ,
Brasil
Véronique Daleth, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Produção Editorial

Capa e Projeto Gráfico Originais


Simone de Mello de Oliveira, Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, RS, Brasil
Mirian Rose Brum-de-Paula, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS,
Brasil

Produção Gráfica
Natália Sarzi Ledur, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

Editoração Eletrônica
Maria Iraci Sousa Costa, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Revisão
Andressa Brenner Fernandes, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Denise Machado Pinto, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Elivélton Assis Krümmel, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Janys Kerolyn Ballejos Cruz, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

Kelly Guasso, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

Mirela Schröpfer Klein, UFSM, Santa Maria, RS, BrasilJanys Kerolyn


Ballejos Cruz, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Kelly Guasso, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Mirela Schröpfer Klein, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

Indexadores
Rede Cariniana (IBICT)
Latindex - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas
Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal
Diadorim - Diretório de Políticas Editoriais das Revistas Científicas
Brasileiras
Google Acadêmico
ZHdK - Zürcher Hochschule der Künste
EZB - Elektronische Zeitschriftenbibliothek
TIB - Leibniz Information Centre for Science and Technology University
Library
WorldCat® (OCLC)
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 11-18, jan./jul. 2022 https://doi.org/10.5902/2179219473599

APRESENTAÇÃO

Randal Johnson
University of California, UCLA, Los Angeles, United States of America
Luiz Carlos Martins de Souza
Universidade Federal do Amazonas, UFAM, Manaus, AM, Brasil

No momento em que começamos a escrever esta apresentação,


estávamos vivenciando duas situações nacionais com repercussão mundial:
encontraram os corpos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês
Dom Philips na selva amazônica brasileira e a nossa frágil democracia
continuava sofrendo ameaças de dissolução por um presidente da
república que promove delírios golpistas. Neste momento de revisão
desta apresentação, Lula foi eleito e bolsonaristas se unem para tentar
ampliar a guerra civil que mata a população negra, indígena, feminina e
lgbtqia+ do país. A necropolítica (MBEMBE, 2018) continua fazendo
vítimas em todas as regiões de nossa nação. Pelo menos Dom e Bruno
receberam destaque internacional. Muitas outras vítimas cotidianamente
são esquecidas e ignoradas. Mas o que isso tem a ver com este número da
revista Fragmentum?
Quando definimos a chamada para o número 59 da Revista
Fragmentum, queríamos aqui reunidas análises que pensassem as ideologias
e disputas de interpretação que nos constituem como povo, reunido sob os
significantes “brasilidade”, “brasileiro” ou sobre suas expressões e disputas
territoriais, regionais, étnicas, sociais, ideológicas, artísticas e políticas,
dentre outras. Acreditamos que os estudos e as interpretações sobre a
brasilidade, sobre as discursividades que nos constituem, suas relações e
contrastes com os outros povos e outros processos de identificação podem
nos dar a dimensão de como combater e como resistir à necropolítica que
ora vivenciamos.
Buscávamos, então, reflexões e interpretações sobre os efeitos,
sobre as implicações e sobre os intérpretes dos colonialismos, dos
neocolonialismos, de descolonizações, ou sobre as formas de identificação,
de subjetivação, de contraidentificação, de relações de poder e de resistência
dos sujeitos e das sociedades do Brasil, a partir de produções, processos,

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


12 | Apresentação

materialidades e manifestações culturais, acadêmicas, artísticas e simbólicas


de diversos domínios e temas. O efeito de identidade, posto em questão,
revela violências simbólicas e históricas que precisam ser combatidas
diuturnamente. A imposição de um certo universo de sentido é uma faceta
basilar da violência simbólica que a linguagem encarna, como Zizek (2014) já
destacou. Por isso acreditamos que é estratégico, para as lutas pelos direitos
humanos e para a democracia em nosso país, o enfrentamento de nossas
mazelas, fincados na realidade e na consciência da disputa de interpretações
que constituem os fatos nacionais.
É esse o alinhamento dos textos que aqui estão organizados. Dos
pesquisadores que se interessaram por essa chamada, qualificaram-se
treze textos. Assim, os textos que compõem essa constelação refletem
o caleidoscópio identitário nacional: são de diferentes linhas teóricas,
analisam diferentes materialidades simbólicas e apontam para a diversidade
de propostas com o intuito de nos fazerem entender as origens dos nossos
universos de sentido, seus diagnósticos e os rumos da coletividade que
habita este país continental. O trabalho frutífero resulta prazeroso.
O texto “After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João
Almino’s Literary Brasília”, de Ben Burt, abre nosso número. Ele examina
a utopia como discursividade no pensamento artístico e acadêmico e,
abordando dois romances de João Almino, “Ideias para onde passar o fim
do mundo” (1987) e “As cinco estações do amor” (2001), examina como
esse autor rejeita o consenso anti-utópico a respeito de Brasília no final do
século XX, consenso muito recorrente sobre a identidade nacional. Nas
duas obras, o pesquisador aponta o incômodo de Almino com a falência do
legado da projeção utópica que constitui simbolicamente o Distrito Federal,
entre a pendular desilusão individual e coletiva. O artigo argumenta que este
retrato matizado e ambíguo do utopismo, suas derivas de sentido, representa
uma abordagem pós-utópica da transformação social que, não obstante,
desafia significativamente o desprezo prevalecente com as utopias, como
sentido dominante na época da publicação dos romances.
Bárbara Pavei Souza e Nádia Neckel analisaram, em “A Moda
brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura”, um conjunto
de capas da revista Vogue Brasil, perquirindo os sentidos do corpo
feminino negro na moda. No artigo, elas registram como compreendem as
discursivizações desses corpos em diferentes períodos. Com o produtivo
conceito de “interseccionalidade”, adequando-o ao nosso contexto, as
JOHNSON, R.; SOUZA, L. C. M. de | 13

autoras destacam que, dependendo do lugar social que se ocupa, o gênero é


vivenciado de maneira diferente, isso porque a situação das mulheres negras
e de classes populares possui desafios maiores para o acesso a direitos.
Assim, explicitam forças que produzem o branqueamento da população
brasileira e as contradições que o determinam e o localizam entre o desejo,
o estupro e a rejeição segregadora. O corpo negro feminino é um corpo-
mercadoria, um corpo exposto, com valor de troca, o que faz dele um
corpo contraditoriamente visibilizado e invisibilizado, constituindo-se
em um corpo de lutas e interdições. O conceito discursivo de memória,
também aplicado ao material analisado, ajuda a entender como se fornecem
e reafirmam os elementos e as normas para a representação desses corpos.
Dessa forma, demonstram como os dispositivos “mídia” e “moda” investem
em repetições de estereótipos, a fim de manter os corpos femininos negros
aprisionados, silenciados, apagados, moldados e (in)visibilizados.
André Cavalcante trata, em “Uma Luta que não cessa: sujeito-
indígena, língua, memória”, do imaginário do sujeito-indígena sobre língua,
luta, resistência indígena e povos indígenas, utilizando como corpus os
livros “Índios na visão dos índios: Fulniô” e “Índios na visão dos índios:
Potiguara”. Esses livros buscam materializar a fala, a voz e os discursos
desses povos indígenas, para além dos “discursos sobre”, já estabilizados no
imaginário brasileiro que interditam que os povos indígenas se expressem
por si mesmos. O autor mostra como a internet surge como possibilitadora
de manifestações discursivas dos próprios povos indígenas, o que também
provoca uma ruptura do imaginário sedimentado sobre o primitivismo
do ser indígena e como o acesso a tecnologias produziria a perda de sua
identidade. Seu corpus mostra as interpretações sobre a constituição da
brasilidade, e sobre os espaços possíveis para se dizer indígena e brasileiro.
Em “A Transcendência dos trópicos no pensamento indígena”,
Livia Penedo Jacob se debruça em textos de alguns intelectuais indígenas
para avaliar o conceito de “brasilidade” e de “cultura brasileira” em suas
obras. Ao abordar produções literárias de culturas originárias, ela destaca a
necessidade de pensarmos em outras categorias, ainda não instituídas nos
estudos acadêmicos, para analisarmos fenômenos do nosso continente.
Também destaca a recorrência de personagens transmorfos, o que nomeia
como “metamorfoses ameríndias”, sintetizando algumas características:
impermanência da natureza; personagens que se metamorfoseiam em
espíritos, em elementos da natureza, em animais ou em híbridos; também
14 | Apresentação

percebe que criaturas não humanas se transformam em humanos, nos


fazendo entender o universo povoado por outros sujeitos, além dos
humanos. Destaca ainda a fauna múltipla, variada, diversa, que compõe a
categoria dos humanos, concluindo que há muitos Brasis e que a brasilidade
não é estanque, mas uma categoria prismática, de ampla definição. Isso
faz com que essa brasilidade mais ampla, cujas origens germinam da
ancestralidade, da anterioridade do próprio país, seja muitas vezes ignorada.
Em “Um livro e um enunciado em nossa formação social”, Vanise
Gomes de Medeiros toma como corpus o romance “Água de barrela”,
de Eliana Cruz, identificando-o como inscrito na formação discursiva
da descolonização, focando o universo das práticas escravagistas
desumanizadoras. A partir desse corpus, analisando fotos e documentos
que compõem o livro, a autora reflete sobre o poder dos sentidos sobre
produtividade e trabalho, em que orbitam as diferentes posições discursivas
relativas às formas de lutar, de resistir, de tentar sobreviver e de morrer
em nossa sociedade. A partir desses significantes, ela mostra como eles
remetem a posições de classe e posições étnicas, sustentando e justificando
desigualdades sociais profundas.
“Homem de bem”, “cidadão de bem”, e “homem médio brasileiro”
são termos muito em voga na discursividade midiática em nossa conjuntura,
para dar conta da imagem coletiva de uma parcela de nossa sociedade. É o
que Marcelo Peloggio vai abordar em “Confissões de um homem de bem:
a radiografia de um modelo”, procurando mostrar que as concepções de
mundo equacionadas nesse molde não se restringem a uma classe altamente
despolitizada, mas, antes, desdobram-se em sentidos moralistas, pernósticos
e violentos em seus fundamentos históricos e literários.
O romance “Desde que o samba é samba”, de Paulo Lins é o corpus
de análise em “Integrados por exclusão: negritude e mobilidade…”, artigo
de Paulo Cesar Silva de Oliveira. Também aqui o campo literário é o espaço
de discussão das formações ideológicas que disputam os sentidos das
inúmeras contribuições das culturas negras, em nossa formação cultural.
Entre elas estão as religiões de matriz africana, o samba e a constituição
do Rio de Janeiro como esse jorro da multiplicidade e da diversidade, que
encantam o planeta. Inspira-se em Florestan Fernandes como referência
para entender a integração dos negros em uma sociedade de classes na
perspectiva da oposição entre ordem social moderna e ordem estamental.
Ao se instrumentalizar com o pensamento social, o autor aborda o romance
JOHNSON, R.; SOUZA, L. C. M. de | 15

de Lins como locus privilegiado da discussão sobre as modernidades negras


no Brasil e o discurso literário como uma arena de múltiplas narrativas
postas em debate.
“Grande Sertão: Veredas” é um romance que materializa uma certa
interpretação da formação do Brasil. É disso que trata Monica Gama
em “Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a
construção de uma identidade”. Ela, analisando os modos possíveis
de relação com a alteridade e a diferença, defende que Riobaldo ecoa
discursividades sobre pobreza, sobre doença e a retórica da modernização.
Por isso, Monica Gama elege a sequência narrativa que vai do encontro
com os catrumanos ao pacto com o diabo para analisar como Riobaldo
surpreende-se na relação com o Outro. A subjetividade e a ética, na dinâmica
envolvida na responsabilidade por outrem, são postas em questão a partir
da perspectiva de Lévinas, para entender a reação de Riobaldo ao deparar-se
com a pobreza extrema, passar por um povoado devastado pela varíola e
encontrar um fazendeiro que queria os jagunços como escravos.
A negação da gravidade da situação epidemiológica da Covid-19 no
Brasil e os consequentes movimentos de (in)visibilização de uma parcela
da sociedade são analisados em “Ressignificação e resistência no sintagma
‘distanciamento social’: uma análise discursiva sobre a luta pelos sentidos
em tempos de covid-19 no Brasil”, de Mariana Jantsch de Souza e de Naiara
Souza da Silva. Na interpretação das autoras, o encadeamento significante
“distanciamento social” estabeleceu um efeito de sentido que materializou
um gesto de resistência e de denúncia, fazendo emergir contradições que
constituem a sociedade brasileira dividida em classes, afetada pelos graves
problemas da pandemia. Os pressupostos teóricos de Michel Pêcheux e
sua proposta de uma Análise de Discurso Materialista guiam a descrição
e a interpretação sobre a produção de sentidos, problematizando as
determinações sócio-históricas, e os efeitos de sentido que reforçam e
naturalizam as condições materiais de produção de nossa formação social.
Um dos trabalhos que estabelece relações e contrastes com os outros
povos é o texto de Ariel Amador Valdez e Rosani Úrsula Ketzer Umbach,
“Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas
brasileiro e a Costa Norte hondurenha’’. O foco desse cotejamento é a
representação das atitudes e agires sexuais dos trabalhadores das Bananeiras,
em Honduras, e do Ciclo da Borracha do Amazonas brasileiro, etapas
socioeconômicas também postas em relação. E o corpus para isso são as
16 | Apresentação

obras de Ramón Amaya Amador, sobretudo a “Biografía de un machete”,


e as obras de Álvaro Maia, sobretudo o romance “Beiradão”. Em comum
na biografia dos romancistas estão o exercício político, o jornalismo e a
literatura. A abordagem do corpus se fundamenta na teoria da sexualidade
de Michel Foucault e na literatura comparada. Com estas referências,
analisam as representações da intimidade e da sexualidade dos trabalhadores
em Honduras e no Amazonas brasileiro, durante o Ciclo da Borracha. Os
autores defendem que estes dois ciclos econômicos mudam não só as
estruturas sociais, econômicas e culturais, mas também as arquitetônicas,
as formas de viver e as relações interpessoais. O corpus e a abordagem
analítica deles os fazem concluir que os romancistas habitam uma mesma
formação ideológica, por conduzirem à interpretação de que existem
estratégias reguladas para o prazer cujo rompimento produz desarmonias
na coletividade e consequências negativas e trágicas.
Em “Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho”,
Éderson de Oliveira Cabral e Ernani Mügge discutem, a partir da designação
“brasileiro”, como uma exceção linguística, aspectos da identidade e da
cultura brasileira. Segundo os autores, as noções de trabalho e exploração
teriam uma singularidade própria no contexto brasileiro desde suas origens,
por isso se debruçam em compreender como tais noções se relacionam
com a cultura e, em especial, com a literatura. O estudo parte da etimologia
da palavra “brasileiro” e se abre para seus efeitos e sentidos na história,
na sociologia, dentre outras áreas. Além disso, os autores refletem sobre
aspectos do trabalho, da mão de obra industrial, de questões históricas
brasileiras, trazendo ligações com narrativas literárias, caracterizando-as
como um meio de contrapoder.
A entrevista com o professor Randal Johnson, realizada por Felipe
Moraes, traça a trajetória deste estudioso que dedicou sua carreira a
diversos aspectos da cultura luso-brasileira, e especialmente à literatura e
ao cinema. Co-editor deste volume, o professor Randal ocupou diversos
postos administrativos na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Foi, por duas vezes, chefe do Departamento de Espanhol e Português, e
do Programa sobre o Brasil. Também serviu como diretor do Instituto
de Estudos Latino-Americanos, diretor interino do Instituto de Estudos
Internacionais, bem como diretor do Programa de Educação no Exterior da
Universidade da Califórnia. Como autor ou editor, são treze livros e dezenas
de artigos de pesquisa, como Cinema Brasileiro (com Robert Stam), Cinema
JOHNSON, R.; SOUZA, L. C. M. de | 17

Novo x 5, A Indústria Cinematográfica no Brasil: Cultura e o Estado,


Brasil Negro: Cultura, Identidade e Mobilização Social (com Larry Crook),
Manoel de Oliveira, e O Campo da Produção Cultural, uma coleção editada
de ensaios por Pierre Bourdieu. A entrevista vai ajudar a dar a dimensão do
interesse, no exterior, sobre o Brasil e sobre nossa produção cultural.
Além da área de pesquisa do professor Randal Johnson, outra
inspiração para nossa chamada foi sem dúvida a coletânea “Redes de
pesquisa no acontecimento do V SEDISC”. É ela que ganha uma resenha
neste número nas mãos de Andreia da Silva Daltoé e de Claudia Pfeiffer.
Alinhada com a perspectiva materialista de Análise de Discurso, a obra
tratou a temática como uma prática de resistência, de luta e de urgência.
A coletânea é resultado dos trabalhos apresentados no evento. “Ler o
Brasil hoje” traz o que as autoras da resenha caracterizam como “leituras
surpreendentes, inéditas, plurais, experimentadas em coletivo, em falar com
e não por”. Só isso já nos estimula a ler a obra, que foi organizada em 6
sessões, com questões fundamentais de Análise de Discurso, como arquivo,
cultura, sentido, sujeito, memória, materialidades, dentre outras para pensar
criticamente a arte, o corpo, a tecnologia, a escola, a pandemia, o urbano, o
pedagógico e a mídia. É uma obra rica para quem se interessa por estudos de
processos coletivos de identificação em sua relação com os funcionamentos
ideológicos.
Foram muitos os percalços para que este número da Fragmentum saísse.
Uma travessia alegórica da condição desse momento pandêmico e dessa pátria,
amada, odiada, satirizada, desvalorizada, disputada, mas, contraditoriamente,
sempre maravilhosa e encantadoramente fascinante, para os que nela habitam,
para os que a ela visitam e para os que a estudam. Impossível dar conta dessa
complexidade enquanto a vivenciamos, mas certamente os pesquisadores
que aqui se debruçaram nesta tarefa, fizeram um trabalho primoroso. Velhos
sentidos foram diagnosticados e descritos. Novos sentidos foram apontados.
Que as questões aqui abertas reverberem em outros trabalhos e em melhores
propostas políticas para lidarmos com a complexidade de nossa formação
social. Que os novos universos de sentido promovam o fortalecimento da
nossa democracia e de novos processos de identificação. Que a morte de
Bruno e Dom seja um marco para a transformação desse país, e que nunca
mais ativistas de direitos humanos sejam assassinados, para que a vida e a
democracia prevaleçam entre nós, para todos nós.
18 | Apresentação

REFERÊNCIAS:

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de


exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1
edições, 2018. 80 p.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel


Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014. 195 p.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 19-40, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219470262


Submissão: 06/05/2022 • Aprovação: 04/09/2022
Artigo Original

AFTER UTOPIA: NEGOTIATING HOPE AND


FATALISM IN JOÃO ALMINO’S LITERARY
BRASÍLIA

APÓS A UTOPIA: A NEGOCIAÇÃO DE ESPERANÇA


E FATALISMO NA BRASÍLIA LITERÁRIA DE JOÃO
ALMINO

Ben Burt
Pitzer College, Claremont, CA, USA

Abstract: This article examines João Almino’s novels Idéias para onde passar o fim do mundo (1987)
and As cinco estações do amor (2001), considering how the author refuses the anti-utopian consensus
that defined criticism of Brasília in the late twentieth century. In both works, the Federal District’s
legacy of utopian projection is understood to have failed. This same legacy, however, continues
to resonate, counterbalancing individual and collective disillusionment. The article argues that
Almino’s nuanced, ambiguous portrait of utopianism represents a post-utopian approach to social
change that nonetheless meaningfully defies prevailing disregard for utopia at the time of the
novels’ publication.

Key Words: Apocalypse, Brasília, Literature, Millennium, Utopianism.

Resumo: Este artigo aborda dois romances de João Almino, Idéias para onde passar o fim do mundo
(1987) e As cinco estações do amor (2001), para examinar como o autor rejeita o consenso anti-
utópico respeito a Brasília no final do século XX. Nas duas obras, o legado de projeção utópica
no Distrito Federal se entende como falido, porém ainda ressoa e contrabalança a desilusão
individual e coletiva. O artigo argumenta que este retrato matizado e ambíguo do utopianismo
representa uma abordagem pós-utópica da transformação social que, não obstante, desafia
significativamente o desprezo prevalecente para a utopia na época da publicação dos romances.

Palavras-chave: Apocalipse, Brasília, Literatura, Milénio, Utopia.

Contours of a Failed Utopian City

Brasília existed as the object of utopian dreams well before its

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


20 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

inauguration in 1960. The capital’s realization further fortified this legacy,


with the new city designed to herald a newly modern and increasingly
cohesive national identity. Beginning with Brasília’s construction, however,
reality contradicted hopeful visions of the metropolis as an agent of social
transformation. Contractors routinely exploited the migrant workers
known as candangos, who were forcefully segregated into satellite cities
far from the high modernist center.1 This tactic, defined as apartheid by
urbanist Luiz Alberto de Campos Gouvêa (2005, p. 347), spans periods of
democracy and authoritarian rule, creating a baseline of continual inequality
that subverts Brasília’s foundational utopian aims. Anthropologist James
Holston’s influential 1989 work The Modernist City, translated to Portuguese
in 1993, further consolidated a consensus view of a stratified, alienating
capital whose reality betrayed its idealized origins.2
Alongside academics, cultural producers have been among Brasília’s
harshest detractors. Sophia Beal (2020, p. 1) opens her monograph on
contemporary art from the Federal District by affirming, “the city has been
dismissed as emotionally cold, boring, hostile, vacuous, artificial, calculated,
and inhumane” by foreign and Brazilian critics and artists. However, a diverse
group of writers, filmmakers, poets, visual artists, and musicians active in the
twenty-first century have successfully contested this fatalistic view of the capital
as an unchanging site of oppression (BEAL, 2020, p. 3). Among those analyzed
in the monograph is novelist and diplomat João Almino,3 who “put the capital
on the literary map as a place where award-winning and widely translated
novels are written” through a quintet of novels set in the Brasília (BEAL,
2020, p. 69)4. The author’s close attention to the Federal District’s history,

1 Following James C. Scott (1998, p. 5), I prefer “high modernism” to differentiate


from modernisms in other fields.
2 Sophia Beal (2020, p. 7) calls Holston’s monograph “…by far the most influential
scholarly text of Brasília, presenting the capital as a social catastrophe”.
3 Born in Mossoró, Rio Grande do Norte, Almino moved to Brasília in 1970 to
prepare for his career as a diplomat. He has published nonfictional texts on politics, literary
criticism, and Thomas More’s Utopia alongside eight novels. In 2017, the author secured a
prestigious chair in the Academia Brasileira de Letras. Almino has won multiple major literary
prizes and many of his novels have been published in translation.
4 In chapter 3 of The Art of Brasília, Beal (2020, p. 73-84) analyzes 2010’s Cidade
livre, which interrogates official narratives of brasiliense history. For the critic, the text’s self-
referentiality and interest in the candangos effectively illustrates the Federal District’s inequalities
and comments on the challenges faced by marginalized cultural producers. However, the text
suggests that generational trauma cannot be overcome, thus standing in contrast to the delicate
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present, and possible futures approximate his literary project with the national
historical, sociological, or anthropological analyses known as “interpretações
do Brasil,” defined by José Carlos Reis (2006, p. 15) as “sínteses [que] têm
um duplo objetivo: criar uma representação global do Brasil... [e] ‘refigurar’ o
presente e imaginar um futuro possível, uma utopia realizável” . These texts,
translated into multiple languages, have indeed spread awareness of Brasília’s
history and culture both domestically and internationally. Almino likewise
insists on contemplating constructive social transformation, defying the anti-
utopian zeitgeist of the late twentieth and early twenty first centuries and the
critical consensus that Brasília was a failed experiment. Given the city’s close
associations with national cohesion, power, and the public sphere, Almino’s
portraits of brasiliense society and identity also reflect upon the state of the
Brazilian nation (BEAL, 2020, p. 8-9). Still, the specificity of the geography,
history, and aspirations on display confirm the primacy of the local in the
author’s early works.
This article investigates the representation of utopianism in Almino’s
first and third novels: Idéias para onde passar o fim do mundo (1987) [Idéias] and
As cinco estações do amor (2001) [As cinco]5. The fantastical, narratively fractured
Idéias and the realist, memorialist As cinco each integrate a profound interest in
Brasília’s history that likewise characterizes much of of Almino’s non-fictional
production. The essay “Brasília, o mito; anotações para um ideário estético-
literário,” for instance, recounts the Federal District’s history as a repository
of utopian desire before asking: “E o que Brasília simboliza? A democracia.
A racionalidade. A nação. O moderno. O futuro. E também, claro, o poder,
a alienação, o encastelamento, a corrupção, o autoritarismo, o misticismo
e a irracionalidade” (ALMINO, 2008, p. 10). Almino’s understanding of
utopianism in the capital is complex. While fully conscious of the city’s failed
foundational aspirations, the author nonetheless believes that Brasília can
inspire renewed utopian thought: “...é possível extrair um resto de esperança,
a constante lembrança de seus mitos e utopia e a insatisfação com a realidade
que alimenta a boa leitura” (ALMINO, 2008, p.19). This irrepressible
hopefulness does not override the undesirable aspects of life in the capital, but
rather informs a critical perspective that refuses anti-utopian resignation. The
grandiose goals of Brasília’s origins recurrently inspire elite and working-class

balance of hope and despair in Almino’s earlier works.


5 Almino has maintained the spelling “idéias” throughout his oeuvre even after the
accent was removed by the Portuguese Language Orthographic Agreement of 1990.
22 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

characters alike, inspiring unexpected hopefulness in their darkest moments.


To better analyze Almino’s nuanced treatment of these themes, this
article will review Brasília’s legacy of utopianism and relevant theory from
the interdisciplinary field of utopian studies prior to examining Idéias and As
cinco in detail. The historical overview will further illuminate the references
to various varieties of utopian aspiration in the two novels, while utopian
studies critics will elucidate the differences and consistencies that mark
these two novels and inform consideration of Almino’s delicate balance
between a clear-eyed view of the city’s failures and ongoing belief in its
potential as a site of social transformation.
In 1883, the Italian priest Giovanni Bosco (known as Dom Bosco
in Brazil) recorded a mystical dream of a grand city in a “Promised Land,
flowing with milk and honey” in Brasília’s approximate location (apud
HOLSTON, 1989, p. 16). Dom Bosco, who appears briefly in Idéias,
remains a potent symbol of the capital’s radical promise. The priest’s
heavenly metropolis in the Planalto Central aligned with aspirations for
a centralized Brazilian capital that united ideologically diverse thinkers in
both the colonial and independent periods. While not mystical, eighteenth-
and nineteenth-century proposals for a new capital remain utopian in their
desire for near-instantaneous demographic expansion, greater resource
extraction, and economic integration across the Brazilian landmass. As
Darlene Sadlier (2008, p. 197) describes, this imagined city’s location in
the sparsely populated cerrado added symbolic weight to fantastical and
pragmatic visions alike: “The utopian city in the wilderness also reflected
the Edenic motif that had been associated with the newly discovered
Brazil” . Such a grand, isolated capital would at once emulate the bounty of
Brazilian nature and mark the sudden passage into a more advanced stage
of civilizational progress.
The history of Brasília’s construction confirms its bona fides as a
symbol of national modernization. Despite the central capital’s approval
in the Republican Constitution of 1891, Getúlio Vargas’s “Marcha para o
oeste” initiative, and the construction of Goiânia in the 1930s, logistical
challenges continued to preclude mass migration to the Planalto Central.
In the 1950s, the area now delineated as the Federal District consisted of
ranches and a few, small settlements. The spark needed to finally make
Brasília a reality came from the national developmentalist platform of
Juscelino Kubitschek’s victorious 1955 presidential campaign. Famously
BURT, B. | 23

promising “50 years of progress in 5,” JK associated a new capital with a


belated national leap into modernity. Urbanist Lúcio Costa’s high modernist
Master Plan proposed an egalitarian city that would model a more just
society. Chief architect Oscar Niemeyer’s striking aesthetic further connoted
the desire for a postcolonial, modern identity.
Forging such a new ideal of cohesive nationhood also entailed a
process of destruction. The new capital’s conception as a utopian tabula
rasa for Brazilian society required a degree of collective amnesia. As Filipe
Manzoni (2018, p. 91) describes:

O mito do novo mundo faz da pedra fundamental de Brasília . . . a base de


uma nova sociedade e, ao mesmo tempo, uma espécie de kolossós da antiga,
isto é, uma pedra tumular que encerraria a imagem do Brasil pré-moderno
como quem cumpre um rito funerário.6

Theoretically, Brasília’s construction would inter the unsavory aspects


of Brazilian history as the nation entered a period of prosperity. Instead, the
Federal District defied the utopian desires of its planners and retained the
inequality and authoritarianism typical of the nation’s past. Elite inhabitants
of privileged areas, like the protagonist of As cinco, remain isolated from the
travails of the Federal District’s working-class residents. The Plano Piloto,
guaranteed preservation by UNESCO in 1987, visually signifies a false degree
of accomplishment that obscures the Federal District’s history of violence and
segregation.
Brasília’s legacy of grand aspiration and subsequent disillusionment
makes it an ideal location to consider the idea of utopianism. Thomas More’s
Utopia (1516) gave name to this concept and provided a blueprint for the
utopian literary genre, yet utopia’s shifting meanings and connotations in the
centuries since have provided a notorious challenge for critics. Depending
on one’s temporal, social, and political position, utopia can signify concepts
as diverse as perfection, hopeful thinking, unrealistic aspiration, or totalitarian
depravity. As seen in his fiction and prose, including essays on Utopia, Almino
is well versed in the concept’s complexity, its relevance to Brasília, and the anti-
utopianism typical of the late twentieth century. Although a singular definition

6 Drawing from Jean-Pierre Vernant, Manzoni (2018, p. 91) describes a kolossós as


a marker of Ancient Greek funereal rights meant to prevent the deceased spirit from returning
to the realm of the living.
24 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

of utopianism remains elusive, Lyman Tower Sargent’s understanding of the


concept as “social dreaming,” that is, “the dreams and nightmares that concern
the ways in which groups of people arrange their lives,” effectively unites utopia
across historical eras and thus provides a useful baseline for analyzing Almino’s
novels (SARGENT, 1994, p. 3).
This interpretation of utopia draws on the work of Marxist scholar Ernst
Bloch, who conceived of utopian thought as a universal impulse to transcend
one’s material and historical circumstances. His three-volume The Principle of
Hope (1954-1959) analyzes manifestations of this inherent drive in a wide range
of social and cultural forms including daydreams, popular culture, literature,
and philosophy. For Douglas Kellner (2012, p. 95), the critic’s mapping of
aspiration positions utopia as a “paradigm of ‘intra-historical transcendence,’”
connecting desire across time and place: “utopian elements are grounded in a
cultural tradition and historical situation, and thus point to a better future in
which long-held wishes and dreams for freedom, happiness, and justice can be
realized” . As creators and interpreters of cultural artifacts study this common
impulse, they attain “educated hope,” which reveals the fallacy of viewing the
sociopolitical status quo as immutable and the importance of working towards
constructive transformation (BLOCH, 1986, p. 7).
Despite the utility of Bloch’s theory for interpreting works of cultural
production like Almino’s novels, faith in utopianism dimmed by end of the
twentieth century. In the wake of World War II, liberal thinkers including
Karl Popper, Hannah Arendt, and Isaiah Berlin fueled a growing association
between utopia and prescriptive, coercive oppression (JACOBY, 2005, p. xii;
50). In a 2005 monograph, intellectual historian Russell Jacoby (2005, p. 81)
describes how, “The anti-utopian ethos has swept all intellectual quarters.
Utopia has lost its ties with alluring visions of harmony and has turned into
a threat. Conventional and scholarly wisdom associates utopian ideas with
violence and dictatorship”. As exemplified by Margaret Thatcher’s maxim
that “there is no alternative” (TINA) and the hegemony of liberal democracy
heralded by Francis Fukuyama’s The End of History and the Last Man (1992),
conventional thinking in the twentieth century’s latter decades identified radical
visions of social change with futility or potential disaster. As exemplified by
characters discussing the unlikelihood of social transformation on the symbolic
night of January 31st, 1999 in As cinco, Almino’s characters are not immune
from this consensus. And yet, both this novel and Idéias propose engagement
with historical utopianism as a counterbalance to purely pessimistic views of
BURT, B. | 25

Brasília’s present and future.


This cautious form of hopefulness parallels the concepts of realistic
utopianism or post-utopianism. Portuguese philosopher Boaventura de Sousa
Santos (2002, p. 34) argues for the redoubled importance of localized aspiration
that resists resigned acceptance of an unequal status quo:

A esperança não reside num princípio geral que providencia um futuro


geral. Reside na possibilidade de criar campos de experimentação social
onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade... É
este realismo utópico que preside as iniciativas dos grupos oprimidos que,
num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo
um pouco, por toda parte, alternativas locais que tornam possíveis uma vida
digna e decente.

Such “utopian realism” reacts to the disillusionment of TINA via


a focus on concrete change in the near-term. Rather than hoping that a
universal utopian impulse will eventually create widespread change, utopian
alternatives to present conditions must be conceived and enacted locally.
Brazilian poet and critic Haroldo de Campos’s theory of post-utopia
adopts a similarly cautious approach to social dreaming that has proven
salient in national literature since the 1980s. For this critic and co-founder
of the concrete poetry movement, post-utopia signifies a re-engagement
with utopian thought after two decades of military dictatorship7. Distancing
himself from the single-minded futurity typical of his earlier work, Campos
(1996, p. 268) now argues for artists to engage directly with everyday reality:
“Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora
pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-
esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamento
ancorado no presente". While still hopeful for future change on a large
scale, post-utopianism prioritizes a critical response to pressing issues in
the present. Disavowing revolutionary utopianism seeking a sociopolitical
tabula rasa, Almino’s characters generally adopt the geographically and
temporally limited vein of social dreaming described by Sousa Santos and
Campos. And yet, in an ambiguous gesture, this cautious hopefulness often
draws inspiration from the radical hopes of Brasília’s prehistory.

7 Developed since 1979, this article cites the version of Campos’s theory of post-
utopia from 1997’s O arco-íris branco.
26 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

Dystopian thinking likewise influences Almino’s complex depictions


of aspiration in Brasília. Whereas utopian representation presents improved
or neutral sociopolitical alternatives, dystopian narratives inspire social
dreaming by highlighting or exaggerating existing problems in either the
fantastical or realist modes. Brazilian scholar Leomir Cardoso Hilário
(2013, p. 202) concisely contours this dynamic by naming the concept an
“aviso de incêndio, o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar a
atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos,
embora já em curso, sejam inibidos.” Dystopia thus functions as a negative
of utopian thought, reacting to nightmarish visions of society rather than
directly presenting better alternatives.
In both Idéias and As cinco, dystopian elements often appear intertwined
with apocalyptic rhetoric or imagery. As utopian studies scholars Joe Trotta
and Houman Sadri (2019, p. 2) explain, dystopian and apocalyptic literature
indeed share, “similar ways of engaging readers as they generally make use
of problematic issues that are recognizable in our contemporary condition .
. . as a basis for their troubled and troubling conceptions of a future world
that could arise from the present”. Apocalypse, whose etymology means
unveiling or revelation, maintains a didactic impulse alongside its popular
association with the end of the world. While apocalypticism generally
foregrounds destruction, critics like Claire P. Curtis (2010, p. 4-7) and
Annette M. Magid (2015, p. 226) each affirm that popular, post-apocalyptic
narratives often incorporate hope for social renewal. Despite the pessimism
about the capital prevalent at the time, Almino’s invocation of apocalypse
in Brasília at once imagines the city’s destruction and suggests the prospect
of a twenty-first century renaissance.
The apocalyptic speculation in As cinco dialogues explicitly with the
approaching end of the second millennium. The novel's New Year's Eve
party scene reflects what Louis Parkinson Zamora (1989, p. 1) identifies
as international interest in apocalypse prior to the calendrical shift from
1999 to 2000. Dionísio Vila Maior (2001, p. 192) notes that, during this
period, “tornou-se normal relacionar o fim de milénio com cataclismos e
catástrofes... esta visão catastrofista perdura com alguma teimosia no final
do século XX / final do segundo milénio (emphasis in original). Brasília’s
imagined destruction in Idéias reflects this zeitgeist yet also inverts the rapid
creation of the new capital in the near-uninhabited Planalto Central. Further,
Beal (2020, p. 13) argues that literary fantasies of the capital’s annihilation
BURT, B. | 27

“…elevat[e] Brasília to the status of an artistic city... by presenting it as a


place worthy of having its imagined loss be recorded”.8 Indeed, analysis
of Idéias and As cinco confirms that the city’s possible destruction is not a
denouncement but rather one element of a critique that tentatively validates
the city’s potentiality as a site of constructive transformation.

Resilient Hope and Paradoxical Inspiration in Idéias

The capital of Idéias is explicitly introduced as a space of


disillusionment, yet Brasília’s foundational ambitions continue to spark
hopefulness. The novel’s narrative arcs eschew straightforward resolution,
instead coalescing in a complex portrait of utopianism, fatalism, and
apocalyptic prediction. As Beatriz Resende (2003) suggests in the preface
to the second edition of Idéias, the novel’s Brasília reflects the author’s
hopes and fears about Brazil’s return to democracy after two decades of
dictatorship. Almino incorporates politics through events relating to Paulo
Antônio Fernandes, Brazil’s first Black president, whose inauguration and
tragic death bookend the novel. While Fernandes’s fate suggests deep
skepticism about the permanence of Brazilian democracy, Almino avoids
fatalism in his appraisal of both national society and Brasília.
The aspiring filmmaker Mário Camargo de Castro, now deceased,
narrates the first thirteen chapters of Idéias from beyond the grave. This
figure, an obvious allusion to Machado de Assis’s Brás Cubas, combines
memories of an unfinished film script with narratives recounting the stories
of various characters who appear in a photograph taken in the Praça dos
Três Poderes during Fernandes’s inauguration. Silvinha, the president’s
daughter, narrates the final two chapters, questioning Mário’s version of
events and outlining her own aspirations for Brasília. Alongside these
narrator’s perspectives, three characters’ arcs exemplify the novel’s nuanced
view of late-twentieth-century utopianism: Berenice, Íris, and Eva. The
Northeastern migrant Berenice’s journey towards disillusionment concludes
with unforeseen optimism. The mystic Íris and her multiple apocalyptic
visions underline the resiliency of mystical utopianism in Brasília. Finally,
Eva’s descent into hopelessness marks a rare case of unredeemed despair

8 Alongside Almino, poet Nicolas Behr, filmmaker Adirley Queirós, and playwright
Alexandre Ribondi have imagined Brasília’s destruction (BEAL, 2020, p. 13).
28 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

in Almino’s oeuvre. Though total loss of faith is possible, Brasília’s


foundational aspirations remain a powerful, if unlikely, source of post-
utopian inspiration.
The opening chapter, “Fantasia para o Plano Piloto,” sets the stage
for these considerations by foregrounding Brasília’s history as an object of
utopian desire. Almino quotes from Dom Bosco’s dream and Lúcio Costa’s
urban plan while referencing early political dreams of a central capital
(ALMINO, 1987, p. 20). And yet, Mário admits that, “A cidade pertencia
cada vez mais a um Brasil sem sonhos e desiludido” despite the tentative
hopes generated by Fernandes’s election (ALMINO, 1987, p, 20). The myth
of Brazil as the land of the future retains influence, but, “Na realidade,
o país entrava num jogo de possíveis, que ia da felicidade ao desespero”
(ALMINO, 1987, p. 18). Almino’s characters react to this unknown future
not through resignation but rather continued aspiration: “Queriam encher
o ar e o espaço do Planalto com seus sonhos e respirar essência de flores
secas. Queriam amar de novo e diferente. Buscavam viver a realidade que
haviam inventado: eram realistas utópicos” (ALMINO, 1987, p. 24-25).
These limited aims reflect what Fernando Arenas (2004, p. xx) describes
as “the shift from grand utopian visions to small utopian imaginings with
regard to a possible better society” typical of the final decades of the
twentieth century . At times, Almino’s characters conform with the localized
utopias of “solidarity, love, and ethical commitment vis-à-vis the other”
that Arenas identifies in Brazilian literature from the late 1970s through the
1990s (ARENAS, p. xx). However, the resonance of the grand narratives
associated with Brasília’s creation in Idéias represents a point of divergence
between Almino and his contemporaries. While radical dreams remain
discredited in the author’s Federal District, his “realistic utopian” characters
engage in sociohistorical critique in a manner that recalls Campos’s post-
utopia.
Berenice’s arc posits utopianism rooted in Brasília’s origins as an
unexpected counterbalance for the disillusionment experienced by those
exploited in the Federal District. A migrant from the sertão, Berenice grows
increasingly hopeless after moving to the satellite city of Gama: “Brasília e
seus arredores haviam se tornado inabitáveis . . . Estava desiludida. Sabia
que melhorar de condição seria difícil. Sua vida no Gama só tenderia a
piorar e seu destino seria voltar a ser o que era na Varzinha [her hometown]”
(ALMINO, 1987, p. 60). The character eventually leaves Brasília with little
BURT, B. | 29

hope, yet later adopts a surprisingly balanced view of the capital that reflects
the ongoing inspirational capacity of the city’s foundational aspirations:

No regresso ao sertão, Brasília ficou na cabeça de Berenice como o símbolo


do moderno, do belo, do limpo, do civilizado, do culto, e também da
violência, do poder. Brasília ficou em sua cabeça como sonho de liberdade,
pesadelo de castigo, intervalo para viver, lembrança de Zé Maria. Brasília
era, para Berenice, só uma ponte de fuga de si mesma e de regresso a si
mesma (ALMINO, 1987, p. 71).

In Berenice’s case, this symbolic power does not lead to the


targeted action generally associated with realistic utopia. Nonetheless,
this ambiguous description of the capital suggests the city continues to
symbolize the worthy goal of collective and individual liberation. Despite
the anti-utopian rhetoric of her earlier frustrations, the capital’s legacy of
utopianism unexpectedly prevents Berenice from succumbing to despair.
Íris’s complex trajectory demonstrates the continued relevance of
mystical utopianism in the capital more than a century after Dom Bosco’s
dream. Despite becoming disillusioned in the aftermath of an early
apocalyptic vision, this medium and prophetess finds reason to hope anew
following a tortuous series of events invoking mystical, science fictional, and
religious imagery (ALMINO, 1987, p. 129). At her spiritual nadir, Íris recalls
a past vision of Dom Bosco at a candomblé ceremony in Salvador when the
priest “a aconselhava a abrir-se, pôr-se para fora, viver para os outros. Dizia-
lhe que ela tinha uma missão a cumprir: salvar-se a si própria e ao mundo.
Deveria rumar para o Planalto Central para ajudar a criar a nova civilização”
(ALMINO, 1987, p. 132). Nihilism and radical utopianism remain in a
state of tension throughout Íris’s journey. Though she continually searches
for salvation, which inspires her to create the Jardim da Salvação religious
compound, despair consistently looms on the horizon (ALMINO, 1987. P.
137-143).9
After Íris constructs the Jardim da Salvação’s pyramidal temple,
kidnappers abduct the President and war (apparently) breaks out in Brasília.
Again reflecting on the figure of Dom Bosco, Íris wonders if the paradisiacal
city he prophesized in the region might finally come to fruition following

9 The fictional Jardim da Salvação recurs throughout Almino’s oeuvre and shares
many characteristics with the Vale do Amanhacer religious community.
30 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

nuclear bombardment: “ela guardava a esperança de que, da anarquia


e do caos reordenados, nasceria tudo de novo . . . E os sobreviventes
mergulhariam numa nova região do espaço e do tempo” (ALMINO,
1987, p. 152). Hope and resignation remain inseparable, demonstrating
the resilience of utopianism despite Íris’s conviction that the apocalypse is
actively occurring. If the end of the world has arrived, it may still be reborn,
with the post-apocalyptic period belatedly fulfilling Brasília’s utopian aims.
Eva’s suicide represents a rare, definitive triumph of despair in
Almino’s Brasília that throws the nuanced utopianism of Berenice and
Íris’s respective trajectories into further relief. Though she first claims to
believe in a brighter future for the world, Eva eventually abandons all hope:
“Melhorar, como ato de vontade, lhe parecia forçado. E, por isso, preferia
acreditar mesmo no beco sem saída. Já não tinha futuro. Apenas o passado.
Não fazia mais planos. A esperança era a simples crença no acas. . . Não
acreditava mais em vitórias ou redenções” (ALMINO, 1987, p. 104-105).
The character’s aversion to utopianism is undeniable; she sees no possibility
of the future improving on the tragic present. Unable to move past her
exemplary anti-utopian belief that Brazil is on a course of unstoppable
decadence, she takes her own life (ALMINO, 1987, p. 120-121). While Eva’s
death acknowledges that nihilism is a possible response to Brasília’s status
quo, such fatalism remains rare within Almino’s oeuvre.
Silvinha’s narration during the final chapters exemplifies another
ambiguous vision of post-utopian hope. For this character, the capital
inherently pushes its inhabitants towards continual imagination and, thus,
some degree of engagement with utopianism (ALMINO, 1987, p. 193). In
the final chapter, Silvinha embodies this tendency, imagining the novel’s
characters on an enormous stage on the Esplanada dos Ministérios. After
a time, they descend: “Desciam por eixos largos e compridos, que levavam
a horizontes abertos e infinitos. A realidade criava seus sonhos nesses
espaços do puro, etéreo nada, encerrada no centro do Brasil” (ALMINO,
1987, p. 204). The accompanying sunset, she declares, belongs to the end
of the world, begging the question of whether the characters are marching
towards a utopian future or apocalypse (ALMINO, 1987, p. 204). Silvinha
herself does not know, asking, “Haverá esperança?” and declaring on
the novel’s final page that, “não houve história. Brasília era demasiado
artificial. Era apenas sonho ou pesadelo de uma época. Imagem do céu e do
inferno” (ALMINO, 1987, p. 205-206). Despite its alienating characteristics,
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however, the capital’s symbolic legacy continues to stimulate imaginative


aspiration and unforeseen hopefulness. Brasília’s potent combination
of history, geography, and urbanism generates irrepressible, if cautious,
optimism even in a moment of widespread disillusionment. Still, this hope
remains inextricable from the doubt occasioned by the failures of its initial
objectives. All dreams remain paired with disenchantment.

Second Spring: A Return to Aspiration in As cinco

As cinco initiates a less aesthetically experimental stage of Almino’s


production that nonetheless maintains a memorialist framing and interest
in Brasília’s legacy as a utopian space. The novel relates the protagonist
Ana Kaufman’s memories over roughly fifteen months in 1999 and 2000.
A wealthy, fifty-five-year-old retired professor and recent divorcee, Ana at
first finds herself emotionally adrift to the point that she creates a strident,
internal alter-ego named Diana who occasionally guides the protagonist’s
actions and speech. As the new millennium approaches, Ana experiences
both despair and renewed hope. Though she feels optimistic after the
return of Berta, a member of the inúteis friends’ group from their youth,
this transgender character is murdered in a hate crime on New Year’s Eve.
The protagonist subsequently attempts suicide only to be saved by her
widower neighbor Carlos. After a convalescing in her hometown in Minas
Gerais, Ana accepts Carlos’s proposal of marriage and draws inspiration
from Brasília while committing to a post-utopian outlook.
Throughout the novel, both Ana and Diana discuss the theory of
instantaneísmo, a philosophy indissociable from utopianism. At its core,
instantaneísmo is a philosophy of complete and total focus on the present
moment. As first presented by Ana, the theory represents anti-utopian
disregard for the future disguised as self-preservation: “Deixarei de lado o
futuro, para não construir ilusões e nem prever desastres, o que, em vez de
evitá-los, talvez os acelere” (ALMINO, 2001, p. 50). In a later scene parodying
the rigid conventions of academia, Diana unleashes an outburst that revises
the instantaneísmo to incorporate hopeful futurity without abandoning its
core principal of accepting the inertia of the presente moment: “Nenhuma
realidade é imutável, todas as idéias podem renascer, os homens podem
aspirar a melhores formas de viver, mesmo quando piores vão surgindo, o
mundo muda instantaneamente para melhor e para pior ao mesmo tempo”
32 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

(ALMINO, 2001, p. 95). Despite Diana’s comparative optimism, both


versions of instantaneísmo share the implication that the present is unaffected
by utopian thinking. In his essay on Almino’s first four novels, Pedro Meira
Monteiro (2012, p. 68) describes this belief system as the only possible source
of solace in a Brasília otherwise marked by failure and ruin:

[...] o instante é nossa única morada possível, o lugar fugitivo a que


pertencemos sem pertencer, espaço exíguo em que o tempo se condensa e o
sujeito descobre que sua liberdade talvez tenha menos a ver com os desenhos
avidamente projetados sobre o futuro que com o compromisso profundo
diante daquilo que se passa agora mesmo diante de seus olhos.10

Meira Monteiro correctly identifies the aversion to grand utopian


ambition in Almino’s oeuvre while noting the potential utility of deeper
engagement with the present. Still, Ana’s reassessment of instantaneísmo in
the concluding section of As cinco breaks meaningfully with these earlier
descriptions of the philosophy and confirms the character’s cautious re-
engagement with utopianism.
Whereas instantaneísmo reflects the ambiguous temporality of a city
conceived of over centuries and constructed in a mere five years, Almino
creates a straightforward association between Brasília’s landscapes and Ana’s
emotional state. While the narrator consistently associates the city with the
hopelessness (or a lack thereof) that she feels in a given moment, several
passages belie her professed disregard for the future and past. Denilson
Lopes (2006, p. 128) connects Ana’s journey closely with the titular cycle
of seasons: “A paisagem de Brasília é toda afetiva, um mistério em meio ao
excesso de luz nas suas quatro estações, e mais uma, como um presente, uma
conquista”. The capital of As cinco reflects a wide range of aspirations and
disillusionments as Ana confronts personal frustrations, the general ennui
shared by her peers, and incidents of random violence. Still, the decision to
include a fifth season after Ana’s attempted suicide signifies a move away
from anti-utopianism as the new millennium begins.
Almino bookends Ana’s journey with the appearance of emotionally
charged, question-mark-shaped clouds. In the opening chapter, the
protagonist associates this cloud formation with her personal loss of

10 The revised version of Meira’s article translated into English excludes this
quotation.
BURT, B. | 33

faith in the capital’s foundational aims: “Brasília era ‘a cidade moderna e o


futuro do mundo’, como papai dizia. . . O Plano Piloto não era bem uma
cidade. Era uma idéia – idéia de moderno, de futuro, minha idéia de Brasil”
(ALMINO, 2001, p. 17). Looking at the contemporary city from the central
Eixo Monumental, however, Ana acutely senses her own lack of direction
alongside the social failures that have defined Brasília’s history. Foremost
among these is the dictatorship, which quashed the unbridled utopianism
that united the inúteis in the 1960s: “não era sucesso, poder ou dinheiro o que
queríamos. Era mudar a sociedade, a política, o país, o mundo . . . o futuro
era nosso. Éramos companheiros de uma viagem de prazer; construíamos
uma nova era, contra o egoísmo e a caretice” (ALMINO, 2001, p. 19). The
policies of segregation and censorship violently enforced by the military
regime, however, quickly curtailed the friends’ aspirations:

As cidades adquirem o ar dos tempos por que passam. Brasília, que tinha
sido promessa de socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não
usava mais disfarce. A desolação de suas cidades-satélites já a asfixiava.
Respirávamos vinte e quatro horas por dia o ar envenenado da ditadura
militar (ALMINO, 2001, p. 21-22).

Initially, at least, Ana reacts to the capital’s dystopian characteristics


with resignation rather than critical engagement. In 1999, Ana’s youthful
hopefulness remains a distant memory: “Minha juventude está perdida. A
Brasília do meu sonho de futuro está morta. Reconheço-me nas fachadas
de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e
decadente” (ALMINO, 2001, p. 40). Even as Ana feels renewed hope after
Berta’s arrival, the impending arrival of the new millennium exaggerates
these feelings of disappointment. When the inúteis unite for a New Year’s
party, the protagonist declares that “É o medo o que está marcando o fim do
milênio,” while other friends remark that “Todos vivemos na merda,” and “A
gente achava que o mundo ia ser outro em trina anos, né” (ALMINO, 2001,
p. 147; 146; 147). The inúteis’ explicitly pessimistic dialogues leave no doubt
as to their generation’s deep skepticism about social or personal renewal in
twenty-first century Brasília. The millennium’s apocalyptic associations hew
firmly towards catastrophe and irredeemable loss.
The next morning, Ana describes how the party’s lack of any epiphany
makes her feel hopeless, as if all good things in her life have already passed
34 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

(ALMINO, 2001, p. 158). And yet, such pure despair remains fleeting in
Almino’s capital, as Ana sees an “esperança” cricket that she interprets as
a hopeful sign: “Esta esperança deve ter um significado para mim, neste
primeiro dia do milênio. Por pequena que seja, por mais que tente negá-
la e a reconheça como pura ilusão, a esperança teima em sobreviver. Sem
ela, qual presente seria possível suportar?” (ALMINO, 2001, p. 159).
Despite her prior insistence on the sovereignty of the present moment,
Ana recognizes the importance of hopeful aspiration. The calendrical turn,
represented only pages prior as the culmination of an inexorable process of
disillusionment, now conveys the possibility of renaissance.
This recognition is short-lived, however, once Ana discovers Berta
was murdered the night before. The protagonist becomes obsessed with
death and associates Brasília’s design with the futility of personal aspiration:
“Por um instante ainda penso na aventura que me trouxe ao Planalto
Central, como para cumprir uma missão. Logo me ocorre que, desde o
começo, a estrutura monumental de Brasília traçava os limites daquela
minha aventura” (ALMINO, 2001, p. 169). Feeling powerless in the grand
scale of the Plano Piloto, Ana’s past resentments resurge. She angrily
describes destroying Brasília, “Esta é minha revolta, minha revolução. Chega
de sobrevida medíocre e acomodada. Tivesse uma bomba aqui, explodia a
casa, Brasília, o mundo, esta obra de um Deus mal-humorado” (ALMINO,
2001, p. 170). This nihilistic, destructive apocalyptic rhetoric marks the
protagonist’s nadir. Convinced that both she and Brasília are irredeemable
failures, she sets fire to her house and shoots herself.
As Ana convalesces, her friend Marcelo outlines a fundamental
principle of Almino’s Brasília: “Está errado dizer que a esperança é a
última que morre. Ela não morre nunca” (ALMINO, 2001, p. 175). The
protagonist’s reengagement with hopefulness begins via an unlikely
connection to Brasília’s mystical utopian origins. When visiting the ruins
of her house, Ana discovers a vial of dirt collected with the inúteis at the
Jardim da Salvação compound in their youth (ALMINO, 2001, p. 179). This
physical symbol of both Ana and Brasília’s history of grand ambition does
not instigate an instantaneous return to uninhibited social dreaming but does
foreshadow her unlikely turn to post-utopianism in the new millennium.
Back in Brasília after a brief stay in her hometown, Ana revises
instantaneísmo for the final time. In a major departure, the protagonist
accepts a hopeful perspective on the future that recognizes the importance
BURT, B. | 35

of learning from the failed utopias of decades past:

Não acredito mais em aproveitar o instante para negar o fluxo do tempo.


Prefiro uma acomodação emocionada, uma negociação sofrida com a
adversariedade, a coragem de continuar abrindo picadas pelos cerrados
da existência, em vez de abandonar tudo com a esperança de encontrar
o paraíso. . . . Quero abraçar cada fragmento da existência e não um todo
vazio, descobrir a possibilidade que se esconde em cada coisa inerte, em
cada vida, em cada movimento, possibilidade de construir e reconstruir com
o que está aqui, em vez de procurar pelo que não existe nem pode existir.
(ALMINO, 2001, p. 188-189)

The radical vision of Brasília as a paradisiacal, revolutionary city will


never come to pass. Still, Ana will strive to draw from these failed ambitions
as she seeks personal and social improvement in the near future. Instead
of hoping in vain for a utopian tabula rasa in her own life, Ana commits
to critically assessing her past and present and seeking post-utopian
improvement.
Almino challenges even this cautious optimism when Ana survives
an attempted murder. Although the protagonist initially feels distraught, she
avoids spiraling into renewed fatalism. Gazing at Brasília for a final time,
Ana identifies the city as a space of hope despite its failures:

Tenho outros olhos e outro coração para as paisagens de sempre. A cidade


já não me assombra, e as esperanças que à minha revelia, me gera estão ao
alcance da minha mão... Brasília deixou de ser minha prisão voluntária. É a
cidade de Diana, caçadora de ilusões; de sonhos perdidos entre paisagens
de desolação. Porque amo amar, quero viver neste espaço em que a visão do
futuro foi preservada entre fósseis e artifícios deste novo milênio. Construir
uma cidade do nada é uma aposta pela vida. Quero viver na fronteira que
avança sobre o imenso vazio. Reconstruir-me pelas cinzas. (ALMINO, 2001,
p. 202-203)

Having failed to consolidate wholesale utopian change, Almino’s


Brasília reflects the hopes and disappointments of its residents. As Ana
realizes that the capital will never reshape its subjects into an idealized
society, she at last internalizes her responsibility to continue seeking realistic
utopian improvement.
The question mark-shaped cloud formation returns in the novel’s
36 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

penultimate paragraph, at once highlighting Ana’s renewed sense of


optimism and casting this engagement into doubt (ALMINO, 2001, p.
203). Though Ana has recommitted to utopian thinking, she is pursued by
a question mark overhead. Will her newfound hopefulness last? Almino
provides no firm answer, yet Ana’s self-criticism and revised, post-utopian
instantaneísmo augur well for her future. Utopian thinking is never free of
doubt and disillusionment in Almino’s Brasília, but for the moment, at least,
Ana remains cautiously hopeful.

Conclusion: Balance and Breakthrough

The tension between the flawed Brasília that Almino’s characters


experience firsthand and the idealized city they cannot help but recall fuels
each novel’s consideration of utopian thought. On the one hand, the capital’s
complex history of grand aspiration serves as a source of inspiration even in
periods of deep disillusionment and skepticism towards utopia. On the other,
deep engagement with social dreaming can appear foolish in a city so defined
by the failure of grand desire. If the confluence of mystical belief, political
power, and revolutionary urbanism ultimately created another segregated,
violent Brazilian city, what can contemporary dreamers possibly contribute?
Almino repeatedly acknowledges the validity of such uncertainty. Still, the
characters of Idéias and As cinco find themselves enticed towards hopefulness
by the city’s associations with radical utopian thought. Poised between this
ubiquitous inspiration and the anti-utopian consensus that led to widespread
condemnation of the capital by the late twentieth century, Almino’s brasilienses
struggle to engage productively with utopian aspiration.
The characters in each novel primarily interpret utopianism through
the lens of both Brasília’s creation and the generational aspirations of
those who came of age in the 1960s. For Meira Monteiro (2012, p. 61):
“Almino sounds out the legacy of the 1960s, suggesting that its libertarian impulses
define a whole generation of Brazilians, who nevertheless see themselves, by the end of
the dictatorship, oscillating between a most promising utopia and the helpless failure of
all dreams (italics in original). Among the key motivations for these young
Brazilians were sexual liberation, the pursuit of pleasure, and the ideology
Marcelo Ridenti (2014, p. 55-57) calls “romanticismo revolucionário,”
which combined cultural nationalism with anti-capitalism. However, these
desires were frustrated as the dictatorship reinforced capitalist hegemony
BURT, B. | 37

and cracked down on civil liberties after 1968. The consequent uncertainty
in the wake of redemocratization is only compounded by the perceived
breakdown of grand utopian narratives and the seeming impossibility of
fundamental social change.
Despite recall to the exuberant social dreams of the 1960s, Almino’s
novels reflect the challenges of utopianism in the comparatively depoliticized
period of their publication. Still, his commitment to crafting nuanced
depictions of Brasília as a site of social dreaming defies the negative view
of the capital prominent at the time. This ambiguous depiction in both
novels thus serves as a bulwark against passively accepting the capital as
condemned to apartheid and alienation. Almino is undeniably among the
“well-healed [sic], white, male, heterosexual artists who lived in the Plano
Piloto” that dominated brasiliense art in the twentieth century, while most of
his characters are from a similar social milieu (BEAL, 2020, p. 18). Still, the
author’s refusal to accept the anti-utopian status quo creates a throughline
between his early novels and a subsequent generation of diverse artists who
engage the capital’s legacy of utopian aspiration to contest socioeconomic
inequality in the Federal District. Almino’s critique may seem bloodless
compared to the radical vision of filmmaker Adirley Queirós’s Branco sai,
preto fica (2014), for instance, yet the author’s inconformity with the fatalistic
vogue of decades prior conveys a belief in Brasília’s transformation that
continues to resonate among younger artists in the new millennium.11
Almino’s vision of utopian thought as inextricable from doubt
represents a productive response to a historical zeitgeist defined by
resignation to the status quo. By acknowledging that utopianism is an
ambiguous, rather than binary, phenomenon, Almino conveys belief in
constructive reform, however unlikely. The capital will never be as heavenly
as Dom Bosco’s dream nor initiate a new era of social egalitarianism, yet
its history of social dreaming need not be disregarded as naïve. Almino
reframes the debate about Brasília’s legacy as a utopian city by recognizing the
validity of these inspirations alongside credulity in their continued relevance.
By tracing the trajectories of characters who re-engage with utopian thought
despite full awareness of the city’s flaws, both Idéias and As cinco illustrate
productive post-utopianism inspired by the city’s failed, radical utopian origins.

11 Unlike the imagined destruction of the Plano Piloto in Idéias and As cinco, Queirós’s
impoverished, Afro-Brazilian characters from the satellite city of Ceilândia successfully avenge
police violence by annihilating the Plano Piloto with a sonic bomb.
38 | After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília

Negotiating disillusionment will always be part of social dreaming in Brasília,


yet previous failures should not permanently negate the city’s historical strains
of utopianism.

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Como citar este artigo

BURT, B. After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s


Literary Brasília. Fragmentum, Santa Maria, p. 19-40, 2022. Disponível
em: 10.5902/2179219470262. Acesso em: dia mês abreviado. ano
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 41-63, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219469016


Submissão: 12/01/2022 • Aprovação: 20/06/2022
Artigo Original

A MODA BRASILEIRA E OS CORPOS EM (RE)VISTA:


UM GESTO DE LEITURA

BRAZILIAN FASHION AND BODIES IN (RE)VIEW: A


GESTURE OF READING

Bárbara Pavei Souza1


Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, UNIDAVI, Rio do Sul
SC, Brasil
Nádia Neckel2
Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul, Palhoça, SC, Brasil

Resumo: O lugar de filiação deste trabalho é o da Análise de Discurso (AD) de orientação


materialista, considerando os trabalhos de Michel Pêcheux (França anos 60), os quais buscavam
responder algumas questões sobre fatores extralinguísticos articulando o Materialismo
Histórico, a Linguística e a Psicanálise; e os trabalhos de Eni Orlandi (Brasil, a partir dos anos

1 Doutora em Ciências da Linguagem (PPGCL- Universidade do Sul de Santa


Catarina- UNISUL. Veiculada ao grupo de pesquisa Discurso, Cultura e Mídia no projeto de
pesquisa: Corpo- Imagem e(m) Discurso. Desenvolve pesquisas na área de Moda e de Análise de
Discurso, tendo o corpo como objeto principal de estudo. Mestre em Ciências da Linguagem
pela Universidade do Sul de Santa Catarina- UNISUL- (2017). Graduada em Moda com
Habilitação em Design de Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
(2014) e Graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Pitágoras- UNOPAR
(2019). Professora, coordenadora do Curso de Tecnologia em Design de Moda do Centro
Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí: UNIDAVI e Coordenadora do
Núcleo de Acessibilidade e Inclusão: NAI. barbarapaveis@gmail.com
2 Uma das mães do Lucas Rodrigo e da Bruna Valentina. Possui graduação em Artes
Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM- (1998); Mestrado em Ciências
da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina- Unisul - (2004). Doutorado em
Linguística - IEL - Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) na Unisul. Atualmente participa de
grupos de pesquisas institucionais e interinstitucionais no campo do ensino da arte, estética
e análise do discurso. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Performáticas
e Audiovisual. No campo teórico, atua principalmente nas áreas da Arte, Estudos Culturais e
Análise do Discurso. No PPGCL da Unisul atua nas linhas de pesquisa de Texto e Discurso e
Linguagem e Cultura. Pós-Doutorado em andamento no IEL -Unicamp sob a orientação da
professora Suzy Lagazzi. nadia.neckel@animaeducacao.com.br

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


42 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

80), os quais buscam investigar as relações linguagem-sociedade-ideologia e a produção de


sentidos e sujeitos em diferentes modos de significar. É deste lugar que pretendemos tecer nosso
gesto de leitura sobre os Brasis, analisando um conjunto de capas da Vogue, questionamos:
Como o corpo negro-feminino é discursivisado?

Palavras-chave: Análise de Discurso; Corpo feminino negro; Hipersexualização.

Abstract: The place of affiliation of this work is Discourse Analysis (DA) of materialist
orientation, considering the work of Michel Pêcheux (France, in the 1960s), which sought
to answer some questions about extralinguistic factors articulating Historical Materialism,
Linguistics and Psychoanalysis; and the work of Eni Orlandi (Brazil, from the 1980s), which
seek to investigate the relations language-society-ideology and the production of meanings and
subjects in different ways of meaning. It is from this place that we intend to weave our reading
gesture about Brasis, analyzing a set of Vogue covers we question: How is the black-female
body discursivized?

Keywords: Discourse Analysis; Black Female Body; Hypersexualization.

Palavras iniciais

Consideramos a linguagem marcada pelo processo histórico e social,


ou seja, é pelo funcionamento da Ideologia que se estabelecem as condições
de produção dos sentidos e os processos de identificação dos sujeitos,
inscrevendo-os, portanto, em determinadas discursividades e não em outras.
Ou, como diria Michel Pêcheux ([1988] 2014, p. 246, grifo do autor),
“[...] a forma-sujeito do discurso, na qual coexistem, indissociavelmente,
interpelação, identificação e produção de sentido, realiza o non-sens da
produção do sujeito como causa de si sob a forma da evidência primeira”.
Ou seja, conforme nos ensina Orlandi (2001), é pelo processo de
interpelação do indivíduo em sujeito, pela forma sujeito histórica do capital
e pelo funcionamento dos aparelhos ideológicos em uma segunda instância,
que se estabelece os modos de subjetivação e individuação dos sujeitos e dos
sentidos do/no discurso.
Interessa-nos aqui pensar a instância material de sujeitos e sentidos
no discurso, por isso mesmo, tomamos o corpo enquanto materialidade
discursiva. Corpo e sujeito estão materialmente inscritos em discursividades
que circulam em diferentes espaços, como: as mídias, a publicidade, a moda,
as artes, entre outros.
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 43

É importante explicitarmos então nosso recorte teórico-analítico.


Lançamos nosso olhar sobre o corpo feminino negro na moda, de forma a
compreendermos os modos de discursivização desses corpos em diferentes
períodos. Porém, não se trata de uma visada histórico-temporal, mas sim
fazer funcionar a noção discursiva de historicidade, explicitando as marcas
do sistema escravista que permanece produzindo seus efeitos estruturalmente
na sociedade, nos corpos, na língua, nos sujeitos e nos sentidos. Segundo
Mbembe (2018, p. 199),

Olhar e ver têm em comum solicitar o juízo, encerrar o que se vê ou o que


não se vê em inextricáveis redes de sentido - as tramas de uma história. Na
distribuição colonial do olhar, sempre existe quer um desejo de objetificação
ou de supressão, quer um desejo incestuoso, quer um desejo de posse ou
quiçá de estupro.

Assim, entendemos que o pensamento de Mbembe encontra o que


nos propunha Michel Pêcheux ([1982] 1990, p. 8),

A existência do invisível e da ausência está estruturalmente inscrita na


formas linguísticas da negação, do hipotético, das diferentes modalidades
que expressão um “desejo”, etc., no jogo variável das formas que permutam
o passado e o futuro, a constatação assertica com o imperativo da ordem e
da falta de asserção do infinitivo (...) toda a língua está necessariamente em
relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca
estará” da percepção imediata: nela se inscreve assim a eficácia omni-histórica
da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins
últimos, o alhures, o além e o invisível.

É na e pela ideologia que se dá o que pode e o que deve ser visto ou que
não se pode ver, o que deve se tornar invisível, aquilo que não corresponde
à um certo padrão. E esses regimes de visibilidade ou de invisibilidade se
marcam também nos dispositivos, como as mídias e a moda, por exemplo.
Logo, entendemos que a história dos corpos femininos negros não é contada
apenas por palavras, também são contadas pela via das imagens, dos corpos,
das memórias, exclusões, práticas e pelos discursos.
Compreendemos que os sentidos dados ao corpo mantêm uma
relação direta não só com a história e a ideologia, mas com o próprio
sujeito, por ser seu suporte material. Logo, o conceito de corpo se constitui
44 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

na relação sujeito/ história/ sociedade/ ideologia. Mas como funciona a


sobredeterminação de gênero, classe e raça no modo como esses corpos são
discursivisados em capa de revistas de moda que circulam no Brasil? Faz
parte de um certo imaginário de brasilidade a hipersexualização do corpo da
mulher negra? É sobre esse recorte que pretendemos nos debruçar.

O Corpus

Analisar o discurso sobre o corpo feminino negro nas revistas de


moda, partindo do campo da Análise de Discurso, é convergir nosso olhar
a horizontes maiores e apreendê-lo nas suas entrelinhas e na sua dimensão
linguística e sócio-histórica. Assim, a proposta central deste artigo é
compreender e estudar as regularidades e a produção de sentidos investida
sobre o corpo feminino negro a partir de um recorte teórico-analítico que
propõe analisar a presença dos corpos de mulheres negras em algumas capas
da revista de moda Vogue Brasil.
Com a finalidade de trabalharmos com as imbricações entre corpo,
gênero e raça na constituição dos sentidos do corpo feminino negro na
moda, faz- se necessário discutirmos sobre o conceito de interseccionalidade,
que focaliza múltiplos sistemas de opressão, em particular, articulando
raça, gênero e classe3. Embora esse termo tenha sido cunhado apenas em
1989, pela teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw (1989),
a preocupação em entrelaçar distintas formas de diferenciações sociais (e
de desigualdades) é bem anterior, data do século XIX4. No livro O que é
interseccionalidade?, Carla Akotirene (2020) pontua que o termo ganhou
espaço a partir de uma palestra realizada por Kimberlé Crenshaw na cidade
Durban, na África do Sul, em 2001. Segundo Akotirene (2020, p. 19),

3 Considerando a historicidade da formação do campo interseccional, na primeira


metade da década de 1980, Angela Davis e Bell Hooks publicaram, em, respectivamente,
Women, Race and Class e Ain’t I a Woman? Black Women and Feminism, contribuições e críticas
acerca da problemática da estabilidade homogeneizante da categoria mulher e a necessidade
de se atentar igualmente às formas combinadas das diferenciações e desigualdades como raça e
classe social, entrecortando as experiências de mulheres.
4 Sojourner Truth, mulher afro-americana que foi escravizada ainda criança,
tornou-se pioneira do feminismo negro após sua fala em 1851, na Convenção de Direitos das
Mulheres, em Akron, Ohio. Em seu discurso, Truth articula raça, classe e gênero, questionando
a categoria de mulher universal.
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 45

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à


inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado-
produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas
vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe,
modernos aparatos coloniais.

Nesse sentido, a interseccionalidade permite uma maior compreensão


acerca das desigualdades raciais existentes. Esse conceito nos mostra como e
quando mulheres negras são discriminadas e estão mais vezes posicionadas
em “avenidas identitárias” (AKOTIRENE, 2020, p. 19), as quais farão delas
vulneráveis à colisão das estruturas e fluxos modernos. Ou seja, dependendo
do lugar social que se ocupa, o gênero é vivenciado de maneira diferente,
isso porque a situação das mulheres, em especial das mulheres negras e de
classes populares, possui desafios adicionais para o acesso a direitos.
O corpo, enquanto objeto de análise e reflexão, é de natureza
histórico-social, e falar sobre o corpo, especificamente o corpo feminino
negro nas capas de revista de moda no Brasil, é interpretá-lo partindo de
determinados lugares sociais e discursivos, de determinadas formações
imaginárias, ideológicas e discursivas, de determinadas memórias, em
determinadas condições de produção, a partir de um modo de subjetivação
que objetifica o corpo da mulher negra. Portanto, é fundamental ressaltarmos
que trabalhamos sob uma perspectiva materialista a qual nos permite olhar
o corpo enquanto uma materialidade significante, porque ele é constituído
historicamente.
As textualidades que mobilizam sentidos sobre o corpo feminino
negro no Brasil são marcadas por certas condições de produção que passam
por um corpo racializado5. No caso do corpus de análise deste artigo, são
algumas capas da revista Vogue Brasil6.

5 Que adquiriu caráter racial. O termo racializado/racialização surgiu na década


de sessenta do século XX para exprimir o processo social, político e religioso a partir do qual
certas camadas da população de etnia diferente eram identificadas em relação à outra parte da
população, tendo em conta que esta identificação estava diretamente associada ao seu aspeto,
características fenotípicas ou à sua cultura étnica.
6 Ressaltamos que a Vogue é uma das revistas de moda mais importantes,
conceituadas e influentes do mundo. Dados apontam que, em 2018, circularam no Brasil, de
forma impressa e digital, aproximadamente 78 mil exemplares da revista Vogue Brasil. Segundo
Novelli (2014, p. 93, grifo do autor), “[...] no contexto brasileiro é possível afirmar que Vogue
se constrói enquanto termômetro de tendências, que guia e inspira”. Mensalmente em suas
páginas, com base numa perspectiva sofisticada do mundo da moda, são publicados trabalhos
46 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

Recortamos capas que trouxessem o corpo feminino negro como


protagonista. A seleção das capas protagonizadas por esses corpos deu-se em
razão do fenótipo (conjunto de características observáveis num organismo),
afinal, no Brasil a miscigenação ocorreu de forma violenta. Fontes históricas
afirmam que fora por meio do estupro institucionalizado como direito do
senhor de escravos e como um dos modos de implementar um projeto de
branqueamento da população brasileira. Sendo assim, nossa leitura social
acontece não pela genética, mas pelo tom de pele, traços e características
físicas visíveis dos corpos. O que pretendemos mostrar, em nosso gesto de
leitura/interpretação dessas capas de revista, é que, tal como já expôs Orlandi
([1990] 2008, p. 261), a história “[...] não é uma questão de evolução do
tempo, é uma questão de sentidos e da sua duração. E estes podem circular
indefinidamente”.
Hofbauer (1999) afirma que o termo branqueamento7 pode ser
entendido sob dois sentidos: ora como a interiorização dos modelos culturais
brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu ethos de matriz
africana; ora como o processo de “clareamento” da população brasileira,
registrado pelos censos oficiais e previsões estatísticas do final do século XIX
e início do XX.
Moutinho (2003, p. 169), ao analisar as relações inter-raciais na
literatura brasileira do fim do século XIX e início do XX, notou que as
mulheres teriam seus corpos tidos mais uma vez como objetos e sua
feminilidade vinculada ao útero, ou seja, “a de reproduzir a espécie”.
Além disso, ao racializar esse acontecimento, a autora notou que as
mulheres brancas e negras possuíam papéis distintos dentro do ideal de
branqueamento da população: as primeiras deveriam manter a “pureza” de

de famosos estilistas, fotógrafos e designers.


7 Baseados nos ideais europeus de eugenia que surgiram na Europa por volta do
século XIX, o governo de Dom Pedro II, a partir de políticas, como o incentivo à imigração de
mão de obra europeia e a proibição à imigração de africanos, impulsionaram o branqueamento
como uma prática social. “Antes da noção de democracia racial, a ideologia do branqueamento
serviu como justificativa para uma política desenvolvida pelos governos brasileiros para
branquear a população do país ao encorajar uma massiva imigração europeia, sobretudo no
período de 1890- 1930” (GONZALEZ, 2020, p. 168-169). Esse ideal de branqueamento
surgiu de uma preocupação das elites brancas com o progresso da raça e também com a
intenção de se manter como maioria e garantir-se como grupo diferenciado. De acordo com
certas teorias que circulavam na Europa no final do século XIX, os homens brancos seriam os
responsáveis por esta miscigenação, por esse processo de branqueamento da população, pois
possuíam a “missão” de ter filhos mestiços e cada vez mais claros.
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 47

seu útero para conservar a branquitude (dentro do matrimônio), enquanto


as segundas deveriam cumprir o papel de branquear a população através do
contato sexual com o homem branco. Assim, entendemos a violência sexual
como um dos modos de dominação e uma das características históricas
mais marcantes do racismo: os homens brancos, especialmente aqueles
com alto poder econômico, possuiriam o direito de acesso aos corpos das
mulheres negras. Logo, a exploração sexual das mulheres negras é um fator
determinante na relação de opressão e dominação em nossa sociedade. Davis
(2016, p. 180) afirma que

A escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual quanto no tronco


e no açoite. [...] Em outras palavras, o direito alegado pelos proprietários
e seus agentes sobre o corpo das escravas era uma extensão direta de seu
suposto direito de propriedade sobre pessoas negras como um todo. A
licença para estuprar emanava da cruel dominação econômica e era por ela
facilitada, como marca grotesca da escravidão.

Historicamente, as mulheres negras tiveram seus corpos sexualizados


e reprodutores de trabalho, isto é, possuíam a função tanto de amantes
como de mães, por isso, em seu ensaio, Sexismo e a experiência da mulher
negra escravizada, Bell Hooks (2020, p. 47) escreve que “[...] a mulher negra
foi explorada como trabalhadora do campo, em atividades domésticas,
como reprodutora e como objeto para o assédio sexual perpetrado pelo
homem branco”. Sobre as mulheres negras, Kilomba (2019, p. 141, grifo
do autor) afirma que “[...] durante o colonialismo, seu trabalho foi usado
para nutrir e prover a casa branca, enquanto seus corpos foram usados
como mamadouros, nos quais as crianças brancas sugavam o leite”. Ou seja,
é essa imagem controladora que confina as mulheres negras à função de
serventes maternais, justificando sua subordinação e exploração econômica
ao longo da história. Logo, o racismo construiu a imagem da mulher negra
com tripla função: “a doméstica assexual obediente”, a “prostituta primitiva
sexualizada” (KILOMBA, 2019, p. 141) e a “mulata como objeto sexual”
(GONZALEZ, 2020, p. 165).

É durante os desfiles das escolas de samba que a mulata, em seu esplendor


máximo, perde o anonimato e se transforma em uma Cinderela: adorada,
desejada e devorada por aqueles que já foram até lá justamente para cobiçá-
la. [...] Como acontece em todos os mitos, o da democracia racial oculta
48 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

mais do que revela, especialmente quando diz respeito à violência simbólica


contra as mulheres afro-brasileiras. [...] é devido a conexão com o sistema
simbólico que o lugar da mulher negra em nossa sociedade como um lugar
de inferioridade e pobreza pode ser codificado em uma perspectiva étnica
e racial. Essa mesma lógica simbólica determina a inclusão da mulata na
categoria objeto sexual (GONZALEZ, 2020, p. 165).

Gestos de Leitura

Corpo feminino negro: corpo que se constitui como lugar de conflito


e disputa, não só de saberes e discursos, mas também como um conflito do
sujeito com o seu próprio corpo: ora ele o cultua, ora o nega e o segrega.
Ora se apropria, ora é apropriado pelo outro. Assim como qualquer outro,
o corpo feminino negro é um corpo memória/história atravessado pela
ideologia. Ou seja, um corpo que se marca por uma historicidade do corpo
negro mostrado por uma história escravista8 e por uma cultura que o afasta
através da diminuição.
Desse modo, é possível afirmar que, constantemente, ainda são
recuperados processos de diferenciação, classificação e hierarquização para
fins de exclusão, expulsão e erradicação desses sujeitos.
Sabemos que a escravização se caracteriza pela sujeição de um sujeito
por outro, de forma tão completa, que não apenas o escravizado é propriedade
do senhor, como sua vontade está sujeita à autoridade do dono. Na sociedade
escravista, temos a transformação de um ser humano em propriedade do
outro, a ponto de ser anulado seu próprio poder deliberativo. A perversidade
da escravização como relação de produção organiza a sociedade de forma a
criar um mundo de senhores e escravos, proprietários e propriedade, donos
e mercadorias, sobretudo em países colônias como o Brasil.

Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e de


cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico,
os mundos euro- americanos em particular fizeram do negro e da raça duas

8 Sociedade escravista é qualquer sociedade em que haja a prática do trabalho escravo,


ou seja, qualquer forma de trabalho coercitiva, que geralmente se limita por critérios étnicos
ou socioeconômicos. Segundo Davis (2016, p. 17), “[...] o sistema escravista definia o povo
negro como propriedade”, é uma sociedade/sistema em que os trabalhadores são considerados
propriedades dos seus patrões e não possuem salário.
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 49

versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada. [...] homens


e mulheres originários da África foram transformados em homens-objeto,
homens-mercadoria e homens-moeda. Aprisionados no calabouço das
aparências, passaram a pertencer a outros (MBEMBE, 2018, p. 13-14).

A condição negra permanece sofrendo com golpes racistas até os dias


de hoje, o que marca substancialmente a construção de uma subjetividade e
objetificação dos sujeitos. Desde a Abolição da Escravatura, em 13 de maio
de 1888, negros foram libertos dos cativeiros, mas nem sempre libertos
das condições de escravizados. Entendemos que essas dificuldades são
subproduto do “não-lugar” social dos sujeitos escravizados e dos sujeitos
negros, cujas identidades não correspondiam a um lugar de sujeito,
no corpo social, mas sim, um lugar de peça, de objeto, de mercadoria
(MBEMBE, 2018).
Se partirmos do pensamento que a formação social está relacionada às
diferentes formações ideológicas, as quais estão materializadas nas diferentes
relações de poder que perpassam instituições, como a mídia e a moda,
temos a disciplinarização dos saberes, sustentada pelos efeitos de verdade,
funcionando no conflito das formações imaginárias com as relações de
poder. Assim, o sujeito do discurso, ao mesmo tempo em que é interpelado
ideologicamente pela formação social, inscreve-se em um dos lugares sociais
que lhe foi determinado.
Ou seja, o lugar social que o sujeito ocupa numa determinada formação
social e ideológica, afetada pelas relações de poder, determina o lugar
discursivo através do movimento da forma- sujeito e da própria Formação
Discursiva com a qual o sujeito se identifica. Então, é possível afirmarmos
que é pela prática discursiva que se estabiliza um determinado lugar social.
O conjunto de representações que constituem uma determinada sociedade
está condicionado a uma norma, a qual determina que viver em sociedade é
estar sob a dominação de um conjunto de regras que se fixam, constituem e
estabelecem valores e significações que norteiam a comunicação dos sujeitos
em seus grupos sociais.
Ao analisarmos a representação social dos corpos, é concebível
entendermos a estrutura das sociedades as quais eles pertencem. Isso significa
que os corpos estão sempre investidos de sentidos que estão na origem da
vida social, ou seja, todo corpo é carregado de signos e nele estão inscritos a
cultura de uma determinada sociedade.
50 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

Portanto, é possível afirmarmos que as sociedades constroem


contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que representam a
norma e aqueles que ficam fora dela, às suas margens. Em nossa sociedade,
a norma estabelecida historicamente remete ao homem branco, jovem,
cristão, heterossexual, elitizado, passando a ser a referência que não precisa
ser nomeada, e os Outros serão os sujeitos sociais marcados.
Os corpos das mulheres negras trazem consigo não apenas a história
individual de cada uma, mas também a história coletiva de uma segregação
social, de um ser e estar no mundo, que se faz presente nas mais diversas
formas de sentir e agir. Davis (2016, p. 35-36) destaca que vale sempre
repetir:

[...] as mulheres negras eram iguais a seus companheiros na opressão que


sofriam; eram socialmente iguais a eles no interior da comunidade escrava;
e resistiam à escravidão com o mesmo ardor que eles. Essa era uma das
grandes ironias do sistema escravagista: por meio da submissão das mulheres
à exploração mais cruel possível, exploração esta que não fazia distinção
de sexo, criavam-se as bases sobre as quais as mulheres negras não apenas
afirmavam sua condição de igualdade em suas relações sociais, como também
expressavam essa igualdade em atos de resistência.

A complexidade das representações em torno da população negra


e, principalmente, da mulher negra, indica um alicerce formulado
historicamente no sentido de vigiar os corpos, aprisioná-los em identidades
atribuídas socialmente, construídas por uma rede de significações, que tem
como intuito preservar hierarquias sociais.
Em seu texto, Intelectuais Negras, Bell Hooks (1995) considera que
os estereótipos, enaltecidos por um imaginário racista e sexista sobre as
mulheres negras desde a escravização, impediram que elas fossem vistas além
de seus corpos, impondo-lhes papéis fixos que circulam recorrentemente e
sustentam o sistema de dominação patriarcal e racista que ainda vivem as
sociedades contemporâneas.

Essas representações incutiram na consciência de todos a ideia de que as


negras eram só corpo, sem mente. A aceitação cultural dessas representações
continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como
“símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria,
em termos culturais, tida como bastante distante da vida mental. Dentro
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 51

das hierarquias de sexo/raça/classe dos Estados Unidos, as negras sempre


estiveram no nível mais baixo. O status inferior nessa cultura e reservado aos
julgados incapazes de mobilidade social, por serem vistos, em termos sexistas,
racistas e classistas, como deficientes, incompetentes e inferiores (HOOKS, 1995,
p. 469, grifo do autor).

Assim, como mostrou Hooks (1995), o corpo feminino negro é, a


todo o momento da história, hipersexualizado, estigmatizado, estereotipado,
por meio dos mais diferentes dispositivos. Borges (2012), em seus estudos
sobre os discursos midiáticos em torno do corpo feminino negro, aponta
que há estigmas e estereótipos que parecem se repetir indefinidamente, não
em termos de conteúdo, mas de articulação, fazendo permanecer referências
do passado. Logo, os estereótipos em torno das mulheres negras constituem-
se no entrecruzamento de discursos que repetem e atualizam sua significação
prevalente pela centralidade que conferem ao corpo. É nessa fronteira de
sentidos e através das condições de produção das sociedades capitalistas que
se formaram, desde o início, dizeres comuns do imaginário de construção do
que é ser mulher negra (BORGES, 2012).
É sobre essa formação de imaginários que incide as determinações
do Discurso Fundador, tal como nos ensina Orlandi (2001, p. 13-14), é
“[...] esse efeito que o identifica [o discurso] como fundador: [ou seja] a
eficácia em produzir o efeito do novo no que arraiga, no entanto, a memória
permanente (sem limite). Produz desse modo o efeito do familiar, do
evidente, do que só pode ser assim”.
Esse discurso fundador em torno da raça faz com que as mulheres negras
sejam significadas pelo corpo: um corpo investido de sentidos sexualizados
e racializados ao longo da história. Sentidos estes que são projetados através
das Formações Imaginárias, nas memórias discursivas da sociedade em geral,
fazendo com que os estereótipos em torno dos corpos negros se cristalizem
e permaneçam como regimes de verdade. Em contrapartida, o corpo da
mulher negra é configurado por um funcionamento duplo, em que, de um
lado, é um corpo-mercadoria, um corpo exposto, com valor de troca, e, de
outro, é um corpo (in)visibilidade, constituindo-se em um corpo de lutas e
interdições: resistência/revolta/dominação.
Em tempos de mundialização do capital e de mudanças tecnológicas,
quando destacada pela mídia, a mulher negra e seu corpo são colocados em
um contexto de exploração e/ou exposição, na qual seu corpo é exposto de
52 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

forma sexualizada. Nesse cenário, é importante considerar que os discursos


das revistas de moda influenciam diretamente na construção de imaginários
sobre os corpos dos sujeitos leitores. As revistas, assim como a moda, são
dispositivos de subjetivação dos corpos e dos sujeitos, pois é através desses
dispositivos que os corpos se constituem enquanto espaços de memória no
nível discursivo. Hooks (2019, p. 147) afirma que, nas revistas de moda,

[...] quando a pele é exposta em trajes usados para evocar sexual, a modelo
que os veste não é branca. De acordo com a mitologia sexual/ racista, ele
corporifica o melhor da mulher negra selvagem, temperada com elementos
de branquitude que suavizam a imagem, conferindo uma aura de virtude
e inocência. Na imaginação pornográfica racializada, ela é a combinação
perfeita da virgem e da puta, a sedutora perfeita.

Reinseridos como espetáculo, mais uma vez em exibição, os corpos


das mulheres negras aparecem nas capas das revistas de moda não como
registro de suas belezas, mas para chamar atenção para outras preocupações
(HOOKS, 2020). Tais corpos são protagonistas dessas revistas para que os
leitores percebam que o periódico é racialmente inclusivo, ainda que suas
fotografias hipersexualizem e distorçam suas imagens.
Nas capas que compõem o nosso recorte, as mulheres negras tiveram
seus corpos hipersexualizados, sendo apresentadas como sexy, e extremamente
expostos, ora pela pose/posição em que estavam ao serem fotografadas, ora
pelas partes do corpo evidenciadas na imagem, ora pelo enquadramento da
foto, ora pelas vestimentas, ora pelas expressões faciais.
Figura 1- Sequência de imagens analisadas 1
Outubro de 2015- Dezembro de 2018- Maio de 2019- Julho de 2019-
ed. nº 446 ed. nº 484 ed. nº 489 ed. nº 491

Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.


SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 53

Na edição nº 446 de outubro de 2015, Naomi Campbell protagoniza


a capa juntamente com o estilista Ricardo Tisci e a modelo Mariacarla
Boscono. Nessa imagem, as duas modelos estão com áreas do corpo expostas
devido ao uso de um body e com as pernas por cima do estilista. A mão de
Ricardo Tisci está em cima da perna de Naomi, refletindo uma identidade
submissa por parte da modelo. O mesmo acontece nas edições: nº 484
de dezembro de 2018, protagonizada pela modelo sul-sudanesa Shanelle
Nyasiase; nº 489 de maio de 2019, com a cantora carioca Lellê; e nº 491 de
julho de 2019, protagonizada pela rainha do futebol brasileiro, Marta. Em
todas essas capas, as pernas estão em evidência. Nas três últimas citadas, essa
parte do corpo das protagonistas está à mostra devido às poses das fotografias
e às grandes fendas em suas vestimentas.
De acordo Crane (2009, p. 401), essas posições fazem parte da
“ritualização da subordinação”, na qual a mulher é identificada como um
sujeito passivo e que essa caracterização pode ser construída para agradar os
olhares masculinos. Esse fato acontece fortemente com a imagem da jogadora
Marta, dado que ela foi retirada completamente do seu lugar: o futebol; para
ser transformada em uma super top model e ter seu corpo tomado como
um objeto de consumo. Ou seja, esse componente reafirma mais uma vez a
objetificação do corpo feminino negro: quando se têm corpos de modelos,
padronizados pela mídia e pela moda, como, por exemplo, os de Naomi
Campbell, Shanelle Nyasiase e de Lelê, percebemos que esses corpos já são
formatados e descaracterizados de um corpo padrão afro, pois já tiveram seus
traços afinados, cabelos alisados, entre outros. Porém, quando se tem um corpo
como o de Marta, que vem do esporte, nota-se fortemente como há uma
objetificação extrema em cima desse corpo, uma vez que tiram a jogadora do
seu lugar, descaracterizam seu corpo de jogadora e a colocam como “mulherão
objeto”, fazendo uma pose que remete à figura grega de Apollo.
Outro destaque muito importante dessas capas mostradas anteriormente,
são os enunciados verbais. Porém, para analisá-los, é necessário retomarmos
as discussões de Suzy Lagazzi (2007) em torno do conceito de imbricação
material. A formulação imbricação material interessa-nos principalmente
porque, ao ser mobilizada, desfaz a dicotomia verbal e não-verbal, ou seja,
não se toma as imagens em detrimento das palavras, são as materialidades em
composição que constituem as redes de sentidos possíveis. Foi pensando nesse
movimento que Lagazzi (2007, p. 3) formula a noção de imbricação material
da seguinte maneira:
54 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

O batimento estrutura/acontecimento referido a um objeto simbólico


materialmente heterogêneo, requer que a compreensão do acontecimento
discursivo seja buscada a partir das estruturas materiais distintas
em composição. Realço o termo composição para distingui-lo de
complementaridade. Não temos materialidades que se complementam,
mas que se relacionam pela contradição, cada uma fazendo trabalhar
a incompletude da outra. Ou seja, a imbricação material se dá pela
incompletude constitutiva da linguagem, em suas diferentes formas
materiais. Na remissão de uma materialidade a outra, a não-saturação
funcionando na interpretação permite que novos sentidos sejam reclamados,
num movimento de constante demanda.

Conforme afirma a autora, é possível vermos que, para a AD, o que


dá textualidade e constitui os sentidos é justamente a “imbricação material
entre língua e discurso”.

Quando tomamos para análise materiais que se estruturam por imagens,


músicas, sons, gestos, ... nos colocamos uma questão de cunho teórico-
analítico, já que nesse caso o discurso se materializa em outras relações que
não verbais [...] a materialidade do discurso é a linguagem em suas diferentes
materialidades significantes, quais sejam: a palavra, a imagem, o gesto, a
musicalidade, o aroma, a cor, o enunciado, o corpo, a melodia, a sonoridade
enfim, diferentes relações estruturais simbolicamente elaboradas pela
intervenção do sujeito. Vejamos que a língua concebida como materialidade
do discurso não está associada ao sujeito, que por ela se constitui. Da mesma
forma, o aroma, a cor, a imagem, o gesto... se constituem em materialidade
significante quando em relação com o sujeito, constituindo memória
discursiva e, assim, se constituindo em linguagem (LAGAZZI, 2017, p. 36).

Logo, para a teoria materialista do discurso, os elementos significantes


não são considerados tendo como parâmetro apenas o signo, mas a cadeia
significante, o que permite ao analista buscá-los sempre em uma relação
de movimento, de estabelecimento e entrelaçamento das relações. É um
trabalho que perscruta o acontecimento do significante de um sujeito
afetado na/pela história, tomando a forma material no batimento entre
estrutura e acontecimento.
Na edição nº 446, de outubro de 2015, o enunciado “GANGUE
FASHION” aparece no centro da capa, em primeiro plano, em cima
dos corpos das modelos e do estilista. Ao analisarmos o termo “gangue”,
compreendemos que é um termo derivado do inglês gang que significa
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 55

“grupos formados por criminosos e malfeitores, que se reúnem com o


propósito de concretizar atos que fogem à lei. Os membros das gangues
são conhecidos por gangsters, termo este que também é de origem inglesa,
traduzido como criminoso, contrabandista ou ladrão”9.
Ainda nesse escopo de bando/gangue, retomamos o mito grego de
Procusto10. Procusto era o líder de uma gangue que dizia e moldava o corpo
segundo seus conceitos. Ao analisar o enquadramento da fotografia da capa
de outubro de 2015, edição nº 446, observamos que o estilista, homem,
está no centro da imagem, o que produz o seu papel de liderança e, ao
mesmo tempo, de posse do corpo das mulheres, especialmente, do corpo
negro. O corpo branco não requer sua mão sobre ele, parece já docilizado
e submisso o suficiente, já o corpo da mulher negra só se significa a partir
da mão do homem branco sobreposta sobre si. Os sentidos de gangues
também recuperam uma certa memória de guetificação da população negra,
sobretudo, no continente americano, como os bairros suburbanos dos
Estados Unidos ou as favelas brasileiras.
A capa da edição nº 484, por sua vez, conversa com o enunciado da
capa analisada anteriormente. O enunciado da edição de dezembro de 2018,
“LEVE E SOLTA”, em ambiente natural e árido, mesmo que a veste branca
ao vento produza sentidos de liberdade e leveza, o cindir do seu corpo, o
olhar plongée11 marca o quanto de luta há para um corpo negro assumir o
lugar de capa dessa revista.
E, para finalizar a análise de enunciados das capas, trazemos para o

9 Disponível em: <https://www.significados.com.br/gang/>. Acesso em: 12 de julho


de 2021.
10 “[...] os gregos, ao transitarem entre as cidades de Atenas e Mégara, frequentemente
se deparavam com um bando liderados por Procusto. O líder do bando ordenava que seu
bando prendesse e saqueasse os viajantes, porém, a característica mais marcante desse ‘assalto’
era a crueldade, pois a principal ordem era, obrigar os viajantes a se deitarem em um leito
onde eles tinham seus corpos moldados pela medida de uma cama que possuía as medidas
corporais de Procusto, o líder do bando. Devido a isso, os pequenos viajantes teriam seus corpos
distendidos até atingirem o tamanho da cama e os grandes, cujos membros ultrapassariam as
medidas da mesma, seriam mutilados, de forma a se adequarem ao tamanho do leito. Assim,
todos os corpos tornavam-se uniformes, tendo como ‘padrão’ o corpo de Procusto” (SOUZA,
2017, p. 16, grifo do autor).
11 Plongée: palavra francesa que significa “mergulho. É quando a câmera está acima
do nível dos olhos, voltada para baixo; também chamada de ‘câmera alta’”. Disponível em:
<https://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/>. Acesso
em: 10 de junho de 2021.
56 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

debate a edição nº 491, protagonizada pela brasileira Marta, a rainha do


futebol, eleita seis vezes como a melhor jogadora do mundo pela Federação
Internacional de Futebol (Fifa). O enunciado marca “A VEZ DE MARTA”.
No entanto, nos perguntamos, a vez de Marta do que? Ela é a última da
fila? A bola precisa lembrar o seu lugar, que não é o de uma modelo de
capa de revista, mas de jogadora de futebol, um esporte completamente
monopolizado pelo masculino.
Dando sequência à análise das capas marcadas pela hipersexualização
do corpo feminino negro, temos as edições de nº 453, de maio de 2016, e
nº 479, de julho de 2018, protagonizadas por Naomi Campbelle e Jourdan
Dunn respectivamente, ambas as modelos aparecem através de fotografias
de rosto: Naomi está com o dedo na boca e Jourdan com a língua de fora,
remetendo a um pré-construído de sexualidade e provocação. Hooks (2019,
p. 136) afirma que “[...] o corpo da mulher negra só recebe atenção quando
é sinônimo de acessibilidade, disponibilidade, quando é sexualmente
desviante”. Logo, compreendemos que a regularidade da hipersexualização
é fortemente marcada pela objetificação racista e classista de corpos
socialmente lidos como não brancos e ainda são constantemente vinculados
a formações imaginárias marginalizadas e/ou sexualizadas.
Figura 2- Sequência de imagens analisadas 2
Maio de 2016- Julho de 2018-
ed. nº 453 ed. nº 479

Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.


Analisando todas essas imagens, compreendemos que os textos
midiáticos apontam, como os demais sistemas de subjetivação, para a
padronização dos corpos. Esse movimento de “seleção” de qual corpo pode,
ou não, ser mostrado funciona pela contradição. E é pela contradição que se
dá o movimento de identificação e contraidentificação do sujeito, que por
sua vez, sempre dividido, subjetiva-se pelos esquecimentos, produzindo um
efeito do “bom” e “mau” sujeito, sendo que a primeira modalidade é sempre
identificação plena. Segundo Indursky (2007, p. 80-81),
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 57

[...] a segunda modalidade, caracteriza o discurso do “mau sujeito”,


discurso em que o sujeito do discurso, através da “tomada de posição”,
se contrapõe à forma-sujeito e aos saberes que ela organiza no interior da
Formação Discursiva. Essa segunda modalidade consiste em uma separação,
um distanciamento, uma dúvida, em relação ao que diz a forma-sujeito,
conduzindo o sujeito do discurso a contra-identificar-se com alguns saberes
da formação discursiva que o afeta. [...] Desta superposição incompleta
e, por conseguinte, imperfeita resulta um certo recuo que permite a
instauração da diferença e da dúvida, as quais são responsáveis pela
instauração da contradição no âmbito dos saberes da Formação Discursiva
e, consequentemente, pelo surgimento de posições-sujeito no interior da
Formação Discursiva. Ou seja: esta segunda modalidade traz para o interior
da FD o discurso- outro, a alteridade, e isto resulta em uma FD heterogênea.

Tomando as capas da revista “Vogue Brasil” protagonizadas por


corpos femininos negros como textualidade, é possível marcarmos, neste
instante, a relação heterogênea das Formações Discursivas (FD), em que
de um lado produz um efeito de inclusão, porém, operando pela exclusão.
Nessa contradição de uma FD heterogênea advém por um lado a construção
do discurso “politicamente correto” de inclusão, que diz que todo corpo
deve estar incluso em todas as instâncias. Por outro lado, existe, um discurso
produzido pelo mercado de moda. É, portanto, nas condições de produção
de uma FD heterogênea que se instaura a relação de contradição. Afinal, ao
mesmo tempo em que nasce um movimento de inclusão, existe também
uma forma de formatação, em que os padrões continuam sendo iguais,
porém “contados” de outra maneira. A reiterada circulação desses textos
interdita certos corpos, enfim, não é possível mostrar qualquer corpo.
Nessa perspectiva, podemos pensar ainda o corpo através do conceito
desenvolvido por Neckel (2013) sobre corpo-imagem: “um corpo que se
faz imagem” (NECKEL, 2015, p. 277). Através dessa noção formulada
pela autora, compreendemos que esse corpo-imagem é um resultado
próprio das condições de produção da contemporaneidade e do sistema
capitalista, e o sujeito que nele (no/do corpo-imagem) se constitui,
consequentemente, se expõe e se inscreve em um processo específico de
individua(liza)ção (ORLANDI, 2012). É um corpo pensado/
atravessado/constituído e já circula como imagem. E essas capas
da revista “Vogue Brasil”, mostradas anteriormente, afirmam
constantemente o trabalho do capital sobre os corpos dos
sujeitos negros de forma discreta, quase imperceptível, pois,
58 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

quando a mulher negra aceita ou se coloca em determinadas


posições, vestindo determinadas roupas e fazendo algumas
poses, logo já se coloca como um corpo-imagem para aquele
determinado padrão. Um corpo pensado para ser visto,

[...] o corpo-imagem é um corpo já sujeito de mídia e, por isso mesmo,


um corpo mercadoria, um corpo exposto com valor de troca. Um corpo de
resistência e contradição tanto na instância artística, quanto na instância
midiática. Também concluímos que o corpo é atravessado pela história, pela
memória e pela ideologia temos então um corpo materialidade no qual se
textualizam as lutas de classe e gênero (FERRARI; NECKEL, 2017, p. 221).

Tomando essas imagens como lugares de memória, percebemos que


elas refletem as representações sociais sobre o corpo: indicam, difundem,
sedimentam e legitimam os modos de ver os corpos negros. Ao observar
esse conjunto de capas, percebemos que as regularidades em torno das
fotografias de moda, são sempre as mesmas, indiferente do modelo
corporal que está sendo fotografado. Ou seja, essas marcas recuperam
memórias de como o corpo, seja ele branco e/ou negro, gordo e/ou
magro, deve/pode ser mostrado mercadologicamente, pois o padrão
se estabelece a partir do que é mais rentável para a indústria cultural e
afasta tudo o que é diferente de um padrão pré-estabelecido e fortemente
determinado pelo discurso colonizador branco europeu.

Considerações Finais

Um elemento bastante relevante para a Análise de Discurso é a questão


da memória, esta compreendida não como uma memória coletiva, mas
como uma memória sócio-histórica que constitui os sujeitos e os sentidos.
Diferentemente da memória cognitiva, a memória discursiva não pertence a
um sujeito, ela é uma memória histórica e coletiva constituída de palavras e
enunciados. Segundo Pêcheux ([1983], 2015, p. 44), a “[...] memória deve
ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da ‘memória
individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória
social inscrita em práticas”.
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. | 59

Ou seja, há uma memória de corpo negro e uma memória do corpo


da mulher que não cessa de se inscrever através do enquadramento da foto,
na caracterização da modelo e na composição tipográfica da capa. Dessa
maneira, é pela paráfrase (pela repetição e retomada) que a memória se
materializa, mas é também pela paráfrase, pelas falhas e buracos gerados
pelo dizer, que o sentido deriva e pode ser outro.
O lugar de onde se fala, como se fala, por exemplo, é responsável
por regular esses sentidos. Logo, as condições de produção propiciam
um movimento que determina os sentidos, fazendo com que eles sejam
constantemente (re)visitados e (re)construídos.
A valorização do corpo como imagem de valor simbólico é um dos
elementos mais importantes na constituição da identidade dos sujeitos,
pois ele é interpelado por sentidos oriundos de um olhar sócio-histórico e
ideologicamente determinado. E, com o advento do capitalismo, o corpo
passou a ser compreendido como instrumento de poder, tornou-se mercadoria
e, um meio de criar vínculos e distinções sociais, disponibilizando, assim, ao
sujeito, uma condição de existência.
Entendemos ao longo desta pesquisa que o corpo é resultado de uma
produção histórica, um corpo fabricado a partir de certos padrões vigentes
em determinados períodos. Logo, o corpo feminino é sempre provisório,
está em constante (re)construção, um corpo in suspenso (RUBIN, 2015),
produzido pelos efeitos dos discursos, em que a ideologia e a historicidade
determinam, através de práticas discursivas, quais são os corpos possíveis de
serem vistos e/ou mostrados em determinados espaços.
Logo, compreendemos que as imagens de moda, assim como, as
imagens midiáticas, em torno do corpo feminino negro, são imagens
cristalizadas e preservadoras de uma concepção eurocêntrica e que não
cessam de fornecer e reafirmar os elementos e as normas para a representação
desses corpos. E, ainda, os dispositivos, mídia e moda, investem em retornos,
em repetições de estereótipos, a fim de manter os corpos femininos negros
aprisionados, silenciados, apagados, moldados e (in)visibilizados. Ou seja,
a (in)visibilidade de corpos femininos negros nas capas da revista “Vogue
Brasil” pode ser considerada como um processo de ressignificação das
práticas técnicas e das práticas de gestão social (PÊCHEUX, [1981] 2012)
que sobredeterminam os papéis e os espaços que os sujeitos negros podem
ocupar na sociedade contemporânea.
60 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

A história da colonização do Brasil foi marcada por uma série de


acontecimentos que nos faz refletir sobre a sociedade que foi construída
e reconstruída, através do longo processo histórico, e sobre seu reflexo e/
ou resultado na sociedade atual. Um dos fatos mais determinantes e mais
nocivos para a nossa sociedade foi a escravização de sujeitos vindos de outros
continentes: a escravização é uma história de dizimação, expropriação e
destruição de culturas. Durante esse processo, esses sujeitos foram invadidos
como um pedaço de terra. Seus corpos foram explorados como continentes,
suas histórias receberam novos nomes, suas línguas mudaram e, acima de
tudo, os estereótipos construídos em torno da imagem do sujeito negro se
cristalizou ao longo dos anos e continuam, ainda hoje, produzindo sentidos
de submissão e exclusão. Por isso, encerramos este percurso nos colocando
em uma posição de luta: até quando isso irá acontecer? Até quando essas (in)
visibilidades, apagamentos, silenciamentos e formatações dos corpos negros
existirão?

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62 | A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura

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Como citar este artigo

SOUZA, B. P.; NECKEL, N. A moda brasileira e os corpos em (re)vista:


um gesto de leitura. Fragmentum, Santa Maria, p. 41-63, 2022. Disponível
em: 10.5902/2179219469016. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 65-86, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219468961


Submissão: 05/01/2022 • Aprovação: 20/08/2022
Artigo Original

UMA LUTA QUE NÃO CESSA: SUJEITO-INDÍGENA,


LÍNGUA, MEMÓRIA1

A NONSTOP STRUGGLE: INDIGENOUS-SUBJECT,


LANGUAGE, MEMORY

André Cavalcante
Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, PE, Brasil

Resumo: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o imaginário do sujeito-indígena sobre
língua e povos indígenas a partir da escrita de dois livros Índios na visão dos índios: Fulniô e
Índios na visão dos índios: Potiguara. Livros que surgiram com o propósito de ser um espaço para
que os indígenas falassem por si, um discurso de, para além do já estabilizado no imaginário
brasileiro sobre os indígenas. Embasados teórico-metodologicamente na Análise do Discurso
materialista, serão analisadas sequências discursivas recortadas dessas duas obras, questionando
a constituição da brasilidade e quais os espaços possíveis para se dizer indígena e brasileiro. As
análises nos fazem compreender que o discurso do indígena é atravessado pelo discurso sobre estes
povos e o imaginário destes sobre língua e identificação se faz pela retomada de já-ditos para
refutá-los ou ratificá-los.

Palavras-chave: Discurso; Sujeito-indígena; imaginário; memória; língua.

Abstract: This article aims to discuss the discourse of the indigenous-subject about indigenous
people and language from the writings of two Indigenous books: Indians from the point of
view of Indians: Fulniô and Indians from the point of view of Indians: Potiguara. Books that
have the purpose of being a space for the indigenous to speak for themselves, in addition
to the already stabilized Brazilian imaginary about them. Theoretically and methodologically
based on the Materialist Discourse Analysis, discursive sequences taken from these two works
will be analyzed, questioning the constitution of Brazilianness and what are the possible
spaces to say indigenous and Brazilian. The analyses make us understand that the indigenous
discourse is crossed by the discourse about these peoples, and their imaginary about language
and identification is made by the resumption of the already-said to refute or reinforce them.

Keywords: Discourse; indigenous-subject; imaginary; memory; language.

1 Agradeço a leitura e discussão de Gustavo Pinheiro que muito contribuiu na escrita


deste escrito. Agradeço também o incentivo a esta volta ao meu trabalho de mestrado.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


66 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

“A Amazônia e as Terras indígenas são essenciais para o equilíbrio climático e


vem sendo duramente atacados. Os povos indígenas estão lutando com suas
vidas pelo futuro e presente do planeta”.
(Txai Surui2, 2021)

Uma introdução, um retorno a algumas questões de pesquisa

Neste trabalho, retomo algumas das discussões empreendidas na


minha dissertação acerca do discurso do povo Fulni-ô e Potiguara em relação
ao imaginário sobre o indígena e sobre a(s) língua(s) por eles falada(s).
Metodologicamente, traremos sequências discursivas, recortes do nosso
corpus de pesquisa, recortadas de dois livros: Índios na visão dos índios: Fulniô
e Índios na visão dos índios: Potiguara. Livros que surgiram com o propósito
de ser um espaço para que os indígenas falassem por si, um discurso de, para
além do já estabilizado no imaginário brasileiro sobre os indígenas.
Organizados por Sebastien Gerlic, da ONG Thydewa, esses livros e
outros da coletânea estão disponíveis no site Índio Educa3 e também em
outros sites. Na produção do livro dos/sobre os Fulni-ô, 20 ou 30 pessoas
participaram de uma conversa a respeito do livro, escrito em 2001, para
que eles escrevessem o que quisessem sobre o que é ser Fulni-ô. Também
foi realizada uma entrevista com o pajé e outra com o cacique, líderes
das comunidades indígenas. Junto ao editor Sebastien Gerlic, mais dois
indígenas ajudaram na seleção e editoração do livro, no qual 10 autores
indígenas tiveram seus textos publicados. Essa publicação foi patrocinada
por empresas privadas e pelo governo do Estado da Bahia.
De forma semelhante ocorreu com a produção dos Potiguara.
Contudo, passados 10 anos da publicação de um livro para o outro, há
diferenças na editoração: o livro dos Potiguara tem um maior número de
páginas, uma formatação mais estruturada, edição conjunta de Gerlic e Peter
Zoettl e a parceria com o Ministério da Cultura. Nessa segunda produção,
há a participação de 18 autores potiguara.

2 A apresentação de Txai Suruí na COP26 pode ser acessada no seguinte link https://
www.youtube.com/watch?v=1gnUH7HNBAU, acesso em 23/12/21. Parte de sua fala foi
traduzido pela indígena e publicado na sua página do Instagram, https://www.instagram.com/
txaisurui .
3 Disponível em:< https://www.indioeduca.org/>. Acesso em: 29 dez. 2021.
CAVALCANTE, A. |
67

Objetivamos, então, a partir do aparato teórico-metodológico da


Análise do Discurso materialista, refletir sobre o imaginário do sujeito-
indígena sobre língua e povos indígenas na produção desses livros
supracitados. Com isso, também nos questionaremos sobre a subjetivação
desses sujeitos na contemporaneidade.

Discursos em confronto

Txai Suruí, ativista indígena do povo Paiter Suruí, grupo indígena


dos estados de Rondônia e Mato Grosso, destacou-se por sua fala na
Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26),
em novembro de 2021, em Glasgow, na Escócia, quando teceu críticas
sobre a política brasileira em relação a tais mudanças climáticas. Como
trouxemos na epígrafe, recorte da fala dela na COP26, também traduzida
e postada em suas redes sociais. Txai destacou importância da Amazônia e
das Terras Indígenas para o equilíbrio climático. A indígena, em suas redes
sociais, denuncia os ataques que indígenas sofrem de grileiros, garimpeiros
e de uma política nacional anti-indígena. Em outro trecho de sua fala na
conferência, Txai denuncia: “Nós, povos indígenas, estamos na linha de
frente da emergência climática, lutando com nossas vidas e devemos estar no
centro dessa discussão. Sem povos indígenas não existe equilíbrio climático”
(SURUÍ, 2021).
Este enunciado/denúncia retoma algo recorrente: a luta dos indígenas
com suas próprias vidas, seus corpos colocados no campo de batalha, “na
linha de frente”. Sem o cuidado desses povos com a Amazônia, com as terras
brasileiras, desde sempre indígenas, não há a possibilidade de um equilíbrio
climático, uma vez que as relações com a terra e com a floresta, para os
povos indígenas, são distintas da forma como os não-indígenas lidam com
elas. São formas diferentes de significá-las. Txai e outras indígenas presentes
na COP26 sofreram vários ataques nas redes sociais, críticas e ameaças a
suas existências e lutas. Essas formas de silenciar os indígenas retomam um
imaginário sobre esses povos.
Tal imaginário está vinculado a cinco ideias equivocadas apontadas
por Freire (2009), quais sejam:
1. O indígena genérico;
2. Culturas atrasadas;
68 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

3. Culturas congeladas;
4. Os indígenas pertencem ao passado; e
5. O brasileiro não é indígena.
No primeiro equívoco, os indígenas são vistos como um grupo
homogêneo, com as mesmas crenças e língua. Há, dessa maneira, um
apagamento de cerca de 200 etnias e 188 línguas indígenas (FREIRE,
2009). No segundo, não é sabido ou se desconsidera os diversos saberes
produzidos por esses povos. A produção de ciência, arte, literatura e música
pelos indígenas não fazem parte do que é considerado como cultura. O
terceiro equívoco diz respeito a uma imagem cristalizada do indígena como
sujeito isolado e nu nas florestas. No quarto, pensa-se que os indígenas
vivem no passado, são seres primitivos e são um obstáculo à modernidade
ou, ainda, não existem atualmente. Por último, a quinta ideia equivocada é
que o indígena não é brasileiro, nega-se, assim, a nacionalidade desse povo.
Na história do Brasil, mesmo que em alguns momentos não nos demos
conta, há sempre uma luta diária de sobrevivência dos povos originários,
resistência à invisibilização pelo Estado, que remonta à época da invasão
dos portugueses. Nos séculos XX e XXI, as disputas e violências contra os
indígenas continuam, como podemos lembrar: a morte Galdino, do grupo
Pataxó, queimado vivo, em 1997, na capital federal; a divulgação da carta
de genocídio dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, em 2012; os
protestos contra a destruição do antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro,
entre 2006 e 2013, e contra a aprovação da PEC 2154, por diversos povos
indígenas, inclusive nas redes sociais, entre 2014 e 2015, a luta contra a PL
490 que prevê a alteração da demarcação das terras indígenas, entre outros
episódios, relembraram, outra vez, aos incautos a existência do sujeito-
indígena, aquele que sempre esteve nessas terras, à margem, mas produzindo
sentidos, resistência e não submissão.
Sentidos e(m) disputas que retomam o discurso da colonização, a
quem pertence as terras, quem são esses sujeitos, qual o imaginário desses
sujeitos sobre si mesmos, sobre a brasilidade, sobre as línguas no Brasil. Parte
das discussões que faremos aqui retomam algumas pesquisas minhas que, até
então, tinham sido deixadas de lado, como o projeto de iniciação científica
4 Projeto de emenda Constitucional (PEC) que consiste numa revisão da decisão da
demarcação das terras indígenas do poder executivo para o legislativo. Ao longo da história do
Brasil, nos deparamos com diversos projetos e emendas com vistas a tomar (mais uma vez) as
terras indígenas, como ocorre hoje com o Projeto de Lei 490.
CAVALCANTE, A. |
69

“Processos de identificação, sujeito de resistência e produção de discursos


sobre a temática Guarani-Kaiowá”, realizado entre 2013 e 2014, e minha
dissertação de mestrado “O imaginário em torno do ‘ser índio’ no Discurso
do/sobre o Sujeito-indígena: Entre o Assujeitamento e a Resistência”
defendida em 2017, realizados na Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE)5.
A princípio, a partir de Mariani (1996), é necessário discutir a relação do
discurso de e discurso sobre, para adentrarmos na temática em tela. Para a autora,
o discurso sobre

[...] são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos, portanto,


no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os discursos sobre são
discursos intermediários, pois ao falarem de um discurso de (discurso origem),
situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,
representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão
de conhecimentos, já que ao falar sobre transita na correlação entre o narrar,
descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um
campo de saberes já reconhecidos pelo interlocutor. Do nosso ponto de vista,
o discurso jornalístico, sobretudo na sua forma de reportagem, funciona como
uma modalidade do discurso sobre, pois coloca o mundo como objeto. [...] E com
isto estamos afirmando, em decorrência, que o discurso jornalístico contribui na
constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado bem
como na constituição da memória do futuro (MARIANI, 1996, p. 64).

As discussões de Mariani nos ajudam a compreender como os discursos


sobre podem institucionalizar e cristalizar sentidos, a partir de um lugar de
poder. A produção e divulgação dos conhecimentos sobre os sujeitos indígenas,
por exemplo, em grande parte das vezes, é produzida por não-indígenas que
veem esses sujeitos como objeto. Uma voz outra que se vale de instituições para
produzir sentidos sobre o outro. A respeito disso, podemos pensar na colonização
linguística que, segundo Mariani (2004, p. 23),

[...] remete para a coexistência de povos com histórias e línguas distintas em


um dado momento histórico. Colonizar supõe um contato entre diferenças,
contato esse que se dá pelo uso da força, não se realizando, portanto, sem tensões
e confrontos. Deve-se, então, dizer que tal noção apresenta mais de um sentido,
conforme seja usada no discurso do colonizador ou no do colonizado.

5 A pesquisa de Iniciação Científica e a Dissertação de Mestrado foram orientados


pela Prof. Dr. Evandra Grigoletto.
70 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

Conforme a autora, o discurso do colonizador materializa


a ideologia eurocêntrica e justifica o povoamento, a expansão do
território português e, por conseguinte, a proteção das novas terras
conquistadas. Tal discurso se sobrepõe ao discurso dos povos nativos;
pela força física e pela escrita da língua do colonizador, impõe-se “[...]
a força institucionalizadora de uma língua escrita gramatizada que
já traz consigo uma memória, a memória do colonizador sobre a sua
própria história e sobre a sua própria língua” (MARIANI, 2004, p.
24).
O Estado, a colonização e as brasilidades não se dão sem uma
discussão sobre a língua, conforme se discute em várias teorias, como
na Análise do Discurso e na História das Ideias Linguísticas. Ao
exemplo de Leal (2012) que discutiu que o gentílico brasileiro não
comporta os índios, pois há uma oposição entre falar “brasileiro” e
falar “índios”. Nessa seara, focando especificamente a construção e
história do gentílico do Brasil, Ferrari e Medeiros (2012) dizem que
essa adjetivação vai trabalhando sentidos sobre aqueles que o carregam
e, retomando a pesquisa de Mazière e Gallo (2006 apud FERRARI;
MEDEIROS, 2012), ratificam o imaginário que nascer no Brasil
não equivale a ser indígena do Brasil, pois só há três maneiras de ser
brasileiro: ter nascido no Brasil, quando já considerado como Estado,
naturalizar-se como brasileiro ou ter vivido certo tempo no País.
Dessa maneira, a existência dos indígenas anteriormente à invasão
portuguesa é silenciada.
É importante marcar novamente a diversidade dos povos
indígenas brasileiros e também a multiplicidade de formas de se
identificar como tal. Aqui faremos uma breve apresentação histórica
sobre dois desses povos, os Fulni-ô e os Potiguara, dos quais
analisaremos seus discursos materializados em dois livros já citados.

Grupos indígenas do nordeste do país: os Fulni-ô e os Potiguara

De acordo com o Instituto Socioambiental6, embasado na literatura


histórica e antropológica existente sobre os Fulni-ô, não se sabe ao certo a

6 Outras informações em: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/fulni-o>. Acesso


em: 03 ago. 2016.
CAVALCANTE, A. |
71

data em que esse grupo indígena foi aldeado7. São também chamados de
Carnijós ou Carijós e sabe-se que, desde o século XVIII, já se chamavam assim.
Possivelmente e, como contam eles, nessa aldeia, fundiram-se diferentes
grupos étnicos que se organizaram em forma de clãs e, posteriormente,
adotaram o nome do grupo anfitrião, Fulni-ô. Nessas fontes encontradas
pelo instituto, os dados mais antigos acerca desse povo são do ano 1749,
registrados em “Informações Geral da Capitania de Pernambuco” (1906),
que contabilizava 323 pessoas desse grupo.
Ainda conforme o Instituto Sociambiental, durante o período colonial,
os indígenas que habitavam o litoral falavam majoritariamente línguas Tupi;
já os que viviam em outros lugares falavam outras línguas, vistas, para os
colonizadores, como línguas mais truncadas e de difícil aprendizado. Eram
chamados de tapuias. A partir disso, a língua tupinambá, popularmente
conhecida por tupi, foi tomada como protótipo de língua indígena brasileira.
Nessa mesma época, esses povos começaram a ser afastados para o interior
do Brasil, e a região litorânea transformou-se no lugar dos colonizadores.
Assim, vários aldeamentos e povoados indígenas tiveram como sede as áreas
mais interioranas dos estados.
Supostamente, o aldeamento dos Fulni-ô ocorreu no período pós-
expulsão dos holandeses de Pernambuco. A partir de então, as disputas
por terra e a relação conflituosa entre os indígenas e não-indígenas se
intensificaram.
Em trabalho anterior (CAVALCANTE, 2013), comecei a observar as
práticas de linguagem dos Fulni-ô, os quais vivem no território indígena em
Águas Belas, Pernambuco, a 270 km de Recife. Estão agrupados na família
linguística Macro-jê e são falantes da única língua indígena nordestina8. É
importante salientar que a aldeia indígena está muito próxima da cidade,
500 m, e essa relação entre indígenas e não-indígenas é bastante conflituosa,
por questões políticas, religiosas, de propriedade da terra, etc. Portanto, para
os fulni-ô, é de extrema importância marcar a sua identidade em oposição
7 Desde os primeiros anos de colonização, havia a política de aldeamento indígena,
que consiste no agrupamento de índios que, pela legislação, tem sua “liberdade” garantida. No
entanto, o que se observou é que os aldeamentos facilitavam a busca de mão-de-obra para os
colonos e jesuítas, além da interferência cultural e religiosa.
8 Os estudos indigenistas e as fontes pesquisadas discutem que, com a exceção das
línguas indígenas no Maranhão, o Yaathê é a única língua indígena nordestina (SILVA, 2019).
Há, pelo menos, 4 línguas indígenas no Maranhão, como guajajara, guaja; tembé e ka’apor,
entre Maranhão e Pará, todas da família linguística Tupi.
72 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

aos habitantes da cidade, os não-indígenas e alguns indígenas que não vivem


na aldeia.
Discuti, também, no referido trabalho que

Fulni-ô significa em Yaathê “povo que vive ao lado do rio”. Esses índios
têm duas moradias: a primeira é a reserva, próxima à cidade, onde está
localizada a aldeia que possui aproximadamente 11 mil hectares, com lotes
individuais; a segunda é um local mais distante onde passam três meses
do ano para a prática do ritual religioso Ouricuri. Tal ritual é uma prática
necessária aos indígenas para se afirmarem como Fulni-ô. Por isso, é sigiloso,
não permitido aos não-índios. Esta prática religiosa é realizada em Yaathê
que, segundo a FUNASA (2010), é falada por 4.336 pessoas, tendo funções
rituais e sociais. Eles foram catequizados de 1681 a 1685 e cederam parte
de seu território aos seus catequizadores. Assim, foi construída a igreja e
formou-se a cidade de Águas Belas. Mas, com os conflitos ocorridos ao longo
do tempo, só em 1877 as terras foram demarcadas. Há, na aldeia, escolas
bilíngues para um povo também bilíngue.[...] O interesse da linguística
pelo povo fulni-ô, sobretudo pela língua deles, não é novo. Já houve muitos
outros estudos sobre essa língua indígena (Lapenda, 1968; Costa, 1993;
Cabral, 2009 e outros), porém esses estudos abordaram a língua Yaathê
apenas do ponto de vista da fonologia, morfologia e antropologia. Desses
estudos observou-se que, segundo Costa (1993), a identidade étnica desse
povo é preservada e definida a partir de dois aspectos da cultura: a língua e a
religião. (CAVALCANTE, 2013, p, 1-2)

Quando estive, em 2013, na aldeia, percebi alguns desses fatos que


mencionei no trabalho anterior acima. O primeiro deles é a importância da
língua, ligada à espiritualidade. Acreditam que seu Deus a deu para que eles
pudessem se comunicar com Ele; sem ela não haveria a religião indígena,
ritual restrito, o qual não deve ser comentado com os não-indígena. Além
disso, ser bilíngue é uma necessidade atual nas suas relações externas à aldeia.
É importante nos questionar o porquê do ritual indígena começar a partir
de uma missa, assim como o porquê da presença de uma igreja católica no
centro da aldeia, algo que também ocorre com os povos Potiguara.
Conforme Gaspar (2009), o Ouricuri ocorre anualmente de setembro
a novembro e não é permitida a entrada de não-indígenas (mesmo que
tenha algum parentesco com algum Fulni-ô, é preciso ser filho de pai e mãe
Fulni-ô para ser reconhecido por eles como um membro do grupo), pois esse
território é sagrado, sendo localizado a 5 km da aldeia principal. Para lá, eles
levam quase todos seus pertences e seus animais domésticos. O pouco que
CAVALCANTE, A. |
73

é contado sobre o ritual é que os homens dormem em um local reservado,


chamado de Juazeiro Sagrado, onde as mulheres não podem entrar. Durante
o evento, as rivalidades entre eles são deixadas de lado e relações sexuais e
ingestão de bebidas alcoólicas são proibidas. Até os anos trinta, do século
passado, as casas desses indígenas eram construídas de palha de ouricuri.
Atualmente suas habitações são individuais, de taipa ou alvenaria. E, na
aldeia, as ruas não são calçadas, mas há escolas, posto de saúde e uma igreja
no centro do povoado.
Os fulni-ô vivem do artesanato, agricultura, pesca e caça e alguns
trabalham na cidade, porém sofrem preconceito em meio à comunidade
urbana. Como afirmação da sua cultura, eles se manifestam através da dança
e da música, o Toré, a mais tradicional, e a Cafurna, que tem influências do
coco de roda.
Essas práticas são traços da identificação desses povos. Pensar a
identificação do indígena, como veremos nas análises, não se dá apenas em
oposição ao branco, mas também a outros grupos indígenas (ORLANDI,
2008). A este respeito, assevera Rodrigues (1986, p. 17):

Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de


nós e entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilidades
tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e
filosofia peculiares, resultantes de experiências de vida acumuladas e
desenvolvidas em milhares de anos. E distinguem-se de nós e entre si por
falarem diferentes línguas.

Como aponta o autor, a diferença principal entre os diferentes grupos


indígenas é a história de cada grupo; a utilização de adereços, artesanatos e
tecnologias diferentes, além das crenças, lendas, religiosidade, contato com
os brancos. Assim, são diferentes maneiras de simbolizar, produzir sentidos
e se subjetivar.
Já os Potiguara, grupo indígena do nordeste brasileiro, originalmente,
falavam o tupi, língua da família linguística Tupi-Guarani, mas, atualmente,
falam apenas o português e tentam reaprender a falar sua língua nativa.
De acordo com o Instituto Socioambiental, tal grupo se autodenomina
Potiguara, remetendo ao significado de “comedores de camarão”, mas
também são chamados de índios de Acajutibiró e de São Miguel.
Constituem 32 aldeias nos municípios paraibanos de Baía da Traição,
74 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

Rio Tinto e nas áreas urbanas de Baía da Traição e Mundo Novo. Em


2004, os Potiguara eram 10.837 pessoas, segundo estimativa da FUNASA.
A forma de seu aldeamento tem uma estreita relação com os processos
históricos dos aldeamentos fomentados pelos missionários, já em contato
com os não-indígenas há mais de 500 anos, pois a história de contato com
os brancos (portugueses, franceses e holandeses) se deu desde o início do
processo colonizador.
A economia deles, hoje, é baseada na agricultura, pesca, caça, coleta
de crustáceos e moluscos, e na criação de animais. Em quase todas as aldeias
desse grupo há uma Igreja e seu santo padroeiro, assim, sempre há festas dos
santos católicos. Quando há missa, cerca de uma vez ao mês, os indígenas
a frequentam e também participam das festividades dos padroeiros de cada
povoado. As igrejas foram construídas no centro do povoado indígena e
as residências paralelamente, onde moram, sobretudo, a família nuclear e
monogâmica, próximo de escolas e mercearias.
Assim como em grande parte dos grupos indígenas nordestinos, o
toré é um importante ritual sagrado, com o intuito de eliminar as diferenças
internas do grupo e celebrar a amizade com os demais povos. No caso dos
Potiguara, tal ritual é entendido, por eles, como uma dança que os permite
aprender que fazem parte da coletividade e da tradição, possuindo, portanto,
um passado em comum. As letras das músicas cantadas no toré evocam, além
da religiosidade católica, o mar, os eventos como guerras, seres da natureza
e as figuras míticas. Diferentemente de outros grupos, este não faz seu ritual
com bebida extraída da jurema, mas com catuaba e cachaça. E, durante esse
evento, há rezas católicas, discurso do cacique e a dança propriamente dita,
além de divisão de carne e bebida.
Do ponto de vista linguístico, o trabalho de Simas (2013) faz uma
análise da educação e política linguística entre os Yanomami e os Potiguara,
estabelecendo a diferença que o primeiro grupo, que é bilíngue e trabalha
nas escolas com o ensino da língua yanomami e o português brasileiro, e os
Potiguara, que tentam ensinar a língua “morta”, o tupi, aos estudantes, para
que assim voltem a ter, de fato, uma língua nativa.
Na pesquisa de Simas (2013), o foco são as políticas linguísticas
adotadas em uma escola Potiguara. Para tanto, a autora explorou certos
dados etnográficos sobre esses sujeitos, apontando algumas informações,
como por exemplo: como as aldeias são urbanas, existem moradores
não-índios nelas; do ponto de vista escolar, a educação potiguara tem
CAVALCANTE, A. |
75

dificuldades com a implementação da língua nativa, por ser uma língua


morta, o tupi. A escolha por essa língua se deu por motivações da questão
identitária indígena e não por razões sociocomunicativas, revelando falta de
planejamento na implementação da língua. Outros problemas são a falta
de material didático, os professores não são proficientes na língua indígena
ensinada, além desses povos terem a língua portuguesa como língua materna
há, pelo menos, 250 anos.
Tal grupo chama a língua Tupinambá de língua Tupi, assim como
também é nomeada no senso comum. Essa nominação é reatualizada devido
ao curso dessa língua ministrado pelo professor da Universidade de São
Paulo – USP, Eduardo de Almeida Navarro. Com esse curso, segundo Simas
(2013), a presença dessa língua segunda (L2) na escola tem melhorado a
autoestima dos Potiguara, apesar de apresentar alguns problemas.
Passamos agora às análises dos discursos dos indígenas.

As análises: a visão indígena sobre língua e povo indígena

Dividiremos essas análises em dois blocos. O primeiro diz respeito às


sequências discursivas do livro Índio na visão dos índios: os Fulni-ô; o segundo
bloco tratará do livro dos Potiguara.
BLOCO 1

SD1. Ainda hoje nos índios mesmos pas-


sando por mudanças convivendo com os
brancos nos não esquecemos nossas danças
nossos costumes e nossos idiomas que é
muito importante para todos nós índios.

SD2. Vejo o índio como uma criação divina


de (Eedjadwa, Deus) com forças, culturas e
poder de criar verdadeiras verdade. O índio
e um ser puro verdadeiro sem maldade sem
ambição sem mentiras. Somos forças viva
que talvez nos não sabemos a grande importân-
cia.
76 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

temos sabedoria de viver e fazer viver

O que (Eedjadwa Deus) nós dar quando


digo que sabemos fazer viver o que (Eedja-
dwa Deus) nos dar me refiro a nossa cultura
nossa língua o Yaathe e a fé que viver até
hoje, é nosso poder de viver. Para ser índio
não é preciso andar pintado ou trajado é
preciso mostrar sua língua Iaathe.

SD3. Eles botaram a santa em um lago onde


os índios gostavam de pescar. Quando vi-
ram pensaram que era uma pessoa, foram até
ela, agarraram-na e decidiram leva-lá para a
aldeia. À noite, um branco tirou a imagem
às escondidas e voltou a coloca-la na lagoa.
Depois disso se repetir por vários dias um ín-
dio contou o acontecido para o padre que lhe
disse: “Meu filho isto significa que a Santa
está pedindo terra” Foi assim que os bran-
cos tomaram nossas terras.

Na SD1, o sujeito-indígena reconhece que há mudanças na história


e que apesar disso eles não esquecem a cultura, a dança, o idioma. Os usos
linguísticos no plural, “nossos idiomas”, “nós índios”, produzem um efeito
de que o sujeito-indígena fulni-ô está falando não só do seu próprio grupo
étnico, mas dos indígenas em geral. Sobre essa identificação como indígena,
podemos pensar conforme Orlandi ([1998] 2006, p. 204): “[...] a identidade
é um movimento na história”, portanto, ser indígena hoje é bem distinto do
que já foi um dia.
Nessa SD, é marcada a importância da língua. Para os Fulni-ô,
como comentamos na seção anterior, ter a língua indígena ainda é um dos
critérios para ser considerado fulni-ô. A língua, para o sujeito-indígena
fulni-ô, é, então, um bem crucial na identificação do seu povo, ela precisa
ser protegida. Na SD2, há outros dizeres sobre o sujeito-indígena fulni-ô e,
por conseguinte, sobre a língua yathee.
Em SD2, o indígena é uma criação de Deus, sendo assim, é “um ser
puro verdadeiro sem maldade sem ambição sem mentiras”. Nos deparamos
CAVALCANTE, A. |
77

com um imaginário indígena sobre si mesmos, semelhante ao pensamento


do bom selvagem de Rousseau. São dizeres que reforçam a imagem do
indígena como puro e passivo. Já para pensar a relação de religião e língua,
o sujeito-indígena fala que “para ser índio não é preciso andar pintado ou
trajado”, “é preciso mostrar sua língua iaathe”, ou seja, para ser Fulni-ô,
é necessário saber a língua indígena. Língua ligada à fé, possibilidade de
“poder viver”.
A partir dessas sequências discursivas representativas do livro sobre o
Fulni-ô, entende-se que é preciso resistir aos sentidos dominantes sobre o
que é ser índio; não é preciso ter corpo pintado ou se vestir como tal, mas é
preciso ter a língua. No caso desse grupo indígena, preservar a língua nativa,
enquanto a língua do Estado, na qual são escritas as leis, apresenta mais
prestígio social, é uma forma de resistência.
A língua de madeira é, para Gadet e Pêcheux (2010), a língua de
dominação, pela qual o Estado absorve e anula as diferenças, produzindo,
por sua vez, uma política de invasão que se efetiva pelo poder do Estado.
Portanto, o Yaathê representa uma língua de resistência, na qual se pode
produzir sentidos outros, que escapam à determinação da língua oficial do
Estado. No entanto, para os Fulni-ô, em alguns momentos, na luta por
direitos e visibilidade, eles se submetem àquela língua do Estado e produzem
discursos no português brasileiro, pela necessidade de diálogo com os não-
indígenas.
Na SD3, o sujeito-indígena narra como “eles”, “os brancos”, tomaram
as terras indígenas. Nesses discursos, grande parte das vezes, o invasor não
é denominado explicitamente, é da ordem do já-sabido, dos não-ditos. Já a
santa, falada pelo indígena, é Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos
fulni-ô, a qual tem uma igreja no centro da aldeia em sua homenagem.
Inscrito no discurso indígena há uma crítica ao papel da Igreja na dominação
indígena. A interferência cristã na vida indígena, em muitos casos, funciona
como um “apagamento do índio da identidade cultural nacional [...]
escrupulosamente mantido durante séculos. E se produz pelos mecanismos
mais variados, dos quais a linguagem, com a violência simbólica que ela
representa, é um dos mais eficazes” (ORLANDI, 2008, p. 66).
Como aponta a autora, são diferentes as formas de violência simbólica
à cultura indígena. No caso dos Fulni-ô, a questão mais latente é sobre a terra
e a imposição da religião europeia, com investidas ao apagamento da língua
nativa, o que, nesse caso, não foi tão eficaz, pois a língua nativa sobrevive.
78 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

Essas foram estratégias de silenciamento do indígena e apagamento da sua


existência na constituição identitária do povo brasileiro, mas que não se
deram sem resistências, já que há, como afirma Pêcheux (2009), possibilidade
de falhas na interpelação ideológica.
Essas sequências discursivas analisadas se inscrevem em uma rede de
dizeres do/sobre os indígenas, isto é, em uma formação discursiva (FD),
que aqui a nomearemos como FD indígena. Este conceito é retomado por
Haroche, Pêcheux e Fuchs ([1971] 2011, p. 27) como “[...] aquilo que pode
e deve ser dito [...] a partir de uma posição dada”.
Em uma determinada conjuntura sócio-histórica, os sujeitos
discursivos inscrevem seus dizeres nas FDs, retomando já-ditos do
interdiscurso (PÊCHEUX, [1975] 2009), a rede do dizível, fazendo com
que seus dizeres produzam sentidos a partir da sua posição e da identificação
com sentidos que podem e devem ecoar dentro daquela FD. No entanto,
essas formações discursivas são heterogêneas, abrigando diversas posições e
dizeres presentes em outras FDs, como veremos mais à frente.
Partimos agora para o segundo bloco, no qual analisaremos alguns
dizeres inscritos no livro Índios na visão dos índios: Potiguara9.
BLOCO 2
SD4. Foi com a Internet que conseguimos
estar mais conectados com a sociedade en-
volvente, tomando conhecimento de tudo
que acontece fora de nossas aldeias, em uma
amplitude maior do que a televisão e o rádio
nos proporcionam. Com esse meio de comu-
nicação é que também foi possível estabelecer
uma relação mais próxima com outros povos
indígenas e, dessa forma, fortalecer o nosso
movimento. [...] Muitos podem pensar que
o contato com as novas tecnologias, entre
elas a Internet, nos torne “menos índios”,
e também nos distancie da nossa cultura, mas
a meu ver isso não ocorre. Esse pensamento
existe porque as pessoas ainda têm em mente
9 Disponível em: <http://www.thydewa.org/downloads/potiguara.pdf>. Acesso em:
22 dez. 2021.
CAVALCANTE, A. |
79

o estereótipo de índio do passado, aquele


que andava nu e vivia no mato, e nos ver
hoje, com as mudanças pelas quais passa-
mos, incomoda.

SD5. Durante muitos anos ficamos na espe-


rança de conseguir falar novamente nossa
língua ancestral, até que o sonho se tornou
realidade... Eduardo Navarro de Almeida
[...] nos auxiliou na revitalização de nossa
língua Tupi. [...] Interessei-me mais e mais
pelo Tupi e consegui aprender o básico. Não
quis ficar só para mim. [...] Estou muito feliz
por poder partilhar o que aprendi e ao mes-
mo tempo aprender novamente com todo
o alunado.

A língua Tupi é parte indispensável da na-


ção Potiguara e espero que todos os paren-
tes do nosso povo guerreiro se interessem
pela recuperação da nossa língua original e
de toda a cultura com carinho e amor, por-
que um povo sem língua e sem cultura não
é um povo.

SD6. Nossa pintura retrata a história Poti-


guara. Com ela trazemos no corpo a marca
de nossos antepassados. É um meio de nos
revestirmos de nosso valor cultural. Todos os
momentos em que vamos realizar o ritual
Toré existe a preparação anterior onde fa-
zemos uso do Jenipapo e do Urucum para
cobrirmos o nosso corpo. [...] Para nós Po-
tiguara estar com nossos corpos pintados é
muito importante para realizarmos nosso
ritual.

Na SD4, o sujeito fala sobre a internet na vida indígena, seus


80 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

benefícios e o que o não-indígena pensa a respeito disso. Com ela, “foi


possível estabelecer uma relação mais próxima com outros povos indígenas”.
Através dela, como afirma o sujeito-indígena, eles puderam se comunicar
com outros povos mais distantes e se organizarem em grupos na internet,
produzirem material e informações sobre sua história. Assim, pode-se
perceber que a internet funciona como um acontecimento nos discursos
indígenas, propulsionando a produção de discursos, de sentidos outros e
outras maneiras de subjetivação desses sujeitos.
A utilização da internet, para o indígena, produz uma imagem do outro
sobre si de que eles podem se tornar “menos índios”, e também se distanciar
de sua cultura. No entanto, para o sujeito-indígena, isso acontece porque as
pessoas têm um imaginário sedimentado sobre o que é ser indígena, e esse
imaginário produz uma imagem do indígena baseada em estereótipos, já que
índio “anda nu e vivia no mato”. Há, sempre, uma luta ideológica a fim de
romper com o imaginário do senso comum sobre esses povos.
A SD5 traz à tona a questão da língua indígena e sua relação nos
discursos dos Potiguara. Para esse sujeito, sempre foi esperança de o povo
indígena falar novamente a língua ancestral. Até que, para eles, por meio
do curso de um professor não-indígena da USP, eles puderam “revitalizar”
a língua Tupi. No entanto, esse sujeito aprendeu o básico e ensina para seus
alunos, o que não garante a revitalização da língua Tupi10.
Simas (2013), como exposto na primeira seção, refletiu sobre a
problemática do ensino da língua tupi como L2. Trata-se de uma língua
“morta”, ensinada por alguém que não é falante nativo da língua e que
apresenta poucos materiais didáticos para seu aprendizado. Além disso, o
Tupi jesuítico ensinado nas escolas potiguara é bem distinto da antiga língua
desse povo, assim como o é do nheegatu, língua geral amazônica, também
de origem do tronco Tupi-Guarani. Na continuidade, ao falar sobre a língua
indígena, o sujeito-indígena diz: “A língua Tupi é parte indispensável da
nação Potiguara e espero que todos os parentes do nosso povo guerreiro se
interessem pela recuperação da nossa língua original e de toda a cultura com
carinho e amor, porque um povo sem língua e sem cultura não é um povo”.
Observa-se, nos dizeres da SD5, a presença de algumas contradições
constitutivas de todo discurso. Neste caso, ao mesmo tempo em que o
10 Reaprender a língua indígena não consiste numa prática aleatória, mas é uma
sugestão no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, do MEC, como uma
política de afirmação da identidade dos povos indígenas. (CAVALCANTE, 2016)
CAVALCANTE, A. |
81

sujeito afirma que a língua indígena é indispensável para qualquer povo,


inclusive os Potiguara, ele admite que eles ficaram muitos anos sem sua
“língua ancestral”. Mesmo que houvesse a memória da língua, os Potiguara
passaram mais de 250 anos sem contato com a língua Tupi. Da mesma
maneira que o Português de Portugal não é o mesmo do Português brasileiro
pois há outra memória, as palavras ganham uma historicização diferente,
produzindo sentidos outros em função das novas condições de produção;
o Tupi “revitalizado”, hoje ensinado nas escolas indígenas, também não é
a mesma língua ancestral. Uma língua que não é mais a língua nativa, mas
uma outra, que significa diferente, e faz com que o povo Potiguara também
a simbolize de um outro modo.
Ao finalizar, o sujeito-potiguara, para enfatizar a importância da
língua, diz que “um povo sem língua e sem cultura não é um povo”. Ao se
referir a essa língua como a língua nativa, ele põe em xeque a sua imagem
como indígena e dos demais indígenas que não a têm mais. Faz-se necessário
questionar: Existe um povo sem língua? E sem cultura? Pelos não-ditos,
sabe-se que o povo a que o sujeito se refere são os indígenas, ou outros
grupos indígenas que não eles. Assim, mais uma vez, este dizer reafirma
a língua nativa e a cultura indígena como índices de identificação como
indígena, ou a sua existência como sujeitos. Há outras maneiras da memória
da língua se inscrever no discurso, por exemplo, no caso dos Fulni-ô, que
ao nativizar palavras do português, a utilizam com os fonemas disponíveis
na língua yaathê.
Conforme Cabral (2009), palavras são nativizadas quando vindas
de outras línguas, são adaptadas naquela que a recebeu, pois houve uma
necessidade de incorporar aquelas ao léxico da língua receptora. Esse
processo linguístico, além de demonstrar a forma como a memória da língua
portuguesa se inscreve no yaathê, também aponta para uma maneira dos
sujeitos resistirem na língua, apesar da determinação ideológica que fez com
que esses povos tivessem que utilizar tais palavras. Sobre a questão da língua
indígena, Simas (2013, p. 208) aponta que “[...] antes a pressão era para
deixar de usar a língua indígena e depois para voltar a usá-la”, portanto
há uma cobrança mais externa, dos não-indígenas, que afeta a imagem do
indígena sobre si mesmos.
Um outro exemplo de como a exigência da língua ancestral indígena
como um critério de identificar(-se) como um indígena afeta as práticas
indígenas é observada nos Xucuru, de Pesqueira/Pernambuco, que falam o
82 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

Português, mas têm um trabalho de resgatar palavras da sua antiga língua


nativa, em uma lista de vocábulos, mas que ainda não sabem o que fazer
com elas. Este projeto consiste numa política de resgate da memória da
língua, que contribui com afirmação indígena.
Em SD8, são trazidas a pintura e o corpo indígena na manifestação
do Toré e, ao se falar dessas práticas, são trazidas as práticas indígenas
que asseveram, para o indígena, o que é ser Potiguara: “Nossa pintura
retrata a história Potiguara. Com ela trazemos no corpo a marca de nossos
antepassados.” Com este enunciado, o sujeito-indígena traz uma memória
indígena que se materializa na crença das marcas dos antepassados ganharem
corpo no presente. A pintura sobre o corpo e o Toré são gestos significantes
que constituem marcas identificatórias do que é ser indígena.
Sobre a questão de corpo e memória, Hashiguti (2008, p. 110) diz:

O corpo é um corpo de memória que determina e é determinado, no


sentido de que é tanto corpo como espessura material do/no discurso,
sendo assim materialidade determinante por sua visibilidade, quanto corpo
de/na memória discursiva que constitui seus gestos, sendo assim corpo
determinado. A memória de que se trata está no discurso que olha e diz o
corpo e no gesto que o corpo realiza. A memória está no corpo e no olhar
para ele, o que significa que ele é sempre corpo de memória.

A pintura indígena no corpo, os gestos da dança e o próprio corpo


produzem uma memória do que é ser índio, assim como o olhar do outro
sobre os indígenas. A cada vez que tais práticas são retomadas, quando
um ritual desses acontece, reproduz-se uma memória sobre aquele corpo
indígena. Ou seja, o corpo é também um lugar de produção de sentidos,
pois por ele próprio são materializados sentidos, seja pela pintura corporal,
pelos rituais de dança ou luta, ou pelas incisões de penas e furos no corpo,
que, na visão deles, como aponta Freyre (2004), afastariam as influências
malignas que sempre estão à espreita para tomar esses corpos vulneráveis.
Por outro lado, no imaginário social, há uma imagem cristalizada do
indígena pautada em suas características corpóreas - cabelo preto liso, pele
avermelhada, despidos, etc - que remetem aos sentidos sobre uma figura
estática na História.
Ao trazer esses dois blocos de análise, observamos o funcionamento
da memória e do imaginário no discurso do/sobre o indígena. Há nele uma
CAVALCANTE, A. |
83

disputa de significação sobre o que é ser indígena, constituindo o imaginário


sobre esses povos brasileiros. Este imaginário sobre os sujeitos-indígenas
traz, a partir de já-ditos, uma rede de dizeres e sentidos estereotipados
sobre estes povos como pessoas atrasadas, ingênuas, que não fazem parte da
sociedade, entre outros. Sentidos que se atravessam em seus próprios dizeres,
para refutá-los, afastar-se deles ou ressignificá-los. Enunciados que circulam
no que poderiam chamar de FD não-indígena, mas que, pela característica
heterogênea e porosa das FDs, faz-se presente também na FD indígena.

Lutas de nunca acabar

Aqui trouxemos algumas questões de pesquisa realizadas entre os anos


de 2013-2017 em torno do discurso do sujeito-indígena, mas que ainda se
fazem necessário discutir e dar continuidade nas reflexões sobre imaginário,
língua, luta e resistência indígena. Compreendemos que os corpos indígenas
desde sempre estiveram em luta, para sobreviver e para defender a terra e a
ancestralidade de uma brasilidade silenciada.
A partir do nosso objeto de análise, os recortes dos livros escritos
pelos indígenas, observamos que o discurso do indígena traz em si o
atravessamento de outros dizeres, os sentidos sedimentados sobre o que é ser
indígena na sociedade brasileira são postos em discurso também, seja para
refutá-los ou para dizer de outros modos possíveis. Isto é, no discurso dos
indígenas aqui analisados, não há uma distinção rígida entre o “discurso de”
e o “discurso sobre”. No entanto, a institucionalização de sentidos a partir
do discurso sobre não se dá apenas pelo discurso jornalístico, mas também
pelo discurso cotidiano, aquilo que se repete no imaginário do brasileiro, no
caso o não-indígena.
Ademais, esta discussão alerta a necessidade de pensarmos a
constituição da brasilidade a partir da perspectiva indígena e colocar em
evidência que a luta indígena não cessa, sendo atravessada por um racismo
de Estado “[...] que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre
seus próprios elementos, sobre seus próprios produtos, o da purificação
permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização
social” (FOUCAULT, [1975/1976] 2010, p. 52-53)
Em As formas do Silêncio, Eni Orlandi (2013) nos diz do silenciamento
dos sentidos e, por conseguinte, de sujeitos também. É necessário ouvir
84 | Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória

essas vozes que ecoam no social, refletir sobre a significação do silêncio e do


silenciamento de alguns povos, assim como ouvir o alerta da indígena Txai
Suruí (2021) no COP26: “The Earth is speaking. She tells us that we have
no more time”.

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Como citar este artigo


CAVALCANTE, A. Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua,
memória. Fragmentum, Santa Maria, p. 65-86, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219468961. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 87-97, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219468938


Submissão: 30/12/2021 • Aprovação: 11/09/2022
Artigo Original

A TRANSCENDÊNCIA DOS TRÓPICOS NO


PENSAMENTO INDÍGENA1

TRANSCENDENCE OF THE TROPICS IN


INDIGENOUS THINKING

Livia Penedo Jacob


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: O texto investiga o impacto da literatura e outras produções indígenas sobre o conceito
de “brasilidade” e de “cultura brasileira”, a partir da análise de obras escritas por intelectuais
indígenas. Se durante muitas décadas as culturas originárias permaneceram ignoradas pelos
grandes intérpretes do Brasil, no século XXI já não é possível ignorar essas diferenças. O tema da
“literatura nos trópicos”, por sua vez, que foi pensada por Silviano Santiago, Antonio Candido,
Luiz Costa Lima, ganha novos olhares e interpretações com a intervenção das produções nativas
e dos estudos antropológicos, conforme atesta estudo recente de Luís Augusto Fischer.

Palavras-chave: literatura indígena, história do pensamento social brasileiro, intérpretes do Brasil

Abstract: In this essay I reflect on the impact of Brazilian Indigenous literature and arts on
the concept of “Brazilian culture”, based on the analysis of Indigenous theories. For many
decades native cultures were ignored by the intelligentsia, but in the 21st century this attitude
is no longer possible. In this sense, a recent book by Luís Augusto Fischer shows how the
theme of “literature in the tropics”, traditionally debated by Silviano Santiago, Antonio
Candido, and Luiz Costa Lima, may be read under new prospect thanks to native thinking
and anthropological studies.

Keywords: Indigenous literature, Brazil interpreters, Brazilian socio-political theories

Publicado originalmente em 2020, o texto intitulado “Ailton Krenak,


um intelectual além dos trópicos”2 obteve um número de acessos acima
1 Em consonância com a portaria 206/2018, informamos que a presente pesquisa foi
realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.
2 Texto originalmente publicado na Revista Suplemento Araçá, 6ª edição, em 23
de novembro de 2020. <https://suplementoaraca.com.br/2020/11/23/capa-6a-edicao-artigo-

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


88 | A transcendência dos trópicos no pensamento indígena

da média mensal alcançada pelo suplemento literário que o divulgou.


É que o tema em pauta, a literatura indígena brasileira, vinha recebendo
especial atenção naquele ano, em partes devido às associações imediatas
entre a pandemia então em curso e o discurso ecológico tradicionalmente
proferido pelos povos nativos. Não coincidentemente, o começo da década
foi marcado por uma indicação de Ailton Krenak para o Prêmio Jabuti pela
obra Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e sua respectiva condecoração
com o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano, reconhecimento até então
nunca concedido a um indígena.
Se no referido ensaio busquei explicar como o pensamento “selvagem”
de Ailton Krenak nos ajuda a questionar a noção de brasilidade difundida
pelos clássicos intérpretes de outrora – Sílvio Romero, Euclides da Cunha,
Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr, para citar alguns – objetivo, no
presente texto, analisar a mesma questão sob uma ótica mais ampla, refletindo
sobre outras produções nativas. Interessa, por fim, chamar a atenção para a
influência desse movimento sobre os estudos literários recentes, a exemplo
de Duas formações, uma história (2021) de Luís Augusto Fischer, obra que
procura afinar a análise literária brasileira a pesquisas recentes de áreas
diversas, aí incluindo-se os estudos antropológicos de Eduardo Viveiros de
Castro.
Antes de abordar as atuais incursões da indigeneidade sobre o
pensamento social brasileiro e seus possíveis influxos na gênese de novas
percepções sobre o Brasil, julgo válido enfatizar que entre o final do século
XIX e início do século XX, nossa intelligensia se preocupou mais em refletir
sobre as subjetividades nacionais do que em entender o país a partir do
contexto latino-americano. Houve, porém, exceções, como Manoel Bonfim
e seu A América Latina: males de origem (1905), análise à época progressista
porque adaptava conceitos europeus então dominantes – como o darwinismo
social – a um olhar mais socialista dos fatos. Tentando entender a elite do
atraso, Bonfim denunciou o conservadorismo latino-americano dos donos
do poder, herança cultural daquilo que denominava “parasitismo social”
ibérico.
Esses estudos, apesar de seu valor histórico, estavam imbuídos pela
ideia então corrente de que existia um “espírito nacional”, marcado pelo
“caráter de uma coletividade”. Tal interpretação, mais ou menos vigente até
meados do século XX, refletiu-se no desenvolvimento dos estudos literários,
ailton-krenak-um-intelectual-alem-dos-tropicos-por-livia-jacob/> Acesso em: 05 set.2022.
JACOB, L. P. | 89

que tradicionalmente adotaram divisões disciplinares fundamentadas em


critérios nacionais, a exemplo da própria ideia de “Literatura Brasileira”. Trata-
se de modelo que teve e tem aspectos negativos e positivos, segundo análise
de Jobim (2013), sendo muitas vezes contestado, na contemporaneidade,
devido à emergência e consolidação dos blocos transnacionais.
Foi somente nos anos 1970 que o tema das fronteiras, finalmente visto
sob o prisma literário, recebeu um olhar mais cuidadoso a partir da obra de
Silviano Santiago, no ensaio “O entrelugar do discurso latino-americano”,
publicado em Uma literatura nos trópicos (1978). Santiago refletiu, então de
forma inédita, sobre o impacto da dizimação massiva dos povos nativos na
produção literária latino-americana, visto que o contexto histórico e social
do “descobrimento” interferiu na produção cultural posterior da região. De
forma visionária, o teórico conclui pelo fracasso do projeto colonial, o que
teria possibilitado que a América Latina viesse a dar sua maior contribuição
ao mundo ocidental: a destruição dos conceitos de unidade e pureza.
Desse modo, Silviano Santiago antecipou a tese do hibridismo
cultural latino-americano divulgada por Nestor García Canclini em 1989.
Na obra Culturas Híbridas, o platense sustenta que uma das contradições
latino-americanas foi a ocorrência do Modernismo – enquanto movimento
artístico intelectual –, sem que tenha havido uma real modernização
industrial da região durante o mesmo período. Devido a essa condição, os
países latino-americanos seriam “resultado da sedimentação, justaposição e
entrecruzamento de tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamericana
e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e
comunicacionais modernas” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 73).
Deslocando tal percepção para os estudos literários, Silviano Santiago
declara, em seu supracitado texto, a falência de um método de pesquisa
universitária dominante à época da publicação do seu livro: as pesquisas que
conduzem ao estudo das fontes e influência. Para o teórico, esse discurso
ressalta as produções colonialistas em detrimento das buscas “quixotescas”
dos artistas latino-americanos, reduzindo a produção local à condição de obra
“parasita”, ou seja, uma obra que se nutre de outra sem nada lhe acrescentar
de novo. Difícil, portanto, precisar a importância dessa teoria que, além de
desvincular a dependência econômica da dependência cultural, enalteceu
as artes dos trópicos, indiscutivelmente inquietantes, antropofágicas e
digressivas.
90 | A transcendência dos trópicos no pensamento indígena

A condição econômica latino-americana e seus reflexos nos estudos


literários nacionais também foram matéria de questionamentos em
“Literatura e subdesenvolvimento” (1989), de Antonio Candido. No ensaio,
o teórico relaciona a consciência do subdesenvolvimento na literatura
à Segunda Guerra Mundial, havendo, contudo, sinais de sua percepção
desde a ficção regionalista brasileira de 1930. Candido aponta, ainda,
outros elementos não mencionados por Santiago, como os altos índices
de analfabetismo no mundo latino-americano, além do precário contexto
da Península Ibérica, quando comparada a outros países do continente
europeu, onde as taxas de leitura e os mercados editoriais são mais fortes.
Por outro lado, Candido realiza o exercício de examinar as influências
externas – antes criticado por Santiago –, mas não da forma outrora
prescrito pelos estudos acadêmicos. De maneira crítica, o teórico investiga
a interferência da cultura de massa, de aspecto meramente comercial, que
julga caótico e pernicioso em um meio de maioria iletrada. Conclama, desse
modo, que a literatura latino-americana seja vigilante e consciente de sua
condição de estar sob a égide e o controle das potências econômicas, para
que a produção de massa não se torne instrumento de manipulação das artes
locais.
Em posição que contraria o texto de Silviano Santiago, Antonio
Candido afirma que as literaturas latino-americanas e as da América
do Norte são “galhos das metropolitanas”. Retomando uma tese que o
perseguiu na construção de toda a sua obra, a da “formação da literatura
brasileira”, Candido defende que a condição de dependência cultural só
pode ser superada com a produção de obras influenciadas não por modelos
estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais antecessores. Nesse
sentido, relembra a importância de Machado de Assis, cujo valor, ele diz,
não foi devidamente reconhecido no Ocidente, pela posição de pouca
relevância cultural conferida à língua portuguesa.
Por fim, não poderia deixar de citar a obra de Luiz Costa Lima,
notadamente Pensando nos trópicos (1991), na qual defende o abandono do
modelo de literatura nacional em prol da reflexão teórica sobre o ficcional.
Além de demonstrar que o critério da nacionalidade vale sob o viés político
sem necessariamente se sustentar no campo da cultura, o teórico também
afirma que pertencer a uma área periférica, estando subordinado a uma
língua de circulação menor, significa confrontar-se com a desconfiança
e o preconceito dos acadêmicos metropolitanos. Ou seja, Costa Lima
JACOB, L. P. | 91

denunciou, ao longo de sua produção crítica, as limitações impostas pela


“brasilidade”, conceito academicamente excludente, tanto do ponto de vista
interno quanto externo.
Ignorada pelos estudos críticos mencionados, a literatura indígena
começa a ser escrita no contexto brasileiro a partir dos anos 1980, alcançando
maior visibilidade somente em tempos mais recentes. Essas produções,
conforme atesta Graça Graúna (2013), se caracterizam pela presença de
denúncia política, pela ligação dos povos originários com a terra e pelas
fortes marcas de oralidade. Não causa espanto que haja certas semelhanças
entre essa literatura nativa produzida no Brasil e as publicações assinadas por
povos originários de outros territórios. Cito, a esse respeito, estudo de Ruffo
(MACFARLANE; RUFFO, 2016), segundo o qual a literatura indígena
canadense pode ser teoricamente dividida em duas principais vertentes – a de
viés político e a de viés mítico. Ou seja, as convergências entre as conclusões
da pesquisadora potiguara e do pesquisador anishinaabe são claras.
Trata-se, portanto, de literaturas que buscam afirmar as diferenças
dessas populações, duvidando da noção de “cultura nacional” e de
“subdesenvolvimento”, pois, afinal, “[...] a periferia não está apenas no
Hemisfério Sul, não é dado territorial, mas refere-se às margens da sociedade”
(BASTOS, 2020, p. 684). Desse modo, a desterritorialização promovida
pelas obras nativas abrange a política e a própria noção de arte: 1) por um
lado, promove-se a ideia de que os povos não estão separados por fronteiras
nacionais, integrando a “terra”, que pode ser, por exemplo, “Pachamama”,
para os povos andinos, “Abya Yala”, para os kunas ou “Mikinoc Waajew” para
os anishinaabes; 2) a escrita produzida pelos escritores nativos não se encaixa
nos padrões ocidentais, contestando-os quanto à estética, classificação em
gêneros e até mesmo comercialização das obras (JACOB, 2020), levando-
nos de volta à pergunta tantas vezes debatida pelos estudos teóricos: “afinal,
o que é literatura?”.
Sobre o primeiro aspecto enumerado, isto é, a terra – e não o país –
enquanto identidade cultural, me parece relevante lembrar que a presença
dessas populações no território é anterior ao estabelecimento das fronteiras
nacionais. A fala da escritora e artista da etnia puri Aline Rochedo Pachamama
relembra que a exclusão desses povos dentro do conceito de “cidadania”
marca sua relação com o Estado e os demais brasileiros: “Consolidou-se
uma hierarquia científica no campo da História, atribuindo, direta ou
indiretamente, às mulheres e também aos Povos Originários, a invisibilidade
92 | A transcendência dos trópicos no pensamento indígena

e um lugar de inferioridade, passividade e exclusão” (SOUZA et al., 2019,


p.111). A par dessa rejeição ocidental às alteridades, prevalece, entre os
indígenas, uma oposição à ideia de Estado, organização política marcada
pela separação de poderes, em contraste com as sociedades tradicionais,
indivisas, conforme atestou Pierre Clastres (1974).
Sobre a desterritorialização literária, nota-se uma despreocupação, por
parte dos escritores indígenas, em se “encaixar” nos gêneros prescritos pelos
manuais de escrita ocidental, optando, pelo contrário, por uma maior liberdade.
Essa fenômeno se explica pela oralidade que subjaz como alicerce para essa escrita,
de modo semelhante ao que se observa nas sociedades nativas norte-americanas,
por exemplo, conforme documentado por Roemer (1983). Ignorando o
conceito de ficção, os escritores indígenas veem suas obras como transposição,
para a escrita, de memórias ancestrais, colhidas a partir da tradicional arte de
contar histórias. Essa opinião da mencionada autora Aline Rochedo encontra
respaldo em testemunhos de outros intelectuais indígenas que compõem o livro
Literatura indígena brasileira contemporânea (2018), merecendo destaque a fala
de Márcia Kambeba: “Os escritos indígenas existem para esse fim, deixar aos
novos uma continuidade de legado. Existem para que lembrem que a cultura é
um tesouro que não se pode deixar roubar ou perder” (DORRICO et al., 2018,
p.44).
E tendo em vista que essas obras não se classificam a partir dos gêneros
literários estabelecidos pela crítica ocidental, alguns autores – a exemplo de Olívio
Jekupe – vêm intitulando suas produções como “literatura nativa brasileira”. Ou
seja, não se trata mais de uma literatura estritamente brasileira, pois, afinal, antes
de pertencer ao país, pertence à etnia de origem e, de maneira mais generalizada,
às culturas originárias, lembrando-nos que “a identidade plenamente unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2003, p. 13). Parece-me
relevante destacar novamente que muitos desses povos habitam territórios que
extravasam as fronteiras nacionais, como os ticunas (Brasil, Colômbia, Peru), os
guaranis (Bolívia, Brasil, Paraguai, Argentina), os tucanos (Brasil e Colômbia),
os macuxis (Brasil, Guiana e Venezuela) etc, surgindo, dessa realidade, uma
desfronteirização.
Em suma, a literatura indígena se opõe de forma deliberada às instituições
ocidentais, contradizendo as expectativas sociais sobre o “índio”, que, na
verdade, sendo “o outro”, não deixa nem de ser nativo, brasileiro e cidadão da
aldeia global. Há, vale notar, um claro espelhamento dessas características nas
produções visuais desses povos, conforme atestam Elemar Favreto e Paulo Neves
JACOB, L. P. | 93

(2020, p.110) quando analisam os quadros do escritor e artista macuxi Jaider


Esbell, que “[...] nas suas ações em defesa da arte indígena contemporânea,
promove uma política de desestabilização do status quo, buscando um outro
estilo, não ditado pela indústria”.
Mas, vale dizer, esse movimento não ocorre sem contradições. Alçado a
maior destaque da 34ª Bienal de São Paulo (2021) após a aquisição de algumas
de suas obras pela Galeria Pompidou, de Paris, Jaider Esbell foi encontrado sem
vida em seu apartamento à época da exposição. Sua morte, de causa ainda não
esclarecida, revela que a arte indígena segue incompreendida por uma sociedade
que vê apenas mercadoria onde outras populações enxergam transcendência.
Essa diferença está bem explicada em A queda do céu, pelas palavras do ianomami
Davi Kopenawa: “Nossos verdadeiros bens são as coisas da floresta, suas águas,
seus peixes, sua caça, suas árvores, seus frutos. Não são as mercadorias! É por
isso que quando alguém morre logo damos um fim em todos os seus objetos”
(KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.410).
Também a literatura é entendida pelos indígenas como uma extensão
da floresta, constituindo-se uma construção espiritual que visa civilizar os
homens brancos, conforme revela a tese de doutorado de Daniel Munduruku,
posteriormente publicada no formato livro, intitulada O caráter educativo do
movimento indígena. Diversas vezes vencedor do Prêmio Jabuti, Munduruku
nos ensina:

Que o movimento indígena educou após ser educado parece ser uma verdade
incontestável. Certamente é perceptível que muito do que acontece hoje dentro
da sociedade brasileira - em termos educacionais, políticos e sociais – é fruto da
sociedade civil organizada (MUNDURUKU, 2012, p. 222).

A literatura indígena, portanto, espelha esse “caráter pedagógico” do


movimento político indígena, tanto porque visa educar as novas gerações de
crianças brancas sobre a diversidade cultural brasileira, como por sua proximidade
com a oralidade. É que as narrativas orais tradicionais não se emolduram em
parâmetros ocidentais que ditam o que vem ou não a ser literatura. A leitura
cuidadosa de histórias nativas evidencia, com frequência, uma fusão entre o
humor, a botânica, as cosmogonias, a pedagogia, além de outros saberes. Nesse
mesmo sentido, o sagrado e o profano parecem se fundir, visto que tudo está
permeado por uma sacralidade criadora, expressa pelas narrativas etiológicas,
isto é, histórias que tratam sobre o surgimento do mundo e das coisas, não
94 | A transcendência dos trópicos no pensamento indígena

raramente incorporadas pela literatura escrita por esses povos. Ou seja, os fazeres
nas comunidades originárias são rizomáticos, não se restringindo a um objetivo
específico e não se submetendo à divisão de “campos do conhecimento”, tão
cara às culturais ocidentalizadas.
Se essas especificidades foram, quando não ignoradas pelos intérpretes
da “cultura brasileira”, reduzidas à folclorização, a literatura indígena se
estabelece não apenas como contraponto ao mainstream, levando, finalmente, à
compreensão de aspectos culturais difundidos por nosso território geográfico e
abordados por autores consagrados, a exemplo de Guimarães Rosa. Cito, a esse
respeito, o recente Duas formações, uma história (2021) de Luís Augusto Fischer,
obra cuja principal tese consiste em revisar os pontos falhos do clássico Formação
da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), de Antonio Candido. Fischer
sustenta, em oposição a Candido, que houve dois pontos de elaboração literária
no Brasil: 1) uma alicerçada no meio urbano (e este reconhecido como exclusivo
por Candido), tendo em Machado de Assis seu marco inaugural; e 2) outra,
com base no relato rural, do qual Guimarães Rosa seria o máximo representante.
Sem adentrar nos pormenores dessa teoria, chamo atenção para a
valorização que Fischer imprime à contribuição indireta do antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro aos estudos literários. O teórico percebe a importância das
pesquisas de Viveiros de Castro para compreender que defender a inexistência
dos indígenas em nosso território é uma forma de “[...] negar umas tantas
evidências óbvias da forte permanência de práticas sociais e de visões de mundo
de origem ameríndia” (FISCHER, 2021, p.327). Interessa particularmente
a Fischer aquilo que o supracitado antropólogo nomeou “perspectivismo
ameríndio”, ou, mais recentemente, “multiculturalismo”, certa característica
recorrente em diversas cosmogonias dos povos da Amazônia. Dando a palavra
ao autor:

Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos como


humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres
usualmente invisíveis é um signo seguro de que as ‘condições’ não são normais.
Os animais predadores e os espíritos, entretanto, veem os humanos como
animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como
espíritos ou como animais predadores: “O ser humano se vê a si mesmo como
tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o veem, contudo, como um tapir
ou um pecari, que eles matam”, anota Baer (1994, p. 224) sobre os Matsiguenga.
Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos veem
como humanos (CASTRO, 2016, p. 350).
JACOB, L. P. | 95

Observando, nas obras produzidas por autores indígenas, a recorrência


de personagens transmorfos, nomeei esse fenômeno “metamorfoses
ameríndias” (JACOB, 2020) em filiação à produção científica de Eduardo
Viveiros de Castro, embora consciente de que a palavra “ameríndio” não seja
considerada adequada, dada à remissão imediata à colonização. Em suma,
muitas cosmogonias nativas se baseiam na impermanência da natureza, uma
percepção de mundo que acaba por ser espelhada nas literaturas nativas,
nas quais não faltam personagens que se metamorfoseiam em espíritos,
elementos da natureza, animais ou híbridos; ou, ainda, vice-versa, criaturas
não humanas que se transformam em gente.
Também seguindo o lastro teórico de Eduardo Viveiros de Castro,
Fischer observa uma perceptível referência à indigeneidade no conto “Meu
tio, o iuaretê”, de Guimarães Rosa, considerando-o ponto alto da produção
sertanista, que ganharia novos contornos na contemporaneidade de Alberto
Mussa (Meu destino é ser onça, 2009), Wilson Bueno (Mar Paraguayo, 1992),
Paulo Scott (Habitante irreal, 2011) etc. Mesmo não se aprofundando sobre
o legado de Ailton Krenak, Olívio Jecupe, Daniel Munduruku, Graça
Graúna ou Eliane Potiguara, Duas formações, uma história se destaca por
apresentar outras maneiras de pensar o Brasil. Enxerga-se que nosso universo
(e por que não dizer, nosso país?) está povoado por outros sujeitos além dos
humanos e, entre os humanos, também compomos uma fauna múltipla,
variada, diversa.
Notório, portanto, que são muitos os Brasis e que a brasilidade não
é estanque. Trata-se, pelo contrário, de categoria prismática, de definição
tão ampla quanto são os sujeitos por ela englobados. Na medida em que a
intelectualidade indígena transcende os trópicos, supera-se, por tabela, a ideia
de que as artes das antigas colônias são galhos ou reproduções, exaltando-se,
em contrapartida, tudo o que nos é inerente. Nesse sentido, os escritores
indígenas representam, para além de seus povos, aqueles que rejeitam por
completo o Estado, ignorando as outras “aldeias”. Nesse caso, a brasilidade,
arrisco dizer, deve existir mesmo para aqueles que a ignoram, visto que
germina da ancestralidade, da anterioridade ao próprio país; encontra-se,
pois, justificada pela precedência e se alicerça no direito à autonomia. Em
outras palavras, a ameaça à existência desses indivíduos e de suas culturas
simboliza a ruína de toda a coletividade, para além de qualquer fronteira.
96 | A transcendência dos trópicos no pensamento indígena

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Como citar este artigo

JACOB, L. P. A transcendência dos trópicos no pensamento indígena.


Fragmentum, Santa Maria, p. 87-97, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219468938. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 99-115, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219468957


Submissão: 04/01/2022 • Aprovação: 13/05/2022
Artigo Original

UM LIVRO E UM ENUNCIADO EM NOSSA


FORMAÇÃO SOCIAL1

A BOOK AND A STATEMENT IN OUR SOCIAL


FORMATION

Vanise Medeiros
Universidade Federal Fluminense, UFF, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: Neste artigo, parto do livro Água de barrela, de Eliana Cruz, um romance inscrito na
formação discursiva da descolonização, para promover uma reflexão sobre um enunciado,
corrente em nossa sociedade, que sustenta e justifica desigualdades sociais profundas. Inscrito
na formação discursiva da branquitude, trata-se de um enunciado que institucionaliza certos
sentidos e encobre outros. Pode ser submetido a leituras outras que foram impedidas de circular.
É o que o livro põe em cena. Neste exercício, retorno à virada do século XIX para trazer três
posições que permitem pensar na ancoragem, nos efeitos e nos silenciamentos de tal enunciado.

Palavras-chave: Enunciado, trabalho, Água de barrela, Análise de discurso materialista.

Abstract: This article starts from the book Água de barrela, by Eliana Cruz, a novel inscribed
in the discursive formation of decolonization, to promote a reflection on current statements
in our society, that sustains and justifies deep social inequalities. Inscribed in the discursive
formation of whiteness, these statements institutionalizes certain meanings and covers up
others. They can be subjected to other readings that have been prevented from circulating.
That’s what the book brings into play. In this exercise, I return to the turn of the 19th century
to bring three positions that allow us to think about the anchoring, the effects and the silencing
of such statements.

Key-words: Statement, work, Água de barrela, Materialist discourse analysis.

A noção de memória foi e permanece ainda aqui


um investimento interpretativo de grande alcance (...)
Não há memória sem história.
(COURTINE, 2008, p. 17)

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no evento III Colóquio Internacional
Museus, Arquivos e Lugares de Memória no/do espaço urbano, em agosto de 2021.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


100 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

Um livro para começo de conversa

O que trago com este artigo são algumas reflexões a partir de leituras
que tenho feito e de inquietações que dizem respeito a desigualdades
sociais profundas na nossa sociedade. Se as perguntas que nos fazemos são
sempre perguntas do presente, este presente não é sem fios entrecortados
de memória, sem história, como nos fala Courtine. É sobre tais fios que
me debruço ao eleger um certo enunciado corrente na nossa atualidade: Eu
trabalhei, eu venci. Parto de um romance emblemático, Água de Barrela, de
Eliana Alvez Cruz.
Vencedor, em 2015, do prêmio Oliveira Silveira, da Fundação
Palmares2, Água de Barrela é um romance memorialístico que narra a saga
de uma linhagem escravizada. Pelo horror da captura e do aprisionamento
de corpos em uma aldeia africana e da travessia dos antepassados da autora
que ao Brasil chegam em 1850 – ano da lei Eusébio de Queiroz que abole o
tráfico de escravizados e que resulta na intensificação desta prática dantesca
tornada ilegal e ampliada em sua ilegalidade –, somos levados a percorrer
a vida de vários membros desta família. Vamos conhecer de perto suas
mulheres – sim, as mulheres negras são centrais. Elas rememoram uma
história que tem sido silenciada, nos contam de uma ancestralidade; por
elas, somos conduzidas a conhecer os homens da família. Mas não somente,
por elas nos vemos diante um já sabido: da exploração dos corpos negros e
da força de seu trabalho; das crueldades praticadas por homens brancos. Por
elas, acompanhamos as escaramuças dos homens e mulheres brancos para se
manter na posição de domínio.
Com efeito, esse romance percorre o universo de desumanização que
as práticas escravagistas, inscritas na formação ideológica da colonização,
teceram e marcaram de forma constitutiva (MODESTO, 2020) nossa
sociedade, nossas relações, nosso imaginário. Vamos rever o pós-abolição e
a condição de abandono e desamparo dos sem direito à terra, sem direito ao
produto de seu trabalho, sem direito à própria vida. Esse romance também
nos joga diante de diferentes posições discursivas relativas às formas de lutar,
de resistir, de tentar sobreviver e também de morrer. Diria tratar-se de um
livro de memórias que se abre com fotos de: Damiana; Pedro, irmão de
Adônis; Damiana e João Paulo.

2 Um prêmio instituído para valorização e visibilidade das manifestações culturais da


população afro-brasileira (https://biblioo.info/eliana-alves-cruz-a-voz-da-liberdade/).
MEDEIROS, V. | 101

Figura 1: foto de Damiana

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


102 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

Figura 2: foto de Pedro, irmão de Adônis

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


MEDEIROS, V. | 103

Figura 3: foto de Damiana e João Paulo

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


São fotos posadas em estúdio de fotógrafo. Fotos que acenam e
engendram para uma outra memória de futuro (MARIANI, 1998): não
aquela dos escravizados servindo de brinquedo para brancos, não aquela
indicadora de uma subalternidade, mas aquela em que qualquer um que
tivesse direito à vida na sociedade pudesse fazer. Uma foto que traz a pose, as
vestes, o enquadramento, na qual são naturalizadas as fotos de brancos. No
livro, ficamos sabendo da história dessas fotos que funcionam como gestos
simbólicos de inscrição em uma posição possível na sociedade que não a do
104 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

sofrimento. Após as fotos, eis uma árvore genealógica.


Figura 4: foto da árvore genealógica

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


A partir de folhas mais altas, aparecem os nomes mais ancestrais. São
dois nomes em língua de territorialidade africana, Olufemi+Ayoola, em
galhos finos, frágeis. E outros vão lhe sucedendo no movimento descendente
para outras folhas. Aparecem, em seguida, como diria Guimarães Rosa
MEDEIROS, V. | 105

(1970), os binominados – Ekin (Firmino) e Ewa (Helena) –, os que perderam


o direito aos seus nomes e foram renomeados pelos senhores de escravos.
Outros nomes vão surgindo no movimento descendente para galhos cada
vez mais resistentes até ladearem um tronco robusto. A árvore evoca uma
descendência que segue em busca de enraizamento; que segue em busca do
direito ao solo e às raízes. A árvore se faz entranhas no livro.
Ao final do romance, novas surpresas. Outras fotos significativas:
Figura 5: foto do final dos anos 30

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


Uma foto de Damiana e Martha ao lado de outra descendente dos
escravizados no final dos anos 30 do século XX. Assim como naquelas
fotos que abrem o livro, algo permanece: a altivez dos corpos. E algo muda.
106 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

Vestes, cenário e ambiência humildes não mais espelham a posição do


branco nas fotos do século XIX, mas aquela possível aos negros no século
XX. Deslocamento preciso que dá conta de deslocamentos em que não se
alteram as condições sociais. Em seguida, uma foto da casa de engenho:
elemento representativo da sociedade colonialista e escravagista.
Figura 6: foto da Casa do engenho Nossa Senhora da Natividade

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


Da casa, vamos para a foto do fio de contas de Xangô que pertenceu
MEDEIROS, V. | 107

a Martha: um fio de contas que traz consigo a travessia e mostra a força da


resistência e a capacidade de resiliência dos povos que para aqui vieram.
Contas que tecem o fio da vida.
Figura 7: fio de contas de Xangô

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


Ao fio de contas segue a foto de dois objetos: “Bonecos de porcelana
de Nunu, xícara e pires de porcelana de Celina. Duas das únicas quatro
peças do enxoval de casamento que não foram quebradas por Nunu”, nos
108 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

diz a legenda (CRUZ, 2018, p. 313). Foto de objetos que não se perderam
enunciando as perdas. Concretude simbólica de objetos outros, de haveres
que lhes foram interditados.
Figura 8: dois objetos

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)


Em seguida, cartas: “Cartas de Mary Santos Silva. Descendente dos
Tosta que escreveu para Celina” (CRUZ, 2018, p. 315). Cartas com palavras
sublinhadas, com riscos, rasuras, correções, parênteses. Com letra espremida
para caber na folha o tanto que cabe e o tanto que não cabe na vida.
No corpo do livro, esbarramos ainda em notas de pé de página. São
onze notas com funcionamentos distintos: trazem fontes bibliográficas,
indicam pontos clandestinos de chegada de barcos com escravizados,
explicam termos em iorubá trazendo um pouco desta cultura, descrevem
instrumentos de suplício, recuperam nomes antigos de lugares, traduzem
termos quimbundos, assinalam nome de general francês, portam explicações
para formas populares de nomear, por exemplo, menstruação, explanam
com vagar o que vem a ser pedra de raio em um cântico de Xângo e, em
outra nota, indica-se o modo como tal pedra foi revelada aos mortais. O
romance traz termos, cantos em línguas outras. No caso do cântico a Xangô,
temos o canto e sua tradução lado a lado, funcionando como modo de dar
a saber de línguas.
MEDEIROS, V. | 109

Fotos, árvore, cartas, notas de rodapé indiciam e metaforizam os muitos


espaços de sua inscrição na sociedade: no corpo e nas margens da sociedade.
São lugares outros, fendas abertas para dar a saber de sua historicidade,
de sua descendência, de suas lutas, de suas formas de resistência, de sua
resiliência. A trajetória de uma linhagem africana que para cá foi trazida e
submetida à escravidão não se esgota, pois, na narrativa.
Com efeito, o livro produz conhecimento sobre línguas, hábitos, mitos,
religiosidades, saberes vários de uma parcela maior da nossa sociedade: aquela
que adveio com escravizados. Água de Barrela, romance histórico que se impõe
como patrimônio, narra uma história sabida que já deveria ser divulgada há
mais de um século; uma história que se tenta silenciar em nosso país. O livro
se inscreve na formação discursiva da descolonização. Seu recorte temporal
começa em meados, como já dito, do século XIX, e percorre o momento pós-
abolição até os dias atuais. Sua forma de escrita não linear ilumina um passado
que não é passado; embaralha temporalidades embaralhadas; expõe mazelas
de uma sociedade adoecida em função de uma diáspora racial e social. Seu
título, Água de Barrela, já denuncia o engodo, a falácia da democracia racial.
Observe-se o que se lê nas páginas iniciais do livro:

Sentada na cadeira de rodas, ela [Damiana] olhava aquela gente ao seu redor.
(...)
Seus olhos também já não eram os mesmos, mas registravam muito bem o
brilho das roupas imaculadas naquele dia de festa. Aqueles moços e moças que
ali estavam, certamente, nunca tinham visto uma barrela – aquela água com
cinzas de madeira que se colocava na rouparia para branqueá-la. (...)
No fundo achava que o que se queria mesmo era que tudo fosse mergulhado
nessa água que branqueia. As roupas, as vidas, as pessoas... Todos mergulhados
na água de barrela. Riu intimamente, imaginando a cena. (...) (CRUZ, 2018,
p.15)

Eis ainda nota da autora após o sumário:

Não queremos mais aquilo que embranquece a negra maneira de ser


Não queremos mais o lento e constante apagamento da cor de terra
molhada, suada, encantada...
Queremos os remendos dos panos, nas tramas dos anos
sofridos, amados....
E acima de tudo,
apaixonadamente vividos. (CRUZ, 2018, p.11)
110 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

Água de barrela e árvore genealógica: a primeira, metaforizando e


denunciando o desejo do branco de espelho; a segunda, metaforizando a
luta de mulheres negras e homens negros por suas raízes, por terra, por vida.
Árvore da vida.

Um enunciado

Há muito o que interessa neste livro. Há muito o que ouvir e aprender.


Quero registrar agora algo que nele há a exaustão e algo que não há. Há
a exaustão o trabalho do homem negro e da mulher negra. Geração após
geração a exploração do trabalho braçal não cessa, não diminui, não resulta
em melhoria de vida, em condições dignas de moradia, em escolarização;
o que assistimos é um deslocamento para outras formas de exploração
atravessadas por discursos de caridade, por tratamentos falaciosos de suposta
igualdade (“é como se fosse uma filha...”). Como deveríamos saber, não há
nada na nossa sociedade que tenha sido feito sem o labor do negro ou da
negra e, no entanto... o que não ocorre no livro é a possibilidade de um
enunciado como Eu trabalhei, eu venci.
É sobre ele que quero começar uma reflexão. Este é um enunciado
corrente na nossa sociedade atualmente. Ele indica e justifica o mérito por se
ter o que se tem; um mérito por se ser quem se é. Trata-se de um enunciado
sustentado pela posição discursiva da meritocracia. Tomei como exercício
pensar este enunciado a partir de algumas posições discursivas inscritas na
nossa formação social já na virada do século XIX, isto é, tomando o momento
propalado como de libertação dos escravizados. Vou neste exercício apontar
três posições para pensar a ancoragem e os efeitos de tal enunciado.
Uma primeira posição seria aquela herdeira da casa grande, aquela
cuja riqueza advém de herança de bens, terras, valores, saberes, estéticas
e cujos direitos e méritos decorrem de tais transferências de poder. Tal
enunciado não me parece se colocar para esta posição que chamo de herdeira,
afinal trabalho aí não é valorizado; aí se desfruta do trabalho do outro e se
naturaliza o que se tem. Um enunciado que teríamos seria: Eu herdei; é meu!
Uma outra posição seria a do colono que aqui chegou para promover
o embranquecimento. Este ganha ou não terras e labora a terra que vai se
tornando sua. Julgo que tal enunciado comparece com vigor nesta posição,
afinal, tal posição se orgulha por ter trabalhado, se orgulha por seu avô ter
MEDEIROS, V. | 111

construído algo a partir do qual ele desfruta, seja trabalhando ou não. Aí


temos: Eu trabalhei, eu venci.
Uma terceira posição seria aquela dos escravizados e dos libertos, cuja
história lemos em Água de Barrela. Sua porta de entrada não foi a mesma
dos colonos; seu trabalho não adentra o imaginário da nossa formação social
produzindo os mesmos sentidos positivos que o trabalho feito por colonos.
Aí tal enunciado também não se sustenta.
O ponto que quero começar a investigar é o da memória discursiva
que suporta o discurso da meritocracia. Me pergunto pelas condições de
produção de emergência da possiblidade deste enunciado e me parece que
ele se ancora na ilusão do trabalho dignificado de uns – que venceram
– em oposição ao trabalho silenciado e desprestigiado de outros. Cito
Pêcheux (2011, p. 147), para explicar meu caminho de leitura e lembrar
que é preciso: “[...] sublinhar o papel do interdiscurso dentro da análise
interfrástica (ou intradiscurso), tanto quanto a importância da análise
léxico-sintática enunciativa na apreensão do interdiscurso como corpo de
traços que formam memória.”.
Tomemos então o enunciado Eu trabalhei, eu venci. Como analistas
de discurso, sabemos que o discurso se assenta na materialidade da língua, e,
como Pêcheux nos lembra em vários de seus textos, é preciso atentar para as
relações no intradiscurso, é preciso atentar para a sintaxe. Em Eu trabalhei,
eu venci, temos um enunciado composto de duas orações coordenadas
unidas por uma vírgula que se abre para uma oração conclusiva que pode
ser assim parafraseada:

Eu trabalhei, eu venci.
Eu trabalhei, por isso eu venci.

Se fizermos o exercício de negarmos a primeira oração, seremos


instados a negar a segunda:

Eu trabalhei, eu venci.
Eu não trabalhei, eu não venci.

Noutras palavras: não posso ter como negativa correlata a Eu trabalhei,


eu venci enunciados com a negativa incidindo somente em uma das orações.
112 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

Eu trabalhei, por isso eu não venci.


Eu não trabalhei, por isso eu venci.

Eu trabalhei, por isso não venci e Eu não trabalhei, por isso eu venci não
tecem uma rede parafrástica com Eu trabalhei, eu venci. Com efeito, Eu
trabalhei, eu venci impede que se possa dizer que se venceu sem trabalho.
Aí reside, como sabemos, o discurso da meritocracia. Merecem os que
trabalham.
O mesmo vai ocorrer com a relação explicativa, correlata da conclusiva:

Eu venci, porque eu trabalhei.


Eu trabalhei, por isso eu venci.

O equívoco está na formulação que alinhava uma relação explicativa


ou conclusiva entre vencer e trabalhar. Ora, como sabemos, mulheres negras
e homens negros trabalharam e muito. O livro Água de barrela não é o
único a comprovar isto. O trabalho de negros e negras na construção e na
possiblidade de nossa sociedade é inegável. E o fizeram em condições piores
que as de qualquer colono, que as de qualquer ser humano. Por que não
venceram? O que desfaz a lógica perversa deste enunciado? A resposta talvez
esteja naquilo que é silenciado no enunciado, nas paráfrases impedidas de
circular que podemos ler abaixo:

Eu venci, porque recebi fruto do meu trabalho; porque recebi terras; porque
era branco; porque tive direito a saúde, educação, a salário...
Eu não venci, porque não recebi nenhum fruto do meu trabalho; porque
não recebi terras; porque não era branco e porque não tive direito à saúde, à
educação, ao salário...

Eu trabalhei, por isso eu venci ou Eu venci, porque trabalhei silencia


as condições de produção de trabalho para uns e outros. Faz parecer que
uns trabalharam e outros não. Faz parecer que todos tiveram e têm as
mesmas condições de trabalho. Faz parecer que todo e qualquer trabalho é
dignificado na sociedade. Faz apagar também as condições de não trabalho
para uns e o modo de significar tais condições; faz apagar o desemprego.
MEDEIROS, V. | 113

Enfim, há muito outros fios a serem puxados a partir de tal enunciado3.


Eu venci, porque eu trabalhei é, pois, um enunciado da branquitude; é
o brado branco diante do medo branco de qualquer possibilidade de alçada
social daquele que não é branco. Este não é um enunciado possível em Água
de Barrela; um livro que narra a história dos tantos muitos que morreram
trabalhando sem nunca ter direito a nada. Aí, o enunciado que se apresenta
é: Eu trabalhei e muito, mas fui impedido de ter um mínimo de retorno do meu
trabalho.

Por uma continuação necessária

É constitutivo das formações sociais a circulação de enunciados que


operam na produção e sedimentação de sentidos. Orlandi (1993) principia
seu artigo “Vão surgindo sentidos”, em que tece uma reflexão teórica vigorosa
acerca do que vai indicar como discurso fundador, nos falando de enunciados
fundadores. A autora nos lembra que são espaços de identificação histórica,
que constroem um imaginário social, que aproveitam fragmentos do já
instalado, de retalhos, e instauram sentidos onde outros já se instalaram. Ela
nos alerta que são as imagens enunciativas que funcionam e que enunciados
servem como argumento. Não são alheios às formações ideológicas, às
formações discursivas, às posições discursivas. O que a autora nos fala sobre
enunciados fundadores pode ser aqui trazido para pensar enunciados vários
que circulam na sociedade produzindo efeitos sobre sujeitos e para nosso
enunciado em questão.
Ferreira (1993), neste livro que Orlandi organiza e que nos fala
de enunciados e discursos fundadores, se volta para a compreensão do
funcionamento do enunciado clichê em seu funcionamento corrosivo e em
seu esvaziamento, enfraquecimento. A autora nos chama atenção para o
que vai indicar como automatismos desencadeados pelo clichê. Estes não
podem ser associados à “[...] falta de tempo para pensar ou a uma ausência
de pensamento próprio por parte do sujeito” (Id., ano, p. 72), mas sim
como envolvendo “[...] mecanismos sociais, históricos e culturais, presentes
nos modos de sustentação do status quo que se realizam pela reiteração de
enunciados” (Id., ano, p. 72). E indica que: “O efeito de impregnação de
tais automatismos funciona como a possibilidade de institucionalização

3 Neste sentido, ver Marcel, Perini, Medeiros (2021).


114 | Um livro e um enunciado em nossa formação social

dos sentidos, fazendo-os corresponder, ética e moralmente, às expectativas


construídas pela sociedade”. (FERREIRA, 1993, p. 72). No entanto, como
lembra Ferreira (1993, p. 73), tais enunciados, “[...] enquanto construção de
aparência linguisticamente cristalizada, encobre[m] sob sua forma sentidos
que não se encontram petrificados”.
Estas são reflexões importantes para nosso enunciado em foco: Eu
trabalhei, eu venci. Este atua como espaço de identificação; projeta-se no
imaginário social funcionando como argumento para certas posições
discursivas que asseguram práticas que operam com a desigualdade social.
Inscrito na formação discursiva da branquitude, institucionaliza sentidos e
encobre outros sentidos. Pode ser esvaziado; pode ser submetido a leituras
outras que foram impedidas de circular. É o que o livro Água de barrela
põe em cena. É preciso investir em tais enunciados e na análise do que
engendram, de onde se ancoram e o que silenciam no espaço de disputas
várias em nossa sociedade. Como um ponto provisoriamente final e para
efeito de fechamento, trago uma citação de Pêcheux (1990, p. 8), sobre a
reflexão necessária acerca da relação da língua com a ideologia:

Através das estruturas que lhe são próprias, toda língua está necessariamente
em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca
estará” da percepção imediata: nela se inscreve a eficácia omni-histórica da
ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins
últimos, o alhures, o além e o invisível.

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Como citar este artigo

MEDEIROS, V. Um livro e um enunciado em nossa formação social.


Fragmentum, Santa Maria, p. 99-115, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219468957. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 117-129, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219467921


Submissão: 01/10/2021 • Aprovação: 29/08/2022
Artigo Original

CONFISSÕES DE UM HOMEM DE BEM: A


RADIOGRAFIA DE UM MODELO

CONFESSIONS OF A GOOD MAN: THE RADIOGRAPHY


OF A MODEL

Marcelo Peloggio
Universidade Federal do Ceará, UFC, Fortaleza, CE, Brasil

Resumo: O texto aborda, a partir de uma visão histórica e literária, a figura do chamado “homem médio
brasileiro”, procurando mostrar que as concepções de mundo do mesmo não se restringem a uma classe
altamente despolitizada, mas, antes, desdobram-se em algo moralista, pernóstico e violento.

Palavras-chave: homem de bem; visão histórico-literária; moralismo.

Abstract: The text addresses, from a historical and literary view, the figure of the so-called “Brazilian average
man”, trying to show that his world conceptions are not restricted to a highly depoliticized class, but rather
unfold into something moralistic, pernicious and violent.

Keywords: good man; historical and literary view; moralism.

1. A descrição de um conceito

Eu, um homem de respeito, respeitoso e respeitado.


Odorico Paraguaçu, O bem-amado, cap. IV

A delimitação conceitual da expressão “homem de bem” é o principal obstáculo


a uma possível radiografia crítica do que hoje denominamos, por suas características
intrínsecas, “tipo social”. Que proposições haveria para a melhor descrição desse tipo?
Ou antes, o que define mais precisamente a figura de um “homem de bem”?

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


118 | Confissões de um homem de bem: a radiografia de um modelo

Não nos valemos aqui do pronome quem, já que não partimos de uma
pessoa em particular ou de uma soma delas e, de resto, de uma classificação
baseada em um empirismo empobrecedor. Poderíamos mesmo ceder a essa
tentação: na fila dos bancos, no comércio, nas repartições, enfim, no âmbito
da vida de relação alguém exclama: “Sou um cidadão de bem! Pago meus
impostos em dia!”.
Tal radiografia parecer ser, de fato, em um primeiro momento,
algo que, neste ensaio, podemos muito facilmente sondar e exibir, dada a
particularidade social do tipo considerado. Assim, ao “homem de bem”, é
costume associar, grosso modo, um sem-número de palavras e ideias a partir
de descrições exteriores. Em geral, o homem de bem primaria, antes do mais,
por seu reacionarismo, direitismo e catolicismo; sua visão de mundo seria
incrivelmente curta ou irreflexiva, operando sempre mecanicamente, o que
faria dele, por extensão, uma criatura imbecilizada ou, em outros termos,
profundamente rude. Por outro lado, ligar-se-ia tanto à figura do servidor
público de carreira quanto à do profissional liberal (na ativa, mas, sobretudo,
aposentados), que teriam por característica comum a despolitização em
elevadíssimo grau – o que parece se justificar por conta de seus bonés,
bermudas, camisetas alusivas à nossa seleção de futebol, tênis de solado
grosso e deselegante.
Ora, considerado a partir dessas exterioridades – indumentária, modus
vivendi, mundividência – não haveria a razão e o porquê para se tentar a
radiografia de um suposto modelo. Daí a necessidade de se enfatizar que
o chamado “homem de bem” está presente, outrossim – e não são poucos
(todavia, como desdobramento ou deformidade do seu ethos) –, nos setores
empobrecidos e mesmo nas classes cultas da sociedade brasileira. Ele é,
então, mais do que um fato social concreto mediano; com efeito, parece ter se
tornado uma mística coletiva.
A que se destina, então, um “homem de bem”? Decerto, a indagação
precisa ser refeita. Não “a que se destina”, uma vez que as exterioridades
mencionadas colocam-nos diante de dada concepção política que as forças
progressistas já formularam e então reproduzem. Pelo contrário: não “a
que se destina”, todavia, os fatores histórico-sociais que o viabilizaram,
determinando-lhe o curso ulteriormente.
Uma possibilidade de análise se abre ante o modo pelo qual é
encarado, de forma genérica, o dito “homem de bem”. Contrário, por
exemplo, à imigração e a favor do uso da truculência para coibir e desbaratar
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o ativismo social, somando-se a isso a aversão à política e a ojeriza nutrida


contra a população de desvalidos, o “homem de bem” seria, apesar de tudo,
um cristão, se não fervoroso, algo determinado.
Esse constitui, pode-se dizer, o seu retrato exterior, mas insuficiente
para defini-lo, de antemão e de modo aproximado, no que ele seria de fato e,
tal como é, produto de uma contradição profunda e indissolúvel. É, então,
sob esse último aspecto que nos devemos deter, refutando a observação
superficial ou a consideração meramente empírica de um fenômeno que
nada vale por si, mas pelo tipo de conceituação que é capaz de suscitar.
Referir-se à sua formação, ou antes, a seu desenvolvimento histórico-
social, requer o auxílio de alguns fatos que tiveram vez e lugar, em diferentes
momentos, na vida socioeconômica e política do país. Em meio a eles, talvez
possamos dar destaque a certo dado que descreva, em parte e com alguma
precisão, a natureza mesma do “homem de bem”, isto é, sua historicidade.
Falamos mais precisamente da admiração deste por um Estado que lhe vira
as costas permanentemente e que atua, quase sempre, como o seu mais
terrível algoz. Porque, muito antes das elites, que garantem a manutenção do
status quo, tendo como peça eficiente para tal fim os aparelhos de repressão
do Estado (polícia e forças armadas), erige-se, via “homem de bem”, a
atmosfera necessária para que a “ordem” seja mantida: por exemplo, uma
“Marcha da Família com Deus pela Liberdade” designa a expressão máxima
de uma expressão mínima, ou seja, esta última dizendo respeito a cada um
dos “homens de bem”, os quais, ainda que não costumem sair às ruas para
protestar, endossam os regimes de força nos diversos setores e camadas da
sociedade.
Como tal regime de força é endossado, então, pelo “homem de bem”?
Ao contrário do que se costuma imaginar, a nota dominante nesse tipo – ou
o ethos que melhor o define – não é exatamente a agressividade, o uso da
força bruta (ainda que este esteja presente sob a forma de desdobramento
de um moralismo feroz), mas, em geral, a do ser cordato, não excetuando
aí, claro, a apatia e a pusilanimidade como seus traços característicos. O
que talvez explique o fato de, em anos de chumbo, a omissão de muitos
brasileiros, cientes do que então se perpetrava, ter se dado tanto por medo
(ou porque compactuavam em silêncio com o regime ditatorial) quanto
mais propriamente pelo estilo de vida que ambicionavam conquistar, o que,
em rigor, naturalizava tudo, do carnaval ao futebol. O desejo de ascensão
social fez com que se encarasse a ditadura de índole civil-militar como algo
120 | Confissões de um homem de bem: a radiografia de um modelo

distante, e mesmo inofensivo, tamanha a despolitização e a desfaçatez.


Assim, muitos dos que viveram a época elogiam hoje o governo militarista
devido, sobretudo, ao sentimento de “segurança” e “ordem”. A sentença
associada ao período – “Se não se metesse com coisa errada, vivia-se bem” –,
já é o suficiente para o esboço da primeira linha radiográfica de um modelo.
E “coisa errada” não significa, apenas, estar em desconformidade com
a lei, como quem atua criminosamente, mas, acima de tudo, a possibilidade
de se fazer a contestação do regime. “Homens de bem”, via de regra, como
perpetuadores do status quo, preocupam-se com a manutenção do próprio
bem-estar, quando não a possibilidade de ascenderem socialmente, ainda
que, de modo raro – sinal de deformidade do seu ethos –, por meio ilícito;
portanto, costumam ser indiferentes à sorte dos desvalidos com os quais se
defrontam diariamente, seja no trabalho, seja no lazer. E pouco importa a
situação social do país, desde que a sua, assolada por medidas econômicas
superficiais e eleitoreiras, mantenha-se no mesmo nível de mediocridade
(econômica, social e cultural) a que fora acostumado. Tomemos como
exemplo as figuras, para lá de simplórias, que estampavam em broches e
camisetas, nas cores verde e amarela, em meados dos anos 80, os seguintes
dizeres – nos broches: “Eu sou fiscal do Sarney”; nas camisetas, simplesmente:
“Fiscal do Sarney”. De fato,

foi o tempo dos “fiscais do Sarney”, [e] de lidar com o congelamento de


preços que desembocaria, já nos estertores do plano malsucedido, no quadro
das gôndolas vazias dos supermercados, da sonegação de produtos, do
câmbio negro e até da “caça” aos bois nos pastos para que a carne voltasse
(PIZZO, 2007, p. 14).

O “homem de bem”, é bem verdade, faz até críticas ao governo, mas


seu papel é, por definição, o de um colaborador, se não entusiasmado, de
algum modo comprometido; e, em uma circularidade mais reacionária do
que conservadora, que aqui chamamos de narcísico-masoquista, o reelege
sucessivas vezes na forma de grupos políticos distintos, mas complementares:
em substituição ao governo desastroso de José Sarney, toma, então, lugar a
aventura neoliberal, não menos desastrosa, de Fernando Collor de Melo e,
alguns anos depois, continuada e aprofundada sob a direção de Fernando
Henrique Cardoso.
PELOGGIO, M. | 121

O ponto alto da ambição de que falávamos há pouco, em se tratando


de um “homem de bem” – cordato e pusilânime –, está em fazer dele um
político, apesar do moralismo que o norteia, sobretudo quando o assunto
é de cunho pecuniário. Eis um dos primeiros desdobramentos, com
sinais claros de deformidade no ethos, do que até aqui se considerou ser,
concretamente falando, um homem que se julga exemplar no cumprimento
do dever. O melhor exemplo dessa realidade hipotética tornada fato (ainda
que seja este um produto da ficção) é a figura de Odorico Paraguaçu,
protagonista da telenovela intitulada O bem-amado (1973), de Dias Gomes.
Com efeito, o jogo de palavras operado no título parece fornecer, para o
caso, a extensão exata da significação do termo bem. Por um lado, “bem”
designa qualquer objeto de que somos proprietários e que, por um motivo
qualquer, estimamos, consideramos, amamos; por outro, alguém pode se
julgar amado ou estimado de todos, dada a intransigência moralista de que
nos ocuparemos depois.
Odorico Paraguaçu já não é a representação propriamente dita de um
“homem de bem”, e sim a do seu ethos, digamos, corrompido, desnaturado,
trazendo junto a si, no entanto, certas caraterísticas daquele, como o
moralismo e a religiosidade (neste caso, o de Odorico, o candomblé e o
catolicismo).
É preciso saber que outras formas de desdobramento, quer dizer,
que deformidades podem advir daí e serem efetuadas na índole mesma do
“homem de bem”, a ponto de arrancá-lo de uma esfera inteiramente pacata
para lançá-lo no domínio da objetividade nua e crua. Diz Odorico ao amante
da filha: “Eu sou um homem de bem. Nunca matei ninguém. Emboramente
a maledicência diga o contrário. Mas se você fez algum mal a ela, nós vamos
ajustar conta. Nem que seja no inferno” (O BEM-AMADO, 1973, II, 3:36
a 3:51). Já não é, pois, a fala da poltronaria, e, sim, da intrepidez.
Assim, no lugar de tomar as ruas ou, ainda pelo voto, reformar
drasticamente o sistema governamental, o “homem de bem” mantém o que
está à volta como está, quer pela própria urna, quer à frente do governo, mas
para tão somente enlameá-lo (a deformidade aí é, pode-se dizer, completa).
Portanto, incapaz de promover qualquer tipo de alteração significativa
no seu modus vivendi, de que parece se orgulhar, o faz, no entanto, quando
seu raio de ação suplanta o círculo familiar medíocre e atinge, para o prejuízo
da maioria, a res publica. Não se trata mais de um “homem de bem”, mas de
um homem de bens.
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Resume-se a isso a passagem do ideal lírico de uma vida tipicamente


burguesa (irreflexiva, apolitizada, mas plácida, dos que desfrutam de
razoável comodidade por obra e graça de um moralismo sociorreligioso) à
epicidade (os graus de desdobramento ou deformidade do ser cordato e
pusilânime que o “homem de bem” tão bem constitui e representa, isto é,
defensor intransigente da família e dos valores da cristandade mas, em ação,
um notório frequentador de prostíbulos, refém ou operador de jogatinas,
integrante de esquadrões da morte, e assim por diante).
A mística em torno do “homem de bem” como que desfocou e
deslocou a imagem deste. Daí que não deve ser tomado, em um primeiro
momento, por aquilo que seria o seu desdobramento ou deformidade,
nutrindo-se do senso de violência e da intolerância para agir – mormente à
luz de um moralismo cuja origem pode-se identificar, por certo, na figura do
próprio “homem de bem”.
As humilhações, linchamentos e assassinatos a que se veem sujeitos
os indigentes (o caso do adolescente negro acorrentado a um poste), os
trabalhadores (o caso Amarildo), os indígenas (o caso Galdino), as mulheres
(o caso Fabiane Maria de Jesus) e os LGBT (os casos Dandara e Érica); essas
arbitrariedades, enfim, não guardam uma relação direta ou imediata com o
chamado “homem de bem”. Cordato e pusilânime, não traz esse nas mãos,
a princípio, como muitos acreditam, a marca dos que acorrentam, fuzilam,
incendeiam ou espancam.
Assim, apático às reformas de um governo que o prejudica diretamente,
se em face de qualquer perturbação ou alteração no status quo, mínima que
seja, o “homem de bem” transforma-se: à semelhança de um dínamo, faz
emanar, via moralismo, todo gênero de ódio e preconceito, levantando uma
atmosfera assaz propícia a medidas repressoras, secundadas, não raro, por
uma violência sem freios.
Efeito de seu desdobramento ou deformidade, as forças coercitivas têm
operado de tal modo que mais parecem fortalecer e evidenciar, dia após dia,
o estigma moralista. Os agentes deste ou sua extensão empedernida, a saber:
a polícia, as forças armadas, os meios jurídico e político, as organizações
religiosas intransigentes e os denominados “justiceiros” (da elite à periferia);
sua força irradiadora ou dínamo: a classe média, sobretudo.
Orgulhoso dos bens materiais amealhados honestamente e, portanto,
do relativo conforto de que pode desfrutar, o “homem de bem” mais se
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assemelha à figura de um narciso autoiludido: com efeito, o espelho d’água


não reflete exatamente o que seu rosto exibe; é o baldo de beleza que
distingue em si e tão somente em si essa qualidade da qual ele e os seus iguais
(que ele acredita superar) são desprovidos. O que muito nos faz lembrar o
pastor amante de Marília de Dirceu: o pegureiro, então, elenca com vaidade
orgulhosa uma série de vantagens que o distingue dos demais:

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,


Que viva de guardar alheio gado,
De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
[...]
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra que não seja minha
(GONZAGA, 1997, I, grifo nosso).

Saindo do plano da mitologia e da psicologia e referindo-se mais


propriamente ao domínio da vida social, podemos dizer que o “homem
narcísico de bem” se localiza no quadro amplo da classe média, em que
se acredita culto, superior, senhor de inúmeros haveres e até, por incrível
que pareça, politizado – em verdade, um entendido de tudo. Seu senso de
“refinamento” desemboca em atitudes extravagantes, ou melhor, no mais
profundo mau gosto. Assim, já se relatou, que, para uma comemoração de
aniversário, e isso em um apartamento de tamanho médio, certo casal de
anfitriões contratou o serviço de um único garçom para atender ao grupo de
familiares e amigos, que não ultrapassava oito pessoas.
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2. Entre o cordial e o pusilânime

Bate na cara e espanca até matar.


Grito de guerra da polícia militar do Paraná
Em que medida e de que modo pode-se considerar o “homem de
bem” uma expressão tímida, mas ao mesmo tempo dinamizadora de nossa
cordialidade?
Há aqui, antes, um movimento propriamente de concentração do
que de expansão de emoções, sentimentos e ideias. Nesse último caso,
convertendo os princípios e regras da intimidade do lar em norma como
que obrigatória de conduta para a convivência social. Tal fato pode ser
conhecido pelo costume de muitos brasileiros em deixar aberta a porta de
suas residências, em ocasiões não apenas festivas, ampliando-se, em tese, a
“possibilidade de convívio mais familiar” (HOLANDA, 2012, p. 54), sendo
este imposto “por uma ética de fundo emotivo” (HOLANDA, 2012, p. 55).
Daí não ser o “homem de bem”, de forma alguma, uma espécie de
reverberação, uma consequência natural e lógica do chamado “homem
cordial” – o conceito histórico-sociológico, formulado por Sérgio Buarque
de Holanda, e definidor, em boa parte, do tono da brasilidade mesma.
Decerto, há antes, pois, duas situações diametralmente opostas.
Digamos que o segundo modelo (o da cordialidade) como que se vê
voltado para fora, lançando-se à conquista afetiva e pessoal do exterior, da
coletividade. No “homem cordial”, diz Sérgio Buarque, “a vida em sociedade
é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver
consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias
da existência [...] é antes um viver nos outros” (HOLANDA, 2012, p. 53).
Já o primeiro (o da pusilanimidade) aponta para um sujeito altamente
cioso de sua posição social, ainda que insignificante, assumindo uma
postura de quem, ao contrário, volta-se para dentro: a família, a religião, o
círculo estrito de amigos, definido, geralmente, por interesse financeiro e
profissional, em uma palavra, a promoção da visão particularista a fim de
manter a estrutura social, a ordem, em sua real integridade, o que significa
dizer perfeitamente hirta, estática.
Poder-se-ia dizer a partir daí, mas com inegável equívoco, que o
homem médio brasileiro nada mais é que a refutação incisiva do “homem
cordial”, uma vez que a concepção privada da ordenação pública seria, em
rigor, aberta neste e fechada naquele. Pelo contrário: pois, sendo assim,
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há antes um senso de continuidade do que propriamente de cisão entre


a pusilanimidade de uns e a cordialidade de outros. O “homem de bem”
sugere, hoje, a compressão moralista de um ser brejeiro, mas também
truculento, em vias de expansão.
Por isso a definição clássica de Antonil para o tipo no qual se enxerga,
de ordinário, a raiz ou o substrato tanto do “homem cordial” quanto do
“homem de bem”, a saber: “o ser senhor de engenho”, que é, diz Antonil,
“título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e
respeitado” (ANTONIL, 1982, p. 75, grifos nossos).
No decorrer de nossa história, os princípios da “fé”, da “honra” e do
“interesse”, irradiados pelo jaez escravista e exclusivista da antiga família
patriarcal rural, e fixados nos primeiros tempos da colonização, dariam vez
e lugar à mentalidade geral dos colonizadores. Esta como que definiu, a
pouco e pouco, do campo para a cidade, a nossa formação civilizacional, com
claros prejuízos à vida social, política e administrativa, tamanha a violação
dos preceitos objetivos e impessoais do Estado burocrático, efetivada por
interesses particularistas, ou como enfatiza Sérgio Buarque de Holanda: via
cordialidade, “o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”
(HOLANDA, 2012, p. 53). O que pode ser resumido, à perfeição, nessas
linhas de Gregório de Matos:

Quem cá se quer meter a ser sisudo


Nunca lhe falta um Gil que o persiga
E é mais aperreado que um cornudo.
Furte, coma [e] beba e tenha amiga,
Porque o nome d’El Rei dá para tudo
A todos que El Rei trazem na barriga
(MATOS, 2013, p. 83).

Levando-se a um efeito concreto, isto é, social e historicamente


considerado, vale a pergunta: o que significa, pois, trazer “o rei na barriga”,
senão reconhecer, de um lado, o jeito falastrão e exibicionista do “homem
cordial” e, do outro, o orgulho de classe, algo baboso e que melhor se ajusta
ao “homem de bem”? De qualquer forma, quer na esfera doméstica, quer
no âmbito da praça, a noção coletivista e impessoal – ou o indivíduo livre
dos vícios e mimos oriundos do círculo familiar – vê-se então esmagada pelo
particularismo brasileiro. Afinal, em “nome d’El Rei”, ou antes, em nome
da autoridade de muitos, tudo passa a ser possível: furtar, comer, beber e ter
126 | Confissões de um homem de bem: a radiografia de um modelo

amiga; ou, se pusilânimes, assegurar, via moralismo (para “quem cá se quer


meter a ser sisudo”), a manutenção mesma do quadro social.
Ora, o “homem de bem” não é fenômeno de agora e nem se acha
vinculado, única e exclusivamente, ao setor médio urbano – isso no que
concerne, claro, ao seu modo de ser sob o seguinte aspecto: sua deferência
irrefletida e intransigente pelo Estado, pela família e pela religião.
A irreflexão é central aqui: sua visão de mundo incrivelmente curta
deriva de uma rigidez moralista algo estranha à indisciplina espiritual do
brasileiro, anotada então por Sérgio Buarque de Holanda, já que haveria,
entre nós, “uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo
das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu
apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira
espiritualidade” (HOLANDA, 2012, p. 57).
Nos setores empobrecidos, a rigidez moral parece ser fortalecida
pelo raciocínio de que ser honesto (ser “trabalhador”) e armado de fé faz
de alguém, em verdade, uma “pessoa de bem”. Na classe média, por sua
vez, valores como a honestidade e a fé diluem-se na maior de todas as
virtudes, qual seja: estar ligado a um grupo social com ampla possibilidade
de progredir financeiramente. Tanto lá como aqui, o moralismo é vigoroso
e atua como peça eficiente: no primeiro caso, para afastar o trabalhador
daquilo que o macularia, isto é, levar uma vida desregrada, anticristã,
dada à vagabundagem (por isso a forte oposição àqueles que participam
de piquetes e outros gêneros de manifestação grevista); no segundo, para
aproximar seus integrantes dos círculos de que pretendem fazer parte (daí
as expressões “rapaz de família”, “moça de família”, “preparada para o lar”,
“jovem promissor” etc.), mas para impedir, também, o avanço social dos mais
pobres – um sinal claro de que o status quo deve ser preservado e estar livre
de perturbação.
O certo é que esses modelos não têm por base real a eticidade propriamente dita
(rechaçada, com vigor, no campo aberto da cordialidade), e, sim, uma obediência cega,
mecânica, a um moralismo robusto, em sua ascese e estoicismo, e como que fechado
em si mesmo. Tamanho autocontrole se verifica, por exemplo, em uma cena de Vidas
secas, de Graciliano Ramos. Fabiano, ao ter o “soldado amarelo” sob o gume de sua faca,
em meio à vastidão desolada da caatinga, e, assim, perto de dar fim a quem o oprimiu,
PELOGGIO, M. | 127

vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror
de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou
coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o
chapéu de couro.
– Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo
(RAMOS, 1982, p. 107, grifos nossos).

Austeridade essa que pode ser constatada, sobretudo em meio à classe


média urbana, em grupos distintos e francamente opostos no que toca a
suas crenças, ideias, emoções, valores e projetos, como é o caso dos jovens
pertencentes ao movimento cristão “Eu Escolhi Esperar”, os quais não abrem
mão da castidade senão após o laço de núpcias; no outro extremo, há os que
se submetem a um “controle disciplinar sem par na história, com o objetivo
de conquistarem a aceitabilidade, a admiração e o respeito” (SABINO, 2002,
p. 150), incluindo-se aí o prazer sexual. Nesse caso, desenvolvem aquilo que
Cesar Sabino nomeou “hedonismo racionalista” (SABINO, 2002, p. 150),
ou antes, as diversas etapas e restrições a que os fisiculturistas se sujeitam,
com franco ascetismo, para a conquista da forma corporal desejada e, com
isso, ampliar as vivências socioafetivas.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o chamado “homem de bem”
não conhece – porque as refuta com veemência – as expressões e formas da
eticidade: o que realmente lhe importa é a preservação do caráter restritivo
e opressor de sua visão de mundo. Dessa maneira, qualquer possibilidade
de diálogo com o outro, com a diferença, com as manifestações plurais da
eticidade, é elidida por completo à sombra de um moralismo avassalador.
A eticidade requer, implica diálogo; voltado exclusivamente para
dentro – a família, a religião, o círculo de amizades –, o “homem de bem”
põe termo, de modo antecipado, às vias de comunicação com outras formas
de saber e modus vivendi.
Por não conhecer a eticidade, mas apenas o moralismo, dele não
se espera outra coisa senão uma concepção mecânica, empiricizante e,
por conseguinte, empobrecedora do todo complexo e contraditório que
constitui, pois, a vida de relação. Daí que em seu lirismo, confessando aí
a aspiração por uma “boa sociedade”, os meios de aferição desta serão o
“certo” e o “errado”, o “abençoado” e o “ímpio”, “do lar” e “da vida”, e assim
por diante.
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Uma característica fundamental, no sentido de tentar uma definição


sócio-histórica desse modelo, isto é, em sua concretude mesma, é o fato do
“homem de bem” estar certo sempre; ninguém que seja impoluto e honesto,
temente a Deus, cônscio de seus deveres e obrigações, cumpridor da lei,
em dia com os impostos, ninguém com tais qualidades e atributos jamais,
sob forma alguma, estará em erro. Esse traço definidor é algo próprio de
setores de nossa sociedade que, no seu processo de formação, oscilariam
muito, frequentemente entre um estado de semi-indigência (o trabalhador
humilde) e a possibilidade quase remota de ascensão social (o orgulho
classista dos chamados “emergentes”). Orgulho esse que, no Quincas Borba,
de Machado de Assis, objetiva-se no gesto calculado de Sofia, pouco antes
de deixar a casa de Rubião, a quem seduziu e depenou em consórcio com o
marido, Palha:

Sofia, antes de pôr o pé na rua, olhou para um e outro lado, espreitando se


vinha alguém; felizmente, a rua estava deserta. Ao ver-se livre da pocilga,
Sofia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar
os outros, e enfiou amorosamente o braço no de dona Fernanda (ASSIS,
2008, p. 318).

Estarás certo sempre é o imperativo que se, por um lado, condiciona a


maneira de ser do “homem de bem”, por outro, inviabiliza a possibilidade
de diálogo com as expressões e formas da eticidade (índios, negros, LGBT,
feminismo, trabalhadores rurais, os sem-teto etc.). De tal sorte que, no
espaço amplo de nossa cordialidade, voltada essa inteiramente para fora, a
visão lírica desdobra-se em uma objetividade cáustica cujo traço constituinte
passa a ser, entre outros, a violência.
O maniqueísmo, algo simplório de nossa classe média, irrompe da
sua condição de grupo cordato e pusilânime, mas convertido este, nos dias
de hoje, em força moralista virulenta (verdadeiro dínamo), a ganhar então
as ruas. A agressividade implicada aí explica no “homem de bem”, em boa
medida, a deformidade do seu ethos. Eis, então, o lado sombrio de nossa
cordialidade, sobretudo, quando se julga deveras contrariada. E não há aqui
(no ser cordial) ou ali (no ser cordato) nada de bom, pois não há bem algum
para se aferir em ambos.
PELOGGIO, M. | 129

Referências

ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil. Belo Horizonte:


Itatiaia, 1982.

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Como citar este artigo

PELOGGIO, M. Confissões de um homem de bem: a radiografia de um


modelo. Fragmentum, Santa Maria, p. 117-129, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219467921. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 131-149, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219468334


Submissão: 31/10/2021 • Aprovação: 14/05/2022
Artigo Original

INTEGRADOS POR EXCLUSÃO: NEGRITUDE E


MOBILIDADE EM DESDE QUE O SAMBA É SAMBA,
DE PAULO LINS

INTEGRATED BY EXCLUSION: BLACKNESS AND


MOBILITY IN DESDE QUE O SAMBA É SAMBA, BY
PAULO LINS

Paulo Cesar Silva de Oliveira


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: Este artigo é um estudo do romance Desde que o samba é samba, de Paulo Lins, e toma o
campo literário como espaço de discussão das formações ideológicas em torno da contribuição
negra, particularmente do samba, para nossa formação cultural. A integração dos negros em
uma sociedade de classes opõe ordem social moderna e ordem estamental, conforme Florestan
Fernandes (2007). Neste sentido, o diálogo com o pensamento social toma o romance de
Lins como locus privilegiado da discussão sobre as modernidades negras no Brasil e o discurso
literário como uma arena de múltiplas narrativas postas em debate.

Palavras-chave: Desde que o samba é samba. Pensamento social. Modernidades negras. Teoria.

Abstract: This article is a study of the novel Desde que o samba é samba, by Paulo Lins, and takes
the literary field as a space in the discussion of the ideological formations around the black
contribution, particularly of the samba, to Brazilian cultural formation. The integration of
blacks into a class society opposes modern social order and state order, according to Florestan
Fernandes (2007). Therefore, the dialogue with Brazilian social thinking takes Lins’ novel as a
privileged locus in the discussion on Brazilian black modernities and the literary discourse as an
arena in which multiple narratives clash.

Keywords: Desde que o samba é samba. Social thinking. Black modernities. Theory.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


132 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

Introdução

O romance Desde que o samba é samba, de Paulo Lins (2012),


representa ficcionalmente a trajetória de um grupo de artistas negros que
empreenderam na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século
XX, uma revolução poético-musical e estética que inicialmente marcou a
cena carioca e fluminense e se transformou em pouco tempo em um dos
símbolos mais potentes da chamada identidade cultural nacional.
O romance de Lins é uma ficção que toma por base personagens
históricas como os sambistas Ismael Silva e Brancura, protagonistas da
trama e arautos de uma ideia artística cujo percurso se confunde com
as lutas culturais, sociais, políticas e econômicas da chamada Primeira
República, República Velha ou República das Oligarquias (1889-1930) e
da modernidade pretendida após a chegada de Getúlio Vargas ao poder,
cunhada pela historiografia como Revolução de 30.
Ismael Silva (Milton de Oliveira Ismael Silva) é considerado o artista
mais importante no desenvolvimento da arte do samba e de sua trajetória na
ordem cultural da Segunda República, também conhecida como a Era Vargas
(1930-1945). Brancura (Silvio Fernandes) foi um sambista representativo
da margem e sua jornada expõe as antinomias de uma sociedade recém-
saída da escravização, cujos negros, vítimas preferenciais dos descasos da
jovem república, foram lançados em um processo de integração social que
se constituía pelas vias da exclusão. Ambas as personagens são centrais para
o desenvolvimento da linha narrativa do romance de Lins e protagonizam
uma espécie de saga dos marginalizados no campo cultural.
Já na primeira cena da obra, além dos protagonistas Ismael Silva e
Brancura, a narrativa apresenta aos leitores algumas personagens-chave,
dentre elas, a prostituta Valdirene e seus amantes: o português Sodré e o
malandro Valdemar. Também somos apresentados a Tia Amélia, mãe de
Valdemar. Estamos em meados da década de 1920, no bairro do Estácio,
Rio de Janeiro, em que está prestes a se desenrolar uma tragédia de sangue,
passional, entre o “português” Sodré e o jovem Valdemar, pela exclusividade
da prostituta Valdirene, em um conhecido bar da antiga Cidade Nova. O
embate foi planejado pelo malandro Brancura, que explorava a prostituição
na antiga Zona do Mangue, pois Valdirene era sua “protegida” e amante.
Brancura planejara vingar-se de Sodré, que, ou morreria nas mãos de
Valdemar ou seria preso caso assassinasse o jovem. O plano contava com a
OLIVEIRA, P. C. S. de | 133

cumplicidade de Valdirene, porém, frustrando as expectativas de Brancura


e dos leitores, chega ao local Tia Amélia, mãe de Valdemar. Informada da
contenda, ela evita a tragédia e conduz o filho de volta à casa. O leitor vai aos
poucos se inteirando do papel de algumas personagens da enorme galeria de
sujeitos que o romance contempla, situando-se ainda no espaço geográfico
e nos ambientes de uma região crucial para a compreensão ampliada e
renovada dos eventos culturais que marcaram a cidade do Rio de Janeiro e a
cultura brasileira nas primeiras décadas do século XX.
Como dito, o tempo histórico situa o leitor na década de 1920, logo
após a reforma urbana do prefeito Francisco Franco Pereira Passos (1902-
1905), também conhecida como “Bota-abaixo”, um conjunto de iniciativas
como demolições, expulsões e expropriações que redefiniram a área do
centro do Rio recém-republicano, capital e principal cidade do país. O
acelerado desenvolvimento urbano carioca ocorreu pari passu com os fluxos
migratórios que impulsionaram a ideia das reformas que, como de praxe,
atingiriam profundamente as camadas médias baixas e baixas da população.
Higienizar, demolir, sanear, organizar e, principalmente, “civilizar” a capital
da República, livrando-a da má fama de cidade insalubre e acometida por
doenças como a dengue, a leptospirose, a malária, dentre outras, foram
as palavras de ordem do prefeito. Para a consumação do projeto, foram
alargadas, modernizadas e prolongadas as até hoje essenciais e principais vias
urbanas da cidade, como as Avenidas Rio Branco, Mem de Sá, Marechal
Floriano e Passos (batizada em homenagem ao alcaide). Alguns morros,
como o do Castelo e o do Senado foram removidos, aplainados. Ruas, como
a antiga Matacavalos, hoje Riachuelo, foram reurbanizadas; cortiços e casas
de pequenos comércios foram expropriados, enfim: muito do que impedia
o avanço civilizatório de Pereira Passos foi removido da paisagem carioca.
Cerca de 700 a 3 mil construções foram demolidas .
O deslocamento forçado, provocado pelas ações de Pereira Passos,
levou populações de negros (e) pobres para os subúrbios e para as encostas
dos morros, próximos ou distantes do Centro. Na área central da cidade,
o Morro do Livramento, onde nasceu Machado de Assis; o Morro da
Providência e, no caso da ambientação geográfica do romance de Paulo
Lins, o Morro do São Carlos, foram algumas áreas densamente ocupadas. A
grande diversidade racial, cultural e religiosa dessas populações contou com
a presença marcante das “tias” baianas, um grupo de mulheres vizinhas ou
com laços de amizades, a grande maioria negras, que exerceram um papel
134 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

vital na formação cultural do samba. Além delas, retirantes fugindo das


secas do Nordeste ou da Guerra de Canudos; judeus asquenazes e europeus
oriundos de áreas empobrecidas do velho continente formaram na região
um caldo étnico-cultural heterogêneo, um mosaico social na cidade que se
queria moderna. Outra amostra desse ambiente variado pode ser encontrada
no romance O preto que falava iídiche, de Nei Lopes (2018), cuja trama
central é a história do amor entre o inteligente preto Nozinho e a judia
branca Rachel, contada por um narrador homodiegético que assim define
sua tarefa:

E de tudo isso me veio o gosto, o prazer de estudar a condição humana.


De estudar o comportamento dos grupos sociais em função do meio; os
processos que interligam os indivíduos em sua vida social; a evolução social
desses grupos; e os costumes, as crenças e as tradições transmitidas de geração
em geração, que permitem a continuidade de uma determinada cultura ou
de um sistema social (LOPES, 2018, p. 14).

Recorremos a esse diálogo com o romance de Lopes para ilustrar


mais um olhar de ficcionista contemporâneo para a complexa história da
formação social da cidade do Rio de Janeiro:

Aquele povo fazia parte de contingentes livres e libertos que, com a Abolição,
se instalaram nas precárias casas de cômodos das ruas vizinhas à Praça, e
que depois, com os espaços esgotados, começaram a levantar casebres
improvisados nas encostas dos morros, como o da Providência – que, depois
da Guerra de Canudos, acabou ganhando o apelido de morro da Favela,
como todo mundo sabe (LOPES, 2018, p. 16).

Estamos diante de ambientação e passagens histórico-geográficas


que Paulo Lins, em outra mirada, também ficcionalizará. A essas ficções,
classifico de “literatura de repovoamento”: elas nutrem reflexões políticas que
demandam “respostas” engajadas, por conta de as camadas subalternizadas
da capital do Brasil de então terem protagonizado as transformações mais
abrangentes da cena sociocultural carioca e de forma decisiva. Embora
reconheçamos a essencial contribuição de escritores como Coelho Neto,
Lima Barreto, João do Rio, Benjamin Costallat, além de Marques Rebêlo,
dentre outros, ao acentuarmos o caráter civilizatório e demarcador de
fronteiras culturais que até hoje marcam as antinomias do pensamento
OLIVEIRA, P. C. S. de | 135

social brasileiro, precisamos pensar outras formas de construção da cidade


moderna. Conforme Manuel Bomfim (2013, p. 34), em análise pioneira, “a
realização social se faz, necessariamente, em esforços individuais; mas é na
tradição que se definem as possibilidades de harmonia entre o indivíduo e
o conjunto social”.
1. Paulo Lins e a reescrita da história
Voltando mais atrás no tempo, deparamos com uma narrativa de
repovoamento originária, a seminal obra de Manuel Antônio de Almeida,
Memórias de um Sargento de Milícias. Lida sob ótica renovada, é o grande
documento literário canônico que em meados do século XIX se desviava da
Corte para as regiões onde viviam as populações marginalizadas e periféricas
da capital do Império. Desde que o samba é samba é um romance que bebe
daquela fonte e dela herda o gosto pela ficcionalização da vida miúda, por
histórias encenadas em becos, ruas pobres e vielas enviesadas e íngremes
dos morros e cortiços cariocas, habitadas pela gente humilde que escreveu
história forte na memória da nação. No romance de Lins, aprofundamos
o conhecimento dos sujeitos representativos de uma história ainda a ser
contada.
O já mencionado Brancura era o apelido de Silvio Fernandes (Rio
de Janeiro, circa 1908 – 1935). Junto com Milton de Oliveira Ismael Silva
(Niterói, RJ – 14 de setembro de 1905 – Rio de Janeiro, 14 de março de 1978);
Bide (Alcebíades Maia Barcelos, Rio de Janeiro, Niterói, RJ, 25 de junho de
1902 – Rio de Janeiro, 18 de março de 1975); Baiaco (Osvaldo Caetano
Vasques, Rio de Janeiro, 1913- 1935); Mano Edgar (Edgar Marcelino dos
Passos, Rio de Janeiro, 1900 – 1931), dentre outros, fundaram a primeira
escola de Samba, a “Deixa Falar”, em 1928, lançando as bases do que hoje
se chama “samba de sambar”: produção musical-literária diversa das antigas
marchas, maxixes e lundus que dominavam a cena musical carioca. O grupo
ficou conhecido como a “Turma do Estácio”, frequentadores das rodas de
samba da Cidade no final da década de 1920 na chamada Pequena África,
berço do samba carioca.
Não é demais lembrar que, antes da emergência desse grupo,
“Pelo Telefone”, de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, conhecido como
Donga, possibilitara em 1916 a primeira gravação de um samba no Brasil,
obviamente não sem discussões acaloradas a posteriori sobre esta primazia.
O fato é que, bem antes da ascensão do grupo responsável pela criação
da primeira Escola de Samba, o ritmo ganhava notoriedade através de
136 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

registros técnicos e modernos para a época que permitiram não somente


a rápida reprodução das canções, mas também sua divulgação em massa.
Assim sendo, não é possível ignorar a importância dos movimentos
empreendidos pela população negra e que impactaram no crescimento das
rádios, no desenvolvimento das gravadoras e na difusão em larga escala de
uma nova arte popular, aspectos da modernidade que já Walter Benjamin
(1985, p. 166) havia pensado como “reprodutibilidade técnica”: [...] a
reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem
desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados
por longos intervalos, mas com intensidade crescente”.
Benjamin admitia que no interior dos grandes períodos históricos
o modo de existência das coletividades se transformava toda vez que a
percepção do mundo se alterava, confirmando o condicionamento histórico
da percepção. Com a reprodução técnica e com o surgimento de artes
concentradas nos novos meios de produção artística como, por exemplo,
o cinema, a música em disco e a fotografia, a unicidade e a singularidade
antes determinantes do caráter de aura em torno das obras começam a
ceder à volatilidade do objeto contemplado, não mais determinado apenas
pelo critério da autenticidade e pelo valor de culto. O valor de culto das
obras começava a recuar, junto com seu valor de eternidade, daí emergindo
o caráter de exposição perante o público. Segundo Benjamin (1985, p.
185), se “a técnica atua sobre uma forma de arte determinada”, “as formas
artísticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde
serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte”, o que nos
leva a compreender que “transformações sociais muitas vezes imperceptíveis
acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas
pelas novas formas de arte”.
Em Desde que o samba é samba, a ficcionalização dos pioneiros na
criação da primeira Escola de Samba deve ser lida conjuntamente com os
primeiros momentos da história do disco e da música popular. Lins recorda
a importância da população negra em um pensamento social e cultural
dominado pelo caráter de exclusão que refletia a descontínua modernidade
fabricada à revelia dos sujeitos subalternos, especialmente os escravizados
recém-libertos. Pretos e pobres eram sujeitos de uma ordem não moderna,
não especializada, segundo o pensamento hegemônico. Feita a Abolição, era
preciso integrar, na sociedade, a massa liberta, mas essa incorporação deveria
ser liderada pelos “civilizados”, que tinha em alta conta um padrão de
OLIVEIRA, P. C. S. de | 137

modernidade que se alinhava às ideologias estrangeiras, principalmente ao


modelo europeu. Nada mais distante do que trata o romance de Lins. Nele,
vemos o drama da modernidade brasileira, debatendo-se em meio ao desejo
de se criar “uma ordem social competitiva capaz de absorver os diferentes
setores da população, ainda que parcialmente, nos estratos ocupacionais
e sociais do sistema de produção” dentro de um sistema que carregava
no seu interior o “problema da cor”: uma complexa herança do passado
escravocrata acentuada por um capitalismo dependente que, longe de
promover encontros, consolidava-se na exclusão manifestada por “atitudes
preconceituosas e comportamento discriminativo” (FERNANDES, 2007,
p. 93). Surpreende, pois, como afirma Humberto M Franceschi (2010,
p. 167), que “um pequeno grupo do bairro do Estácio, desconhecido
e inteiramente livre, inventou o samba de carnaval”. Mesmo com uma
“música nova e surpreendente”, nada, porém, “podia prever sua rápida
expansão, logo consolidado pela divulgação, tanto pelo disco como pelo
teatro musicado e, pouco mais tarde, pelo rádio”.
Em 1928, foi fundada a Escola Deixa Falar, no Morro de São Carlos,
gestada nos botequins Apolo e Cumpadre, na subida do Morro de São Carlos,
postos em evidência no romance de Lins. Esses bares eram ainda pontos de
encontro dos que vinham das rodas de samba e atraíram gente de Benfica,
Madureira, da Providência e da Gamboa, dentre outras áreas da cidade. Nesta
confederação de artistas negros, pobres e periféricos destacaram-se Paulo da
Portela, Geraldo Pereira, Cartola, Aniceto do Império, Manacéia, Alcides
Malandro Histórico, Carlos Cachaça, Chico Santana e Nelson Cavaquinho,
para ficarmos em alguns poucos e representativos nomes de um tempo mais
distante .
No romance, personagens anônimas se confundem com figuras históricas
determinantes para a cultura negra. Tia Amélia, por exemplo, personagem
citada no início de nosso artigo, é referência a uma das “tias baianas” da região.
Lins deve ter tomado liberdade em relação aos fatos históricos, se considerarmos
a Tia Amélia histórica, mãe de Ernesto Joaquim Maria dos Santos – o famoso
compositor Donga (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1889 – 25 de agosto de 1974),
autor de “Pelo telefone”, como dito – e não esposa de personagem homônimo
do romance. Os demais sujeitos que compõem a cena romanesca com que
iniciamos este artigo são exemplos da diversidade de tipos humanos que
circulavam pela região da Cidade Nova: prostitutas, rufiões, descendentes de
portugueses, imigrantes, ex-escravizados etc.
138 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

A trama inicial, algo rocambolesca, recria ficcionalmente o ambiente


social que expressa a história de uma cultura e de um grupo – seus processos
de transmissão e construção artística – formado majoritariamente por
descendentes de escravizados três décadas após a abolição. O romance
discute, sem ser panfletário, as tentativas de se minimizar o papel dessas
populações nos movimentos identitários de formação da cultura nacional.
Humberto M. Franceschi (2010, p. 198) nos aponta que a força criativa
daquele grupo

[...] surpreendeu os pseudodonos da cultura, que jamais poderiam imaginar


que aquele pequeno agrupamento inteiramente desconhecido, filhos da
primeira geração saída da escravidão, pudesse exercer tal força na alma
popular a ponto de botar em risco a tranquilidade das elites ainda abaladas
com as consequências da abolição e do encilhamento .

No entendimento de Franceschi, a comunidade multifacetada que


ocupava a região do mangue e seu entorno, por onde o grupo do Estácio
circulava, ameaçava o status quo das elites, cujas regras e normas eram, no
todo ou em parte, ignoradas. Aquele grupo acabou estabelecendo uma ordem
particular que, ao mesmo tempo em que fundava uma tradição, por meio
de diversas práticas de sociabilidade questionava e/ou rejeitava fortemente
o tradicionalismo da cultura hegemônica, testando os limites e alcances da
arte que criara. Suas práticas se consolidavam através de mobilidade intensa:
eram atores que transitavam tanto pelo submundo dos bares, das zonas de
prostituição, por morros e mangues, quanto pelas áreas nobres da cidade, em
contato com pessoas de prestígio e em ascensão, como o cantor Francisco
Alves, responsável pela compra e difusão dos sambas do grupo do Estácio.
Essas negociações entre classes implicariam o reconhecimento e a
implantação do novo estilo poético, literário e musical, o qual não somente
expressava artisticamente um pensamento de grupo, mas, principalmente,
inseria no âmbito da cultura urbana de uma cidade cujas elites optavam
por se afrancesarem, uma “outra modernidade” na qual vários baluartes do
modernismo beberiam. Em uma passagem do romance, Lins ficcionaliza
um diálogo ilustrativo entre um interessado e entusiasta Manuel Bandeira
com um algo irônico e falso modesto Ismael Silva:
OLIVEIRA, P. C. S. de | 139

O poeta não tinha voz para falar sobre os sambas daquele crioulo de fala
mansa, educado, simples, com tanta riqueza de arte e tanta sabedoria com
as palavras.
– Você que inventou esse ritmo?
– Sim, eu venho pensando nisso há muito tempo.
– É dois por quatro também. Mesmo compasso. Ficou mais bonito mesmo,
o ritmo mais elaborado na percussão, tudo redondamente tocado, boa a
harmonia, as letras são maravilhosas.
– Puxa, Seu Manuel.
– Que Seu Manuel, rapaz! Senhor aqui é você, meu rei! O senhor é que
merece pronome de tratamento à altura de sua vocação artística, inovadora,
de vanguarda – E voltando-se para o garçom: – Por gentileza, meu querido,
pode servir mais um uísque aqui pro meu amigo.
– Vanguarda é o pessoal de São Paulo, são os senhores da literatura, do
Modernismo, eu tô sabendo.
– Pare, por gentileza, de me chamar de senhor. Cante mais um samba, cante,
cante, por favor (LINS, 2012, p. 231-232).

O encontro se deu em um elegante restaurante da Zona Sul do Rio de


Janeiro, em companhia de Francisco Alves. Estamos na década da Semana
de Arte Moderna de 1922, a qual já havia causado comoção nas paisagens
da arte brasileira. A deferência de parte a parte reflete um momento em
que as elites culturais, dos “ricos inteligentes da zona sul” (LINS, 2012, p.
230), aproximavam-se da arte popular e não é sem alguma ironia que Silva
faz reverência a Bandeira. Quando diz que vanguarda é o pessoal de São
Paulo, o “eu tô sabendo” informa ao poeta famoso que também ele está
bem informado sobre os caminhos da arte consumida pela intelectualidade.
O grupo ruma para o Café do Compadre, no Estácio, onde Silva, Alves,
Bandeira e a cantora Carmem Miranda, que a eles se junta, encontram
Brancura, Bide e Juvenal, que promovem uma sessão de samba no pandeiro,
tamborim, surdo e violão. Dali vão a um terreiro de Umbanda, no morro,
a pedido de Carmem Miranda. As casas de Candomblé e Umbanda, além
dos cultos religiosos, eram também locais onde o samba escapava das
perseguições policiais. Ao conluio entre religião e samba, acresceu a afluência
de artistas, poetas, intelectuais em um mundo cada vez mais representativo
das vanguardas populares que aos poucos dominariam a cena musical, com
ecos na cultura, na política e nas diversas áreas do pensamento. A própria
Carmem Miranda foi um instrumento potente da propaganda getulista e na
difusão mundo afora de uma certa brasilidade.
140 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

O samba passa de marginalizado a protagonista da cena carnavalesca.


Em 2 de março de 1935, ocorre o primeiro desfile oficial das Escolas de
Samba. Pela primeira vez, as agremiações receberam subvenção oficial da
Prefeitura. A trajetória meteórica das Escolas foi um contraponto ao descaso
com que as autoridades trataram a produção cultural das camadas baixas
da população. O pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2011) entende
que o grande desafio daqueles artistas era transformar suas narrativas em
manifestações concretas de uma concepção de mundo particular, seja, ao
mesmo tempo, falando de sua história seja defendendo os interesses do
grupo na consolidação de uma memória coletiva.
Quanto a isso, Michael Pollak (1992, p. 2), ao tratar das relações entre
memória individual e memória coletiva, mostrou que os elementos comuns
às duas são “os acontecimentos vividos pessoalmente e os “acontecimentos
“vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer”. Neste sentido, as narrativas
ficcionais apresentam problemas teóricos que precisamos enfrentar: sendo
criação de um autor que no presente dirige-se a um passado, não para
historiar, mas para representá-lo, a ficção revela-se problemática tanto mais
os critérios de invenção e ficcionalização do passado são submetidos às
estratégias do discurso literário. Vejamos então como são estruturadas as
relações entre história, memória e a enunciação literária.

2. História, memória e discurso literário em Desde que o samba é samba

Desde que o samba é samba é romance de escritor contemporâneo,


lançado em 2012, e sua escrita é a representação ficcional de um capítulo de
nossa história cultural: a emergência da arte do samba e de seus protagonistas
e coadjuvantes no contexto social da Primeira República. Seu processo de
representação se concentra na ficcionalização de sujeitos históricos e dialoga
com o passado diferentemente das abordagens históricas. A ficção opera
por meio de um como se no qual identificamos, ao mesmo tempo, o fato
histórico a que personagens e ações remetem e a tutela de um narrador
sujeito de uma enunciação que remete à instância autoral, regente desses
processos. Isso não invalida o papel do discurso literário como espaço de
interpretação, registro e manutenção da memória, pois as narrativas orais,
embora não partam da relação autor, narrador e narrativa, recuperam
OLIVEIRA, P. C. S. de | 141

memórias de pessoas que intercalam suas funções de sujeitos históricos com


as de personagem e narrador. A memória dos sujeitos é atravessada não
somente pelo que viveram, mas também pelo que presenciaram ou ouviram
de terceiros. Daí a ideia de uma memória mais “verdadeira” ou próxima ao
real ser discutível. Michael Pollak chamou de “projeções” ou “transferência
por herança” as memórias que revelamos e são codependentes das memórias
a mim reveladas por outros.
A ficcionalização da história do samba por Paulo Lins entrelaça
diálogos e referências. É de notar que ao final da obra haja uma “Bibliografia”
com uma lista de obras consultadas; uma seção com sites especializados em
samba; e uma pequena lista de estudos específicos sobre o samba, em que
aparece uma inusitada Presença da literatura brasileira III: Modernismo, de
Antônio Candido e José Aderaldo Castello. A presença de uma bibliografia
crítico-literária em uma obra de ficção é um elemento a se destacar. Indica
pesquisa acadêmica, embora o fiel propósito do autor seja narrar a história
do ritmo e de seus protagonistas através de uma linguagem em consonância
com os atos de fala e o universo das classes populares representadas. A
preferência pela narrativa realista com tons por vezes naturalistas é coerente
sob o ponto de vista da verossimilhança. Além disso, a pesquisa teórica
listada, embora sejam evidentes as formas com que os dados históricos
se mesclam à invenção ficcional, jamais desfavorece o literário e ajuda os
leitores interessados na busca por um entendimento teórico do fenômeno
cultural samba-enredo e sua importância como arte de vanguarda.
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2021) vai dizer que a
“modernidade negra” está vinculada a uma série de eventos, dentro e fora
do Brasil, que buscaram o protagonismo negro, como a Harlem Renaissance,
movimento dos negros da periferia de Nova Iorque, que redefiniu a paisagem
negro-moderna americana, na música, na literatura, no teatro e nas demais
formas artísticas. No Brasil, salienta Guimarães (2021, p. 84-85), houve
uma busca de reconhecimento da parte dos negros – palavra que começa
a substituir “preto” ou “homens de cor” – como brasileiros e não como
africanos. A palavra negro havia ganhado um sentido bastante pejorativo
nos anos que antecederam a Abolição; naquele mesmo período, o termo
“raça” passou a figurar em detrimento da palavra “classe”, usada, segundo
Guimarães, no século XIX para se referir tanto aos senhores escravocratas
quanto aos escravizados.
142 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

Florestan Fernandes (2007, p. 93) afirmou que o “problema da cor”


reflete uma “complexa herança do passado, continuamente reforçada pelas
tendências assumidas pela desigualdade sob o capitalismo dependente, e
preservada através da manifestação conjunta de atitudes preconceituosas e
comportamentos discriminativos baseados na cor’”. Fernandes entendia que
a estrutura de uma sociedade de classes sob o capitalismo dependente, como
em nosso caso, é um fator que agrava a concentração da riqueza e dificulta
a mobilidade social ascendente e o posicionamento em uma ordem social
que requer sujeitos competitivos sob os parâmetros do grande capital (hoje,
acrescidos do imperativo tecnológico).
Em 1930, Manoel Bomfim já defendia que o Brasil, no contexto
mundial, poderia ser um jogador forte no mundo do capital, desde que
fizesse uma defesa intransigente da história nacional (BOMFIM, 2013, p.
43). Bomfim promoveu uma crítica contundente de nossas elites, segundo
ele, retrógradas e amantes dos privilégios. Nunca é demais recordar, baseada
nessa colocação de Bomfim, a informação trazida por Pierre Verger, em
seu seminal Fluxo e refluxo (2021, p. 32), de que, em 14 de dezembro de
1890, Rui Barbosa emitiu um despacho em que ordenava a destruição de
livros e documentos a respeito da escravidão depositados no Ministério das
Finanças, sob o pretexto de evitar uma sangria nos cofres públicos, com
pedidos de indenização. Uma nova circular do Ministério das Finanças,
emitida pelo conselheiro Tristão de Alencar Araripe, de 29 de maio de 1891,
decretou a destruição dos arquivos provinciais, privando as gerações futuras
de documentação essencial ao estudo da escravização.
Restavam, portanto, as fontes orais e as obras artísticas sobreviventes
da devassa e da destruição. A recuperação do passado pela literatura
revela aspectos não absorvidos ou devidamente esmiuçados pela história
oficial. Ainda que operando na imaginação-invenção, as relações entre os
discursos literário e histórico lançam luzes sobre as lacunas provenientes
do apagamento dos arquivos. Podemos compreender, por meio do texto
literário, a importância das periferias em um romance como Memórias
de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, espécie de
narrativa inaugural que deslanchou uma série de outras das quais o romance
de Paulo Lins é um exemplo contemporâneo. Almeida estreou no romance
sem aplauso público e mesmo as edições que se sucederam não fizeram
jus à importância que a obra viria a ter ao longo do século XX. Marques
Rebêlo (1943, p. 115), por exemplo, disse que Almeida foi “o escritor
OLIVEIRA, P. C. S. de | 143

que pela primeira vez escreveu como se fala no Brasil”, mas “teve a sua obra
inteiramente deturpada, quase irreconhecível”. Em 1941, Mário de Andrade
reconhecia em Almeida o caráter pioneiro de documentarista excepcional e
folclorista musical, precursor de estudos de música popular, tendo inclusive
descoberto que o fado, derivado do lundum afro-colonial nacionalizado por
Portugal, já era dança muito usada pelos ciganos do Brasil. Quanto à escrita
de Almeida, ao defendê-lo da pecha de escrever mal, Mário concorda que ele
“se exprimia numa linguagem gramaticalmente desleixada”, mas adverte que
era “coisa aliás muito comum no tempo dele” (ANDRADE, 1941, p. 14).
Ao “desleixado da linguagem”, Andrade contrapõe “um vigoroso estilista”,
de “vocabulário variadíssimo e coerente”, o que as Memórias testemunham,
com seus “brasileirismos, prolóquios, modismos, ditos e frases-feitas”, sem
esquecer as “transformações fonéticas populares”, que fazem com que as
“pílulas” da tradição escrita sejam pronunciadas pela comadre como “pírulas”
(ANDRADE, 1941, p. 14).
Parece-nos sintomático que o romance de Lins também tenha sido alvo
das mesmas críticas. De fato, a edição é descuidada. Há inúmeros problemas
de revisão, inclusive nas “Principais referências do texto” (LINS, 2012, p. 296),
nas fontes bibliográficas e a linguagem por vezes parece ser “desleixada”. Se
Andrade estranhou que no romance de Almeida, tão rico documentalmente,
além da citada tradição afro-colonial do lundu, “haja ausência quase total de
contribuição negra” (ANDRADE, 1941, p. 11), e sequer haja um personagem
negro, embora se saiba que os barbeiros de então, que aparecem no romance,
eram geralmente negros, assim como eram negras as baianas dançarinas da
procissão dos Ourives, sendo o romance prodigioso em “referências desatentas
a escravos e às crias de d. Maria” (ANDRADE, 1941, p. 12), o protagonismo
dos sujeitos negros no romance de Lins é total.
Entretanto, devemos observar que reações à homossexualidade de
Ismael Silva (CABRAL, 2012), no romance, revelam outras faces da recepção
das obras artísticas que tomam a história como interlocutora. É mérito de
Lins não evitar a polêmica, como se lê na passagem: “Esse tempo na vida
de Silva foi de felicidade daquelas que se quer para sempre. Quem diria que
aquele sifilítico, homossexual, negro, pobre iria trabalhar com o maior cantor
da época” (LINS, 2012, p. 230). Sem atentar para o crivo moral, o modo de
entrada na obra requer novas formas de abordagem. A despeito de falhas,
encontramos nele “uma” história do samba muito mais representativa da
realidade de um grupo social do que polêmica.
144 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

Autor contemporâneo, Lins teve a seu dispor um manancial documental


que lhe permitiu narrar com menos amarras e mais propriedade a saga de
um povo, sujeitos integrados por exclusão em uma sociedade de favores e
privilégios (FERNANDES, 2007, p. 290), na qual o desmantelamento da
estrutura colonial não favoreceu os escravizados. A questão negra se daria
na luta contra o preconceito, a exclusão e pelas reivindicações por direitos
usurpados em uma sociedade que tentava (tenta) apagar o passado e negava
(nega) o preconceito racial (GUIMARÃES, 2021, p. 93). Demanda-se dos
movimentos negros um posicionamento “antibranco”, conforme Florestan
Fernandes (2007, p. 313), que deve “mostrar aos brancos o verdadeiro
sentido da revolução democrática da personalidade, da sociedade e da
cultura”.
Paulo Lins é membro da confraria literária inaugurada por Manuel
Antônio de Almeida. A narrativa contemporânea revela-se espaço de memória
e fonte de estudos, reflexão e crítica sobre os processos formadores da cidade.
A constituição de uma cultura negro-brasileira e/ou negro-carioca encontra,
nas poéticas literárias do agora, reflexões consistentes sobre as flutuações
e movimentações das classes subalternas no espaço urbano marcado por
omissões e esquecimentos, lacuna que o romance de Lins ajuda a preencher.

3. Literatura, cultura e religião: reescrituras da história

Na abertura de Desde que o samba é samba, há uma espécie de


“prólogo”, assinado por um eu-narrador chamado Paulinho Naval, que se
dirige a um ou mais narratários. Ele é uma espécie de locutor-apresentador
de uma Escola de samba prestes a entrar na avenida e cujo enredo se confunde
com a trama do romance. A passagem é entrecortada por citações, algumas
anacrônicas, em relação ao tempo histórico do romance (por exemplo, “a
vitória de nossos ancestrais”, é de Marcelo Yuka, um dos criadores da banda
O Rappa e falecido em 18 de janeiro de 2019). Em seguida, a trama em si
apresenta aos leitores Sodré, Brancura e Valdirene circulando pelas ruas do
Estácio, bairro-personagem, pelo Bar do Apolo, o baixo meretrício, na Rua
do Estácio, no Largo do Estácio, frente os sobrados, como já vimos.
A Umbanda é outro traço fundamental na trama. O marco de
seu nascimento, na Rua Floriano Peixoto, no bairro de Neves, em São
Gonçalo, deu-se em 15 de novembro de 1908 (atualmente Dia Nacional
OLIVEIRA, P. C. S. de | 145

da Umbanda, segundo a Lei 12.644, de 17 de maio de 2012) e teve na


figura de Zélio de Moraes um precursor-fundador . A história da Umbanda
insere-se no contexto do romance como capítulo especial na história da
cultura negro-carioca. Zélio de Moraes tinha sido acometido de um grave
problema de saúde e teria sido levado a uma sessão na Federação Espírita,
onde pela primeira vez se manifestou o Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Naquela sessão, espíritos de negros escravizados e indígenas começaram a
se manifestar e logo foram rejeitados pelos membros da Federação, que os
consideravam atrasados, cultural e moralmente. Foi então que o Caboclo
proferiu um discurso em defesa das entidades: se ali não havia espaço para a
manifestação daqueles espíritos, a casa de Zélio de Moraes se tornaria o local
onde eles poderiam se expressar, o que efetivamente ocorreu, no dia seguinte,
16 de novembro de 1908. Fruto da luta e da resistência espiritual contra a
intolerância religiosa, social e racial da Federação, a Umbanda aliou-se às
demandas das populações subalternizadas e oprimidas que nas primeiras
décadas do século passado fizeram sua revolução cultural. Em 1908,
firmava o nascimento da Umbanda e seu crescimento confundia-se com a
emergência do samba de sambar do Estácio, dois eventos determinantes na
história cultural do país:

A Umbanda só fala coisa boa, mesmo quando é ruim, porque nada é por
acaso na eternidade. É a reunião de toda espiritualidade que andou por essa
terra nas religiões. A junção de tudo, tá tudo mudando, a espiritualidade vai
mudando também. Umbanda é uma religião de vanguarda, modernista, que
nem o samba. Tá me entendendo? A fila anda. Umbanda é evolução (LINS,
2012, p. 243).

Faz todo sentido, retornando ao romance, que a pendenga entre


Valdemar e Sodré tenha sido resolvida com a intervenção de Tia Amélia
(mãe de Donga, apelido de Ernesto Joaquim Maria). A presença das tias
baianas foi elemento central da vida social na região do Estácio e seu entorno.
As tias baianas – Tia Ciata, Hilária Batista de Almeida (Santo Amaro, BA,
1854 – Rio de Janeiro, 1920), na trama referida como Tia Almeida – foram
responsáveis por reunir e acolher cantores, compositores e músicos que
transformariam o panorama cultural da cidade do Rio de Janeiro, como
Hilário Jovino Ferreira, Donga, Sinhô (José Barbosa da Silva) e João da
Baiana (João Machado Guedes), dentre outros.
146 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

A ideia de uma vanguarda liderada por sujeitos subalternizados


perpassa o romance. O nascimento da Umbanda, como vimos, se deu pela
recusa da Federação Espírita de aceitar a manifestação de “espíritos não
evoluídos”, de pretos, pobres, marginalizados, prostitutas etc. No romance
de Lins, as diretrizes na nova religião são assim descritas: “Será uma religião
que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre
todos os irmãos, encarnados e desencarnados” (LINS, 2012, p. 41). É o
próprio Caboclo quem arremata: “Será uma nova religião baseada no
Evangelho” (LINS, 2012, p. 41); “– Não, é Umbanda! Palavra de origem
sânscrita que quer dizer “Deus ao nosso lado” (LINS, 2012, p. 43).
Também o Candomblé foi determinante no conjunto de forças
culturais que rondaram a revolucionária arte nascente: “Eram várias as
baianas mães de santo do Candomblé a tomarem conta da Pequena África,
que, segundo Heitor, se estendia da zona do cais até a Cidade Nova e tinha
como capital a Praça Onze”, região onde surgiram “músicos que fizeram
apresentações no exterior, com músicas gravadas pelos maiores cantores da
época” (LINS, 2012, p. 130). Em outra passagem, lemos: “Samba de verdade
tinha que ter o sal do batuque dos terreiros de Umbanda e Candomblé, uma
batida grave para marcar, umas agudas para recortar” (LINS, 2012, p. 161).
Essas interseções socioculturais se expandiram para os campos da culinária,
da vestimenta, pelos quintais (os novos salões literários e musicais, espaços
de reunião e de convívio, visto que ali os conflitos, as lutas culturais, as
guerras de narrativas faziam parte de um caldo cultural que, embora tivesse
a harmonia como ideal, era palco das diferenças em jogo). As diferenças
apontavam para o diálogo com a tradição e a cultura hegemônicas: o samba
se tornaria Patrimônio Imaterial do Brasil e símbolo da cultura nacional,
não mais periférico ou regional. Da mesma forma, ganhavam destaque as
áreas marginalizadas do Rio de Janeiro (a Pequena África, o Estácio) em
meio a uma rede cultural disseminada pelas diversas regiões da cidade, como
podemos ver em breve extrato da poesia de Mestre Monarco (Hildmar
Diniz), compositor da Portela e de Oswaldo Cruz e Madureira, com a qual
encerramos essa reflexão:

Passado de glória (1970)


(Monarco)

A Mangueira de Cartola
Velhos tempos do apogeu
OLIVEIRA, P. C. S. de | 147

O Estácio de Ismael
Dizendo que o samba era seu
Em Oswaldo Cruz
Bem perto de Madureira
Todos só falavam
Paulo Benjamin de Oliveira

Conclusão

Na literatura de Paulo Lins, ainda que sob o risco de resvalar para


certa idealização, podemos dizer que há uma opção pela exaltação da cultura
popular. O tom mais naturalista desfaz certa pureza da escrita em favor de
uma verve dionisíaca que nos leva a (re)conhecer a beleza dos becos, das ruas
e vielas esquecidos. Não é a cidade apolínea que surge das páginas de seu
romance, mas o espaço do sujo, do marginal, do que esteve e está envolto
em um lusco-fusco com lampejos de luminosidade. É nesta região de pretos,
miseráveis, judeus, portugueses pobres e migrantes de toda ordem, habitada
pelos sujeitos expulsos das áreas nobres da cidade com pretensão a Paris,
que o romance de Paulo Lins elabora uma saga do samba, produto maior
de uma arte que se afirmou sem deixar de denunciar e testemunhar os
percalços de uma modernidade aparentemente luminosa, mas que no fundo
era claudicante e alijava as periferias e os subúrbios de suas promessas de
progresso, mobilidade e emancipação.
Repleto de elementos essenciais acerca do percurso das formas artísticas
que se desenvolveram no Rio de Janeiro moderno, e aqui introdutoriamente
analisadas, as novas cartografias literárias abrem produtivas e instigantes
trilhas no circuito crítico. Do desbravador romance de Manuel Antônio de
Almeida à narrativa de Desde que o samba é samba, de Paulo Lins, uma
história dos contornos da cidade do Rio de Janeiro está sendo escrita
e reescrita e é pela contribuição decisiva do discurso literário que a roda
dos saberes gira e os aprendizados atendem por vários nomes, mas podem
ser englobados pela ideia de mathesis, termo pensado por Roland Barthes
(1987) para definir a força maior da literatura: os saberes.
148 | Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

Referências

ANDRADE, Mário de. Introdução. In: ALMEIDA, Manuel Antônio de.


Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Livraria Martins, 1941, p.
5-19.

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. São


Paulo: Livraria Martins, 1941.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,


1987.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica.


In: ___. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas, v. I. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 165-196.

BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpações das tradições degradação


política. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: PUC-Minas,
2013.

CABRAL, Sergio. Apesar do título, livro de Paulo Lins tem mais intriga que
samba. Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 29 de abril de 2012. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/39878-apesar-do-titulo-
livro-de-paulo-lins-tem-mais-intriga-que-samba.shtml. Acesso em 12 de
julho de 2020.

CANDEIA FILHO, Antônio. Sou mais samba. In: CANDEIA et al. Quatro
grandes do samba. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1977.

COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido


da tradição em Paulinho da Viola. 2. ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2011.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. revista. São


Paulo: Global, 2007.

FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931.


São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.
OLIVEIRA, P. C. S. de | 149

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação


racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021.

LINS, Paulo. Desde que o samba é samba. São Paulo: Planeta, 2012.

LOPES, Nei. O preto que falava iídiche. Rio de Janeiro: Record, 2018.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

REBÊLO, Marques. Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida. Rio de Janeiro:


Ministério da Educação e Saúde; Instituto Nacional do Livro, 1943.

VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo de


Benim e a Bahia-de-Todos-os-Santos, do século XVII ao XIX. Trad. Tasso
Gadzanis. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 19-33.

Como citar este artigo

OLIVEIRA, P. C. S. de. Integrados por exclusão: negritude e mobilidade


em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins. Fragmentum, Santa Maria, p.
131-149, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468334. Acesso em: dia
mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 151-171, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219469080


Submissão: 23/01/2022 • Aprovação: 11/09/2022
Artigo Original

JULGAR-SE LIVRE E DEPARAR-SE COM O OUTRO:


GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A CONSTRUÇÃO DE
UMA IDENTIDADE

JUDGING YOURSELF FREE AND FACING THE


OTHER: DEVIL TO PAY IN THE BACKLANDS
AND THE CONSTRUCTION OF AN IDENTITY

Mônica Gama1
Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, Mariana, MG, Brasil

Resumo: Em Grande Sertão: Veredas, romance que oferece uma interpretação da formação do
Brasil, Riobaldo discorre, entre tantos assuntos, sobre a pobreza, a doença e a retórica da
modernização. A partir de uma sequência narrativa (do encontro com os catrumanos ao
pacto com o diabo), analisa-se como Riobaldo surpreende-se na relação com o Outro. Ao
deparar-se com a pobreza extrema, passar por um povoado devastado pela varíola e encontrar
um fazendeiro que queria os jagunços como escravos, Riobaldo sente-se convocado a tornar-
se pactário, o que coloca em questão a subjetividade e a ética na dinâmica envolvida na
responsabilidade por outrem (Lévinas,1988).

Palavras-chave: Grande Sertão: Veredas; alteridade; pacto; doença; interpretação do Brasil

Abstract: In The Devil to Pay in the Backlands (1956), a novel that offers an interpretation of the
formation of Brazil, the narrator discusses his confrontation with illness, misery and the rhetoric
of modernization. The narrative sequence that goes from the encounter with the catrumanos to
the pact with the devil we analyze how Riobaldo surprises himself in his relationship with the
Other. When facing extreme poverty, passing through a small village devastated by smallpox,
and meeting a farmer who wanted the jagunços as slaves, Riobaldo feels summoned to become
a pact-maker, whenwe see how subjectivity and ethics are called into question in the dynamics
involved in responsibility for others (Lévinas, 1988).

Keywords: The Devil to Pay in the Backlands; Alterity; pact; disease; interpretations
of Brazil
Em 2020, revisitamos muitos livros que tematizavam o papel
1 Atualmente faz Pós-Doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


152 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

devastador das epidemias e doenças. Esse é caso de um dos mais ilustres,


A peste (1947), de Albert Camus. Logo no início, o narrador aponta um
sentimento coletivo de negação diante do horror da doença que se alastra:

Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si


próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos.
O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal,
que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho
mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro
lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais
culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam
que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram
impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham
opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os
deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será
livre enquanto houver flagelos. (CAMUS, 2019, p.5)

Nessa passagem de A peste (1947), de Camus, o narrador avalia o


caráter de irrealidade que o flagelo da peste assume para a população. Na
história da literatura, vemos esse tipo de incredulidade em diversas narrativas
que tematizam as epidemias, como é o caso de obras tão distantes entre si
como O diário do ano da peste (1722), de Daniel Defoe, e O mez da gripe
(1981), de Valêncio Xavier. Esse descompasso com a natureza, que não
responde positivamente ao lugar que imaginamos ser o que está reservado aos
humanos, só poderia, nessa perspectiva, ser resultado de um pesadelo. A falta
de modéstia, que define a peste como impossibilidade, faz com que as pessoas
não se revoltem imediatamente contra a doença, mas contra a ideia de sua
existência, já que ela suprimiria o futuro (e seus negócios), os deslocamentos
(em suas viagens preparadas) e as discussões (com suas opiniões) – o ser
humano aqui não se reconhece submetido à natureza e, importante notar, seu
humanismo se resume em se reconhecer como um ser econômico e cultural
que, diante da doença, não se pode realizar com eficiência.
A avaliação final é a ponte para visitarmos a obra de Guimarães Rosa:
ninguém é livre com a existência do flagelo. É justamente essa a percepção de
Riobaldo em Grande Sertão: Veredas (1956) ao ver a peste no arraial do Sucruiú
e a compreensão, construída aos poucos (ao contrário do tom categórico
assumido pelo narrador de A Peste), de que havia uma iniquidade na base dos
desarranjos sociais. A cena, que ocupa poucas páginas no romance, tem um
impacto (emocional e cognitivo) decisivo nas ações de Riobaldo.
GAMA, M. | 153

Antes de ingressar no Itamaraty, Guimarães Rosa atuou como médico


em uma cidade do interior de Minas Gerais, Itaguara. Essa experiência na
medicina está pontuada em toda a sua obra. Lembre-se, nesse sentido, que
Sagarana (1946), em sua primeira versão intitulava-se Sezão, nome de um
dos contos que depois é renomeado como “Sarapalha”, que traz o diálogo
entre dois homens com malária, tema que já tinha sido abordado no poema
“Maleita”, do volume Magma (1997 [1936])2. Note-se que sezão significa
febre alta e é um dos nomes dados para a malária, o que mostra a importância
do tema naquele primeiro momento de produção do livro.
Em Itaguara, o médico e escritor conheceu o vilarejo de Pará dos
Vilelas, uma das vilas mais antigas de Minas Gerais, que ficava em posição
privilegiada (cogitada até para ser capital do Estado), tornando-se, por isso,
um ponto de parada de tropeiros e boiadeiros. Esse passado ilustre acabou,
contudo, com a malária, que dizimou a região, sendo imortalizado, porém,
no conto “Sarapalha”. O narrador descreve que a doença chegou aos poucos:
“Ela veio de longe, do São Francisco. [...] Cada ano avançava um punhado
de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque
era sezão da brava – da ‘tremedeira que não desmontava’, matando muita
gente” (ROSA, 1967). O conto descreve os sintomas e, entre uma crise e
outra de febre e frio, há um diálogo autorreflexivo entre os dois doentes.
Nas obras posteriores, as narrativas também tematizaram o adoecimento e
seus cuidados ou mesmo a revolta diante da impossibilidade de tratamentos. Não
pretendemos aqui elencar tais momentos, mas compreender, como afirmamos
anteriormente, o efeito do enfrentamento da doença e da miséria no narrador de
Grande Sertão: Veredas.

O flagelo e o Outro

Nos romances sobre surtos de doenças há algumas recorrências que revelam


o modo como a sociedade se relaciona com o fenômeno epidêmico. Um desses
elementos que se repetem em livros como O diário do ano da peste (1722), A peste
(1947) e O mez da gripe (1981), é a representação do Outro como sendo aquele
para quem é compreensível a pestilência: há um desejo de compreensão do flagelo
como sendo algo que atinge o outro, primeiro, o estrangeiro, depois, o pobre. Esse
Outro é menos cidadão e sonha-se coletivamente que a morte se sacie com ele.

2 O volume de poemas é premiado em 1936 mas publicado apenas em 1997.


154 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

Em O diário do ano da peste, que narra a epidemia de 1764 em Londres,


o narrador relata que as pessoas se animavam porque a “cidade estava sã”, já
que 97 paróquias não apresentavam casos e “somente” as 54, “dos rincões
da cidade”, estavam infectadas, o que os fez esperar que, estando “entre o
povo naquele fim da cidade, não fosse mais longe” (DEFOE, 2020, p.7). A
cidade pode estar sã com infectados e mortos em 54 partes de seu território?
A morte do outro não atesta a proximidade da doença, pois esse outro não
é o cidadão; para o cidadão, humanista, como diria Camus, a doença é
impossível porque ela interrompe o futuro – e o futuro está garantido para
o cidadão.
O “Brasil, país do futuro”, já foi “o Brasil é um imenso hospital”.
A primeira expressão, espécie de ameaça a favor da não realização social
no presente e delírio de uma confirmação conjectural de uma grandeza
sem lastro, foi antecedida por essa avaliação do médico Miguel Pereira,
companheiro de Carlos Chagas na época do movimento pelo saneamento
do Brasil, ocorrido entre 1916 e 1920 e que reuniu médicos, cientistas e
políticos em torno da avaliação de que o atraso brasileiro era resultado dos
prejuízos promovidos pelas endemias e descaso do Estado com as populações
rurais.
Mas se o interior do país era pouco sanitarizado, as capitais não
estavam em situação ideal. Pouco antes, o país viveu a Revolta da Vacina,
uma resposta à violência do Estado carioca, que estava expulsando as pessoas
de suas casas para uma reforma urbana. A revolta popular foi insuflada por
grupos de monarquistas e militares que estavam disputando o poder.
A situação guarda uma semelhança desoladora com a pandemia de
Covid-19: os grupos mais desassistidos socialmente foram manipulados para
não se vacinarem, sendo usados para atingir alguns governantes (municipal e
federal, visto que se tratava da capital da jovem República) do Rio de Janeiro.
A mítica contra a vacina da varíola já vinha sendo elaborada há algum tempo,
pois foi desenvolvida no século anterior a partir de vacas contaminadas por
meio das quais se tirava um soro – daí correr o boato, à época, de que
aqueles que se vacinassem ficariam com cara bovina. É importante lembrar
que, tendo chegado ao Brasil por volta de 1830, a vacinação contra a varíola
era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, porém,
não havia produção suficiente para suprir a demanda até 1884 e acabava
destinada apenas à elite. A mudança é promovida por Oswaldo Cruz, que
reinstaura a obrigatoriedade da vacinação em território nacional em 1904 e
GAMA, M. | 155

organiza uma campanha de vacinação com táticas militares e que se somou à


reformulação urbana, resultando na revolta popular que, reprimida, acabou
com a morte de muitas pessoas e o degredo de cerca de 1400 pessoas para a
Sibéria Tropical, o Acre.
Pouco lembrado, esses degredos políticos do início do século
evidenciam a visão de cidadania e territorialidade da primeira República:
o brasileiro que, revoltando-se contra a violência do Estado, tem como
destino ser enviado para o outro Brasil, distante, desconhecido, em viagem
tão perigosa e desrespeitosa que resultava em alta mortalidade, sendo vítima
de mais uma diáspora.
Porém, sabemos que não é apenas em situações desse tipo que temos
o choque entre dois países, tema amplamente explorado por Grande Sertão:
Veredas. É o que vemos desde a escolha do diálogo monológico entre alguém
do sertão e o senhor, letrado, da capital, que constrói a diferença entre o
país profundo e os centros de poder, entendidos, enquanto oposição, como
o Brasil do litoral. Isso fica patente em uma resposta desconcertante de Zé
Bebelo a um dos catrumanos, homens pobres do sertão:

“O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido de
estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?”
“Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça. – “Vim
departir alçada e foro: outra lei – em cada esconso, nas toesas deste sertão...”
(ROSA, 1970, p. 293)

O catrumano reconhece o poder do chefe (revelado pelos agregados,


armas e pertences) e sua cidadania, que responde prontamente que vem
do Brasil e tem como projeto distribuir autoridades e competências, impor
outra (nova?) lei. Para compreender a força dessa enunciação, é preciso
retomar alguns aspectos do enredo até esse encontro.
Sabemos que Riobaldo fica órfão muito jovem, herdando “miserinhas”
da mãe e sendo enviado para seu padrinho, Selorico Mendes. Ainda que seja
de fato um agregado, ele narra esse momento da vida como confortável,
pois não precisa trabalhar, recebe ensino, come bem, enfim, é bem tratado
pelo padrinho. Sente-se, no entanto, diminuído nas palavras do padrinho,
que o aprecia, mas não o louva – relação reservada apenas ao heroísmo dos
jagunços:
156 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na lordeza. No São


Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer querendo. E, de trabalhar
seguido, eu nem carecia. Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava;
mas não me louvava. [...]. Mas, um dia – de tanto querer não pensar no
princípio disso, acabei me esquecendo quem – me disseram que não era àtoa
que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes. Que ele tinha sido
meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de mim o tonto houve – o mundo
todo me desproduzia, numa grande desonra. (ROSA, 1970, p. 95)

Sentindo-se desonrado ao ser identificado como filho bastardo, Riobaldo


foge, pensa em casar-se com a filha do comerciante Assis Wababa, Rosa’uarda,
mas descobre que ela já estava noiva, entendendo então que ela não se casaria com
um bastardo e pobre. Por mãos de seu professor, mestre Lucas, é enviado para
uma fazenda a fim de ensinar. Riobaldo empolga-se com o novo destino, mas
ao chegar na fazenda descobre que será professor do dono da fazenda e não de
alguma criança. Trata-se de Zé Bebelo, para quem passa a ensinar, mas disfarçado
de secretário, pois o fazendeiro não queria que soubessem que não tinha estudos.
Riobaldo descreve-o desde o início do encontro como estudioso, superando o
professor em pouco tempo: “Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de
lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não
ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim” (ROSA, 1970, p.100).
Zé Bebelo desejava ser Deputado. Fazendeiro, homem inteligente e
corajoso, queria acabar com o jaguncismo e trazer a modernidade – legal, política
e social3. Admirava apenas o jagunço Joãozinho Bem Bem, a ponto de incorporar
em seu nome a sonoridade do herói jagunço (Bebelo/Bem Bem). Essa contradição
de base em sua identidade, ou seja, admirar um jagunço a ponto de incorporar seu
nome e projetar um sertão sem o poder dos jagunços para modernizá-lo por meio
das leis da República, vai fundamentar a personagem, uma das mais instigantes
do romance.
Riobaldo passa a acompanhar Zé Bebelo como secretário, vivendo
confortavelmente a seu lado. Quando o fazendeiro decide agir e guerrear contra
os grupos jagunços, chama-o para acompanhá-lo como amanuense do grupo. No
convite, evidencia a independência de Riobaldo, sendo esse aceno de liberdade
que o anima:
3 “Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então
reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos,
preenchendo a pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo
voz na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me enjoando. Porque completava sempre a
mesma coisa” (ROSA, 1970, p.101).
GAMA, M. | 157

Vinha, para conhecer esse destino-meu-deus. O que me animou foi ele


predizer que, quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele
dava baixa e alta de me ir m’embora. Digo que fui, digo que gostei. A
passeata forte, pronta comida, bons repousos, companheiragem. O teor da
gente se distraía bem. Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras. Se
amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia ser ranço ou
discórdia consigo restava para trás. Era o enfim. Era. (ROSA, 1970, p. 103)

Se a liberdade de abandonar o trabalho acenava como valor, o contínuo


deslocamento com conforto o distrai e permite que supere o “ranço ou
discórdia consigo”. Diante da violência do combate, vendo os prisioneiros,
decide repentinamente fugir. Sem rumo e sem compreender ao certo porque
fugiu ao invés de lançar mão de sua autonomia, vaga por quase um mês até
encontrar, hospedado na casa de um fazendeiro, com um grupo de jagunços,
dentre os quais Reinaldo. Reconhecendo “o menino” com quem atravessou
o rio na infância, seu destino revela-se na força de amizade (e “amizade dada
é amor”) por Reinaldo e ingressa no grupo de Joca Ramiro.
Para o que nos interessa aqui, cabe lembrar (a fim de recriar as ligações
entre as ações) que, nessa guerra, Zé Bebelo é derrotado e só não é morto
porque Riobaldo engana os companheiros, dizendo que o chefe Joca Ramiro
o queria vivo e articulando um julgamento para o antigo patrão. Essa cena
é decisiva no livro, pois revela, mais uma vez (e por outra perspectiva), a
complexidade das relações sociais: no seio do sistema jagunço, o julgamento
é a legalidade moderna, estranha às regras desses homens empenhados por
fazendeiros para a defesa de interesses locais4. A decisão de Joca Ramiro que,
por fim, liberta o inimigo, desagrada os jagunços Hermógenes e Ricardão,
os quais, pouco depois, assassinam o chefe.

4 A modernidade aqui diz respeito ao monopólio da violência do Estado moderno.


Riobaldo garante o direito de não deixar morrer, ao contrário do Ancien Régime, quando ao
soberano atribui-se o poder de deixar viver. Nesse sentido, Giorgio Agamben, em Homo sacer,
chama a atenção de que o direito à vida não é universal; há o portador de uma vida qualificada
(aquele que está incluído na vida social com direitos e deveres políticos) e há aqueles indivíduos
com vida nua, ou seja, simplesmente vivem, sem terem em sua existência um qualificativo
social – estes, excluídos, têm uma vida matável, podendo ser eliminado sem que isso implique
num crime. Os indivíduos de vida nua não são exceções, são, antes, necessários para definir o
lugar dos que tem bios e estão incluídos, enfim, do espaço político. Riobaldo teatraliza o Estado
moderno, revelando a vida qualificada de Zé Bebelo em oposição a tantas outras que foram
eliminadas na batalha. A perspicácia do narrador ficou evidenciada na estratégia de dar voz aos
jagunços, como numa ágora, permitindo o posicionamento e a voz em um espaço democrático.
158 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

É aí que Riobaldo se junta novamente a Zé Bebelo, pois este volta para vingar o
grande chefe, reconhecido por todos por sua justiça, tornando-se, para tanto, ele mesmo
um chefe jagunço, anunciando sua disposição com a fórmula singular quanto ao novo
papel que desempenhará: “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...”
(ROSA, 1970, p. 71).
Quando Riobaldo, acompanhando Zé Bebelo como chefe, encontra o grupo de
catrumanos, é essa linha narrativa que está por trás: órfão; agregado; descobre-se filho
bastardo e sente vergonha; torna-se professor e secretário/amanuense; luta ao lado de Joca
Ramiro e guerreia no grupo de Zé Bebelo. O encontro é da ordem da desorientação, pois
o narrador não alcança uma compreensão acerca desses homens, os catrumanos:

Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os
outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito
de roupas de vestir. [...]
Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam
escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses
homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão,
os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que explicou, o Acauã sabia deles. (ROSA,
1970, p.290-1)

Acauã, sábio, explica esse outro sertão para Riobaldo. Catrumano, em sentido
geral é caipira, matuto, mas é uma palavra que retoma o sentido animal de como são
vistos, pois vem de quadrúmano – aquele que tem quatro mãos5. Contudo, se há na
palavra catrumano uma diminuição do outro em certa escala evolutiva, o encontro
remete Riobaldo para a situação de um embate com uma Esfinge, pois encontra uma
nova qualidade de medo, inquietação que o consome como se fora o “decifra-me ou
devoro-te”6.
5 “A vinculação do catrumano com o caipira deve-se ao fato deste ser um sertanejo,
ou seja, um habitante do sertão. Esta denominação − catrumano −, foi cunhada pelo viajante
europeu Auguste de Saint-Hilaire (1975, p. 307 e passim), que, percorrendo o sertão,
chamado por ele de deserto, surpreendeu-se ao ver que os sertanejos sempre estavam a cavalo,
independentemente de sua situação econômica. Aos poucos, ao longo de seu relato, ele constrói
o termo. Quando constrói o quadro geral do sertão, em um dado momento, ele afirma que o
sertanejo se parece com um homem de quatro mãos, ou melhor, de quatro patas. Deriva daí,
etimologicamente, a palavra catrumano. Porém, dada a força da ficcionalização construída por
João Guimarães Rosa que tomou a realidade regional norte mineira para discutir o Brasil [...],
a palavra passou a conter apenas os significados vinculados aos habitantes do mais fundo do
sertão, ou seja, a região Urucuiana que possuía homens, considerados de pouca instrução e de
convívio e modos rústicos e canhestros” (COSTA, 2021, p. 143).
6 O encontro com os catrumanos ocorre no romance depois de um momento em
GAMA, M. | 159

Esses indivíduos de um outro sertão (de um “recanto lontão de


mundo”) são portadores também de outro tempo: Riobaldo tem dificuldade
em entender sua língua, percebe que estão com “peças de armas de outras
idades”, assim como trazem a “um dobrão de prata, antigo do Imperador”,
tudo dos tempos antigos:

E renuía com a cabeça, o banglafumém, mesmo quando falava, com uma


voz de
qualidade diversa, costumada daquela terra de lugar; e os outros renuindo
também! — Ah, pode não... Pode não... — com o vozeio soturno.
Nos tempos antigos, devia de ter sido assim. (ROSA, 1970, p.290, grifos
nossos)

A excentricidade provoca Riobaldo. Ele percebe que os catrumanos


estão com medo, novamente comparando-os a animais: “que nem mansas
feras; isto é, que no comum tinham medo pessoal de tudo neste mundo.”
(ROSA, 1970, p. 294). Essa simplicidade que os liga ao mundo natural e
a outra temporalidade resulta não só em curiosidade, pois o narrador vai
percebendo que está diante de outra sensibilidade e outra racionalidade,
mais ligada ao natural e ao místico. Sem conseguir abarcar essa alteridade,
estúrdia em simplicidade, complexa em singularidade, o resultado é o medo,
recorrendo inclusive à memória do sobrenatural repassada na tradição oral:
“Aqueles homens eram orelhudos, que a regra da lua tomava conta deles,
e dormiam farejando. E para obra e malefícios tinham muito governo.
Aprendi dos antigos” (ROSA, 1970, p. 294).
Riobaldo sente medo desses homens que, por estarem mais ligados
à natureza que eles poderiam rogar praga, “soprar quente qualquer ódio
nas folhas, e secar a árvore”, abrir buracos na terra com palavras rosnadas
para armadilhas, entre outras possibilidades que vão sendo elencadas
vertiginosamente por Riobaldo – “De pensar nisso, eu até estremecia; o que
estremecia em mim: terreno do corpo, onde está a raiz da alma” (ROSA,
1970, p. 294).
O medo tem essa face mística e imaterial, porém tem outra, econômica
e histórica:

que se sentiam perdidos, sem rumo, como se andassem em um labirinto.


160 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o


senhor tenha todo medo! O que mais digo: convém nunca a gente entrar
no meio de pessoas muito diferentes da gente. Mesmo que maldade própria
não tenham, eles estão com vida cerrada no costume de si, o senhor e de
externos, no sutil o senhor sofre perigos. Tem muitos recantos de muita pele
de gente. Aprendi dos antigos. (ROSA, 1970, p. 294)

Ironicamente, Riobaldo encerra essa avaliação novamente com


“aprendi dos antigos”, ou seja, esse estatuto da miséria extrema não é de fato
desconhecida, ela é narrada pelos “antigos” como algo a ser temida, aqui
não significando apenas pessoas com saberes tradicionais, mas por coronéis,
por exemplo, que, antigos, detinham o poder da terra e temiam os que não
estavam subjugados a seus poderes – índios, quilombolas, entre outros7.
O medo de que esses despossuídos, com “os poderes da pobreza
inteira e apartada”, se multiplicassem e se unissem para reivindicar o que os
demais tinham toma conta do narrador:

Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu apeado e precisado,


decerto me matavam, para roubar minhas armas, as coisas e minhas roupas.
[...] E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos
milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do
brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como e
que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo
que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer
usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e
desatinar. (ROSA, 1970, p. 294-5)

Compreendendo que há uma variedade desconcertante de pessoas –


diferentes das que já são “finos de sentir e proceder, acomodados na vida,
tão perto de outros, que nem sabem de seu querer, nem da razão bruta do
que por necessidades fazem e desfazem”, ou seja, moldadas na civilidade que
afasta-as de seus instintos e dos sentidos de seus quereres – Riobaldo entende
que o encontro só pode significar mau agouro, sobretudo porque o bando
de jagunços, liderado por Zé Bebelo, desobedecem o aviso dos catrumanos
e seguem viagem.

7 Para Walnice Nogueira Galvão, Riobaldo “intui que a miséria excessiva está aquém
de qualquer possibilidade de convivência, de qualquer padrão moral, de qualquer romantização:
ela é feia, suja e perigosa. Sente a ânsia do miserável pela posse, pelo gozo imediato, mesmo ao
preço da destruição total”. (GALVÃO, 1972, p. 67).
GAMA, M. | 161

Mais que curiosidade, o narrador vai percebendo que, sendo muito


diversos de todos e desprovidos de tudo, esses sujeitos davam a ver não
apenas o que eram, mas impunham, como a Esfinge, um enigma, por isso
Riobaldo conclui que, a partir de então, “duvidava dos fojos do mundo”.
Essa alteridade que o faz questionar as profundezas (fojos) do mundo, abre a
cena do encontro com a peste e, em seguida, do pacto com o diabo.

A doença e o nós

O encontro com os catrumanos é um dos momentos chave para a


construção da singularidade de Riobaldo. Enquanto Zé Bebelo e os outros
jagunços acham graça, desrespeitando-os, Riobaldo faz o caminho para o
Sucruiú pensando no “inferno feio deste mundo”, e, como apontamos, vê
ali um mau presságio e esse encontro modifica-o definitivamente: “Mas eu
não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em minha vida” (ROSA, 1970,
p. 293).
Os catrumanos, vistos em sua miserabilidade, estavam, contudo,
protegendo os viajantes para evitar contaminação, pois sabiam que o
vilarejo do Sucruiú estava arrasado pela doença. Sem a presença do Estado,
são eles que se organizam para evitar o pior, porém, são menosprezados
pelos jagunços. Depois de uma hora andando com medo, montado em um
cavalo ruim de nome Padrim-Selorico, Riobaldo continua a viagem entre
Zé Bebelo e Diadorim, e, narrando de forma retrospectiva, parece ver nesse
episódio um ponto de inflexão de sua identidade: “mas, eu, o que é que eu
era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé Bebelo era
o de mais armada vista, o maior de todos. Cavalo selado, montado, e muito
chão adiante. Viajar! — mas de outras maneiras! transportar o sim desses
horizontes!...” (ROSA, 1970, p. 296, grifos nossos).
A esperança que Riobaldo pega emprestado de Zé Bebelo vai se
esvaindo ao chegar no Sucruiú, cuja paisagem, ao longe, já mostra desolação:
não dava mais tempo de aprender rezas especiais, há fogo e fumaça, é difícil
ver pessoas ou animais, o ar está carregado de morte. Riobaldo, que nos
narra essa história em sua velhice, aguarda ainda o esquecimento: “Algum
dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo” (ROSA, 1970, p. 297).
São poucos parágrafos reservados para a passagem dos jagunços pelo
povoado que estava devastado pela varíola:
162 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

Casas – coisa humana. [...] Voz nem choro não se ouviu, nem outro rumor
nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas mortas, e até os cachorros,
cada morador. [...] Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não saiam,
não saudavam. Do perigo mesmo que estava maldito na grande doença,
eles sabiam ter quanta cláusula. Sofriam a esperança de não morrer.
Soubesse eu onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos?
Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, com
um fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme. [...] Deus
que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado povo.
(ROSA, 1970, p. 297)

O encontro do grupo de jagunços com os catrumanos é narrado em


detalhes, o medo de Riobaldo durante e depois é pormenorizado, mas a
visão do colapso do povoado é relativamente breve. Não nos enganemos,
contudo, com essa brevidade. As duas visões preparam Riobaldo para um
debate ético que trava consigo ao se deparar com o oposto de tudo aquilo
logo a seguir.
Depois de ver a pobreza e a doença, os jagunços chegam na fazenda de
Seô Habão. O episódio é alvo de muitas análises na fortuna crítica rosiana,
mas quero chamar a atenção aqui para a sequência: encontro com a pobreza
extrema, passagem pelo povoado empesteado (varíola), encontro com o
fazendeiro Seo Habão e o pacto com o diabo.
Ao sair do vilarejo doente, os jagunços acham uma casa, de onde fogem
pessoas que estavam furtando as últimas coisas de valor da casa quase vazia,
entre eles uma criança, o Guirigó, que revelava no corpo ter conhecido todo
tipo de sofrimento, mas que se negava a se entregar: “O que ele afirmava, no
descaramento firme de seu gesto, era que nem era ninguém, nem aceitava
regra nenhuma devida do mundo [...]. Ah, queria salvar seu corpo, queria
escape. Se abraçava com qualquer poeira” (ROSA, 1970, p. 300). Agora,
diferente do que ocorre com os catrumanos, o menino que nada tinha, nem
tristeza, ainda que experenciado na dor, não assusta Riobaldo. Ao contrário,
há um fascínio por aquele indivíduo e aceita esse mistério – lembremos de
que, quando se torna chefe jagunço, Riobaldo faz questão de levar junto o
menino Guirigó.
Querendo fugir da doença, os jagunços, no entanto, vão adoecendo
um a um. Mesmo não sendo da varíola, aquele corpo coletivo enfraquece-se
com febres e dores. Alguns jagunços avaliam que esse estado de tristeza e
doença se devia ao fato de não estarem batalhando e o remédio natural seria
GAMA, M. | 163

invadir algum povoado, matar, divertir-se, exercitando a violência. É então


que Riobaldo percebe a fragilidade de sua relação com o mundo – não fosse
jagunço, poderia ele estar em algum vilarejo invadido, sofrendo violências
e vendo os seus serem mortos apenas para que isso melhorasse o estado de
ânimo de guerreiros entediados. Ele vê agora mais uma qualidade de outro –
o fraco – desconcertando-se com o que é aceito sem questionamento:

A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas


outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente,
e eu não era capaz de acertar com elas todas, de uma vez! Aí para mim – que
eu não tenho rebuço em declarar isto ao senhor – parecia que era só eu quem
tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava,
em ninguém. (ROSA, 1970, p. 307)

Ser comandado por modos que regem sua vida sem que se perceba é
estarrecedor. Fazer o pacto com o diabo vai surgindo como ideia em parte
por ser algo que, estando em seu controle, daria para Riobaldo a única fonte
de poder capaz de lidar com o real, o que se realiza pelo último encontro
com o outro dessa sequência que determina o pacto: o proprietário de terras.
Seô Habão, o dono das terras onde estavam, observava tudo com “olhares
de dono”, “espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão,
homem carecesse de cuidar comercial.” (ROSA, 1970, p. 312).
Não era só Riobaldo quem percebia essa distinção. Zé Bebelo ajusta
sua linguagem para agradá-lo, dobrando-se aos assuntos de interesse de
seu interlocutor, que, “diferido, composto em outra séria qualidade de
preocupações”, não se interessa pela coragem e valores jagunços. Desprezando
as mortes do Sucruiú, interessa-se pelas notícias quanto ao estado de sua
plantação, expondo o plano de fazer os sobreviventes trabalharem na lavoura
para produzir algo que eles mesmos consumiriam e pagariam com o dobro
do trabalho. Trata-se de um homem para manter distância – ele é o que
sustenta as iniquidades do mundo: “Eu pensei! enquanto aquele homem
vivesse, a gente sabia que o mundo não se acabava” (ROSA, 1970, p. 312);
e se sujeitos como Seô Habão sustentam o mundo, é porque ele se nutre
da descartabilidade das pessoas – “conheci que fazendeiro-mór é sujeito da
terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
(ROSA, 1970, p. 312-3).
164 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

O desgosto de Riobaldo logo se torna um enjoo, pois percebe que o


fazendeiro olha para os jagunços como sujeitos a serem escravizados:

espiou para mim, com aqueles olhos baçosos — aí eu entendi a gana dele!
que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente
pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele.
Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos;
e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal! cobiçava a gente para
escravos! (ROSA, 1970, p. 314)

Seo Habão recebe os jagunços olhando-os como mão de obra barata


que poderia suprir a morte dos seus empregados pelo surto de varíola.
Riobaldo percebe que ele os olha como coisas, desejando agora uma batalha
com Hermógenes só para que o fazendeiro visse do que eram capazes. Num
átimo, em resposta à natureza8 perversa do fazendeiro, Riobaldo assume pela
primeira vez ser filho de um Selorico Mendes: “— Duvidar, seó Habão, o
senhor conhece meu pai, fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do
São Gregório?!” (ROSA, 1970, p. 315). Perceba-se aqui como, mais que
assumir a filiação, Riobaldo coloca-se acima de Seô Habão, mostrando uma
crescente em sua apresentação: Fazendeiro, dono de terras; Senhor, dono do
poder; Coronel, patente do Estado, dono da força e patente maior que a sua
de Capitão. A revelação surte efeito imediatamente, pois Seô Habão sabe
que, querendo, o pai de Riobaldo tomaria suas terras – há, então, homem
mais definitivo que ele e Riobaldo se deleita com a revelação.
Seô Habão era o “transtorno” final – era preciso algum outro tipo de
força ao seu lado – “Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro,
o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por que? [...].
Senti esse intimado” (ROSA, 1970, p. 316). Se a ideia existia desde o dia que
soube ser Hermógenes um pactário, para quem não havia doença, matava
com exatidão e tinha o corpo protegido, a intimação vem depois dessa
sequência de eventos e da relação que estabelece com a outridade: o Outro,
como princípio gerador de conhecimento e de praxe ética, como apontou

8 Se os catrumanos são referidos como estando próximos à natureza, Seô Habão teria
algo de natural também, sua capacidade de subjugar: “A raiva não se tem duma jibóia, porque
jibóia constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo”
(Rosa, 1970, p.314). Vemos aqui um uso irônico do autor, já que não se trata de fato de
natureza, mas de cultura de dominação, de relação social de organização das formas produtivas
particulares que se apresentam como naturais.
GAMA, M. | 165

Lévinas, é uma experiência indecifrável e singular, comunicando uma


possibilidade de real, já que nos coloca em relação a uma exterioridade. Esses
encontros que Riobaldo tem com o Outro, gera conhecimento do mundo e
resulta, paradoxalmente, na busca por algo que, do mundo místico, poderia
reger sua vida para a vitória contra Hermógenes e os desarranjos sociais.

O outro e a palavra

Zé Bebelo não deixava de propagandear seus projetos em relação ao


país:

Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado


fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas,
remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas.
Começava por aí, durava um tempo, crescendo voz na fraseação, o muito
instruído no jornal. Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma
coisa. (ROSA, 1970, p. 102)

Depois da morte de Joca Ramiro, no entanto, passa a liderar os jagunços


para vingá-lo, sem abandonar, contudo, essa perspectiva modernizadora,
como deixa claro em sua fala para o menino Guirigó: “O que imponho é se
educar e socorrer as infâncias deste sertão!”, o que Riobaldo percebe ser uma
impostura. Esse discurso, espécie de retórica da modernização, é violência
com o Outro, pois a retórica direciona-se ao outro, mas corrompe a sua
liberdade ao solicitar o seu sim em uma relação de dominação, promovendo
a injustiça – “É por isso que ela é violência por excelência, ou seja, injustiça.
Não violência exercida sobre uma inércia [...] mas sobre uma liberdade, que,
precisamente como liberdade, deveria ser incorruptível” (LÉVINAS, 1997,
p.56).
O discurso de ordem e modernidade de Zé Bebelo se mostrou vazio e
fraco diante da pobreza, da doença e do poder de homens como Seô Habão.
A desigualdade da força de seu discurso se revela quando o fazendeiro-chefe
jagunço se encontra com Seô Habão, que não é hospitaleiro à sua fala e tem
outro tipo de retórica, a que só reconhece a propriedade.
Ver a face do Outro é aceitar sua alteridade, estranhar sua fala, como
um estrangeiro, reconhecer a impossibilidade de acesso total – garantindo
166 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

o “direito à opacidade”, reivindicado por Glissant (2008). Essa relação traz


conhecimento:

Só o absolutamente estranho nos pode instruir. Só o homem me pode ser


absolutamente estranho – refratário a toda a tipologia, a todo o gênero, a
toda a caracterologia, a toda a classificação – e, por consequência, termo de
um ‘conhecimento’ que penetre enfim para além do objeto. A estranheza de
outrem, a sua própria liberdade! Só os seres livres podem ser estranhos uns
aos outros. [...] O ‘conhecimento puro’, a linguagem, consiste na relação
com um ser que, em certo sentido, não é em relação a mim; ou se se preferir,
só está em relação comigo na medida em que está inteiramente em relação a
si [...], ser que se coloca para além de todo o atributo, o qual teria justamente
como efeito qualificá-lo, ou seja, reduzi-lo ao que lhe é comum com outros
seres; ser, por conseguinte, perfeitamente nu. (LÉVINAS, 1997, p.60)

A relação com o Outro pode nos instruir nesse embate com a


diferença. Emmanuel Lévinas “coloca a distância que separa o sujeito do
outro como o espaço para a construção de uma ética, já que o Eu-está-no
mundo-com-os-outros, só definindo-se enquanto ser na medida da relação
interpessoal. Dizer sobre o outro já é de alguma forma responder por ele,
responsabilizar-se radicalmente por ele” (CURY, 2008, p.12).
Riobaldo, que se narra como alguém modificado pelo encontro com
o menino Reinaldo-Diadorim no de-Janeiro, vai construindo sua identidade
na confluência com a diferença. Se em muitos momentos dessa narrativa de
viagem esse narrador se define por sua singularidade9, também se reconhece
continuamente naqueles homens. A narrativa retrospectiva que faz de sua
trajetória passa pela compreensão de sua vida em relação ao outro.
Depois de uma sequência de embates com a diferença, Riobaldo
percebe que o homem pobre, ainda que aparentemente livre, está preso
nesse mundo sempre regido por regras que não conhece e, por isso, está
sempre com medo. Para Riobaldo, naquele momento, só poderia ter poder
sendo pactário10.

9 “Eu era diferente de todos? Era. [...] Sei que eles deviam de sentir por outra forma
o aperto dos cheiros do cerradão, ouvir desparêlhos comigo o comprido ir de tantos mil grilos
campais. Isso me dava ojeriza, mas também com certo consolo misturado” (ROSA, 1970, p.
430).
10 Não se trata aqui de concordarmos com o argumento de Willi Bolle de que as
diferenças de classe são resolvidas com o pacto. O desejo de estar acima revela suas contradições,
não uma solução.
GAMA, M. | 167

É importante aqui lembrarmos que o pacto se realiza na aceitação do


mistério, no acolhimento do diverso e na hospitalidade do desconhecido.
Para além do que o leva até ali, descobre que se sentia, no momento do
pacto, “desarmado de si”, e que se tratava, enfim, de uma ação voltada à sua
própria identidade e sua permanência: “E, o que era que eu queria? Ah, acho
que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a
coisa, esta coisa: eu somente queria era ficar sendo!” (ROSA, 1970, p. 318).
O pacto poderia então (ao menos era o desejo) oferecer a possibilidade
de ser definitivo, projeto que se mostra enganoso, com as artimanhas
próprias do diabo com sua retórica que aprisiona e que é recorrente no mito
fáustico. Há, como sabemos, perdas decorrentes dos pactos, mas Riobaldo
sai das Veredas Mortas transformado – alegre, percebe-se com outro tipo
de raciocínio – “Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias”
(ROSA, 1970, p. 321)– dominando sua própria história, achando graça e
vendo novidade até em notícia ruim, rindo dos projetos de Zé Bebelo:

Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens


de meus tempos, e depois descrevendo, por diversão, os benefícios que os
grados do Governo podiam desempenhar, remediando o sertão do desdeixo.
E, nesse falar, eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos.
Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros de Zé
Bebelo. (ROSA, 1970, p. 321)

Até os cavalos estranham Riobaldo, em sinal de que o pacto acontecera


de verdade. Quem parece ter reconhecido a estranheza foi Seô Habão, pois
“homem só vendido ao dinheiro e ao ganho, às vezes são os que percebem
primeiro o atiço real das coisas, com a ligeireza mais sutil” (ROSA, 1970,
p. 325), dando a Riobaldo seu melhor cavalo. O poder com as palavras que
revela depois da noite nas Veredas Mortas resulta, enfim, na chefia, pois, ao
perguntar por seis vezes quem era o novo chefe, Zé Bebelo simplesmente o
reconhece como o novo líder.
Passando a cometer excessos depois do pacto, o poder enganoso que
o diabo lhe dera vai se revelando nas perdas. A relação desse narrador com
a alteridade é posta à prova a partir de então, e vemos sua capacidade ver
o rosto do outro e de ser hospitaleiro à singularidade ser continuamente
reduzida.
168 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

Esse empobrecimento mostra-se, por exemplo, nos três episódios em que


Riobaldo se vê tentado a matar. No último, ao encontrar um doente com lepra,
trava um debate interior e é salvo porque pensa em Diadorim e em sua reação,
mas percebe que deve esforçar-se muito para não ser regido pelo Diabo11.

A responsabilidade por outrem

Abrimos este texto retomando como alguns romances sobre epidemias


colocam em questão a negação do flagelo e, posteriormente, a ideia de que se ele
existe, vai ficar restrito ao Outro. Discorre-se, nesses momentos, sobre a falta de
rosto do Outro – ele é aquele que não sei quem é, que vive nos limites da cidade
ou que é o estrangeiro; ele é aquele que não tem um futuro a ser suprimido.
No entanto, Grande Sertão: Veredas, enquanto representação do país,
discute o que fazemos quando vemos essa face do Outro. Riobaldo passa por
uma educação sentimental – afinal, como já foi discutido por muitos, é uma
narrativa de viagem e um Bildungsroman – e parte dela pode ser descrita por
sua descoberta do Outro no inferno dos vivos. Nesse sentido, o encerramento de
As Cidades Invisíveis, de Calvino, é significativo ao chamar a atenção para uma
ética envolvida nessa relação com a alteridade:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o
inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem
duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar
o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda
é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer
quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
(CALVINO, 1990, p. 150)

Riobaldo aceita radicalmente a segunda opção: arriscada, exigindo um


aprendizado contínuo – daí o aprofundamento da relação com o compadre
Quelemém e a hospitalidade ao interlocutor do romance, o senhor da cidade,
que tem sua pergunta respondida (o que é o sertão), mas só na medida em que
essa resposta ilumina o desejo de conhecimento do próprio Riobaldo, impondo
tantas outras perguntas.

11 Ver, a esse respeito, o artigo de Raquel Bueno, “Urutu-Branco e o leproso: corpo e


culpa em Grande Sertão: Veredas. Letras, Curitiba, n. 49, p. 35-51, 1998.
GAMA, M. | 169

Os catrumanos responsabilizam-se pelo Outro, cuidam, preservam;


mas são vistos em sua carência absoluta. Esse olhar que é lançado a eles
retorna. Eles são vistos, mas esse olhar permite uma visão acerca dos
jagunços: em seu poder, deveriam temer os que nada têm e são ligados à
terra, à natureza, ou seja, a outro modo de pensar e agir. Os sobreviventes do
povoado, cuidando de seus mortos e doentes, são vistos, mas retornam esse
olhar, informando a fragilidade do corpo e o abandono. O menino Guirigó
é visto em seu sofrimento, mas responde a esse olhar repondo a perseverança
de quem não aceita as regras do mundo. Já o encontro com Seô Habão,
dá a dimensão da violência a que todos estão submetidos: há uma quebra
nas regras de hospitalidade, pois, recebendo os jagunços em suas terras, o
fazendeiro quer de fato que eles se tornem seus escravos, apagando, como
é necessário nessa operação, suas identidades ao “reduzir tudo a conteúdo”.
Assim, se o olhar de respeito que os jagunços lançam ao fazendeiro retorna
como uma visão redutora, Riobaldo mostra a Seô Habão que também
poderia reduzi-lo.
A hospitalidade enquanto cuidado e relação com a alteridade, se dá
de formas complexas no romance – e a cena de enunciação é já uma cena
de hospitalidade, pois Riobaldo recebe o interlocutor por três dias para lhe
contar uma história a fim de responder suas questões12. Hospedando-o,
torna-o refém de uma dúvida: o diabo existe ou não? Na responsabilidade
de ambos está em jogo a dinâmica entre a ética e a subjetividade, como
aponta Lévinas: “[...] a responsabilidade não é um simples atributo da
subjetividade, como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética.
A subjetividade não é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para o
outro” (LÉVINAS, 1988, p.80). Lévinas pensa a intersubjetividade como
uma experiência fundamental do ego, do eu. Por isso, para ele, proximidade
do outro não se dá no espaço ou numa relação de parentesco, por exemplo,
mas aquele “que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto –
enquanto sou – responsável por ele” (Lévinas, 1988, p.80).

sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. [...] a minha
responsabilidade não cessa, ninguém pode substituir-me. De facto, trata-se
de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade
[...]. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que,
humanamente, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade

12 Sobre a Hospitalidade no romance, ver A Jacuba do Jagunço: Alimentação, memória e


processo social em Grande Sertão: Veredas (2018), de Aline Macedo de Araújo.
170 | Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade

do único. Eu, não intercambiável, sou eu apenas na medida em que sou


responsável. Posso substituir a todos, mas ninguém pode substituir-me. Tal é
a minha identidade inalienável de sujeito. (LÉVINAS, 1988, p.84)

Como chefe jagunço, Riobaldo escolhe Guirigó e o cego Borromeu


para acompanharem seu bando na batalha contra Joca Ramiro, cuidando de
esses dois indivíduos que nada ajudariam no corpo a corpo, mas que serviam
para ajustar essa noção de responsabilidade por outrem.
Essa busca por identidade que estava na base do pacto – desejo de
“continuar sendo” – deve ser pensada, então, nessa relação de alteridade,
pensada não apenas em uma perspectiva subjetivista, mas, sobretudo, a
partir de uma reflexão sobre o lugar dos sujeitos provisórios nesse país do
futuro que não se realiza.

Referências

ARAÚJO, Aline Macedo de. A Jacuba do Jagunço: Alimentação,


memória e processo social em Grande Sertão: Veredas. Dissertação
(Mestrado em Letras: Estudos da Linguagem). Universidade Federal de
Ouro Preto, Mariana, 2018. Disponível em: https://www.repositorio.ufop.
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Paulo: Editora 34, 2004.

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CURY, Maria Zilda Ferreira. Novas geografias narrativas. Letras


de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 7-17, dez. 2007. Disponível
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FONSECA, Juliana Freire. A representação da pobreza em Grande


GAMA, M. | 171

Sertão: Veredas. Dissertação (Mestrado em Letras: Estudos da Linguagem).


Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2021. Disponível em:
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Grande sertão: veredas. São Paulo: Perspectiva, 1986.

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Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina da UFMG,
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prisões e desterros para o Acre nos anos 1904 e 1910. Revista Tempo e
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redalyc.org/jatsRepo/3381/338130374006/html/index.html. Acesso em:
10 jan. 2022.

Como citar este artigo

GAMA, M. Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas


e a construção de uma identidade. Fragmentum, Santa Maria, p. 151-
171, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219469080. Acesso em: dia mês
abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 193-212, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219468229


Submissão: 22/10/2021 • Aprovação: 23/10/2022
Artigo Original

INDUSTRIALIZAÇÃO, INTIMIDADE E
DESLOCAÇÕES: OS USOS SEXUAIS NO AMAZONAS
BRASILEIRO E A COSTA NORTE HONDURENHA

INDUSTRIALIZATION, INTIMACY AND


DISPLACEMENT: SEXUAL BEHAVIOR IN THE
BRAZILIAN AMAZON AND THE HONDURAN
NORTH COAST

Ariel Amador Valdez


Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

Resumo: Neste artigo descreve-se a representação das atitudes e agires sexuais dos trabalhadores
das Bananeiras em Honduras e o Ciclo da Borracha do Amazonas brasileiro. Tomam-se as obras
de Ramón Amaya Amador (Enfatizando-se na obra “Biografía de un machete”); e as obras de
Álvaro Maia (Principalmente o romance “Beiradão”); ambos autores destacados pelo exercício
político, jornalista e romancista. Aplicando a teoria da sexualidade de Michel Foucault e a
literatura comparada, procuram-se as representações da intimidade e da sexualidade dos atores
principais destas etapas socioeconômicas: os campenhos das Bananeiras em Honduras, e os
seringueiros do Ciclo da Borracha no Amazonas brasileiro.

Palavras-chave: literatura latino-americana, literatura comparada, sexualidade, literatura


hondurenha, literatura brasileira

Abstract: This article describes the representation of sexual attitudes and actions of workers in
banana trees in Honduras and the Brazilian Amazon Rubber Cycle. For such representation, the
works of Ramón Amaya Amador are taken (Emphasizing the work “Biografía de un machete”);
and the works of Álvaro Maia (Mainly the novel “Beiradão”); both authors standing out for
their political, journalist and novelist labour. Applying Michel Foucault’s theory of sexuality
and comparative literature, representations of the intimacy and sexuality of the main actors
of these socioeconomic stages are sought: the banana farmers in Honduras, and the rubber
tappers of the Rubber Cycle in the Brazilian Amazon.

Key-words: Latin-American literature, Comparative Literature, sexuality, Honduran literature,


Brazilian literature.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


194 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

Introdução: A vida nas florestas, uma aproximação ao diário viver nas


Bananeiras e o Ciclo da Borracha

Para o Amazonas brasileiro e para Honduras, o Ciclo da Borracha


e as Bananeiras, respectivamente, têm sido fenômenos socioeconômicos e
culturais que mudaram sua história. Ambos ciclos se desenvolveram aos
inícios do Século XX e duraram quase a metade deste. Neste período, no
Brasil e em Honduras deram-se deslocações a estes territórios, na procura de
melhores oportunidades. Estas deslocações promoveram novas formas de se
relacionar, pois fixaram-se novas sociedades, resultado da extração do látex
e da semeação da banana.
Não apenas o Brasil e Honduras, mas toda América Latina neste
período de finais de Século XIX e princípios do Século XX, entraram
à dinâmica econômica mundial como produtores de matéria prima
(BULMER, 2017). Temos que lembrar que as independências políticas
de nossos países latino-americanos se deram, também, nestas épocas. Esta
relação econômica, contudo, era desigual. As políticas econômicas da
maioria dos países latinos achavam que com apoiar o setor exportador, a
economia nacional seria beneficiada. Na verdade, como veríamos depois,
isto não seria assim.
Note-se que esta economia da exportação promoveria o deslocamento
a territórios onde se desenvolveria a monocultura. No Brasil, pelo exemplo,
podemos mencionar, além da borracha no Amazonas, o Ciclo do Café, cujo
fluxo migratório também participaram imigrantes, europeus deslocando-se
para essas regiões, como São Paulo, onde o café era o produto de exportação.
No Amazonas, no Ciclo da Borracha, este deslocamento deu-se de duas
formas principais. Uma que poderíamos chamar de interna: oriundos do
Amazonas ou regiões próximas, e outra, a dos nordestinos (sobretudo do
Ceará). Estas deslocações dariam uma distribuição de vivenda e formas de
viver diferentes.
Os trabalhadores moravam em barracões superlotados nos quais
compartilhavam espaço com outras famílias ou pessoas, fazendo que a
“intimidade” fosse totalmente diferente a como a conhecemos. Para
analisar um tema tão complexo e fascinante, utilizaremos as obras de Álvaro
Maia e Ramón Amaya Amador, autores que viveram estas experiências e as
representaram nas suas obras.
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 195

Como uma pequena resenha dos autores, podemos dizer que Ramón
Amaya Amador foi um romancista e jornalista hondurenho, nascido em
1916, ano no qual La Standard Fuit Company (de agora em diante SFC)
já estava instalada em Olanchito, Yoro, seu lugar de nascimento. Como
a maioria dos nascidos no norte do país, Amaya Amador trabalhou nas
bananeiras antes de se tornar jornalista. Álvaro Maia, pela sua parte, nasceu
em 1893 em Humaitá, no interior do Amazonas. Ao igual que Amaya
Amador, foi jornalista e romancista, mas também, poeta: em 1925, a revista
Redenção daria para ele o galardão de “príncipe dos poetas amazonenses”.
Ambos autores se destacaram por sua sensibilidade às realidades da sociedade
na que viveram. Assim, a maioria de suas obras representam as vivências,
vicissitudes e acontecimentos dos trabalhadores dos Ciclo da Borracha e as
Bananeiras.
Neste contexto antes mencionado, da deslocação às regiões onde
se produzia a banana e o látex, é importante a lembrar a complexidade
do que nós chamaríamos intimidade ou privacidade: os campenhos e os
seringueiros careciam disso, basta explorar as obras de Amaya Amador e
Álvaro Maia sobre as relações e modos de viver dos trabalhadores, agrupados
em barracões sobrepovoados, compartilhando redes, talheres, cozinha,
banheiros e demais, incapazes de uma vida privada como tal. Casais como
no conto “El Nido” de Amaya Amador, tinham mantinham suas relações
conjugais ainda compartilhando o quarto com outros campenhos:

Los dos estábamos jóvenes. Él casado y yo soltero. Para los casados era un
problema la vivienda pues no había en los barrancones cuartos especiales
para el matrimonio sino para solteros. Vivíamos en grupo. Y en nuestro
cuarto, donde nos apretábamos ocho compañeros, tenía Lucas su catre y su
mujer. No sé lo que el matrimonio sentía en las noches, pero sí sé lo que
nosotros, solteros jóvenes, privados durante semanas del goce sexual —las
prostitutas sólo llegaban una vez al mes, el día del pago—, padecíamos al
escuchar los crujidos del destartalado catre de Lucas. (AMAYA, 2017, p. 30)1

1 Tradução nossa: “os dois éramos jovens. Ele casado e eu solteiro. Para os casados
era um problema a morada, pois não havia nos barracões quartos especiais para o casal, mas
para solteiros só. Morávamos em grupo. E em nosso quarto, onde nos apertávamos oito
companheiros, Lucas tinha sua cama dobrável e sua mulher. Não sei o que o casal sentia
nas noites, mas sei o que nós, solteiros jovens, privados durante semanas do gozo sexual —as
prostitutas chegavam só uma vez ao mês, o dia do pago—, padecíamos ao escutar os rangidos
da dilacerada cama dobrável de Lucas”.
196 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

“El Nido” conta história de um casal, Lucas e Anita, sua esposa, que
compartilhavam o quarto com oito campenhos2 mais. Lucas e seu amigo, o
narrador, Moncho, encontram um ninho de aves no “corredor do morto”,
apelidado assim porque semanas antes tinham encontrado os corpos sem
vida de outros campenhos, que se reuniam nos tempos livres para criar um
sindicato3. Lucas cuidaria do ninho das aves, e o ninho tornar-se-ia uma
metáfora do casamento de Lucas e Anita. Um dos outros oito campenhos
era Sabino, um campenho solteiro, bom cantor, tocava o violão e era muito
popular com os outros empregados (AMAYA, 2017, p. 31). Depois de uma
festa de pagamento, caminhando em direção ao campo bananeiro, Lucas
falaria com Moncho as suspeitas que ele tinha sobre Anita:

—Tú tienes tu nido, Lucas: nuestro cuarto. O, mejor dicho, tu catre. Ese es
tu nido. Palomo y paloma.
—Eso es lo triste, compa, que no es ni nido, ni somos palomas, pero tenemos
zorrillos a montones.
—Ustedes no tienen huevos para que los zorrillos se los coman…
—Estos zorrillos no comen huevos, comen palomas, compa, ¡palomas! Y eso
es lo triste. —Y con un deje nostálgico, concluyó: —Me están comiendo mi
paloma. (AMAYA, 2017, p. 38)4

2 “campenho” (“campeño” no espanhol original) é o nome que os trabalhadores


dos campos bananeiros receberam em Honduras. Campenho era aquele que era empregado
pelas transnacionais bananeiras da costa norte de Honduras, sendo esta palavra tão específica
(uma das três definições do Dicionário da Real Academia Espanhola é “pessoa que trabalha
nas companhias bananeiras”, palavra é evidentemente hondurenha, já que as três definições,
segundo a RAE, têm origem em Honduras) o autor preferiu utiliza-la e dar uma explicação
dela, devido à importância semântica e histórica que esta palavra tem para compreender a época
das bananeiras. Como as obras de Amaya Amador vão nos demostrar, ser campenho era mais
que uma profissão ou um trabalho, era uma identidade, ser campenho era o que os definia.
Conservar o termo ajuda-nos a entender a identidade e autorrepresentação dos trabalhadores
das bananeiras: os campenhos.
3 Historiadores como Agapito Robleda Castro concordam com a obra literária de
Amaya Amador, muitos dirigentes campenhos foram assassinados para evitar a criação do
sindicato e a procura de situações mais justas de trabalho. No seu livro “La verdad de la huelga
de 1954 y de la formación del sitraterco” Robleda afirma que incluso na greve do 54, muitos
dos trabalhadores foram desaparecidos.
4 Tradução nossa:
“—Tu tens teu ninho, Lucas: nosso quarto. Ou, melhor dito, tua cama dobrável. Esse é teu
ninho. Pombo e pomba.
—Isso é o triste, cara, que não é nem ninho, nem somos pombas, mas temos multidões de
gambás.
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 197

Utilizando a metáfora do ninho, Lucas continuava falando sobre


proteger seu ninho e sua pomba. Os dias passaram, até que uma vez, na
hora do almoço, Sabino e Lucas se encontraram, e numa luta com seus
facões, ambos morreriam: No había ya necesidad de ayuda; se sostenía los
intestinos con la mano izquierda y de la cabeza le brotaba más sangre.[...] y
nada más pudo decir, porque la muerte llegó presta arrancándole la palabra
(AMAYA, 2017, p. 41)5. Enclaustrados desse jeito, como já introduzimos
no conto “El Nido”, as intimidades se tornariam, de uma ou outra forma,
coletivas: casais compartilhando espaços com outros, compartilhar a mesma
parceira sexual (seja pela prostituição, pela infidelidade, ou, como no caso
dos primos fugidos do Beiradão, que chegaram a um acordo com uma viúva
para ser amante dos dois).
À moral a rege a linguagem, e à sexualidade, a rege a moral, assim como
explica Foucault em umas das suas grandes obras: A História da Sexualidade
(1988). E assim, a sexualidade que sempre foi relegada ao segredo, banida
a recintos fechados, ao mistério e ao silenciamento, nas bananeiras e o mato
amazônico, teve que mudar. E é que, essa moral, que vem de uma tradição
imposta por instituições (como a igreja ou estatais), família ou amigos, não
existia em uma sociedade que estava em plena construção e que, portanto,
carecia destas.
O deslocamento de pessoas, idas para a Costa Norte de Honduras e
para o Amazonas no Brasil, gerou uma sociedade que ia se incorporando ao
ambiente e à carência de espaços que habitar; e além disso, de tradições que
coagiram as interações sociais6. A isso também temos que ligar a carência de
órgãos estatais ou igrejas. Sim, existiam os bandidos das transnacionais e os
coronéis de barranco, mas eles mais que uma autoridade moral, mantinham
apenas a produção e uma ordem que funcionasse para o desenvolvimento
econômico. Estes mesmos, seja pela sedução a mulheres casadas, como

—Vocês não têm ovos que os gambás comam...


—Estes gambás não comem ovos, comem pombas, cara, pombas! E isso é o triste. —E com
nostalgia, concluiu: —Estão me comendo minha pomba.”
5 Tradução nossa: “Não havia já necessidade de ajuda: sustinham-se os intestinos
com a mão esquerda e da cabeça brotava-lhes mais sangue [...] e nada mais pôde dizer, porque
a morte chegou pronto para tirar-lhe a palavra.”
6 A pluralidade não apenas das origens dos trabalhadores, mas também de suas
antigas profissões, culturas, e histórias individuais, junto à realidade social, arquitetônica e
geográfica, fizeram de ambos casos a construção de sociedades particulares, com interações
coletivas e individuais únicas.
198 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

no caso do Padre Silveira ou mister Jones com Juana; ou por frequentar


as prostitutas, compartilhavam as parceiras sexuais junto aos trabalhadores.
No mato, seja a Costa Norte ou o Amazonas, eram os coronéis e as
transnacionais quem regulavam os bens de consumo para os trabalhadores,
dentre estes, também as mulheres, que, como uma forma de trata humana,
convertiam-se em um produto com o qual comerciar:

Os 500 trabalhadores não conduziam mulheres.


As despesas com a aquisição de mulheres figurava nas prestações de contas,
no fim das safras, entre maquinas de costura, rifles, fazendas, sabão e café.
Havia também o pagamento do valor feminino, baseado na saúde e nos
encantos fisionômicos.
Era o dever sempre mais acrescido que o haver na aquisição de mulheres. O
preto Anacleto Braga consumiu o saldo de três anos e ainda ficou devendo,
porque se comprometeu por uma dessas gajas. (MAIA, 1997, p. 93)

E era um negócio, como o caso de Anacleto Braga, com muito sucesso.


Nas bananeiras, pelo exemplo, sucedia que a cada prostituta cobrava-se um
imposto, que pagava ao entrar na roça cada dia de pago. Enquanto na
borracha, como fala o narrador de um dos contos de Banco de Canoa, era
regulado pelas despesas, como um bem de consumo mais.
Nestas sociedades carentes de um código moral imperante, comum da
urbe e que, em sua maioria, eram homens, solteiros e jovens, o sexo tornou-
se num produto mais; e um muito solicitado. Deslocados de uma tradição
moral, esta sociedade apresentou uma nova complexidade das condutas
sexuais, que como Foucault entenderia, em termos da Antiga Grécia são a
relação entre “afrodisia” (os atos de Afrodite) e “chrēsis aphrodision” (os usos
do prazer):

A reflexão moral sobre os aphrodisia tende muito menos a estabelecer um


código sistemático que fixaria a forma canônica dos atos sexuais, traçaria a
fronteira das interdições, e distribuiria as práticas de um lado e de outro de
uma linha de demarcação, do que a elaborar as condições e as moralidades
de um “uso”: o estilo daquilo que os gregos chamavam chrēsis aphrodision,
o uso dos prazeres. (FOUCAULT, 1984, p. 51)

Entende-se “o uso” como a maneira na qual o indivíduo orienta sua


sexualidade, desde as formas de fazer até a importância que ele dava ao ato
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 199

sexual, que vai estar condicionada pelo status do indivíduo, sua necessidade e
sua oportunidade de satisfazer essa necessidade. Sempre baseado na tradição
greco-latina e nesta correlação tripartida, Foucault descreve três estratégias
do prazer: da necessidade, do momento e do status.

A estratégia da necessidade

Como uma apologia à tese de Diógenes “o cínico”, que defendia que assim
como temos necessidades de dormir, comer, e demais, também as temos sexuais, a
estratégia da necessidade é satisfazer essa carência. O aphrodisia, portanto, regulado
pela necessidade, o objetivo não é o de anular o prazer; trata-se, ao contrário, de
sustentá-lo e de sustentá-lo pela necessidade que o desejo suscita; sabe-se muito
bem que o prazer se embota quando não oferece satisfação à vivacidade de um
desejo (FOUCAULT, 1984, p. 53). O prazer é uma necessidade humana e,
portanto, é um bem que é desejado e que deve ser comprazido. Nas bananeiras e
os seringais, a obtenção deste bem cobiçado, era regulado, assim como o álcool, a
comida e demais bens, pelas transnacionais e pelos coronéis:

¿Quién se lucra con la venta de ese opio del trópico que es el guaro? ¿Quiénes
cobran impuestos a las prostitutas en noches de pago, y lo principal, dime, por
qué han llegado esas mujeres hasta el fango? ¿A qué arcas van tantas multas que
las autoridades imponen a los campeños cuando, ebrios, dan “vivas” y “mueras”?
(AMAYA, 2019, p. 61)7

Ou as andejas, que, com seus favores sexuais, pagavam nos portos suas
passagens:

— Nem se diz o contrário, querido padre Fábio. Voltemos às andejas. São


passageiras de terceira classe, vindas de Belém, Santarém e Manaus, rumo de Santo
Antônio: desembarcam nos portos de lenha, nos aglomerados, de preferência onde
não há casais, e desalteram o pessoal. Não deixam de prestar serviços e os próprios
casados as admiram, porque espalham tranquilidade entre os rapazes. (MAIA,
2019, p. 68)

7 Tradução nossa: “quem lucra com a venta desse ópio do trópico que é o licor?
Quem cobra os impostos às prostitutas nas noites de pago, e o principal, me diz, porque
têm chegado essas mulheres até a lama? A que cofres vão as tantas multas que as autoridades
impõem aos campenhos quando, bêbados, dão “vivas” e “morres”?”
200 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

Em outras palavras, segundo os coronéis e as transnacionais, as andejas


e as prostitutas, ajudavam a manter a tranquilidade entre os homens. Pode
ser que cumprida a necessidade sexual, regulava-se a convivência entre os
trabalhadores, e evitava-se também a dispunha que às vezes acontecia por
mulheres. Porém, não por isso quer dizer que não sucediam.
Para tal caso podemos mencionar, pelo exemplo, ao Caboclo Sabino. O
Caboclo Sabino, personagem de Beiradão, casou-se com Raimunda, uma filha
de um seringueiro do Amazonas. O conflito surge da certeza que a Raimunda
não era virgem e que quem havia sido o “benfeitor” antes do Caboclo, era o
próprio pai dela. A história termina de forma sanguenta, com uma sequência
de vinganças que daria de saldo um Sabino capado e a morte de pai e filha.
Outro caso é Mané Onça, sua esposa e um parceiro com o qual
moravam juntos. Mané Onça, desejoso de ajudar ao cara mais novo que ele,
decide compartilhar-lhe a casa. Nessa coabitação, o moço começa a seduzir à
esposa de Mané Onça, ele descobrindo e cobrando sua vingança:

— Isso nem chega a ser crime para causar espanto. É outro, bem diferente.
Mané Onça vivia com a boliviana que arranjou nas festas da igreja. Comia
bem e dormia bem. Tinha um companheiro de colocação, mais novo, espécie
de tutelado. Começou a namorar a falsa madrasta, e ela servia a ambos. Foi
descoberta em pleno terreiro, debaixo de umas palhas. Mané Onça caceteou
os dois, mas não matou logo. (MAIA, 2019, p. 80)

Este caso é similar ao de Lucas e Sabino do conto “El Nido”. As situações


do espaço reduzido e de compartilhar morada, impulsavam aos trabalhadores
da roça, amazonense e hondurenha, a interações sexuais como estas descritas.
Lucas, o campenho jovem das bananeiras, vivia junto sua esposa, Anita, e
demais campenhos, num quarto dos barracões bananeiros e Mané Onça que
decidiu ajudar a seu companheiro mais novo.
Esta convivência forçosa desenvolve, como dirão os psicólogos sociais,
impulsos sexuais que, como vemos no conto El Nido e no romance Beiradão,
levariam a uma tragédia como a que ocorreu entre Sabino e Lucas, e entre
Mané Onça e seu companheiro.
Ambas situações, da sedução de Sabino a Anita, e a de o jovem à esposa
de Mané Onça e sua resolução violenta, corresponde à autoridade e poder que
os esposos têm sobre suas esposas e também, à visão de mulher como uma
pertença e não como uma pessoa independente a ele:
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 201

É verdade que todo homem, qualquer que seja ele, casado ou não,
deve respeitar uma mulher casada (ou uma jovem sob poder paterno);
mas é porque ela está sob o poder de um outro; não é seu próprio status
que o detém, mas o da jovem ou da mulher contra a qual ele atenta; sua
falta é essencialmente contra o homem que tem poder sobre a mulher.
(FOUCAULT, 1984, p. 131)

Dessa forma, para recuperar seu honor, Lucas, Mané Onça e o Caboclo
Sabino, têm que resolver violentamente esses abusos a sua propriedade. As
mulheres, nestas estruturas sociais, das bananeiras e a borracha, eram vistas
como um bem sumamente cobiçado e, portanto, devia ser protegido e até
vingado. Por outro lado, além da dinâmica socioeconômica, está também a
particularidade ética: também pode ser entendida como uma transgressão à
dinâmica entre desejo e necessidade:

Se é possível satisfazer os desejos sexuais quando eles se manifestam, não se


deve criar desejos que vão além das necessidades. A necessidade deve servir
de princípio diretor nessa estratégia, a qual, como se vê, nunca pode tomar a
forma de uma codificação precisa ou de uma lei aplicável a todos da mesma
maneira e em todas as circunstâncias. Ela permite um equilíbrio na dinâmica
do prazer e do desejo: ela o impede de “encher-se de ímpeto” e de cair no
excesso fixando-lhe, como limite interno, a satisfação de uma necessidade
(FOUCAULT, 1984, p. 54)

Portanto, a estratégia de necessidade sustenta-se no equilíbrio entre o


desejo e a capacidade que o sujeito tem para satisfaze-lo. A intemperança,
utilizando a nomenclatura foucaultiana, apresenta-se como uma conduta
sexual que não tem sua origem no equilíbrio: as prostitutas chegavam cada
dia de pago e, como já evidência o conto, os dias de pago eram dias nos quais
os campenhos satisfaziam seus desejos sem restrições. Na teoria das condutas
do prazer, efetivamente, apresentam-se a temperança e a intemperança:

Essa estratégia permite conjurar a intemperança que é, em suma, uma conduta


que não tem sua referência na necessidade. É por isso que ela pode tomar
duas formas contra as quais o regime moral dos prazeres deve lutar. Existe
uma intemperança que se poderia dizer de “pletora”, de “preenchimento”:
ela concede ao corpo todos os prazeres possíveis antes mesmo que ele tenha
experimentado a necessidade, não lhe dando tempo de experimentar “nem
fome, nem sede, nem desejos amorosos, nem vigílias” abafando, com isso
mesmo, qualquer sensação de prazer. (FOUCAULT, 1984, p. 54)
202 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

Esta intemperança de preenchimento como planteia Foucault, é contrária


à necessidade porque não permite ao corpo experimentar mesmo a necessidade
que já está satisfazendo: come sem fome, dorme sem sonho, bebe sem sede... esta
estratégia da necessidade, portanto, temos que lembrar que se baseia na máxima de
que as necessidades como tais, são aquelas carências que o corpo sente obrigatórias
satisfazer para seguir existindo. O equilíbrio, nesse sentido, vai surgir do limite da
satisfação, evitando os excessos que seria a intemperança de preenchimento.

Estratégia do momento oportuno: o kairos

Sem muito que adicionar, como o nome diz, o kairos é saber satisfazer os
prazeres quando estes sejam convenientes: Deve-se ter em mente que esse tema
do “quando convém” sempre ocupou, para os gregos, um lugar importante, não
somente como problema moral, mas também como questão de ciência e de
técnica (FOUCAULT, 1984, p. 55). Se nós retomamos ao Diógenes “o cínico”,
seu jeito de satisfazer seus prazeres no momento que sentia a necessidade, seria
uma intemperança mesma, pela impossibilidade de contrastar em que momento
poderia os satisfazer.
Saber o momento oportuno, pelo exemplo, podemos representa-lo com as
aventuras amorosas do Padre Silveira, do romance Beiradão, com a Zefa Mixira e
a Senhora Maroca, ambas casadas. O Padre Silveira aguardava à saída dos esposos
para se instalar nos barracões das esposas.
Zefa Mixira era a esposa do João Caboclo, quem se dedicava à pesca,
especialmente do peixe-boi, e daí o apelido de sua esposa: Zefa Mixira trouxera a
antonomásia do marido, que era arpoador de peixe-boi. Sabia preparar a mixira:
segundo suas explicações, tem carne de peixe, de porco e de boi (MAIA, 2019, p.
53). Aproveitando os dias em que o João Caboclo não estava em casa, o Padre
Silveira aguardava às horas da noite em que ninguém poderia vê-lo para ir à barraca
da Zefa Mixira:

Uma vez foi surpreendido, altas horas da madrugada, nos cerrados marginais à
cachoeira. Fábio imaginou-o em delírio febril e saiu-lhe no encalço, receoso que se
despenhasse das ribanceiras e se ferisse nas lajes.
Padre Silveira dirigiu-se simplesmente à barraca da Zefa Mixira, escondida entre
goiabeiras e capim alto. Demorou-se e, ao regressar, olhando para os lados,
viu Fábio na maqueira de tucum em embalos lentos, Zefa Mixira trouxera a
antonomásia do marido, que era arpoador de peixe-boi. (MAIA, 2019, p. 53)
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 203

Às vezes, também, disfarçava as visitas como encontros para beber


café, chegando também na noite, quando todo estava deserto e os moradores
cada quem em suas casas (MAIA 2019, p. 59). Assim, nesta estratégia, a
temperança é o equilíbrio entre as diversas atividades do homem, e uma
distribuição do tempo:

A escolha do momento — do kairos — deve depender igualmente das


outras atividades. Se Xenofonte cita Ciro como exemplo de temperança não
é porque este tivesse renunciado aos prazeres; é porque ele sabia distribuí-los
como convinha no curso de sua existência, não se deixando por eles desviar
de suas atividades e somente os permitindo após um trabalho preliminar que
conduzia a entretenimentos honrosos. (FOUCAULT, 1984, p. 56)

O vemos, também, no aproveitamento da Senhora Maroca em


“visitar” ao Padre Silveira quando seu marido, o Caboclo Euzébio ia embora,
seja pela pesca:

– Mesmo um amigalhão como padre Silveira vem vigiar-lhe a barraca, a


mulher e os filhos, comendo galinhas cevadas e batizando. Desculpe. Falo
ao amigo. Mas você não deve ter queixas. Ainda ganha de Euzébio para ter
essa vidoca.
– Misérias, misérias, Fábio! Creio em você, que não pensa mal de ninguém.
– Não penso mal, mas estou vendo. Pois a cabocla não mudou de dormitório,
quando mestre Euzébio foi pescar para o nosso almoço? Vi bem quando
passou e ouvi barulho de rede, denunciando uma pessoa que se deita. Ora,
vocemercê já estava deitado. A separação dos quartos é de palha. Tenha
cuidado. (MAIA, 2019, p. 114)

Ou bem, quando o Caboclo Euzébio ia embora às expedições que os


coronéis davam para capitanear:

Caboclo Euzébio não ouviu os conselhos, mas nada percebeu com a


expedição, em que passou seis meses, atravessando matas e igarapés.
Regressou, estropiado e tonto de remorsos. Foi nessa ausência que a mulher
ficou de barriga, e lhe deu um curumim mais esbranquiçado, que diziam ter
traços do padre Silveira, talvez pela influência nas festas e visitar ao lugar.
– Castigo de algum pajé!
– Qual castigo de pajé! Nesse caso, o curumim teria cara de índio ou
matintapereira. O filho é meu, puxa ao avô, que era descascado. (MAIA,
2019, p. 105)
204 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

Expedições nas quais o Padre Silveira ficava na barraca “cuidando”


à família do Caboclo Euzébio. Verificamos que o kairos, a diferença da
estratégia da necessidade, está baseada no tempo mesmo e a distribuição
social do trabalho.
Temos o caso da Velha Quintéria e os três primos fugidos, que já
tínhamos mencionado antes. Estes três seringueiros, sendo vítimas de
maus tratos e de pagamento desonesto pela pele de borracha, a Velha
Quintéria os ajudava, em coisas como lavar roupa, dar comida e também
nas complacências sexuais:

– Consolava três?
– Sim. É costume naquelas bandas. Certas velhas, sem marido, ganhavam a
vida assim e olhe que são procuradas. Um dia para cada um. Velha demais,
não gosta de nenhum e não dá em ciumada. É mesmo que um caco quebrado.
Melhor que moça, rondada pela macharada. Velha Quintéria não acende mais
fogo no cupim, e serve por servir, sem prestar atenção a nenhum. (MAIA, 2019,
p. 94)

Como explica um dos primos, a Velha Quintéria distribuía seu tempo,


um dia para cada um, e eles, também, respeitavam o tempo do outro e dela
mesma. Não existe briga desse jeito, onde cada quem tem estipulado quando
pode e quando não satisfazer seu desejo.

A estratégia do status

Esta estratégia que explica Foucault é a mais relacionada com sua fala do
poder, já que o “status” é uma ferramenta, aqui, para alcançar o prazer, por uma
parte, mas também para regula-lo: É sem dúvida um traço comum a muitas
sociedades que as regras de conduta sexual variem segundo a idade, o sexo, a
condição dos indivíduos, e que obrigações e interdições não sejam impostas a
todos da mesma maneira (1984, p. 57). O status, que pode se entender como
o poder e autoridade que um indivíduo numa sociedade, se exerce neste caso
como uma estratégia de satisfazer seu prazer.
Se seguimos analisando ao Padre Silveira, ele utilizava seu status de
“homem de fé” como uma forma de alcançar seu prazer: os esposos confiavam
nele, e não suspeitavam que poderia acontecer alguma coisa entre ele e as esposas.
A temperança no Padre Silveira, revela-se como o segredo de seus encontros:
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 205

Padre Silveira, quarentão forte, analisava a própria mioleira, – e pensava nos


pecadilhos com a Zefa Mixira, que residia no outro lado da ruela, perto do
tombo. Disfarçando que ia beber café, lá aparecia à hora sesta, quando o velório
estava deserto, sem moradores, ou pelas caladas da noite. (MAIA, 2019, p. 59)

Que, como explica Foucault, nesta estratégia, é a regularidade entre as


qualidades que a pessoa tem por conta de seu status na cidade, e comprazer-se a
si mesmos. E, embora as suspeitas começaram a surgir:

—Dou mil-réis pelo pitiú assado de dona Zefa Mixira- Está cheiroso e gostoso.
—Dou cinco. É pro padre Silveira, que gosta de dormir na barraca da Zefa. Até
parece um peixe-boi à noite, quando troca a batina por uma roupa escura para
andar melhor.
—Vocemecê não prova que o padre dorme na barraca da Zefa. Está mentindo
e vai engolir.
Padre Silveira estava lívido, ouvindo aquela ameaças, à entrada do telheiro, que,
naquela hora, era salão de igreja. (MAIA, 3019, p. 62)

Foram o status de sacerdote e o status de Fábio, quem era muito querido


e respeitado pelos seringueiros, aos quais lia e respondia cartas das famílias
que enviavam desde Ceará, e portanto, homem ao qual admiravam, os que
terminaram salvando-o da fofoca:

—Sabem que sou amigo de todos. O nosso leiloeiro não errou. O pitiú foi
assado por dona Zefa e deve estar gostoso. É o último lance da festa e, dentro
de minutos, iremos recomeçar as danças de despedida. Mas há um engano.
O leiloeiro viu, talvez em mais de uma ocasião, um sujeito vestido de escuro
enveredar para a barraca de dona Zefa. Deviam saber também que resido na
casa do padre Silveira. Fácil o engano. Quem ia à barraca referida não era o
nosso bom reverendo. Quem era? Dirão vocês. Natal a pergunta. Era o amigo
Fábio, sem nenhum mal.
A seringueirada deu uma risada, aumentando o preço da oferta.
[...]
—Perdão, padre! Aquilo foi brincadeira de mau gosto. Logo com o padre! Não
deixe de vir no ano que vem. O senhor já está acostumado com as besteiras da
gente.
Padre Silveira agradecia sorrindo, abençoando mulheres e crianças. Distribuía
água benta, santinhos e conselhos.
Olhou para o terreiro: admirou, com enternecimento, aquele rapaz de poucos
anos, que, para salvá-lo, assumira responsabilidade de atos que não praticara.
(MAIA, 2019, p. 64)
206 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

O status, em este caso, serviu para duas coisas: o padre Silveira


conseguira seu prazer e também para encobri-lo e resgata-lo das consequências.
Assim, as relações amorosas não podemos considera-las como desonestas
ou honestas já que serão diversos fatores os que condicionarão as condutas
sexuais:

Arte de usar do prazer deve também se modular em consideração àquele que


a usa e segundo o seu status. O autor do Eróticos, atribuído a Demóstenes,
lembra-o segundo o Banquete: qualquer espírito sensato sabe muito bem que
as relações amorosas de um rapaz não são “virtuosas ou desonestas de forma
absoluta”, mas que “elas diferem completamente segundo os interessados”;
portanto, “não seria razoável seguir a mesma máxima em todos os casos”.
(FOUCAULT, 1984, p. 56)

Por outra parte, a intemperança aparece como o abuso do poder


que dá o status para alcançar seu prazer. Como exemplo disso podemos
comparar os casos particulares do Padre Silveira, o Mordomo Amindo
Carranza e a Jones. No romance Biografía de un Machete, obra que relata
a história dos Jocotán, uma família de camponeses que, oriundos do sul de
Honduras, movidos pelas guerras civis e a corrupção dos políticos, devem
se mudar à costa norte, a trabalhar nas bananeiras. Neste romance temos ao
Amindo Carranza, quem no seu status de mordomo da fazenda, aproveitava-
se para estuprar as mulheres e; especificamente, estuprou e matou a Justina
Jocotán, a mãe dos Jocotán, quem se resistiu a ser violada. Do romance
Prisión Verde, que relata as dores dos campenhos no campo bananeiro e sua
luta pela união política para conseguir seus direitos, podemos mencionar
também o caso de Jones, um comandante das bananeiras, quem para ficar
com Juana, mandou matar a seu marido:

—¿Arreglaste el asunto de Jones?


—Ser inútil. Juana no aceptar. Decir tiene marido. Mi ofrecerle buena
plata. Ella terca, míster. Por eso, yo decir a míster Jones, si él querer coger
Juana, primero quitar marido. Marido estorbar.
[…]
—Yo conoce un hombre que por cien dólares y un pistola, dice que quitar
de en medio al Amadeo.
—¿Le conoces tú? ¿Es de confianza? Mira no nos meta en un lío.
—Ser hombrote. Le conocer yo en Costa Abajo. Se ha volado más de un
docena. Trabajar limpio y largarse de aquí.
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 207

—Siendo así, entonces, háblale.


—Ya le hablé, míster. Sólo faltar la “monis”.
Foxter metió su mano en el bolsillo y sacó los cien dólares poniéndolos en
la mesa, de donde los tomó el Capitán con sonrisa de bandolero. (AMAYA,
2019, p. 92)8

E assim, sempre no mesmo romance, podemos mencionar também


ao Capitão Encarnación Benítez e o estupro de Catuca Pardo, filha de
Lucio Pardo, um campenho das bananeiras que morava com sua família nos
barracões das transnacionais. Concertou uma reunião com ela, já na meia-
noite, em segredo, para falar sobre os planos que tinham os comandantes
das bananeiras para matar a seu pai e a Marcos, seu namorado. Porém,
aconteceu coisa diferente:

—¡Tendrás todo conmigo: sedas, crepes, zapatos finos, pulseras y anillos de


oro, criadas; yo ganar los dólares!
—No me diga eso que me ofende. Si me estima, prométame que no hará
nada contra Marcos y mi papa. Yo le agradeceré todo mi vida y, a lo mejor,
en el futuro, tal vez pueda quererlo, pero, ¡por favor..!
La tierra está húmeda de las aguas sucias que allí tiran las cocineras día tras
día y un hedor de lejía y lodo impregna el ambiente. La plaga señorea con
su tétrico silbido sin fin.
Se sucede una lucha en silencio. Un arañazo. Un mordisco. Y un bofetón
sonoro del puño masculino.
—¡Animal! ¡Bruto! ¡Te odio!

8 Tradução nossa:
“—Arrumou o assunto de Jones?
—Ser inútil. Juana não aceitar. Ela dizer tem marido. Mim lhe oferecer boa grana. Ela
teimosa, mister. Por isso, eu dizer a mister Jones, se ele quer transar Juana, primeiro tirar
marido. Marido atrapalhar.
[...]
—Eu conhece um homem que por cem dólares e uma pistola, diz que tirar de em médio ao
Amadeo.
—Tu lhe conheces? É de confiança? Olha não nos entrar num problema.
—Ser corajoso. Lhe conhecer eu em Costa Abajo. Tem matado mais de uma dúzia. Trabalhar
limpo e vai embora daqui.
—Sendo assim, então, fala com ele.
—Já falei, mister. Falta a arma só.
Foxter meteu sua mão no bolso e colocou os cem dólares na mesa, de onde os pegou o Capi-
tão com sorriso de malandro.”
208 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

[…]
Las uñas de Catuca Pardo taladran la tierra esponjosa y remueven raíces de yerbas
muertas porque las estrellas que sus ojos atisban sobre el hombro de Benítez, se
ha pintado de rojo con lápices labiales de sexualidad. Cierra los ojos y oye a lo
lejos una canción que, hasta ahora, nunca había escuchado en la noche.
Hay neblinas y hace frío cuando Catuca Pardo se acuesta en su catre de lona.
Tiene húmedos los ojos y desgarrado el camisón. En sus uñas, tierra y sangre de
gente. ¡La sangre de su virginidad perdida! Varias horas la ha retenido el seductor.
(AMAYA, 2019, p. 114)9

Se vemos no início, Encarnación Benítez fala-lhe de riquezas, de uma


vida melhor a seu lado: a ilusão de um status superior. Contudo, quando
Catuca Pardo negou-se aos desejos do Capitão, este decide estupra-la, exercendo
o poder que lhe dava seu status de capitão.
Por uma parte temos a Catuca Pardo e Justina Jocotán, representando a
pureza, o mantimento de uma promessa (Catuca estava apaixonada pelo Marcos
e Justina casada com o Ezequiel Jocotán), e por outra, os poderosos, que tendo
o status em seu favor, aproveitaram-no para se comprazer. Esta situação torna-
se arquetípica, como diz Foucault, a representação de virtude sexual podemos
encontra-lo em estas duas mulheres:
9 Tradução nossa:
“—Terás tudo comigo: sedas, crepes, sapatos finos, pulseiras e anéis de ouro, empregadas; eu
ganhar os dólares!
—No me diga isso que me ofende. Se você se preocupa por mim, me prometa que não fará algo
contra Marcos e meu papai. Eu estarei agradecida toda minha vida e, ao melhor, no futuro,
talvez eu poderia ama-lo, mas, por favor!
A terra está úmida das águas sujas que ali tiram as cozinheiras dia após dias e um fedor de água
sanitária e lama impregna o ambiente. A praga comanda com seu fúnebre apito sem-fim.
Acontece uma luta em silêncio. Um aranhão. Uma mordida. E uma tapa sonora do punho
masculino.
—Animal!, sua besta!, te ódio!
[...]
As unhas de Catuca Pardo brocam a terra esponjosa e removem raízes de ervas mortas porque
as estelas que seus olhos vislumbram sobre o ombro de Benítez, tem se pintado de vermelho
com lápis labial de sexualidade. Fecha os olhos e escuta distante uma música que, até agora,
nunca havia escutado na noite.
Há neblina e faz frio quando Catuca Pardo deita em sua cama dobrável de tela. Tem úmidos os
olhos e rasgada a camisola. Nas suas unhas, terra e sangue de gente. A sangue de sua virgindade
perdida! Várias horas o sedutor a reteve.”
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 209

Chegará o dia em que o paradigma utilizado mais frequentemente para


ilustrar a virtude sexual será o da mulher ou da jovem que se defende contra
os avanços daquele que tem todo o poder sobre ela; a salvaguarda da pureza e
da virgindade, a fidelidade aos compromissos e aos votos constituirão, então,
a prova típica da virtude. (FOUCAULT, 1984, p. 76)

Catuca Pardo e Justina10 Jocotán ao ser confrontadas a homens


poderosos, salvaguardam sua pureza, sua virgindade, no caso de Catuca Pardo,
e assim, representam uma exaltação à virtude. Catuca luta para impedir o
estrupo, e Justina prefere morrer que tracionar seu esposo. Mas, também, a
virtude podemos encontra-la no Padre Silveira, não como o afastamento do
prazer, senão pela temperança que se notou nele para satisfazer seu prazer.
Isso explicaria porquê apesar de tem estado com mulheres casadas, estes
encontros não terminaram em brigas como sim passou em outros casos:
foi, no modo geral, um homem temperado. Foucault afirma que não é
possível uma lei universal, tudo, diz ele, é um ajustamento, de circunstância,
de posição pessoal (1984, p. 58). Os usos sexuais, então, tem algo de
pragmatismo: estão definidos pelo contexto e os fins do actante.
Portanto, cada estratégia dos usos do prazer, são flexíveis e não-
universais, que só podem ser aplicados nos contextos em que surgem estes
“chrēsis aphrodision”. Não por isso, contudo, quer dizer que não existe um
código moral como tal: vemos que todas as estratégias têm intemperanças e
temperanças, porém, não serão fixas, mas condicionadas pelo entorno nos
quais os relacionamentos humanos surgem. O próprio Padre Silveira fala:

Qual malandragem? Bebida, mulher, rixa? São até válvulas contra maiores
males. Temos que escurecer a vista e esquecer certos pecados. O mesmo
pecador, em outro ambiente, não os cometeria. Para que a reclusão e a
abstinência? Já é uma prova de esforço terem vivido. Sem essas válvulas,
praticariam maiores crimes. (MAIA, 2019, p. 54)

E nesse aspecto, o Padre Silveira manteve-se virtuoso, já que não


transgrediu nenhuma estratégia, e satisfez seu prazer sem consequências
que lamentar; na perspectiva de Foucault, isto é a temperança. Dentro da
narrativa podemos vê-lo no sentido de que ninguém brigou com o Padre
Silveira e inclusive, com a exceção de Fábio, nenhuma pessoa descobriu as
aventuras do sacerdote, já que procurou se satisfazer sem excessos (estratégia
10 Inclusive seu nome já nos mostra sua natureza: Justina, Justa.
210 | Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha

da necessidade), aguardar o momento indicado (estratégia do kairós) e


utilizou seu prestígio de sacerdote (estratégia do status) mantendo sua
imagem.

Considerações finais

As Bananeiras e a Borracha chegaram a Honduras e ao Amazonas


brasileiro a mudar as estruturas sociais, econômicas culturais, mas também
arquitetônicas, as formas de viver e as relações interpessoais. As formas
de viver e as relações interpessoais são representadas na literatura, nessa
perspectiva, para estuda-las, pegamos as obras de Ramón Amaya Amador e
Álvaro Maia, romancistas que foram capazes de descrever, narrar e plasmar
a realidade hondurenha e amazonense destas épocas.
Dentro das consequências das Bananeiras e a Borracha são os
deslocamentos à costa norte de Honduras e ao Amazonas brasileiro. Estes
deslocamentos reflexar-se-iam nos barracões. Os barracões, tanto nas
Bananeiras quanto na Borracha, eram estes espaços más adequados onde
os campenhos e os seringueiros viam-se obrigados a compartilhar. Esta
sobrelotação dos barracões daria relações interpessoais diversas, incluindo
dentre elas, a sexualidade. Foucault, na sua história da sexualidade
apresenta-nos os usos do prazer. Assim, vemos como na obra destes dois
romancistas, as estratégias do prazer são representadas das mais variadas
formas; e relacionado a isso, a temperança do Padre Silveira: sim, esteve com
mulheres casadas, mas respeitando as três estratégias do prazer (kairós, status
e necessidade), ele satisfazia seu prazer sem desarmonizar com a povoação.
Outros casos podemos mencionar, como os primos e a Velha
Quintéria, onde vemos também um respeito às estratégias do prazer, e,
portanto, mantiveram uma relação harmoniosa entre eles. Nisto a teoria
da sexualidade de Foucault e a obra de Amaya Amador e Álvaro Maia vêm
a concordar: só aqueles que transgrediram as estratégias do prazer, ou seja,
a intemperança, desarmonizavam as relações interpessoais, que terminaria
num conflito entre os personagens: O Sabino seria morto pelo Lucas
por seduzir à Anita (uma transgressão do kairós, ao seduzi-la frente ele),
Encarnación Benítez estuprou à Catuca Pardo (uma transgressão do status,
pois abusou de seu poder), Amindo Carranza estuprou a Justina Jocotán
(uma transgressão do status) e morreria a mãos de Esmerildo Jocotán, o
VALDEZ, A. A.; UMBACH, R. U. K. | 211

filho mais velho da Justina. Assim, os romancistas nos mostram que nas
interações pessoais, as intemperanças às estratégias do prazer, resultam em
desarmonias do coletivo social, e consequências negativas aos actantes.

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Como citar este artigo


Valdez, A. A.; Umbach, R. U. K. Industrialização, intimidade e deslocações:
os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha.
Fragmentum, Santa Maria, p. 193-212, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219468229. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 213-237, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219469133


Submissão: 28/01/2022 • Aprovação: 11/009/2022
Artigo Original

BRASIL BRASILEIRO: ETIMOLOGIA, IDENTIDADE,


CULTURA E TRABALHO

BRAZILIAN BRAZIL: ETYMOLOGY, IDENTITY,


CULTURE AND WORK

Éder Cabral
Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, Brasil.
Ernani Mügge
Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, Brasil.

Resumo: Este trabalho discute, a partir de uma exceção linguística – o termo “brasileiro” –,
aspectos da identidade e da cultura do território nacional. Para tal, apresenta noções de trabalho
e exploração, as quais têm uma singularidade própria no contexto brasileiro desde sua origem
como nação. O estudo parte da etimologia da palavra “brasileiro” e perpassa pelas áreas da
história, da sociologia, entre outras. Ademais, traz referências literárias diversas, as quais
apontam e problematizam questões que estão no cerne do eixo literatura-trabalho-cidadania.
Para embasar tal reflexão, centra-se, em especial, no capital teórico de Giorgio Agamben,
Roberto Damatta, Byung-Chul Han, Darcy Ribeiro e Roberto Vecchi. A reflexão evidencia
que o trabalhador brasileiro sempre enfrentou uma trajetória de atrocidades, tanto no âmbito
do trabalho quanto no da cidadania.

Palavras-chave: cultura, identidade, história, trabalho, literatura.

Abstract: This article deals with the aspects of identity and the culture of the national
territory, departing from a linguistic exception of the term “Brazilian”. In order to do that,
it is presented the notions of work and exploitation, which have a singular characteristic
in the Brazilian context since its origin as a nation. The study moves from the etymology
of the word “Brazilian” along with the areas of history, sociology and others. Moreover,
it includes a variety of literary references, which deals with issues that are in the core of
the realm of literature-work-citizenship. In order to sustain such questioning, this study is
based on the theoretical capital of Giorgio Agamben, Roberto Damatta, Byung-Chul Han,
Darcy Ribeiro and Roberto Vecchi. The results show that the Brazilian worker has always
had a cruel trajectory, in the realm of both work and citizenship.

Keywords: culture, identity, history, work, literature.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


214 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

À guisa de introdução

Os produtos culturais, nos quais se situam as narrativas literárias1,


podem ser vistos como um espaço ou um dispositivo de contrapoder, em
que, ocasionalmente, há a inscrição de uma espécie de mundo alternativo,
quiçá mais próximo da realidade que do efeito de real. Esse contrapoder
contesta o poder constituído e evoca um poder desconstituinte, uma
força que se movimenta de encontro ao que foi pensado com uma baliza
histórica. Nessa ordem, é possível afirmar que parte da literatura remete a
um poder outro, estabelecendo uma oposição ao poder constituído, abrindo
a possibilidade de se pensar sua potência. É necessário ressaltar que, embora
este artigo traga referências da ficção, não se pretende apresentar uma análise
literária propriamente dita. O que se almeja, em palavras simples, é articular
reflexões a partir do posicionamento de que, em nossa sociedade, há um
poder opressivo e explorador, contra o qual os produtos culturais – dentre
eles a literatura – se afirmam como um contrapoder.
Em Machado de Assis, no conto “Pai contra mãe”, em narrativas
de Lima Barreto, entre eles “Sua excelência” e “O caso do mendigo”, em
textos de Euclides da Cunha, como Os sertões, o leitor encontra a captura
do contrapoder. Já no Modernismo, ocorre uma (re)aproximação da elite.
Mário de Andrade (1983, 1942), contudo, percebe que o movimento
não entendeu onde estava o povo. Assim, em textos de 1942, publicados
em O Estado de São Paulo, em função dos vinte anos da Semana de Arte
Moderna, critica a tendência artístico-cultural. Ao evocar Alencar, revela
sua incapacidade de instalar a língua brasileira na literatura de seu país,
outorgando o desafio para a posteridade: “[...] mas isso ficará para outro
futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão. Nós
fracassamos […]” (ANDRADE, 1942, s/p). Guimarães Rosa, já considerado
um pós-modernista, em O recado do morro, mostra que são os marginais
que salvam uma vida, porque as comunicações formais não funcionam. A
narrativa é emblemática, pois quem decodifica as comunicações é aquele
que está à margem da sociedade. Há, nesse texto, uma espécie de mundo
alternativo, no qual a comunicação funciona dentro de uma outra lógica –
exótica e excêntrica. Esse contrapoder também está no grupo do Romance
de 30; nele, assoma a questão do subalterno, que chega à contemporaneidade
1 O posicionamento do teórico francês Michel Foucault sobre poder e contrapoder é
apenas um ponto de partida para a discussão dos conceitos, os quais são problematizados pelos
autores em outra perspectiva.
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 215

e, com ela, pode-se destacar as obras de Roniwalter Jatobá e Luiz Ruffato.


Portanto, a presença do contrapoder nos processos e manifestações
culturais, em especial na literatura, é uma constante. Para alcançar o que se
objetiva neste artigo, apresenta-se o texto da seguinte forma: inicialmente,
discute-se o adjetivo pátrio ‘brasileiro’, traçando um caminho epistemológico;
em seguida, apresenta-se um paralelo histórico entre a concepção do termo
‘brasileiro’ no Brasil colonial, no período da instalação da República e nos
dias atuais. Esse paralelo serve de guia para as seções seguintes, as quais
tratam sobre outras percepções acerca do gentílico; sobre a identidade e
a cultura do trabalho no país, com destaque ao trágico implicado nessas
esferas. Com tais aspectos alicerçados sobre o trágico, pode-se concluir que
o trabalhador brasileiro enfrenta uma trajetória de atrocidades no âmbito
laboral. Para isso, o artigo se aporta, em especial, nos referenciais teóricos
de Giorgio Agamben, Roberto Damatta, Byung-Chul Han, Darcy Ribeiro
e Roberto Vecchi.

O gentilício brasileiro

Capítulos de história colonial (1500-1800)2, do historiador Capistrano


de Abreu, publicado em 1907, entre outros, tem, em seu horizonte temático,
a chegada dos portugueses ao Brasil. Nos textos, a adjetivação da terra se dá
a partir de termos como brasílica, brasilis ou brasiliana.
Os sufixos -is e -iano/a são resgatados por autores, como Capistrano
de Abreu, de outros contextos, como a recuperação de uma vertente erudita
(ou se apresenta como), mas que, no uso comum, atualmente, não se
aproveita. Esses adjetivos se perderam no tempo. O termo brasileiro surge
muito tempo depois da chegada dos portugueses. Usa-se, na própria língua
portuguesa, o adjetivo pátrio ‘brasileiro’; contudo, em outros idiomas,
encontra-se o seu equivalente como brasiliano, brazilian, brasileño, brésilien.
Há, assim, uma renovação ou uma reutilização do termo: diz-se ‘brasileiro’,
logo o (uso do) termo é uma exceção.
Quando se pensa em exceção, é de uma forma substancial, pois ela se

2 A obra descreve a terra brasílica desde seus predecessores indígenas, evidencia as


ações dos descobridores e os conflitos da colonização, a forma de administração do território
colonial, as guerras com outras nações, entre tantos outros episódios do período colonial.
216 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

realiza dentro de um estado de exceção – “terra de ninguém”, apresentando-


se “como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (AGAMBEN,
2004, p. 12), o qual remete não apenas a uma instância do poder, mas
também a uma discursividade que surge – muitas vezes impropriamente – e
tenta realizar uma regulação das exceções.
Para Agamben, o estado de exceção constitui um ponto de desequilíbrio
entre o direito público e o fato político. O filósofo italiano, a partir dos
conceitos do pensamento conservador de Carl Schmitt, traz, como exemplo
do estado de exceção, a guerra civil, a insurreição e a resistência, eventos
que estão em uma faixa ambígua, indefinida, a qual faz uma espécie de
intersecção entre o jurídico e o político. Ele expõe o estado de exceção da
seguinte forma:

[...] dado que é o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona
de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, que é a resposta imediata
do poder estatal aos conflitos internos mais extremos. No decorrer do século
XX, pode-se assistir a um fenômeno paradoxal que foi bem definido como
uma ‘guerra civil legal’ [...]. O totalitarismo moderno pode ser definido,
nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma
guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários
políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer
razão, pareçam não integráveis ao sistema político (AGAMBEN, 2004, p.
13-14).

Em Homo Sacer, Agamben (2007, p. 15, grifo do autor) distingue


exceção e exemplo: a exceção, para ele, é uma parte que é recolocada dentro
de uma totalidade, pelo gesto soberano, o qual tem o poder de exclusão
inclusiva:

[...] como uma exclusão inclusiva (uma exceptio) da zoé na pólis, quase como
se a política fosse a lugar em que o viver deve se transformar em viver bem, e
aquilo que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua. A vida nua tem,
na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão
se funda a cidade dos homens.

Em outras palavras, o soberano tem o gesto (ação, prática,


procedimento) de excluir e incluir a seu bel prazer, pois o próprio gesto é
o seu poder. O exemplo, por sua vez, é o ato de se retirar uma parte de um
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 217

todo e singularizá-la a posteriori, elegendo-a como representação do todo.


Exemplo e exceção, nessa ordem, são dois movimentos simétricos, pois são
o mesmo tipo de gesto e de relação entre as partes e o todo, no entanto
opostos. O problema se estabelece quando o excepcional se torna exemplar,
pois essa operação se origina no campo da ideologia, sempre necessária para
transformar exceções em exemplos.
Essa transmutação, trazida para a compreensão dos fenômenos do Brasil
contemporâneo, exige um olhar a partir do caminho discursivo, para que não se
corra o risco de afirmar que as exceções são exemplos.
O gentilício brasileiro diverge de uma norma linguística, ou seja, é,
também, uma exceção – ou resultado de uma. Assim, neste texto, faz-se uma
figuração, uma escrita de uma cultura material, mas numa perspectiva quase
invencional, pois, se nomear é ter poder, consequentemente, institui-se como
um gesto, também, soberano. Diz-se, aqui, invencional, por um motivo:
ecoam, nesta reflexão, algumas palavras de Edward Said, tais como “[...] todas
as famílias inventam seus pais e filhos, dão a cada um deles uma história, um
caráter, um destino e até mesmo uma linguagem” (SAID, 2004, n.p.). Pensa-se,
desse modo, que o Brasil é um mistério inventado, e, logo, reflete-se sobre alguns
pontos de sua realidade identitária.

Nomes enterrados

Se o termo “brasileiro” é uma exceção ou uma invenção, o que se pode


fazer é tentar montar um breve resgate dos nomes do Brasil a partir de um
excerto de História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos
Brasil (1576)3, de Pero de Magalhães Gandavo, historiador e cronista português:

Por onde não parece reação que lhe neguemos este nome, nem que nos
esqueçamos dele tão indevidamente por que lhe deu o vulgo mal considerado,
depois que o pau da tinta começou de vir a estes Reinos: ao qual chamaram
Brasil por ser vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este
nome de Brasil. Mas para que nesta parte magoemos ao Demônio, que tanto
trabalhou e trabalha por extinguir a memória a Santa Cruz e desterrá-la dos
corações dos homens [...] (GANDAVO, 2008, p. 93).

3 Trata de uma narrativa não somente sobre a apoderação de Portugal no e do Novo


Mundo, mas também de uma descrição detalhada da América, pois nela há especificações e
mapeamentos de alguns povos indígenas, de plantas e de animais do novíssimo território.
218 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

O nome Província de Santa Cruz, de cunho religioso, não vingou: o


“demônio”, ao contrário das intenções de Gandavo, não ficou tão magoado,
porque a designação vulgar venceu na boca daqueles homens que estavam
ali naquela época. O nome Brasil já estava no imaginário dos navegadores
portugueses. Dessa forma, o “demônio” fez um trabalho melhor e, por
certo, extinguiu da memória e do uso a Ilha de Vera Cruz, pelo menos da
designação pátria. Por mais que se desejasse, Província ou Terra de Santa
Cruz ou Terra dos Papagaios, o “demônio” fez que se chamasse essa terra de
Brasil. Não houve restituição; tais nomes foram enterrados e, hoje, se o país
se chama Brasil, quem nasce nele é brasileiro – uma convenção quase que
sem rastros ou questionamentos.
Por um lado, o termo “brasílico” também não seria o mais adequado.
Por outro, vem a calhar nesta reflexão, pois deriva da palavra “brasil”, que
tem uma longa e distante história epistemológica. Entretanto, o uso de
“brasílico” faz referência apenas aos indígenas brasileiros ou àquilo que é
próprio das culturas autóctones, de sua arte e de suas línguas. Avisa-se, de
antemão, que as etimologias não precisam ser verdadeiras: elas podem ser
inventadas, desde que façam pensar. Dessa forma, a relação da designação do
país Brasil com o pau-brasil, paubrasilia echinata ou ibirapitanga, abundante
antes da chegada dos colonizadores, é rápida, lógica e evidente; no entanto,
“às vezes é útil pedir à evidência que se justifique” (BENVENISTE, 1988,
p. 284), pois a derivação é um caminho muito fácil e simples, no entanto,
esconde muitos detalhes.
Verifica-se, no documentário Matriz Tupi4 (2005), o seguinte trecho,
o qual ilustra o desenvolvimento do pensamento que se propõe neste artigo:

Há mil anos [...], de lá para o ano mil, tem cartas que falam da Ilha Brasil
e isso significa que o nome Brasil não vem do pau-brasil não. Isso aqui era
a Ilha Brasil, que alguns navegantes sabiam, mas, um dia, os portugueses
precisaram fazer uma descoberta oficial, mandando até um escrivão do
cartório: “declarar que foi descoberto [...]”. Isso foi em 1500, mas preexistia
há muito fisicamente, biotericamente, biologicamente e humanamente

4 Há esse pequeno trecho (1’50” – 3’01”), que é parte constituinte do primeiro


episódio de uma série intitulada O povo brasileiro, baseado no famoso livro homônimo de
Darcy Ribeiro, dirigida por Isa Grinspum Ferraz, lançada no ano de 2005, coproduzida pela
TV Cultura, GNT e Fundar. A série conta com a participação de Chico Buarque, Tom Zé,
Antonio Candido, Aziz Ab´Saber, Paulo Vanzolini, Gilberto Gil, Hermano Vianna, entre outras
personalidades. A série discute a formação dos brasileiros, sua origem mestiça e a singularidade
do sincretismo cultural que dela resultou.
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 219

como humanidade indígena. Uma humanidade diferente, de uma gente


que agradecia a Deus por o mundo ser tão bonito, que existia para viver a
vida, para gozar a vida. A finalidade da vida era viver. Os brasis, como eram
chamados nossos antepassados indígenas [...].

Entre os séculos IX e X, uma ilha com designação similar, a Ilha Brasil, já


estava presente em cartas náuticas e mapas marítimos, a qual alguns navegantes
conheciam ao menos (pel)o nome, uma vez que pertencia ao imaginário celtibero e
à mitologia gaélica como Hy-Brasil5 (Hy-Brazail), a qual fora a ilha divina, um lugar
paradisíaco, abençoado, enigmático, de pessoas bonitas, de sol e de descanso, de onde
os seres humanos descendiam e que, em algum momento, desapareceu no Atlântico
Norte. Nos séculos XIII e XIV, os monarcas ibéricos patrocinavam expedições com o
intuito de localizar a ilha fantástica, a qual nunca fora encontrada pelos navegadores,
contudo lendariamente visitada por São Brandão (DONNARD, 2009).
Raymundo Faoro, jurista, sociólogo e historiador contemporâneo, em Os
Donos do poder, também aponta que

O próprio português – O português da corte, estadista, e o português colono – viu


Brasil, desde o primeiro momento da conquista, uma entidade geográfica envolvida
no mito. Ainda Brasil, envolvida pelo oceano e pelos rios da prata e Amazonas, tinha,
ao centro, lugar do nascimento das duas grandes correntes, um vasto lago (FAORO,
2000, p. 178).

O próprio Darcy Ribeiro, não só em Matriz Tupi (2005) como também em A


América Latina existe? afirma que o nome Brasil não vem do pau-brasil6, senão dessa
Ilha Brasil e aponta que “[...] suspeitava-se, é verdade de sua existência imaginando
tratar-se de mais um (Novo Mundo) ocultamente mágico, de anti-ilhas, ou de brasis
miraculosos registrados em velhos mapas” (RIBEIRO, 2010, p. 93, grifo nosso).
Além desses teóricos citados anteriormente, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, em
Brasil: uma biografia, também apresentam e exploram esse tema:

5 O lugar foi chamado de Hy-Brasil por São Brandão e designado como o lugar
dos abençoados, ilha dos afortunados, em irlandês, que, aos olhos do monge, parecia o Éden
terrestre.
6 Darcy Ribeiro, no registro audiovisual citado anteriormente, fala sobre a Ilha
Brasil. Ele também faz referência à Ilha Brasil no livro homônimo, mas não chega a adentrar
nas questões sobre o imaginário que Lilia Schwarcz e Heloisa Starling exploram em Brasil: uma
biografia (2015).
220 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

[...] “Hy Bressail” e “O’Brazil” — cujo significado era “ilha afortunada”. [...]
Ilhas são lugares, por excelência, da projeção idealizada na utopia. A ilha do
“Brazil” dos irlandeses é originalmente uma ilha fantasmagórica que sofre
um deslocamento e reaparece no século XV próxima aos Açores e ao mito
da ilha dos Bem-Aventurados de São Brandão. A perfeição do lugar descrito
por Caminha aproxima-se da utopia da ilha do “Brazil”. Essa explicação
daria conta, também, do nome “Obrasil”, encontrado em vários mapas do
início do XVI. A inspiração irlandesa era religiosa e de tradição paradisíaca, e
perseguiria com teimosia os cartógrafos do período. Apareceria pela primeira
vez em 1330 designando uma ilha misteriosa, e ainda em 1353 estaria
presente numa carta inglesa (SCHWARCZ; STARLING, 2015 p. 33).

O Novo Mundo, aos olhos dos navegadores europeus, era o paraíso


terrestre de pessoas deslumbrantes. Essa é uma relação provável de que eles
tivessem encontrado um lugar celestial, lendário, ou transcendental, uma vez
que o nome ‘Brasil’ aparece na mitologia irlandesa muito antes da chegada
dos portugueses, da data oficializada e registrada do “descobrimento” da Terra
de Santa Cruz, primeiro nome das terras recém-pisadas pelos navegadores
(CANTARINO, 2004). O nome do país, ‘Brasil’, relaciona-se muito mais
com a ilha lendária do que com a árvore pau-brasil. O nome das novas terras,
Brasil, espalha-se pela Europa rapidamente, uma vez que era conhecido
dos navegadores e toma lugar das outras designações, tais como Província
de Santa Cruz, Vera Cruz ou Terra dos Papagaios. No entanto, insiste-se
em obscurecer a origem mítica do nome e a relacioná-lo ao pau de tinta,
objeto de exploração e comercialização no período colonial (SCHWARCZ;
STARLING, 2015). Dessa forma, a palavra “brasil” pode estar relacionada a
uma ilha mítica, que, posteriormente, formará o gentilício ‘brasileiro’.
Alguns historiadores refletiram sobre as designações gentilícias das
pessoas naturais do Brasil e questionam o porquê de não serem conhecidos
como brasilianos, brasilenses ou mesmo brasileses, termos formados por
sufixos empregados normalmente em gentílicos (SOUZA, 1939). O
caminho mais provável é que o termo “brasileiro” não emerja como adjetivo
pátrio, pois, em seu surgimento, designava uma profissão: tirador de pau-
brasil. Essa hipótese também é corroborada por Darcy Ribeiro: “[...] uns
passaram a se chamar brasileiros (cortadores de pau-de-tinta)” (RIBEIRO,
2010, p. 73). O autor, portanto, faz referência, também, àqueles que
trabalham com o pau-brasil.
Muitos discursos apontam que os extratores dessa madeira eram
criminosos condenados (degredados ou perseguidos), os quais teriam
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 221

a “liberdade” na nova colônia, caso aceitassem explorá-la. O “serviço”


prestado compensaria a condenação, ou seja, “valeria a pena” – expressão
muito utilizada no Brasil (também de origem controversa, em função da
polissemia da palavra “pena”). Todavia, em contextos remotos, de fato, ser
exilado era a própria pena (COSTA, 1998)7. Por ter relação com aqueles que
foram banidos, o atual gentilício ‘brasileiro’, por muito tempo, portou um
significado pejorativo e era rechaçado.
Embora não faça referência a sua fonte de pesquisa – infelizmente –
Márcio Bueno, em A origem curiosa das palavras (2003), afirma que foi Frei
Vicente de Salvador quem ousou, pela primeira vez, usar o termo “brasileiro”,
não apenas para designar o ofício de extrator de madeira, desempenhado por
ex-condenados, que praticavam um serviço muito lucrativo à metrópole,
como também para fazer referência àquele que era nascido na própria terra
Brasilis, no solo da colônia, no novo país, o Brasil.
A etimologia apresenta diversas explicações para o advento da palavra
“brasil”, que parece navegar no oceano linguístico do globo. Encontram-se
resíduos da palavra em diversas línguas, como o árabe, o celta, o francês, o
grego, o italiano (incluindo os dialetos toscano, genovês e vêneto), o latim,
o sânscrito, o tupi, etc. O pau-brasil navegava pelos mares, junto com seus
traficantes e comerciantes de diversas nações. Logo, a Terra de Santa Cruz
não foi conhecida pela imperativa designação de ordem religiosa, senão pelo
produto de exploração. Assim, era muito mais fácil falar da terra do pau-
brasil, o lugar dos brasis, terra do brasil, do que de outros nomes ligados à
ideologia cristã e à intenção portuguesa de posse. Além disso, como referido
anteriormente, a palavra “brasil” já era conhecida em diversos territórios
europeus ligados à navegação. Por sorte, o país Brasil não foi nomeado por
meio de homenagem respeitosa aos navegadores ou patrocinadores das
expedições, como se tem a América, em relação a Américo Vespúcio. Se
assim o fosse, talvez se chamasse Manoélica, em sinal de obediência a Dom
Manuel I, rei de Portugal no período do descobrimento (SILVA, 1852).
Para a historiadora Therezinha de Castro (1972), o termo “brasileiro”
era um termo de caráter econômico e não político, uma vez que se ligava
aos que se dedicavam ao comércio desse pau de tinta. Assim, tem-se não
somente toda uma história da palavra “brasileiro”, como, também, conforme

7 Ver mais no artigo de Emília Viotti da Costa intitulado Primeiros povoadores do


Brasil: o problema dos degredados, publicado na Revista Bueno - Textos de História, Vol. 6 – n°
1-2 de 1998.
222 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

aponta o historiador Bernardino José de Souza (1939), uma visível anomalia


gramatical – a qual se perscruta aqui. Todavia, à medida que o tráfico de
pau-brasil diminuiu e, finalmente, acabou, o uso dessa palavra, com esses
sentidos, profissional e pejorativo, também desapareceu, e sua popularização
vai ao encontro da gradual formação de uma identidade nacional (SOUZA,
1939).

Brasileiro: o termo incita outros trânsitos

Outras origens são possíveis para a palavra “brasileiro”, pois, não se


pode esquecer que as palavras remetem a contextos nos quais vivem sua
existência socialmente subjugada e chegam a seu próprio contexto atual,
vindas de outro, invadidas pelo sentido dado por outros. No entender de
J. Authier Revuz (2004), as palavras são habitadas, sempre atravessadas por
discursos. Mikhail Bakhtin (1999) denomina esse fenômeno de “saturação
da linguagem”, expressão que aponta para a lógica de atribuição, aos termos,
de significados sociais determinados por intenções. As palavras “brasil” e
“brasileiro”, nessa ordem, não fogem desses atravessamentos.
Pedro Calmon (2013), outro historiador que se debruçou sobre a
questão, indica uma origem diversa ao termo “brasileiro”, relacionando-o
tanto a viagens quanto a viajantes. O pesquisador compara a construção
com outros termos que carregam o mesmo sufixo: romeiro e santiagueiro.
O primeiro, que designou aquele que peregrinava em direção a Roma; o
segundo, o que peregrina para Santiago de Compostela. ‘Brasileiro’, logo,
seria aquele que viajou ao Brasil.
Ademais, os escritores portugueses Camilo Castelo Branco e Eça de
Queirós utilizam a palavra “brasileiro”, em suas narrativas, para designar
àqueles que retornam a Portugal, depois de viajarem ao Brasil e de aí terem
feito riqueza. Obviamente, o termo é estabelecido primeiramente no plano
da língua, em meados do século XIX, para, depois, emergir no plano literário.
Apresentam-se, a seguir, três excertos extraídos de obras literárias de Camilo
Castelo Branco, nas quais o termo ‘brasileiro’ surge com esse valor:

O brasileiro da Rita Chasca, que chegou agora, diz que ele tem quatrocentos
contos fortes, para riba, que não para baixo (CASTELO BRANCO,1984,
n.p.).
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 223

E os Srs. Mourões disseram pouco mais ou menos o seguinte: Que, seis


anos antes, ele, brasileiro, lhes havia comprado um adereço de brilhantes,
composto de gargantilha, brincos, broche e bracelete, por 6.500$000
réis, com o fim de presentear sua noiva, segundo ele comprador declarara
(CASTELO BRANCO, 1966, n.p.).
Neste tempo, aconteceu chegar ao convento a notícia de ter aparecido em
Barrosas um brasileiro muito rico, procurando novas de uma irmã que
deixara, quando, em criança, fora para a América. Ora a irmã do brasileiro
era Rita de Barrosas, criada da abadessa. Grande alvoroço, e alegrias, e
invejas no mosteiro! (CASTELO BRANCO, 1966, n.p.).

As narrativas A brasileira de Prazins (1882), Coração, cabeça e estômago


(1862), Os brilhantes do brasileiro (1869), de Camilo Castelo Branco, ou a Ilustre
casa de Ramires (1900), Alves & Cia (1925), O Primo Basílio (1878), de Eça de
Queirós, mostram que o Brasil era um lugar que servia como fonte de exploração
e enriquecimento dos europeus, dos portugueses, sobretudo, pois um brasileiro,
originário dessas terras, descendente de indígenas e/ou africanos escravizados,
jamais (ou excepcionalmente) obteria e ostentaria tal riqueza. Percebe-se,
claramente, que esse ‘brasileiro’, ao qual os escritores portugueses se referem, é
o viajante europeu que enriqueceu no período da exploração da cana-de-açúcar.
A palavra “brasileiro”, portanto, pode ser concebida como um navio que
viaja no tempo e é tripulado por diversas narrativas. É uma palavra habitada,
invadida e, hoje, designa aqueles que são naturais de uma nação que, muitas vezes,
recebe o estereótipo de ser o país dos cinco “S” (sun, sand, samba, soccer e sex).
A palavra “brasileiro”, portanto, que, nas primeiras décadas de colonização,
fez referência a uma atividade industriosa, ou a uma pessoa que faz uma espécie
de jornada do herói em um contexto de colonização, ou que, no período da
exploração da cana-de-açúcar, que, posteriormente retorna com uma riqueza,
produzida pelo suor e dor de pessoas escravizadas, evidencia uma relação com a
identidade e cultura do trabalho no Brasil.

Brasil: identidade e cultura do trabalho

Desde os tempos “do encontronaço”, “da Invasão ou Choque”,


expressões utilizadas por Darcy Ribeiro (2010) para designar o descobrimento
do território que viria a ser o Brasil, constata-se, conforme Roberto DaMatta
(2000), que há uma multidão de explorados e uma concepção de cidadania
e de trabalho que é nitidamente negativa(da), desqualificada, posta em vida
224 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

nua.
Embora, como apontou Kathryn Woodward em “Identidade e
diferença”, a respeito da mídia, a qual, na atualidade, “diz como se deve
ocupar uma posição-de-sujeito particular” (WOODWARD, 2000, p. 18),
como “o trabalhador em ascensão” (WOODWARD, 2000, p. 18), nota-se
que o Brasil não é um lugar para a melhoria da classe trabalhadora. Em
relação ao âmbito do trabalho, o Brasil não se deixa comparar com outros
contextos que não tenham um passado colonial similar.
Woodward (2000) afirma que as formas de representação dos sujeitos,
em qualquer sociedade, seja como mulheres, como homens, como pais, como
pessoas trabalhadoras, têm mudado radicalmente nos últimos anos. Segundo
a autora, pode-se passar por experiências de fragmentação nas relações
pessoais e no trabalho, as quais são vividas no contexto de mudanças sociais
e históricas, tais como mudanças no mercado de trabalho e nos padrões de
emprego. Essas mudanças e experiências implicam a heterogeneidade dos
sujeitos. No Brasil, entretanto, há uma constante degradação8 em relação aos
trabalhadores, à classe trabalhadora, pois, mesmo que se fragmentem suas
relações, ou tenham jornadas infinitas e esforços descomunais, a dignidade
que viria pelo viés do trabalho9 é apenas uma ilusão, pois essa classe e a
pobreza, ao longo do tempo, continuam de mãos dadas. Em outras palavras,
a identidade do trabalhador está, geralmente, em determinada continuidade,
conjugada com a condição de pobreza, seja ela vista dentro da ótica de uma
sociedade disciplinar, ou do controle ou do desempenho (FOUCAULT,
2007, DELEUZE, 2010, HAN, 2018).
Louis Althusser, em Aparelhos ideológicos de Estado, indica que o salário10
“é determinado pelas necessidades de um mínimo histórico (Marx sublinhava:
é preciso cerveja para os operários ingleses e vinho para os proletários franceses)
– portanto historicamente variável” (ALTHUSSER, 1985, p. 56-57). No
entanto, ao se pensar no salário-mínimo do trabalhador brasileiro, vê-se o
trágico, pois, nesse mínimo, nem se poderia pensar que a cachaça está inclusa.

8 Embora se tenha um discurso que tenta positivar as diversas formas precárias de


trabalho no Brasil contemporâneo. Em relação a isso, Ricardo Antunes apresenta e discute a
uberização em Privilégio da servidão.
9 Ou que vem em outros lugares por meio do trabalho, no Brasil contemporâneo,
não acontece.
10 A menção ao salário mínimo é realizada mais como uma provocação que uma
construção teórica a respeito do salário (embora a ironia seja uma figura do trágico).
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 225

Sem retirar a ironia, no Brasil, o salário, visto dessa forma, apresenta-se como
pena e como chiste, pois não vai ao encontro de uma remuneração ajustada
pela prestação de serviços em razão de contrato de trabalho. O trabalhador
brasileiro, na esfera das urbes, muitas vezes, ainda está na posição de migrante,
como Fabiano, personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2018): sem
salário (ou sub-remunerado), sem endereço, sem sobrenome, sem dignidade,
em busca de uma esperança de vida, ou melhor, de uma sobrevivência, na qual
a cachaça, a cerveja ou vinho são uma suntuosidade.
Assim, tem-se representações em produtos culturais de uma classe
trabalhadora cercada por um envoltório do trágico, geralmente em queda,
buscando a manutenção da vida dentro de uma lógica social exploratória, a
qual raramente dá chance para ascensões e bem-estar.

O Brasil trágico: identidade e cultura

A degradação que circunscreve a atividade laboral no contexto brasileiro


remete à ideia do trágico. O termo “trágico” tem um caráter complexo e
polissêmico. Segundo Barnaba Maj, em Idea del tragico e coscienza storica nelle
“fratture” del Moderno,

[...] c’è il tragico quando è in gioco un’idea che sta al di sopra ed è più forte della
stessa vita umana, che le viene perciò sacrificata [...]. Il tragico è il tentativo
di dare un nome al nome al dolore. Il che non si può fare senza il nome degli
dèi [...] i nomi o il nome di Dio [...]. Dire che c’è stato un ‘tragico’ incidente
stradale è un absurdo, se riferito all’incidente in sé. Ma poterebbe non esserlo,
se nominasse per chi e per quale la perdita è [...]11 (MAJ, 2003, p. 9).

O trágico pode ser entendido, neste texto, não somente como a


exploração capitalista da força-trabalho, mas, também, como um trágico
histórico, pois se apresenta como um impasse, ou uma impossibilidade
de superação de uma determinada posição social. Pode-se, inclusive, dizer

11 Tradução nossa: [...] existe o trágico quando se tem uma ideia, a qual está acima e é
mais forte que a própria vida humana, que, portanto, é sacrificada [...]. O trágico é a tentativa
de dar um termo ao nome da dor. Isto não pode ser feito sem o nome dos deuses [...] os nomes
ou o nome de Deus [...]. Dizer que houve um “trágico” acidente de carro é um absurdo, se se
refere ao incidente em si. Mas poderia não ser, se nomeasse para quem e para os quais tiveram
a perda [...].
226 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

que ele tem uma orientação mais genérica, pois é trágico que as sociedades
contemporâneas (que antes foram colônias) carreguem, como um traço
constituinte, essa marca.
O trágico geralmente é relacionado à polis (VERNANT, 1999),
sendo, assim, um fato político, no qual as pessoas que pertencem a um
determinado contexto possuem, também, os códigos para entender o núcleo
trágico de um discurso específico. Portanto, neste artigo, não se está apenas
diante de um fato genericamente trágico, como também de um trágico
histórico, que remete a uma história que não consegue ir além das próprias
contradições: uma história que gira em falso é, mesmo assim, uma história,
e, sob essa ótica, remete a um trágico – por mais redundante que isso possa
parecer. Não se pode dizer que esse trágico nada tenha a ver com tragédia
convencional, porém é a ideia de um trágico que inclui toda a negatividade
que ele tenta representar. Para Roberto Vecchi (2004, p. 88), há

[...] o trágico moderno, mais exactamente, para distingui-lo do género


aristotelicamente canonizado da tragédia ou do trágico antigo com que
ao mesmo tempo mantém relações complexas, residuais, sendo uma sua
actualização – ou melhor uma sua “tradução” – fora do contexto mitológico.

Em suma, o trágico12, na perspectiva deste texto, é o mal, a violência,


a dor extrema, a falta, a impossibilidade, etc. Ele se caracteriza como um
adjetivo sintético, mas que se mostra como um impasse diante de uma
representação catártica de um determinado fato. Levanta-se, nessa ordem, a
conexão entre o trágico e a história, que acaba por ser um traço identitário
do pensamento, em oposição ao trágico como fato estético relacionado com
a tragédia. Dessa forma, examina-se, neste estudo, o trágico que acontece na
história, “um trágico se torna uma possibilidade de reler a história cultural
brasileira do século XX” (VECCHI, 2004, p. 5).
Na trajetória brasileira, milhões de pessoas enfrentaram enormes
obstáculos para ascender da condição de escravos à de proletários, os quais
se concentram nas camadas mais pobres da população (RIBEIRO, 2010).
E essa é a ascensão mais notável que se tem registrada na contra-história

12 Há duas compilações teóricas importantes sobre o trágico moderno e o pós-trágico:


Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil (FINAZZI-AGRÓ; VECCHI, 2004)
e Travessias do pós-trágico: os dilemas de uma leitura do Brasil (FINAZZI-AGRÓ; VECCHI,
AMOROSO, 2006).
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 227

do Brasil, o que não é uma exceção. Toma-se, por referência, o conceito


trabalhado por Michel Foucault (2010), que mostra que a história é o
discurso do poder, das obrigações pelas quais o poder submete. Além disso,
é o discurso do brilho pelo qual o poder fascina, aterroriza e imobiliza. O
que na história é lei ou obrigação, na contra-história é o abuso, a violência e
a extorsão. A história do trabalhador no Brasil é, nesse sentido, uma contra-
história. O estudo da representação do trabalhador, por exemplo, dentro
da literatura brasileira, não deixa de ser uma contra-história, uma vez que
ela serve, também, de suporte para as narrativas das lutas de classes. Nas
palavras de Foucault, a contra-história “vai falar do lado da sombra, a partir
da sombra” (FOUCAULT, 2010, p. 59).
Os trabalhadores do Brasil, além de enfrentar a pobreza, proveniente
da exploração de que são padecedores, defrontam-se com a discriminação,
que impõe a obrigatoriedade da continuação permanente em posições
subalternas, as quais complexificam uma suposta ascensão a postos de
trabalhos dignos ou mais altos na escala social. Dentro de um contexto
mais específico, como o Brasil atual, situando o problema geral, os
produtos culturais (dentro deles a literatura brasileira) atestam, com uma
extraordinária força crítica, multíplices casos do recalcamento da pobreza
da cena principal, em que se espelha o idealismo vazio de pertença a uma
pressuposta nação. Um dos exemplos canônicos mais evidentes – mas o
repertório poderia se estender quase ad infinitum – é um breve conto de
Rubens Fonseca, no conhecidíssimo Feliz ano novo. Trata de “O outro”, no
qual o leitor pode perceber que o poder se funda na vida nua do excluído,
como atesta de maneira incisiva o seu assassinato ‘sem culpa’: “que culpa
eu tinha de ele ser pobre?” (FONSECA, 1989, p. 90). É possível, também,
destacar o número de ocorrências da palavra “pobre” no conjunto de Feliz
ano novo, as quais são empregadas como algo a ser desaprovado, desviado,
rejeitado, repudiado e condenado (VECCHI; CABRAL, 2019).
No cenário brasileiro, em diversos momentos, o trabalhador
teve apenas a esperança de alguma ascensão, e, talvez, essa expectativa
seja mais explícita em um discurso que raramente se torna efetivo no
cotidiano: o discurso do “chegar lá”, tendo-se o “lá” quase como um lugar
transcendental, pois o sujeito, na condição de força de trabalho, embora
necessário para colocar a sociedade em movimento, não raramente é tratado
com descaso, impossibilitado de avançar socialmente. Ele é, até mesmo,
vítima de eufemismos, como, por exemplo, quando é “elevado” à condição
228 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

de “empreendedor”. No contexto atual, sob a “égide” do governo, o


empreendedorismo nada mais é que uma tentativa de fugir do desemprego,
do subemprego ou, pior, do desalento.
A força centrífuga social proveniente da classe dominante, e que
resulta de uma longa jornada de imposição de poder (VECCHI, 2004), em
seus mais diversos formatos, seja em contextos teóricos, científicos, literários,
seja na vida social em suas mais diversas instâncias, faz com que se tenha,
no Brasil atual, uma massa trabalhadora que os detentores do poder desejam
sempre subalterna, extraindo dela o “[...] direito de reivindicar direitos”13
(TASSARINI, 2009, tradução nossa). Para isso, a classe dominante lança
enunciados imperativos para direcionar a massa, tais como: “Não pense em
crise, trabalhe”14. Esse enunciado, do ex-presidente interino Michel Temer,
por exemplo, foi impactante e polêmico, proferido na posse dos novos
ministros ao governo provisório em virtude do afastamento da presidenta
Dilma Rousseff. Enunciado problemático, pois muitos brasileiros o
relacionaram com a frase que servia de ornamento nos portões de Auschwitz,
“Arbeit macht frei”. O enunciado soou como sardônico, pois remete não
somente ao lager mais sombrio, mas, também, a um excerto de Primo Levi
(2010, p. 15), em “O degelo”, relato integrante de A trégua:

Fui içado à carroça por Charles e Arthur, junto com uma carga de
moribundos, de quem eu não me sentia muito diferente. Chuviscava, e
o céu estava baixo e fosco. Enquanto o lento passo dos cavalos de Yankel
me conduzia para a tão distante liberdade, desfilavam pela última vez sob
os meus olhos os barracões, onde eu sofrera e amadurecera, a praça da
convocação, onde ainda se erguiam, lado a lado, a forca e uma gigantesca
árvore de Natal, e a porta da escravidão, na qual, agora inúteis, liam-se ainda
as três palavras de escárnio: “Arbeit macht frei”, “Só o trabalho liberta”.

É um enunciado que tenta instituir uma norma, uma verdade,


conforme Foucault (2010), e explicita que a norma é o discurso (que se
quer) verdadeiro, pois, ao menos em parte, decide, veicula e propulsa efeitos
de poder. Esse enunciado imperativo tenta julgar, condenar, classificar,

13 No original: “[...] diritto di rivendicare diritti”.


14 Há um notável artigo sobre esse enunciado, analisado sob as luzes da análise
do discurso, intitulado “Não pense em crise, trabalhe”: o jogo da história na trama da língua,
publicado pela Revista Fórum linguístico, em 2018, de autoria de Dantielli Assumpção Garcia e
Lucília Maria Abrahão e Sousa.
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 229

obrigar a tarefas, destinar os modos de viver15 da população trabalhadora.


Tal enunciado faz parte de um discurso que se pretende verdadeiro e tenta
trazer consigo efeitos específicos de poder.

Sobrevivendo no inferno

O contingente brasileiro está conscrito como força de trabalho e, em


nenhum momento (ou em raros), desde a colonização, o grupo inserido na
produção se constitui em uma nação que viva para si. Fica evidente que a
população “empreendedora”, para usar eufemismos atuais, que mascaram
a realidade da multidão trabalhadora, é tratada, historicamente, como
“combustível humano em forma de energia muscular, destinado a ser
consumido para gerar lucros” (RIBEIRO, 2010, p. 40). Opõe-se, neste texto,
a expressão “massa trabalhadora” de “multidão trabalhadora”, pois massa está
para o conjunto das camadas populares não subjetivada, assujeitada, bloco
de manobra passiva. Por sua vez, multidão trabalhadora está para sujeitos
em situação de trabalho, com identidade, passível de reconhecimento, com
desejos e vontades, reconhecidos como seres humanos que usam de si em
atividade laboral, tendo e formando, sim, um conjunto de subjetividades.
O termo “brasileiro”, oriundo de uma atividade laboral vinculada
à colonização e, consequentemente, à exploração, poderia, nessa ordem,
estar relacionado a uma nação trabalhadora, como realmente é. Mas, na
prática, não é o que acontece. Parte majoritária da população que labuta
é constantemente desqualificada por diversas práticas sociais que a fazem
permanecer em uma vida nua16, sempre sacrificada, no sentido banal, em
um jogo constante de recolonizações por parte de corporações globais.
Essas são trazidas no colo por um corpo político entreguista, que projeta a
precarização do trabalho a qualquer custo, ou melhor, à custa das vidas que
15 Ou o modo de morrer. Refere-se, aqui, à biopolítica foucaultiana, à gestão e
transformação da vida humana, por meio de dispositivos biopolíticos, tais como regulação da
saúde, da higiene, alimentação, natalidade, sexualidade, etc.
16 Cabe salientar que o conceito de vida nua é trabalhado anteriormente por Walter
Benjamin, em Crítica da violência: crítica do poder. Para Agamben, esse conceito é central
na reestruturação do poder. Benjamin usa tal conceito para criticar a violência mítica e pura
sobre todas as vidas. Agamben retoma essa figura de pensamento benjaminiana e consegue
traduzi-la e situá-la para seus propósitos de análise. Assim, esse conceito lhe permite constituir
a forma de qualificação e de desqualificação da vida. Está em vida nua a parte da sociedade que
é desprezada em diversos aspectos de sua cidadania.
230 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

são destinadas a apenas trabalhar para viver e viver para trabalhar, à custa da
vida nua, a qual é excluída e “incluída” – conforme a necessidade do capital.
Ainda sobre a vida nua (AGAMBEN, 2007) vale dizer que esse
conceito entra em uma dimensão de natureza histórica. Nesse viés, insere-
se, neste estudo, o conceito no interior do processo de formação do Brasil,
no qual há toda uma residualidade colonial que, apesar das provações
históricas, acabam sendo uma espécie de permanência. O período colonial,
assim, torna-se um elemento para pensar o contemporâneo, tendo a vida
nua como uma factualidade constante. Agamben (2007), quando pensa a
vida nua, traz uma citação de Walter Benjamin, a qual se encaixa muito bem
no que é posto sobre a vida desqualificada (o mínimo viver, apenas viver17),
sobre a vida nua no Brasil dos últimos séculos (ainda mais na atualidade):
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de ‘exceção’ em que
vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN apud AGAMBEN, 1987,
p. 226). Pensar a formação do Brasil conjuga essas duas realidades, essas duas
temporalidades, como se fosse possível uma inscrição do passado colonial no
tempo presente. Caso se pense na formação, há uma dialética captada, mas
também se pode acrescentar a possibilidade de verificar o uso do passado
(TRAVERSO, 2012).
A reutilização do passado funda outros passados, na maioria das
vezes, com interesses específicos. Tal uso do passado conduz, geralmente, a
uma discursividade complexa e, portanto, compreender os mecanismos (de
construção) do passado é a forma ideal e crítica para pensar o que a história
divulgará sobre ele. A história, portanto, sob esse ângulo, pode ser percebida
como uso possível do passado.
Nessa ordem, a literatura, como manifestação cultural, também pode
ser tocada pelo passado (por exemplo, nos romances históricos). Uma reflexão
sobre a economia ou capital18 do passado tanto é instigante quanto relevante.
Mais importante, entretanto, é estar ciente dos riscos eminentes do uso do
passado, ou seja, é ter a capacidade crítica de entender os mecanismos nos
quais esses usos são engendrados, pois, entender os dispositivos desse uso
significa construir uma posição crítica para revê-los e avaliá-los. A literatura

17 Agamben (2017) faz uma série de dicotomias entre vida política, a vida protegida
e a vida nua, isto é, a vida sob constante ameaça de morte. A vida nua também se resume ao
“viver”, de modo desamparado, assim como a vida política, a forma-de-vida, está ampliada para
o “viver bem”.
18 Acúmulo de informações e invenções sobre o passado.
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 231

é um lugar de reuso do passado; percorre-se esse caminho nesta reflexão,


pois nela o passado pode ser negado, reformulado, reconstruído, revisitado.
Além disso, a literatura traz um efeito de real, por meio de signos que
são capazes de fazer o leitor atar sua intepretação com aspectos da sociedade.
A literatura que traz, em seu leitmotiv, personagens e enredos que perpassam
pela esfera do trabalho, inevitavelmente, reflete sobre aspectos econômicos
que permeiam a classe trabalhadora.
Portanto, quando se fala em economia, pode-se pensar em Aristóteles,
na Política. O filósofo grego define a economia como o lugar do oikos,
da casa, e parece subtrair a economia da centralidade da polis, isto é, da
centralidade pública. Há, também, outra passagem sobre oikos, mas, agora,
com Agamben (2011), na qual ele afirma que economia, a partir do século
VI, significa exceção. É produtivo trazer a economia ao lado da exceção,
pois os dois termos remetem ao exercício de poder, ou seja, o poder de
subtrair, de reduzir o espaço da polis, a política, a um espaço privado,
próprio, econômico. Esse gesto de subtração é um ato de soberania. Isso
fica evidente nos produtos culturais que têm no seu projeto personagens
dos estratos sociais que sofrem os efeitos do poder constituído, o qual,
atualmente, apenas subtrai direitos e debilita, desestabiliza ainda mais
as condições dos brasileiros trabalhadores que se desdobram ao largo da
história, desde a colonização até a atualidade. A constituição do estado de
exceção, em que o soberano atua sobre a polis, seu espaço de poder, permite
uma aproximação dessa circunstância com a exceção linguística, uma vez
que o ‘brasileiro’, o brasileiro-trabalhador, encontra-se em uma condição
subalternizada, imerso nas circunstâncias de seu contexto, de maneira a não
conseguir mais visualizar o que lhe afeta negativamente, ou seja, acatando
as atrocidades do estado de exceção em seu cotidiano sem uma percepção
crítica ou tentativa de resistência.
Ainda sobre as temporalidades brasileiras, é possível defender a ideia
de que a paisagem edênica dessas terras foi substituída por um panorama
triste de um povo, o qual sempre foi colocado na condição de mera força
de trabalho, de um meio para a produção, como aponta Ribeiro (2010,
p. 59), “[...] primeiro escravo, depois assalariado; sempre avassalado.
Suas aspirações, desejos e interesses nunca entraram na preocupação dos
formuladores dos projetos nacionais, que só tem olho para a prosperidade
dos ricos”.
232 | Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

O brasileiro comum19 vive uma tensão diária, pois é destinado a ser


o componente mais vil de qualquer produção e empreendimento. A pessoa
humana, na esfera laboral, é elemento mais barato do que a terra, o gado, as
máquinas e os insumos, portanto, não há nenhum limite em relação a sua
atividade. Tenta-se (e na maioria das vezes com êxito) gastá-lo e desgastá-lo,
pois há um excedente de pessoas fabricadas culturalmente para trabalhar
(RIBEIRO, 2010), tal como um homo sacer (AGAMBEN, 2007), mas
em um “homosacerização” à brasileira (MÜGGE, KERNIEW, CABRAL,
2021).

Para tentar concluir: o trabalhador brasileiro ou o brasileiro trabalha-


dor

Após apresentar as nuances do adjetivo pátrio ‘brasileiro’, por meio de


um roteiro epistemológico e instituir uma contraposição em relação a um
paralelo histórico circunscrito desde o Brasil colonial até a atualidade, pode-
se ponderar tanto a identidade quanto a cultura, além de toda a tragicidade
que acompanha a ambas.
Dessa forma, nesta reflexão, que se iniciou por uma exceção linguística
do termo “brasileiro”, tentou-se atingir as questões embrionárias de
identidade e cultura, circunscrevendo-as no âmbito do trabalho, em que, na
ordem do dia, há milhões de subocupados, desempregados e desalentados.
Por isso, apresenta-se a seguinte questão: o que fazer com tantas pessoas
que excedem os postos de trabalho, já precários no Brasil atual? Talvez,
a lógica dominante seja tão velha como o pensamento de que a força do
trabalho, no seu ideal, é infinita; em outras palavras, quanto mais tal força
exista, mais plena e corretamente o sistema da produção capitalista poderia
funcionar (FOUCAULT, 2010). O que é velho e retrógrado ainda encontra
funcionamento no país da ordem e do progresso. Tem-se, portanto, uma
atmosfera laboral montada para desgastar os corpos dos trabalhadores, com
19 Aquele que trabalha de sol a sol, edificando, construindo, cultivando tudo o que
se planta para exportar, fabricando todos os tipos de produtos em indústrias multinacionais,
fábricas ou fabriquetas, tanto no trabalho formal ou informal, no seu empreendedorismo de
subsistência, comprando produtos importados de baixa qualidade, para vender para outros que
também trabalham de sol a sol, nas ruas, debaixo das marquises do prédios centrais das urbes,
obtendo, se é que se pode dizer assim, um “lucro” irrisório. Esse é o “cidadão” comum que, para
Ribeiro, “é só preto, mestiço e branco pobre, que, afinal, é a mesma coisa” (RIBEIRO, 2010, p.
77).
CABRAL, E.; MÜGGE, E. | 233

uma eficácia incomparável, tal como moinho de gastar gentes (RIBEIRO,


2010).
Por fim, se o Brasil é um mistério inventado, o brasileiro também
foi moldado por mãos e vontades não apenas estrangeiras. Com o passar
dos séculos, o seu povo20 foi remoldado por si próprio como em um
autoimperialismo, sempre trabalhando, privado de consciência crítica –
bem como ocorre em todos os países colonizados. Todavia, o trabalhador
brasileiro, ao largo de sua trajetória, tem uma identidade ambígua: nem
indígena, tampouco africana, muito menos europeia, dominada econômica
e culturalmente por outras nações. Além disso, parece que foi feito para não
ser, nem parecer, nem se reconhecer jamais com aquilo que é. Talvez, por isso,
nos produtos culturais e na própria literatura brasileira, sua representação
seja tão fragmentada.
A partir deste artigo pode se derivar outros estudos e apresentar
outras faces desse universo, pois, relacionando a vida nua com o trabalhador
brasileiro, encontra-se uma figura constante tanto na história quanto
na cultura (e consequentemente em produtos culturais) do brasileiro-
trabalhador, noção que tem como intuito dar uma forma dialética e
tensionar a expressão do senso comum “trabalhador brasileiro”. Isso, porém,
fica para o porvir.

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20 Se bem que existe, no Brasil de sempre, o Povo e o povo.


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Como citar este artigo

CABRAL, E.; MÜGGE, E. Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura


e trabalho. Fragmentum, Santa Maria, p. 213-237, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219469133. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 173-191, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219468890


Submissão: 23/12/2021 • Aprovação: 20/08/2022
Dossiê

RESSIGNIFICAÇÃO E RESISTÊNCIA NO SINTAGMA


“DISTANCIAMENTO SOCIAL”: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA SOBRE A LUTA PELOS SENTIDOS EM
TEMPOS DE COVID-19 NO BRASIL

RESIGNIFICATION AND RESISTANCE IN THE


SYNTAGM “SOCIAL DISTANCING”: A DISCOURSE
ANALYSIS ABOUT THE STRUGGLE FOR THE
SENSES IN TIMES OF COVID-19 IN BRAZIL

Mariana Jantsch de Souza


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense,
IFSul, Venâncio Aires, RS, Brasil
Naiara Souza da Silva
Universidade Federal do Pampa, Unipampa, Jaguarão, RS, Brasil

Resumo: Esta leitura, fundamentada nos pressupostos teóricos de Pêcheux, conforme a Análise de
Discurso Materialista, leva em conta um discurso dominante, cujos efeitos de sentido negam a
gravidade da situação epidemiológica da Covid-19 no Brasil e promovem movimentos de (in)
visibilização de uma parcela da sociedade. A expressão “distanciamento social” analisada, ao ser (re)
significada, materializa um gesto de resistência e de denúncia, direcionando a atenção à pandemia
e à constituição da sociedade brasileira dividida em classes. É necessário compreender a produção
de sentidos que problematizam as determinações sócio-históricas, e, também, aqueles sentidos que
funcionam discursivamente reforçando e naturalizando as condições materiais de produção.

Palavras-chave: ressignificação; resistência; sentidos; covid-19; (in)visibilidade.

Abstract: This reading, based on Pêcheux’s theoretical assumptions, according to the Materialist
Discourse Analysis, takes into account a dominant discourse, whose sense effects deny the seriousness
of the epidemiological situation of Covid-19 in Brazil and promote movements of (in)visibility
of a part of society. The expression “social distancing” analyzed, when (re)signified, materializes a
gesture of resistance and denunciation, directing attention to the pandemic and to the constitution
of Brazilian society divided into classes. It is necessary to understand the production of senses
that problematize socio-historical determinations, and also those senses that function discursively
reinforcing and naturalizing the material conditions of production.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


174 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

Keywords: resignification; resistance; senses; covid-19; (in)visibility.

1 Discurso e luta pelos sentidos no atual cenário político

A crise sanitária que assombra o Brasil desde janeiro de 2020, quando a


Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou Emergência de Saúde Pública
de Importância Internacional1 devido à pandemia da Covid-192, vem expondo,
a nosso entender, o desequilíbrio econômico e a desigualdade no acesso e na
fruição dos direitos fundamentais.
A realidade material da sociedade brasileira pode ser interpretada por
diversos ângulos teóricos, e, um deles, pode ser a vertente do materialismo
histórico. Para este exercício analítico, então, entendemos que os dois conceitos
fundamentais desse aporte teórico – modo de produção e luta de classes –,
tornam-se pontos centrais. Isso porque as relações de produção contemporâneas,
quando observadas pelo viés da luta de classes, expõem as desigualdades sociais
estruturais que são materializadas em práticas discursivas que atribuem sentido a
questões públicas de prevenção de doenças e de (acesso à) saúde pública.
No contexto da Inglaterra, século XIX, em que Marx e Engels pensaram
o materialismo histórico, a relação e as diferenças de classe social entre burguesia
e proletariado eram bastante específicas. Todavia, a proposta marxista de
compreensão da sociedade, em termos filosóficos, históricos e sociológicos,
permanece atual, sobretudo, em tempos de pandemia em que a luta pelos
sentidos está desdobrada em vida/morte.
Em nosso entender, a questão que se impõe, nesta conjuntura, vai além
do antagonismo entre classes sociais nos moldes corriqueiros. Agora, num
contexto pandêmico inédito na história recente da humanidade, vivenciamos
a materialização e a reprodução das desigualdades decorrentes da relação de
dominação/subordinação entre classes de um modo muito específico. Disso
1 Trata-se do mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no
Regulamento Sanitário Internacional. Fonte: Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19.
Acesso em: 16/09/20.
2 A denominação Covid-19 tem origem nos primeiros casos da nova cepa do vírus
Coronavírus em seres humanos, divulgados publicamente pelo governo chinês em 2019. O
Coronavírus significa COrona VIrus Disease, uma doença que causa infecções respiratórias
em seres humanos e em animais, geralmente, apresentando-se com sintomas respiratórios
semelhantes a um resfriado comum, mas, que podem ser agravados diante da apresentação de
comorbidades. O Brasil, em dezembro de 2021, contabiliza mais de 678 mil óbitos.
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 175

resultam condições materiais de possibilidades de proteção e de prevenção em


relação à Covid-19, ou seja, resulta em possibilidades diferentes de sobrevivência
para cada classe social.
Em razão das formas de transmissão desse vírus3, a OMS, por meio de
diferentes meios de comunicação, explica como ocorre o contágio e salienta
a importância das medidas de proteção e prevenção para que se possa evitar
uma escalada ainda maior na taxa de mortalidade. As principais medidas
indicadas pela Organização referem-se ao uso de máscaras, à higiene
adequada e constante das mãos – evitando o toque nos olhos, nariz e boca –,
e também, ao distanciamento físico.
Essa última medida de proteção, de acordo com as orientações
sanitárias, é caracterizada pelo seguinte padrão: “Manter, pelo menos, 1
metro de distância entre si e os outros para reduzir o risco de ficar infectado
quando as outras pessoas tossem, espirram ou falam. Manter uma distância
ainda maior entre si e os outros, quando se encontrar num ambiente fechado.
Quanto mais longe, melhor”4 (OMS, 2020).
É necessário frisarmos que o sintagma utilizado pela Organização
Mundial de Saúde, quanto ao necessário afastamento para evitar a
contaminação e a transmissão da Covid-19, é “distanciamento físico”.
No Brasil, quando tais medidas foram discursivizadas em documentos
institucionais oficiais5 e em meios de comunicação, o sintagma produzido é

3 “De acordo com as actuais recomendações, o vírus da COVID19 transmite-se,


primeiro, entre as pessoas, através de gotículas respiratórias e vias de contacto. A transmissão
de gotículas ocorre quando uma pessoa está em contacto próximo (a menos de um metro)
com uma pessoa infectada, ocorrendo assim exposição a gotículas respiratórias potencialmente
infecciosas, por exemplo, através da tosse, espirros ou contacto pessoal muito próximo,
podendo resultar na inoculação de portas de entrada, tais como a boca, o nariz ou a conjuntiva
(olhos) (5-10). A transmissão poderá igualmente ocorrer através de fómites no ambiente
imediato em torno da pessoa infectada (11, 12).Por conseguinte, a transmissão do vírus da
COVID-19 pode ocorrer directamente por contacto com pessoas infectadas ou indirectamente
por contacto com superfícies no ambiente imediato ou com objectos usados na pessoa infectada
(e.g., estetoscópio ou termómetros)” (OMS, 2020, p. 2).
4 Disponível em:
<https://www.who.int/pt/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advi-
ce-for-public?gclid=CjwKCAjwsNiIBhBdEiwAJK4khvZfIOkqnTophllk8PVyTGgcu-uRlA-
enpwJjQIcpjVLJ9GSG5J50XhoCiQoQAvD_BwE>.
5 A título de exemplo, no que tange ao emprego das expressões “distanciamento
físico” e “distanciamento social”, podemos citar os seguintes documentos oficiais: Nota técnica
nº 04/2020 da Anvisa; informativos oficiais do Senado; Portaria Conjunta nº 20, de 18 de
176 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

“distanciamento social”6.
Ao que nos interessa, na produção e na circulação de sentidos,
atentamos para o uso de “distanciamento social”, na seleção do léxico, para
a formulação de um enunciado que, ao (re)significar a expressão, materializa
um gesto de resistência a um discurso dominante, cujos efeitos de sentido
negam a gravidade da situação epidemiológica e promovem movimentos
de (in)visibilização de uma parcela da sociedade brasileira. Com isso,
no enunciado em estudo, os efeitos de sentido produzidos direcionam a
atenção não só à pandemia, mas a nossa constituição social, estruturalmente
dividida em classes, num contexto em que uma parcela da população é, com
recorrência, desamparada.
Resistência, neste texto, é um conceito chave para nossa análise. Do
lugar da AD, entendemos que resistência é a marca da subjetividade que se
materializa, aqui, por meio da língua. Com amparo teórico em Soares et al.,
entendemos que resistência “é a possibilidade de, ao dizer outras palavras
no lugar daquelas prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados.
É ressignificar sentidos e rituais enunciativos, deslocando processos
interpretativos já inscritos historicamente” (2015, p. 10).
A esse respeito, ressaltamos as palavras de Fernandes (2021, p. 146-7)
sobre a relação entre resistência e dominação:

[...] a noção de resistência é da ordem da ruptura e se faz no interior da


língua (por meio do equívoco), da história (por meio da luta de classes), e do
sujeito (por meio do inconsciente). É, portanto, intrínseca à constituição do
sujeito simbólico e social, o que o faz resistir à dominação [...] E, ao resistir,
o sujeito marca na linguagem sua contradição e seus dilemas resultantes da
revolta instalada por certas desidentificações .

Para essas reflexões, resistir, em termos discursivos, envolve conflito,


tensão, disputa entre sentidos em circulação social. Movimentos discursivos
de resistência operam rompendo com um sentido e produzindo outro(s).
Dessa forma, ao compreendermos os processos de interpelação ideológica,
junho de 2020, do Ministério da Economia/Secretaria Especial de Previdência e Trabalho.
6 Para exemplificar o uso da expressão “distanciamento social” na mídia nacional
– e, consequentemente, o não uso da expressão “distanciamento físico”, remetemos o leitor
às seguintes notícias: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-53343977>;<https://g1.globo.
com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/05/oms-divulga-novas-orientacoes-para-uso-e-
fabricacao-de-mascaras-de-pano-contra-a-covid-19.ghtml>.
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 177

propostos em termos pêcheuxtianos, também consideramos a noção de


resistência, uma vez que “não há dominação sem resistência” (Pêcheux,
2009, p. 281), característica própria da luta de classes. Nesse viés, ao
ressignificar o sintagma posto em questão neste texto, o sujeito, investido
de uma posição discursiva, não se deixa dominar pelas redes significantes
socialmente vigentes e dominantes, ou seja, pelos gestos de interpretação
hegemônicos que circulam na sociedade brasileira em tempos de Covid-19.
Não é surpreendente afirmarmos que esse cenário epidemiológico
alterou os modos de viver e de conviver em sociedade, em diferentes esferas
da vida pública e privada. No entanto, talvez, seja inesperado pensar que
um dos aspectos que emergiu nas práticas sociais foi o acirramento da luta
de classes no âmbito da saúde pública, da luta pela sobrevivência diante
da possibilidade de contaminação pelo Coronavírus, especialmente, quando
estão em jogo, nessa disputa, os direitos fundamentais e a dignidade humana.
Ao mesmo tempo, esse acirramento abriu espaço para a retomada da própria
compreensão da divisão material da sociedade no âmbito econômico.
No presente contexto social, as medidas de proteção preconizadas pelo
órgão máximo de saúde pública na esfera internacional são constantemente
ignoradas pelo chefe do Poder Executivo brasileiro, que deveria, conforme a
Constituição Federal, zelar pelos interesses públicos. A nosso ver, as práticas
discursivas do capitão da República7, quanto à crise sanitária, promovem
um agravamento das desigualdades sociais entre as classes. Ou seja, o dever
constitucional de o Estado zelar pelos direitos fundamentais individuais
e sociais8, em nosso ponto de vista, é descumprido, pois ao minimizar a
necessidade e importância de práticas preventivas, o mandatário desampara
as classes que necessitam do Estado.
Recuero e Soares (2021), por exemplo, ao tratar do discurso da
desinformação sobre a cura do Coronavírus, salientam que esse discurso está
alinhado com o discurso político de apoio ao capitão da República. Segundo
os autores, ele manifesta-se contraditoriamente às orientações do Ministério
da Saúde e aos posicionamentos de alguns governadores que defendem
medidas de restrição para a contenção da disseminação do vírus:

7 Tomamos de empréstimo de Indursky (2020) as seguintes designações quando se


trata do atual Presidente da República: mandatário do país ou capitão da República.
8 Conforme determinado na Constituição Federal em seu artigo 85, inciso II.
178 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

[...] o presidente defendeu que o COVID-19 tratava-se de “uma gripezinha”,


que as coisas “deveriam voltar à normalidade” (ou seja, que o isolamento
social terminasse, contrariando diretamente o ministro da Saúde), e
que a cloroquina seria uma “cura” para o coronavírus (em live e em
pronunciamento no dia 24/03/2020), embora os especialistas alertassem
para a falta de evidências sólidas da eficácia e os possíveis riscos do uso da
droga [grifos dos autores] (RECUERO; SOARES, 2021, p. 03).

Recentemente, em live9, o mandatário do país pontuou que a


contaminação em massa pelo Coronavírus poderia ser até mais eficaz que
a vacinação contra a doença. Em suas palavras: “Eu estou vacinado entre
aspas. Muita gente que... todos que contraíram o vírus estão vacinados... até
de forma mais eficaz que a própria vacina, porque você pegou o vírus para
valer. Então, quem contraiu o vírus, não se discute, esse está imunizado”
[grifos nossos] (MATOSO; GOMES, 2021). Além disso, o capitão,
frequentemente, defende a desobrigação do uso de máscaras e promove
aglomerações10, mesmo em momentos de altos índices de contágio e de
mortalidade.
O funcionamento discursivo do operador argumentativo “até”, em
sua formulação, reforça, a nosso entender, uma posição ideológica que (re)
produz uma política governamental que vai contra os preceitos11 do Estado
Democrático de Direito, marcada pela responsabilidade dos governantes em
relação à(s) coletividade(s) e à preocupação com o bem comum. Isso porque
o próprio ao afirmar que “todos que contraíram o vírus estão vacinados”
9 Em live transmitida ao vivo através das redes sociais, no dia 17 de junho de 2021,
Fonte: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WVhTmzNcFEg>. Acesso em:
20/07/21.
10 A título de exemplo, remetemos o leitor às seguintes notícias sobre o
mandatário do país e os fatos afirmados: <https://oglobo.globo.com/fotogalerias/bolsonaro-
promove-aglomeracao-com-motociata-no-rio-25030562>; <https://g1.globo.com/politica/
noticia/2021/08/04/bolsonaro-promove-aglomeracao-no-planalto-para-oficializar-ciro-
nogueira-na-casa-civil.ghtml>;<https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/sem-
mascara-bolsonaro-fala-com-apoiadores-e-promove-aglomeracao-no-rs>;<https://www1.folha.
uol.com.br/poder/2021/08/sem-mascara-e-de-cocar-bolsonaro-promove-aglomeracao-com-
indigenas-pro-governo.shtml>;<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57283323>;<https://
cultura.uol.com.br/noticias/17872_bolsonaro-promove-aglomeracao-e-exalta-trabalho-do-
governo-federal-na-pandemia-em-comemoracao-de-aniversario.html>.
11 Consideramos a noção de Estado Democrático de Direito, e seus preceitos, no
âmbito da Teoria Geral do Estado em uma perspectiva jurídica formal. Não nos atemos,
nessas reflexões, à complexidade do funcionamento do Estado Democrático de Direito numa
formação social capitalista.
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 179

e marcar como elemento mais importante da sequência o sintagma “mais


eficaz”, na continuidade do seu enunciado, por meio do termo “até” – “até
de forma mais eficaz que a própria vacina”–, produz, no fio de seu discurso,
sentidos que sustentam o negacionismo científico e a minimização da
gravidade da doença.
Considerando os elementos linguísticos destacados (“até” e “mais
eficaz”), entendemos que, nesse processo discursivo, a contaminação seria
da ordem do desejável, pois é significada como um fator de imunização mais
eficiente e importante do que a vacina. Com isso, esse modo de significar
a doença minimiza a necessidade de proteção (entre as quais está a medida
de distanciamento físico/social recomendada pela OMS) e induz os sujeitos
que se identificam com essa rede discursiva a ignorar a vacina, encorajando-
os a também “estar vacinado entre aspas”.
O fechamento dessa sequência discursiva com “não se discute, esse
está imunizado”, reforça o efeito de encorajamento à contaminação e de
desestímulo à vacinação. Tal formulação eleva os saberes negacionistas
(anticiência, antivacina) a um nível de superioridade insuscetível de dúvida
em relação aos saberes opostos (representados pelo saber científico). Nesse
processo discursivo, a desinformação é propagada a partir de sentidos que
negam fatos, negam a ciência, negam a pandemia e negam a gravidade
da crise sanitária. Esse sintagma funciona colocando os saberes dessa rede
discursiva acima do conhecimento científico, conferindo a esse discurso um
grau de autoridade e superioridade em relação à ciência.
Sendo assim, compreendemos que, no funcionamento desse discurso,
os elementos destacados (“até”, “mais eficaz”, “não se discute”) convergem
para um mesmo desfecho: desacreditar a ciência e a vacina (como resultado do
conhecimento científico), enaltecendo os saberes (negacionistas) dessa rede
discursiva e encorajando os sujeitos a não se vacinarem e a não cumprirem
as medidas preventivas. Estes seriam, portanto, os únicos saberes válidos e
capazes de oferecer certezas e segurança diante do vírus, pois oferecem um
caminho para a imunização absoluta (aquela que não se discute e se realiza
com a contaminação). Assim, tal efeito de sentido é atravessado pela dúvida
sobre a imunização que a vacina (e a ciência) oferece.
Nesse panorama, as declarações públicas do capitão da República
produzem informações falsas sobre a cura e sobre a relevância da Covid-19,
e, tais sentidos formulados, de acordo com o estudo de Recuero e Soares
(2021), aumentaram a circulação de desinformação e ainda continuam
180 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

produzindo efeitos que boicotam as medidas preventivas e descredibilizam


a vacina. Em nossa leitura, essas práticas afetam diretamente a parcela
da sociedade que necessita do apoio do Estado para garantir as mínimas
condições de saúde, e essa política governamental de negligência potencializa
as desigualdades sociais constitutivas de nossa sociedade.
Vinhas (2020), por sua vez, em análise de dois enunciados produzidos
pelo mandatário do país em circunstâncias diferentes, acerca de tragédias
ocorridas no país, mas, que também dizem respeito às coletividades, bem
situa o momento sócio-histórico em que vivemos. A autora escreve:

A reflexão aqui proposta se situa em uma formação social em desamparo.


Uma formação social que vê museus queimarem, florestas queimarem, vidas
perderem o oxigênio que as sustenta. Se não há fumaça sem fogo, precisamos
observar os fogos que estão se colocando cada vez mais como óbvios para
que a prática da destruição não se torne hegemônica, natural, inquestionável
(VINHAS, 2020, p. 472).

Diante de tais condições de produção, entendemos, fundamentadas


nos pressupostos teórico-analíticos propostos por Michel Pêcheux, na
perspectiva da Análise de Discurso Materialista (AD), que precisamos estar
atentas, então, à luta pelos sentidos. Eis o que se apresenta como essencial
nos nossos dias: o esforço de compreendermos os sentidos que circulam
em sociedade, o modo como a mesma expressão (distanciamento social)
(re)produz sentidos em direções distintas. Atentar para essas práticas sociais
e discursivas auxilia na compreensão de sentidos e interpretações sobre o
Brasil, sobre os brasileiros e a brasilidade em tempos de crise sanitária.
Nesse olhar, para analisar o movimento e a luta pelos sentidos é
necessário retomarmos Pêcheux (2009 [1988], p. 146) e esclarecermos que
os sentidos atribuídos à expressão em pauta não estão pré-estabelecidos
semanticamente em cada palavra, tampouco, desfiguram a realidade
material em que são (re)produzidos, pois, referem-se a processos discursivos
resultantes de determinadas posições-sujeitos, em diferentes condições de
produção e matriz de sentido distinta.
Dessa posição teórica que assumimos, enquanto profissionais da área
de Letras e da Educação, é importante explicitar que o exercício analítico, no
âmbito da AD, envolve compreender as possibilidades de significação com
base na língua e nos processos que colocam em jogo as posições política,
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 181

ideológica e de classe dos sujeitos envolvidos no discurso. Dito de outra


forma, para a interpretação de qualquer objeto simbólico, seguindo o legado
pêcheuxtiano, é preciso estabelecer a articulação entre a base linguística
(língua) e o processo discursivo, analisando o funcionamento da língua em
relação às representações colocadas em jogo nas relações sociais.
Aqui, após 30 anos de “Terra à Vista! Discurso do confronto: velho
e novo mundo”, escrito por Orlandi (1990), continuamos, mais do que
nunca, a pensar sobre como, através da linguagem, podemos observar a
relação entre os sujeitos em sociedade no Brasil. E apuramos o nosso olhar
ao que vem ocorrendo no âmbito de classes e ao que está sempre mais além,
conforme instiga a autora: “Como está sempre mais além o sentido profundo
do que imaginamos ser o que chamamos Brasil” (ORLANDI, 1990, p. 09).
Diante do que nos inquieta, então, em textos distintos, já propomos
pensar sobre os sentidos acerca da Covid-19, na medida em que defendemos,
a partir de nossas análises, que a pandemia pode, sim, provocar consequências
distintas para cada polo de relações sociais dicotômicas, em uma sociedade
cuja estrutura material é dividida em classes. Nesse viés, buscamos analisar e
expor as disputas de sentidos no Brasil, as interpretações de uma parcela dos
brasileiros sobre a sua própria condição social.
Ao tomarmos como objeto de análise central a referida expressão,
propomos pensar sobre: como a luta pelos sentidos pode ser compreendida
a partir do sintagma “distanciamento social”? Assim, nosso objetivo
é promover um exercício de leitura a partir de um enunciado específico
apresentado a seguir.
182 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

2 Distanciamento social: práticas de (in)visibilidade

Vejamos o enunciado:
Figura 1: Sequência discursiva imagética.

Fonte: ARAÚJO, 2020.


Esse é um dos enunciados que se propagou nas redes sociais12, sendo
repetido a cada vez que as medidas de prevenção à disseminação e contágio
por Covid-19 eram repercutidas. Assim como pontuou Orlandi (1990), em
sua análise do enunciado “Terra à vista!”, tomado como primeira fala sobre
o Brasil, expressando um olhar inaugural através da língua, por meio de
processos de significação a partir dos quais se consolidou um imaginário
acerca do Brasil e do brasileiro, aqui, buscamos compreender os processos
12 O enunciado em análise circulou intensamente nas redes sociais no segundo
semestre de 2020 e, em outubro daquele ano, tornou-se notícia em diferentes veículos
eletrônicos de comunicação após ser publicado em uma rede social no perfil de um sujeito
investido em uma posição de fama em nossa formação social. Dessa forma, nosso objeto de
análise encontra-se online em uma conta privada nas redes sociais, mas em um contexto público
de circulação de dizeres através de meios de comunicação. Ressaltamos que não é considerado,
nos pressupostos da AD, o sujeito empírico que o publicou.
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 183

discursivos que atribuem sentido a uma classe social que, por sua vez, são
parte do funcionamento imaginário da sociedade brasileira e fazem emergir
o caráter excludente dessa formação social.
Distinguindo compreensão de interpretação, conforme ensinamentos de
Orlandi (2012), ao nos aproximarmos do nosso objeto de análise, atentamos
para a primeira parte desta oração - “Distanciamento social sempre existiu”
(grifo nosso) - em que o sintagma, usualmente atrelado aos discursos sobre a
Covid-19, é utilizado no fio do discurso acompanhado de uma sequência que
traz um advérbio e um verbo (sempre e existir, respectivamente), formando um
enunciado de caráter afirmativo. Tal formulação, assim proposta, indica uma
determinada posição-sujeito em relação às condições materiais de produção da
sociedade brasileira.
O advérbio de tempo “sempre”, que caracteriza/modifica o verbo que o
precede, “existiu”, sinaliza, pela leitura que fazemos, que embora o sintagma tenha
agora recebido visibilidade e repercussão quando relacionado à crise sanitária, o
sentido que também produz não se trata de uma novidade na realidade social
brasileira no que tange aos aspectos sociais e econômicos. Nessa leitura, o termo
“sempre” funciona no nível intradiscursivo como um operador que reforça e
intensifica a ideia de que o “distanciamento social” entre os sujeitos brasileiros
existe, ou seja, trata-se de uma realidade material já vivenciada e já conhecida
por uma parcela da sociedade (apesar do índice de pobreza e de desemprego ter
aumentado consideravelmente em tempos de Covid-19).
O advérbio marca, no fio do discurso, a existência passada e presente
daquilo que é representado no/pelo sintagma precedente (distanciamento social),
por meio da retomada de um discurso que nega a existência de diferenças sociais
de classe. Dito de outra forma, este enunciado afirma o que poderia ser negado/
silenciado ou o que é negado/silenciado. O uso do tempo verbal no pretérito
perfeito do modo indicativo, em “existiu”, complementa o efeito de sentido
sobre uma realidade concreta e factual em relação à ação (existir), evidenciando
a posição do sujeito enunciador.
Nessa perspectiva, “distanciamento social” move-se para outra matriz
de sentido que faz o sintagma funcionar discursivamente como possibilidade
parafrástica para a expressão “exclusão social”, por exemplo. Também, no
eixo parafrástico, podemos pensar em possibilidades de paráfrase como:
distanciamento social/ desigualdade social/ exclusão social. Instaura-se,
portanto, uma relação metafórica entre os referidos sintagmas. Ou, conforme
Indursky (2011, p. 76),
184 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

Os sentidos, à força de se repetirem, podem acabar por se modificar, de modo


que as redes discursivas de formulação, formadas a partir de um regime de
repetibilidade, vão recebendo novas formulações que, ao mesmo tempo
que vão se reunindo às já existentes, vão atualizando as redes de memória.
Tais formulações podem trazer o mesmo sentido e, nesse caso, produzem
uma relação de metáfora em que uma palavra é tomada pela outra, mas
produzindo o mesmo sentido, tal como ocorre em uma família parafrástica
que funciona como uma matriz de sentido.

Na relação metafórica instaurada entre distanciamento, desigualdade


e exclusão, as questões relacionadas à pandemia e seus desdobramentos
sanitários passam a ser associadas às desigualdades sociais e econômicas
vivenciadas há muito na sociedade brasileira. Assim, a partir da língua,
sujeitos posicionam-se, produzindo efeitos de sentido de denúncia, de
resistência, de procura por visibilidade diante dessa conjuntura política atual
que assumiu uma postura que inviabiliza sujeitos de determinada parcela.
Quanto aos elementos verbais, o enunciado em análise é finalizado
com a exclamação/proposição “bem vindos ao Brasil….”, sequência esta que
sustenta e reforça o imaginário e sentidos já instaurados pelos elementos
anteriores: esse é o Brasil que existe e sempre existiu, aqui distanciamento
social não é uma novidade trazida pela Covid-19, pois, essa recomendação
da OMS é uma prática que ocorre há muito tempo, mas, por outras razões
que são denunciadas nessa discursividade.
Não podemos deixar de considerar a reticência “...” apresentada no
enunciado, visto que ela também significa na produção do sentido. No
entendimento de Grantham (2003), as reticências “sinalizam um espaço de
virtualidades, de sentidos possíveis’’. Mas reforça também nossa hipótese
de que esse espaço não abre para qualquer coisa, pois os sentidos que são
produzidos ali não estão fora do campo daquilo que é possível dizer” (p.
1024). Nesse ínterim, as reticências não são um vazio ou uma comunicação
sem expressão, mas, um espaço lacunar carregado de significação. Essa pista
linguística, então, permite, a nosso ver, que o sujeito opere ilusoriamente
com o dito e com o a dizer, significando, no entremeio, o não-dito que
significa.
Dessa forma entendido, os efeitos de sentido que até hoje nos
submetem ao “distanciamento social” são os que silenciam a historicidade
da sociedade dividida em classes. Sentidos que circulam socialmente
dissimulando a desigualdade social estrutural e, no contexto da pandemia,
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 185

buscam minimizar as diferenças de classe na prevenção e proteção contra


os riscos sanitários decorrentes da Covid-19. E, então, ao observarmos
práticas sociais e discursivas como esta em análise, atentamos para o seu
funcionamento como um gesto de resistência, denunciando as diferenças de
classe, que são determinantes para a sobrevivência, para a proteção à saúde
dos sujeitos das classes vulneráveis. Por isso, nossa proposta é compreender
os processos de significação instaurados por sujeitos que, ao se posicionarem
frente a um modo de significar a pandemia de maneira homogênea e
desvinculada das questões de classe, resistem.
Atentando para o texto como um todo, observando os elementos verbais
e não-verbais que o compõem, destacamos o modo como a união desses
elementos atua na produção do efeito de sentido em questão. A imagem que
apresenta um lugar desfavorecido economicamente cuja estrutura encontra-
se destruída, com tijolos e canos de saneamento aparentes, materializa a
situação vivida por parte dos brasileiros. E, imbricada ao nível linguístico,
a dimensão imagética reforça as questões sociais relacionadas à pobreza, à
desigualdade, à exclusão e ao abandono de alguns espaços públicos por parte
do Estado.
Sendo assim, entendemos que a imagem associada ao enunciado
“Distanciamento social sempre existiu bem vindos ao Brasil….” direciona e
intensifica um movimento de (re)significação do sintagma “distanciamento
social” para além das questões de saúde pública, no contexto sócio-histórico
em que foi produzido, cujo espaço de circulação tornou-se saturado de
sentidos sobre a Covid-19.
Esse funcionamento discursivo ancorado na repetição do sintagma
distanciamento social remete-nos, logo, às bases teóricas da AD, pois o
sintagma em pauta, ao desestabilizar o processo de saturação/regularização
de sentidos por nós salientado, torna-se outro13. Orlandi (2012) ao tratar das
relações de sentido, acentua que é pelo funcionamento do interdiscurso que a
exterioridade é inscrita no próprio interior da textualidade. O interdiscurso,
por sua vez, “é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que
determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é
preciso que elas já façam sentido” (ORLANDI, 2012, p. 33).

13 A esse respeito, vale retomar Pêcheux (2008 [1983]): “todo enunciado é


intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente
de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria ao
logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente)” (p. 53).
186 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

Nesse ponto, recorremos a Indursky (2011, p. 71, grifo nosso), ao


refletirmos sobre a noção de memória no âmbito da AD, quando a autora
ressalta que

[...] se há repetição é porque há retomada/regularização de sentidos que


vão constituir uma memória que é social, mesmo que esta se apresente ao
sujeito do discurso revestida da ordem do não-sabido. São os discursos em
circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sócio-histórico,
que são retomados, repetidos, regularizados. [...] Repetir, para a AD, não
significa necessariamente repetir palavra por palavra algum dizer, embora
frequentemente esse tipo de repetição também ocorra. Mas a repetição
também pode levar a um deslizamento, a uma ressignificação, a uma
quebra do regime de regularização dos sentidos.

Dessa posição teórica, a repetição é entendida como um modo


de manifestação da memória no discurso e pode associar-se ao efeito de
regularização de sentidos, quando se realiza no eixo parafrástico, ou como
deslocamento e ressignificação, quando se realiza no eixo polissêmico da
linguagem. No caso que analisamos, podemos observar o funcionamento
desse segundo movimento quando o sintagma “distanciamento social”
surge no fio do discurso inserido em um enunciado que nos leva a uma
determinada interpretação, justaposto a imagens que buscam significar a
realidade material das classes sociais desfavorecidas.
A expressão em análise, portanto, permite-nos distinguir que repetir
não é apenas renovar o mesmo, já que a repetição pode produzir movimentos
polissêmicos, pode romper com processos de significação já instalados.
Dessa forma, ao analisarmos o efeito parafrástico e o efeito polissêmico do
discurso, temos em vista que repetir não significa necessariamente a fixação
ou o enrijecimento de sentidos, e, por isso, evidenciamos a sua movência,
uma vez que “também é a repetição que responde por sua movimentação/
alteração. Ou seja, os sentidos se movem ao serem produzidos a partir de
outra posição-sujeito ou de outra matriz de sentido” (INDURSKY, 2011,
p. 77).
Em nosso objeto, observamos que a repetição altera o curso do
processo de significação das mesmas palavras, justamente porque a produção
de sentido é uma questão de determinação ideológica, de relações com a
exterioridade, com o interdiscurso. O sentido, nessa perspectiva a qual nos
filiamos, não é apenas um produto da língua enquanto estrutura, é efeito,
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 187

um processo resultante da língua enquanto estrutura, mas, também, como


fato social que se realiza na interseção do histórico e do ideológico. Orlandi
bem escreve: “não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparente
cotidiano dos signos” (2012, p. 09).
Assim, a desestabilização de um processo de regularização e saturação
de alguns sentidos em torno do sintagma “distanciamento social”, de acordo
com a nossa interpretação, evidencia a luta pelos sentidos como resistência
aos processos dominantes/hegemônicos de significação da pandemia que
a compreendem como sendo vivenciada de modo igual para as diferentes
classes sociais e que, na realidade material, (sobre)vivem ao vírus de modo
bastante distinto. Esse gesto de resistência também retoma as relações de
dominação/subordinação que estruturam a sociedade brasileira.
A partir do gesto de análise aqui materializado, compreendemos
que confrontar o sentido de “distanciamento social” como medida de
proteção de saúde (saturado e dominante) com o sentido de exclusão social
(ressignificação, resistência e denúncia) mostra como a língua é, também,
arena política para a luta de classes, para a luta pela sobrevivência, para a luta
pelos sentidos. Analisar esses enfrentamentos, tal como buscamos evidenciar
nessas reflexões, nos permite retomar Pêcheux (2014, p. 7, grifos nossos)
acerca da luta ideológica de classes:

O duplo caráter dos processos ideológicos (caráter regional e caráter de


classe) permite compreender como as formações ideológicas se referem aos
“objetos” (como a Liberdade, a Justiça etc.), ao mesmo tempo idênticos e
diferentes, isto é, cuja unidade está submetida a uma divisão: o próprio
da luta ideológica de classes é se desenvolver num mundo que, de fato,
não termina nunca de se dividir em dois”.

Por fim, entendemos que a discursividade analisada é um exemplo


de que as palavras podem ser armas a partir das quais os enfrentamentos se
estabelecem socialmente: “Pero en la lucha política, ideológica y filosófica,
las palabras también son armas, explosivos, calmantes y venenos. Toda la
lucha de clases puede a veces resumirse en la lucha por una palabra o contra
una palabra” (ALTHUSSER, 1974, p. 20).
188 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

Considerações finais

Com este gesto de análise, observamos que para compreender


e analisar as disputas de interpretação sobre o Brasil, os brasileiros e a
brasilidade, é necessário que as reflexões propostas contemplem a (re)
produção de sentidos e problematizem as determinações sócio-históricas
que reforçam e naturalizam as condições materiais de produção e as relações
sociais de desigualdade/subordinação. Nesse ínterim, observamos, com
amparo teórico em Orlandi, “o fato de que há um repetível que retorna
indefinidamente nessa produção de sentidos” (1990, p. 242).
No movimento discursivo de ressignificação do sintagma
“distanciamento social” a partir de outro processo discursivo e outra
matriz de sentido, irrompem efeitos que evidenciam a relação entre saúde
e classe social, denunciando que a saúde pública não deve ser significada
de modo igual para toda a população brasileira, pois o direito à saúde não
é uma realidade material que se apresenta de modo igual para todos (entre
tantos outros direitos fundamentais).
Com efeito, a repetição instaurada a partir do eixo polissêmico,
como gesto de ressignificação, resistência e denúncia, ao demarcar a
luta pelos sentidos, evidencia que distanciamento social produz sentidos
diferentes conforme a classe social dos sujeitos. Para classes sociais
vulneráveis economicamente, distanciamento social produz sentidos que
vão muito além da crise sanitária e, assim, podemos perceber que “é aí
que os sentidos se dividem inexoravelmente”, tal como propõe Orlandi
(1990, p. 239), uma vez que “podem ser muito diferentes se recortamos
as histórias em diferentes perspectivas do contar” (idem, p. 239).
A partir das condições de produção do enunciado em análise e
da noção de que todo gesto de resistência é atravessado pelas práticas
dominantes, nossa leitura considerou práticas discursivas como as do
mandatário do país. Isso porque suas práticas sociais e discursivas agravam
o jogo de forças desigual e desproporcional que estrutura as relações
sociais de produção. As classes social e economicamente vulneráveis
não têm condições materiais de entrar nessa disputa sem colocar-se em
risco concreto de morte. No cenário epidemiológico que vivemos, o
negacionismo e a desinformação matam, mas matam muito mais aqueles
que não têm condições materiais de acesso à saúde.
Nosso objeto de análise, em seu funcionamento discursivo,
SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. | 189

expôs que é preciso resistir ao discurso de abandono e desamparo das


classes vulneráveis, o qual circula fortemente no âmbito do discurso
político de apoio ao capitão da República e a suas práticas de negação da
pandemia. É preciso ressignificar o sintagma e promover a visibilidade
daqueles que o governo está negligenciando. Então, compreendemos que
a luta pelos sentidos desdobra-se na luta por políticas de prevenção e
combate à Covid-19 que leve em conta a realidade material das classes
sociais vulneráveis. Assim, o enunciado analisado resulta da urgência em
produzir sentidos de resistência para que as classes menos favorecidas
não sejam abandonadas em definitivo. Os dizeres analisados, portanto,
denunciam que é preciso lembrar que essa parcela da população existe e
precisa do Estado para ter seus direitos à saúde garantidos.

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190 | Ressignificação e resistência no sintagma “distanciamento social”

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Como citar este artigo

SOUZA, M. J. de.; SILVA, N. S. Ressignificação e resistência no sintagma


“distanciamento social”: uma análise discursiva sobre a luta pelos sentidos
em tempos de Covid-19 no Brasil. Fragmentum, Santa Maria, p. 173-
191, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468890. Acesso em: dia mês
abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 239-264, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219465482


Submissão: 27/04/2021 • Aprovação: 20/08/2022
Entrevista

ENTREVISTA COM O PROFESSOR RANDAL


JOHNSON

Felipe Reis Pompeu de Moraes


Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil, CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Randal Johnson é um renomado acadêmico de cinema e literatura luso-brasileiros. O referido professor foi diretor do Instituto
de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Foi também chefe do Departamento de
Espanhol e Português e do Programa sobre o Brasil da UCLA, bem como Diretor do Centro de Estudos do Programa
de Educação no Exterior da Universidade da Califórnia. Antes de ir para a UCLA em 1994, o professor Johnson
serviu no corpo docente da Rutgers University e da University of Florida, onde foi chefe do Departamento de Línguas e
Literaturas Românicas.

A experiência acadêmica de Johnson concentra-se, principalmente, no estudo do cinema e da literatura brasileira. Ele é
o autor ou editor de onze livros e dezenas de artigos de pesquisa. Entre suas publicações, estão Cinema Brasileiro (com
Robert Stam), Cinema Novo x 5, A Indústria Cinematográfica no Brasil: Cultura e o Estado, Brasil Negro: Cultura,
Identidade e Mobilização Social (com Larry Crook) e O Campo da Produção Cultural, uma coleção editada de ensaios
por Pierre Bourdieu. Também publicou um livro sobre o cineasta português Manoel de Oliveira. A pesquisa de Johnson foi
apoiada pela Fundação Tinker, pelo Conselho Conjunto para a América Latina do Conselho de Pesquisa em Ciências
Sociais, pelo Conselho Americano de Sociedades Eruditas e pelo National Endowment for the Humanities [Fundo
Nacional para as Humanidades]. Foi condecorado, em 1999, com a Ordem do Cruzeiro do Sul, e, em 2018, com
a Ordem de Rio Branco, ambos pelo governo brasileiro. O PhD de Johnson é da Universidade do Texas em Austin.1

Palavras-chave: Literatura e Cinema; Cinema e Estado; Modernismo; Manuel de Oliveira

Introdução

Nessa entrevista, dividida em alguns blocos, o brasilianista Randal Johnson


discorre sobre Literatura e Cinema. Especificamente, sobre o filme Macunaíma de
Joaquim Pedro de Andrade e intercessões com a obra escrita, além de temas como
o tropicalismo.
Em um segundo bloco, Randal discorre sobre o cinema brasileiro:os seus
livros Brazilian Cinema e Cinema Novo X 5, além das fases do cinema novo
propriamente ditos.
1 Disponível em: https://www.spanport.ucla.edu/person/randal-johnson/.

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


240 | Entrevista com o professor Randal Johnson

Nos blocos seguintes, sobre Cinema e Estado, o autor discorre sobre a


falta de apoio financeiro e proteção do Estado Brasileiro, e, especificamente,
sobre “o jogo complexo de interesses (internos e externos)”, envolvendo o
financiamento estatal.
No quarta parte, Randal aduz sobre o Modernismo e campo literário
brasileiro nos anos 30-40, sobre seus artigos A dinâmica do campo literário
brasileiro (30-45) e Institutionalisation of brazilian modernism, dentre outros
assuntos correlatos.
No quinto bloco, Randal discorresobre Manuel de Oliveira.
Especificamente, sobre filmes como Viagem ao princípio do Mundo e
Franciscca, bem como as particularidades desse cineasta português. Por
último, comenta acerca de seus projetos futuros.

ENTREVISTA COM O PROFESSOR RANDAL


JOHNSON

Primeiramente, gostaria de agradecer sua disponibilidade para conver-


sar comigo. Minha primeira pergunta refere-se aos motivos que o le-
varam a estudar e a pesquisar a literatura e o cinema brasileiros. Em re-
cente entrevista ao Professor Antônio Dimas,2 o Sr. ressaltou o fascínio
por um LP de João Gilberto (cantando Tom Jobim), o entusiasmo pelo
filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, e a possibilidade de convocação
para a guerra do Vietnã. Esses foram os motivos que o levaram a querer
conhecer o Brasil?

Foram, pelo menos, em parte. Na realidade, a situação era um pouco


mais complexa. Comecei a me interessar pela América Latina quando
tinha uns 15 anos e fiz, junto com a banda do colégio (tocava clarineta),
uma viagem de ônibus de Arlington, Texas, onde morava, até a Cidade do
México, fazendo concertos em várias cidades. Estudei espanhol durante os
quatro anos do colégio. No verão, depois de me formar, passei seis semanas
estudando o idioma na Universidad de las Américas, que naquela época
ficava na Cidade do México (depois se mudaria para Puebla). Entrei na

2 Dimas, Antônio. “Sobre letras e cinema: uma entrevista com Randal Johnson”.
Teresa: Revista de Literatura Brasileira, n. 16 (2015), 277-285.
MORAES, F. R. de | 241

Universidade do Texas em Arlington, naquele mesmo ano (1966), com a


ideia de voltar à Universidade das Américas, dois anos depois para estudar
Relações Internacionais. Continuei fazendo matérias em espanhol, e, no
segundo semestre do primeiro ano, comecei a estudar russo. Mas antes
do final do semestre, a universidade indicou que no próximo ano letivo
ia oferecer, pela primeira vez, uma disciplina de língua portuguesa. Foi aí
que o LP de Gilberto e Jobim entrou na história. Como pretendia fazer a
disciplina por causa do meu interesse na América Latina e não sabia nada
do Brasil ou da língua, antes de começar o semestre, resolvi comprar o
disco. Gilberto & Jobim é um LP de Bossa Nova. lançado em 1964, em que
Gilberto canta acompanhado por Jobim. Há músicas de Jobim no LP, mas
também de outros compositores. Não entendi nada que cantava, mas adorei
a música. E foi aí que comecei a me interessar pelo Brasil, que não estava no
meu radar antes disso.
Mas há outros passos nessa trajetória. No verão do ano seguinte
(1968), ganhei uma bolsa para fazer um programa de seis semanas de língua
portuguesa e literatura brasileira, na Universidade do Texas em Austin.
Numa disciplina de literatura, ministrada pelo Professor Alexandrino
Severino, li meu primeiro romance em português: Vidas Secas. Ainda tenho
o exemplar que li na época, com muitas palavras definidas ou traduzidas na
margem (em tinta). Também me lembro de ter lido o conto Missa do Galo,
de Machado de Assis, e, talvez, se não falha-me a memória, a peça Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna.
Na mesma época, o filme Orfeu Negro (1959) ainda circulava nas
universidades americanas. Não me lembro de quando o vi pela primeira vez,
mas sei que teve um impacto sobre muitos jovens americanos, mesmo com
a visão idealizada do Brasil e, talvez, até por causa de suas imagens lindas
do Rio, tiradas do Morro da Babilônia. Essa visão contrastava, fortemente,
com as imagens de horror da guerra do Vietnã que circulavam, diariamente,
no país.
A partir do LP de Gilberto e Jobim, o meu interesse pelo Brasil
foi crescendo como uma bola de neve. Esse interesse se tornou mais
direcionado quando, já na pós-graduação na Universidade do Texas, tive
a oportunidade de fazer disciplinas com os professores visitantes, Massaud
Moisés e Haroldo de Campos. Haroldo ministrou um seminário sobre prosa
de vanguarda no Brasil, no qual, entre outras coisas, delineou o seu estudo
do romance Macunaíma, que seria publicado depois com o título Morfologia
242 | Entrevista com o professor Randal Johnson

do Macunaíma (1973). Isso plantou a semente para o que viria a ser minha
tese de doutorado, sobre a adaptação que Joaquim Pedro de Andrade fez do
romance em 1969. Assisti ao filme pela primeira vez em uma sala de cinema
na Galeria Alaska, em Copacabana. Isso deve ter sido no segundo semestre
de 1971, quando tive uma bolsa da Fulbright para fazer pesquisa para minha
dissertação de mestrado sobre o romancista baiano Adonias Filho. Hoje, a
sala onde vi o filme é uma igreja evangélica. A tese, que defendi em 1977,
seria publicada como livro com o título Literatura e Cinema: Macunaíma do
Modernismo na literatura ao cinema novo (T. A. Queiroz, 1982).

A adaptação de Joaquim Pedro de Andrade da obra de Mário de An-


drade seria um bom exemplo de diálogo entre a obra escrita e o cine-
ma? Ao mesmo tempo em que há fidedignidade à obra escrita (como o
respeito ao movimento antropofágico3, o diálogo coloquial e as carac-
terísticas marcantes das personagens criadas por Mário), há inovações e
liberdades adaptativas consideráveis (como o flerte com a retórica tropi-
calista4 e a própria existência de uma personagem guerrilheira)?

É um exemplo excelente, a meu ver. Em 1966, Joaquim Pedro disse


o seguinte numa entrevista concedida ao crítico Alex Viany: “Acho que só
teríamos a ganhar se tornássemos a analisar o movimento de 22 em relação
ao que ocorre hoje”. É isso que ele faz com Macunaíma. No filme, Joaquim
Pedro segue, de modo geral, a narrativa e mantém os personagens principais
do romance de Mário. Também cria certa equivalência com a mistura de
elementos culturais que caracteriza o romance. A trilha sonora, por exemplo,
inclui música de Carlos Gomes, Villa Lobos, Borodin, Roberto Carlos,
Lamartine Babo, Wilson Simonal, e até a canção By a Waterfall, do filme
musical americano Footlight Parade (1933). O figurino também mistura
muitos estilos e até épocas diferentes. O filme também traduz, a seu jeito, o
humor do romance, especialmente no uso do kitsch, da sátira, e da atuação
exagerada dos personagens. Importante, nesse sentido, é sua incorporação
de elementos do teatro de revista e da chanchada.

3 Algumas cartas trocadas entre Alceu Amoroso Lima e Mário de Andrade geraram
questionamentos sobre a aplicabilidade do romance ao movimento antropofágico por questões
temporais.
4 Há muitos que entendem existir conexões entre o Tropicalismo e o Modernismo.
MORAES, F. R. de | 243

O Sr. acredita que, na adaptação cinematográfica de Macunaíma, a es-


tratégia de Joaquim Pedro de Andrade teria sido “a de simplificar e con-
cretizar elementos mágicos e fantásticos” (p. 123 do seu livro). A que o
Sr. atribui essa estratégia de “simplificação”?

Um dos argumentos que faço no livro Literatura e Cinema é que na


sua adaptação Joaquim Pedro fez uma radicalização ideológica do romance.
O subtítulo do romance é “O herói sem nenhum caráter”. De acordo
com o roteiro, o título do filme ia ser “O herói de mau caráter”, o que
já representaria uma diferença significativa. No romance, Macunaíma tem
poderes mágicos. Para “brincar” com a namorada do irmão, ele se transforma
numa formiga e depois num pé de urucum;transforma um irmão numa
chave para abrir uma porta e num telefone (ou “máquina telefone”) para
pedir lagosta e francesas; transforma um inglês na “máquina London bank”
e a cidade de São Paulo, num bicho preguiça de pedra. Ele morre mais de
uma vez, mas é ressuscitado através do uso de agentes mágicos, como o
guaraná. No final, Macunaíma é transformado na constelação Ursa Maior.
Na sua adaptação, Joaquim Pedro elimina quase todas as transformações
mágicas: o Macunaíma negro (Grande Otelo) se transforma em um príncipe
branco (Paulo José) para brincar com Sofará, a namorada do seu irmão Jiguê
(Milton Gonçalves), e depois vira branco de vez. Há também o episódio
em que Macunaíma engole um pedaço de carne da perna do Currupira5 e
o episódio em que ele vai a uma festa de macumba para dar uma surra em
Venceslau. Mas no final do filme, Macunaíma morre, consumido pela Uiara;
não vira constelação. Desse modo, Macunaíma não tem poderes mágicos.
Através dessa simplificação ou concretização de elementos fantásticos,
Joaquim Pedro desmistifica Macunaíma, que não tem mais poderes que
qualquer outro homem.
Outra mudança importante é a caracterização de Ci. No romance, ela
é a Mãe do Mato; no filme, é uma guerrilheira urbana. Isso, obviamente,
tem a ver com a atualização do livro, com a tentativa de fazer a história se
relacionar mais diretamente com o momento no qual o filme foi feito. A sua
destruição, com a própria bomba, é uma forma de autofagia. Aliás, como já
disse Ismail Xavier, um dos temas centrais do filme é exatamente a autofagia.
5 O termo “Curupira” aparece grafado nessa forma “Currupira” em alguns
episódios nas pesquisas de Couto de Magalhães, nas análises de Cavalcanti Proença(1978)
e nas narrativas catalogadas na aldeia Tekohaw (ver nota 1 em https://abralic.org.br/anais/
arquivos/2016_1491505550.pdf ).
244 | Entrevista com o professor Randal Johnson

O país devora os seus cidadãos, que devoram o país, que, portanto, devora
a si mesmo.
No episódio do Currupira, há uma imagem que mostra isso muito
bem. Quando Macunaíma, fugindo do Currupira, finalmente consegue
expelir o pedaço de carne da perna do ogro que havia comido, ele o
vomita numa poça de lama. O enquadramento mostra a poça como um
losango, com a carne borbulhando no meio. Parece-me claro que é uma
representação da bandeira brasileira. Isso ecoa no final, quando Macunaíma
morre, consumido pela Uiara, e sua jaqueta verde se espalha pela água com
sangue borbulhando por baixo. Enfim, a leitura política do filme tem a ver
com todos esses elementos. Sem mencionar o episódio anterior da anta, no
qual Sofará está usando um vestido-saco com o emblema da Aliança para o
Progresso. Macunaíma, o suposto herói brasileiro, caça a anta, mas, no final,
só recebe as tripas para comer.

Há quem diga que Joaquim Pedro nega esse flerte com o Tropicalismo.
Qual a opinião do Sr.?

Não sei se ele, pessoalmente, negou alguma relação com o Tropicalismo.


Mesmo que tivesse negado, o caso dele seria um pouco como o de Mário de
Andrade em relação ao Pau Brasil e à Antropofagia, de Oswald de Andrade.
Mário escreveu O Losango Caqui (1926) antes do Manifesto da Poesia Pau Brasil
(1924), mas o publicou depois, e o livro acabou associado ao movimento de
Oswald. A mesma coisa aconteceu com Macunaíma, escrito em 1926, mas
só publicado em 1928, o mesmo ano do Manifesto Antropofágico. Mário
lamentava essas coincidências e não se sentia confortável sendo incorporado ao
movimento antropofágico.
Seja qual fosse atitude de Joaquim Pedro, o filme é, fortemente, associado
ao Tropicalismo, mesmo que isso não tenha sido a intenção do diretor. No seu
livro Alegorias do Subdesenvolvimento, Ismail Xavier tende a associar o tropicalismo
mais ao cinema marginal, e especialmente a O Bandido da Luz Vermelha, de
Rogério Sganzerla, do que ao Cinema Novo, mas vê o “influxo tropicalista” em
Macunaíma – no figurino, nas mutações do herói, no kitsch, na trilha sonora,
entre outras coisas. Numa crítica publicada na época do lançamento do filme,
Alberto Shatovsky descreve o personagem Macunaíma como um “herói hippie
e tropicalesco” e o filme como uma “comédia bufa”. Praticamente tudo na sua
resenha conduz a uma associação do filme com o tropicalismo.
MORAES, F. R. de | 245

No terceiro capítulo de seu livro, uma reflexão sua me chamou atenção:


a de que “Mario Andrade, em Macunaíma, põe em prática sua teoria
da legitimidade de formas populares de expressão para a criação de
formas literárias eruditas” (p. 101). Nesse mesmo raciocínio, “o uso de
fontes populares e indígenas na composição de Macunaíma está ligado
à preocupação de (...) como abrasileirar a literatura brasileira e desse
modo descolonizá-la”. Gostaria que o Sr. falasse um pouco sobre isso.

A formulação no livro é um pouco simplista, mas isso é um dos


aspectos mais comentados da obra de Mário. Durante toda a carreira, ele
estava interessado em múltiplas questões relacionadas à cultura nacional e
tinha uma visão utilitária, prática, do seu papel. Aliás, ele diz exatamente
isso na conferência O Movimento Modernista (1942): “[…] eu decidira
impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de
vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a
beleza divina”. Nesse sentido, além de muitas outras atividades, como dirigir
o Departamento de Cultura em São Paulo, ele tentou sistematizar a conexão
entre a obra de arte, o papel do artista e as necessidades do país; fez pesquisa
extensiva em diversos aspectos da cultura popular, inclusive na língua falada,
como um meio de forjar uma identidade cultural autêntica. Isso se relaciona,
diretamente, a seu conceito de nacionalismo literário e artístico.
Mário via o nacionalismo como o primeiro passo num processo
de autodescobrimento que contribuiria aos valores culturais universais, à
medida que era autêntico e fiel a si mesmo. O seu objetivo era, em última
análise, a integração da cultura brasileira na cultura universal, e, não, o
isolamento ou fechamento implícito em correntes mais xenofóbicas de
nacionalismo, que também faziam parte do movimento modernista. Ele
reconhecia a dificuldade de criar uma cultura nacional autêntica num país
permeado por valores e padrões europeus.
Sua resposta a esse dilema foi usar formas populares de expressão
estruturalmente, não apenas ornamentalmente, em formas culturais de elite.
Começou por sistematizar os erros da fala cotidiana das classes populares
como meio de capturar um caráter social e psicológico, autenticamente,
nacional na própria língua falada no país. Trazendo aqueles erros para a
fala e escrita educadas, esperava ajudar na formação de uma língua literária
brasileira. Seu interesse na cultura popular como meio de entender o Brasil
envolveu o estudo sistemático do folclore e a recriação de formas populares
246 | Entrevista com o professor Randal Johnson

num nível erudito. Conhecendo e incorporando na sua obra o pensamento


popular, pensava que poderia ajudar a levar o Brasil a um autoconhecimento e
contribuir para sua passagem do nacionalismo, levando-a um nível universal
nas artes. Macunaíma, que oferece ao mesmo tempo um mito etiológico de
criação nacional e um mito escatológico de destruição nacional, representa a
culminação de sua pesquisa sobre folclore e formas populares de expressão.
Contudo, não é um romance popular, de fácil acesso. É um romance para
camadas educadas que têm a disposição cultural (no sentido de Bourdieu)
para entender o que o escritor está fazendo.

Lendo, recentemente, seu artigo Literatura e Cinema, diálogo e re-


criação, o Sr. se mostra um crítico à ideia insistente de “fidelidade da
adaptação cinematográfica à obra literária originária”, citando muitos
exemplos, como A hora da estrela, de Clarice Lispector, e Dona Flor e
seus dois maridos, de Jorge Amado. Gostaria que o Sr. falasse um pouco
sobre a ideia de “falso problema” em relação às críticas de muitas obras
literárias adaptadas ao cinema.

A fidelidade como exigência crítica ou a ideia de que um filme baseado


numa obra literária deve, de alguma forma, fazer o que a obra original faz
é um conceito há muito tempo descartado pela maioria dos estudiosos da
adaptação. É um falso problema por várias razões. Primeiro, cada obra de
arte deve ser avaliada em seus próprios termos; não em termos de sua adesão
ou a uma obra anterior, senão cria-se uma hierarquia valorativa entre a obra
original e a adaptação, quase sempre com favorecimento da primeira (na
realidade, nem se trata de adesão à obra original, mas às expectativas do
leitor daquela obra). O filme A Hora da Estrela (1985) é uma obra de Suzana
Amaral e, não, de Clarice Lispector, assim como a minissérie Capitu (2008)
e o filme Lavoura Arcaica (2001) são de Luiz Fernando Carvalho e, não,
de Machado de Assis ou Raduan Nassar. É claro que pode ser interessante
discutir as estratégias de adaptação, mas criticar um filme porque não é igual
à obra na qual se baseia não faz muito sentido. Esse tipo de exigência tende
a ignorar as diferenças entre os dois meios de expressão artística. Diz-se com
frequência que a diferença se reduz à distinção entre a língua escrita e a
imagem visual, mas isso é uma simplificação. Sim, um escritor ou escritora
lida com a linguagem verbal, com toda sua riqueza metafórica e figurativa,
mas um cineasta tem à sua disposição pelo menos cinco materiais diferentes
MORAES, F. R. de | 247

de expressão: imagens visuais, linguagem verbal, sons não verbais, música e


a própria língua escrita. Todos podem ser manipulados de diversas maneiras,
dependendo da intencionalidade expressiva do realizador. Não é, portanto,
apenas a diferença entre a língua escrita e a imagem visual. Longe disso.
Além do mais, a exigência de fidelidade tiraria a liberdade criativa do
cineasta; impediria, por exemplo, que Suzana Amaral focalizasse a história
dramática de Macabeia ao eliminar a voz do narrador masculino do romance
da Clarice, ou que Sérgio Bianchi, em Quanto vale ou é por quilo? (2005),
expandisse a sua adaptação do conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis
que trouxe a história de Machado para o presente e incluiu uma crítica ao
trabalho de certas ONGs.

A adaptação de Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos) seria outro bom
exemplo de respeito e diálogo de uma obra literária adaptada ao cinema?

Com certeza. O Nelson disse mais de uma vez que, com o filme,
queria ser fiel ao espírito do livro de Graciliano Ramos, mas também queria
que fosse uma contribuição aos debates que estavam acontecendo na época
sobre a reforma agrária. O filme segue a narrativa do romance, com alguns
deslocamentos, e acrescenta alguns elementos, como o som do carro de boi,
a festa de bumba-meu-boi e a cena da cadeia, que existe no romance de uma
forma muito mais reduzida. Aliás, no artigo mencionado antes, Literatura e
Cinema, Diálogo e Recriação, tento mostrar que a cena da cadeia, a festa de
bumba-meu-boi e o encontro com o grupo armado na estrada fazem parte
da leitura política que o Nelson faz do romance. Em primeiro lugar, desloca
o episódio do começo na narrativa (é o capítulo três, no romance) para perto
do final. No romance, Fabiano está na cadeia com um bêbado que falava alto
e alguns homens agachados em redor de um fogo. No filme há, apenas outro
prisioneiro na cela com Fabiano que não diz uma palavra. Quando não está
ajudando Fabiano, ele olha calmamente pela janela da cadeia. A luz tende a
iluminá-lo de cima, dando a impressão de que ele representa alguma forma
de salvação. Ao nascer do sol, o bando armado, ao qual ele pertence, entra
na cidade e o solta. O fazendeiro vê Fabiano e manda soltá-lo. Logo depois,
Fabiano e a família encontram o bando armado na estrada, e o jovem que
estava na cadeia com Fabiano lhe oferece o seu cavalo e o convida a se juntar
ao bando. O vaqueiro se recusa, sentindo, talvez, uma responsabilidade maior
por sua família.
248 | Entrevista com o professor Randal Johnson

No romance, Fabiano pensa que “entraria num bando de cangaceiros


e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo”. Não o faz,
porque “havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha”. O filme
além de sar essa opção a Fabiano, inclui uma imagem dele montado no
cavalo segurando um rifle. Mas o que é esse bando? Cangaceiros? De modo
geral, não possuem as características visuais de cangaceiros, cuja iconologia
específica já tinha sido codificada no cinema brasileiro quando Nelson fez
o filme. Não sabemos quem são, apenas que representam uma ameaça à
estrutura de poder da pequena cidade. Isso, junto à imagem de Fabiano
segurando uma arma, fortalece a ideia de resistência, que está mais latente
no romance.

O Sr. já publicou vários livros sobre o cinema brasileiro, inclusive, o


primeiro livro sobre o assunto publicado nos Estados Unidos, Brazilian
Cinema, organizado com Robert Stam. Como se deu essa colaboração e
como surgiram os outros livros?

Bob (Robert) e eu terminamos os respectivos doutorados, mais


ou menos, na mesma época: ele, em 1976, em Berkeley; eu, em 1977,
na Universidade do Texas. Ele foi contratado para lecionar em NYU
(Universidade de Nova Iorque), onde permanece até agora, e eu, em Rutgers
University (Universidade Estadual de Nova Jersey). Uma noite, depois da
exibição de um filme brasileiro em Nova York – não lembro qual –, Fabiano
Canosa nos apresentou. Bob e eu tínhamos a mesma ideia de organizar um
livro em inglês sobre o cinema brasileiro, por isso, resolvemos colaborar.
Trabalhamos muito no livro durante bem mais de um ano. Felizmente,
tivemos a cooperação generosa de muitos críticos, pesquisadores e cineastas
no Brasil e conseguimos organizar uma boa introdução ao cinema brasileiro
para o público estadunidense. O livro teve uma primeira edição em 1982,
uma segunda em 1988 e uma terceira, com dois ensaios adicionais, em 1995.
Depois disso, resolvi escrever um livro sobre alguns diretores do
Cinema Novo, e em 1984, saiu Cinema Novo x 5: Masters of Contemporary
Brazilian Film, que inclui capítulos sobre a obra de Joaquim Pedro de
Andrade, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos
Santos. O título, Cinema Novo x 5, é uma homenagem óbvia ao filme Cinco
Vezes Favela (1962).
MORAES, F. R. de | 249

Aí, quando fazia pesquisa para Cinema Novo x 5, comecei a tentar


entender a relação entre o cinema e o Estado no Brasil, o que levou à
publicação de The Film Industry in Brazil: Culture and the State, em 1987.
Alguns anos depois, em 1998, publiquei, na Inglaterra, um pequeno livro
sobre O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha
(1969). Além disso, publiquei um número considerável de artigos sobre
vários assuntos relacionados ao cinema brasileiro. Para quem se interessar,
a lista quase completa pode ser consultada na minha página do site do
Department of Spanish and Portuguese da UCLA (Universidade da Califórnia
em Los Angeles): (https://www.spanport.ucla.edu/person/randal-johnson/).

O Cinema Novo teria tido três fases: a primeira entre 1960 e 19646, a
segunda entre 1964 e 19687 e a terceira entre 1968 e 19738. Em 1967,
é criado o Instituto Nacional de Cinema (INC) e, em 1969, é criada
a Embrafilme, a maior empresa pública de distribuição de filmes da
América Latina. O filme Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade,
é exibido, justamente, em 1969. A escolha de Joaquim pela principal
obra do escritor (modernista) Mário de Andrade teria alguma relação
com o contexto político vigente? Existiu alguma relação entre o regime
militar e a valorização de Mário de Andrade, um expoente da literatura
nacional brasileira?

Toda a produção do Cinema Novo tem alguma relação com o


contexto político vigente. Vê-se isso, por exemplo, nos três principais filmes
do período anterior ao golpe de 1964 – Vidas Secas (1963), Deus e o Diabo
na Terra do Sol (1964), e Os Fuzis (1964) – que coincidiram com debates
sobre reformas estruturais e questões sobre a pobreza, a marginalização e
possibilidades de transformação social. Filmes como O Desafio (1966),
Terra em Transe (1967), e O Bravo Guerreiro (1968) têm tudo a ver com o
momento depois do golpe, e outros, como Macunaíma (1969), O Dragão
6 As imagens tinham cenários, predominantemente. rurais O objeto principal entre
os cineastas era despertar a consciência na população sobre a necessidade de transformações
sociais.
7 Inicia-se a ditadura militar. As imagens passam a ter cenários urbanos, passa a
existir censura no material a ser exibido.
8 Na terceira fase há um endurecimento da ditadura. Algo verificável com o AI-5,
ato institucional que suspendia liberdades individuais, como Habeas Corpus. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm. Acesso: 27 de abril de 2021.
250 | Entrevista com o professor Randal Johnson

da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) e Azyllo Muito Louco (1970)


partem para uma abordagem mais alegórica num momento que era mais
difícil dizer as coisas abertamente. Como disse antes, em 1966, Joaquim
Pedro havia dito que o Cinema Novo podia se beneficiar de uma reavaliação
do Modernismo à luz da situação atual que viviam. Disso, saiu Macunaíma
e outros filmes, inclusive O Homem do Pau-Brasil, filme que Joaquim Pedro
lançou em 1982.

No seu livro, Cinema Novo X 5, o Sr. aduz que “a semente do cinema novo”
teria vindo com dois congressos: um em 1952 (em São Paulo) e outro em
1953 (no Rio de Janeiro). Gostaria que o Sr. falasse um pouco sobre a im-
portância desse momento para o Cinema Novo (ainda pretérito ao Cinema
Novo propriamente dito).

Acho importante lembrar que quase sempre há perspectivas diferentes


sobre os rumos do cinema no Brasil. Nesses dois congressos, os participantes
discutiram alternativas para diversos aspectos da produção cinematográfica
no país. Os dois congressos foram organizados ainda na era de estúdios: a
Atlântida, no Rio de Janeiro, produzia uma chanchada atrás da outra e a Vera
Cruz, em São Paulo, tentava produzir filmes sérios com uma qualidade igual
a do cinema europeu. Alguns cineastas e críticos, como Alex Viany, Nelson
Pereira dos Santos, Rodolfo Nanni e Carlos Ortiz, entre outros, não estavam
satisfeitos com a situação existente, rejeitavam tanto a chanchada carioca quanto
os filmes mais cosmopolitas da Vera Cruz, a favor de um cinema baseado em
questões e tradições nacionais. Nelson Pereira dos Santos chegou a apresentar
um trabalho com o título O problema do conteúdo no cinema brasileiro. Além de
diferenças em termos de conteúdo, também discutiam o modo de produção do
cinema nacional: gostariam de ter acesso aos equipamentos dos estúdios, mas
sem se submeter às exigências deles. Em outras palavras, queriam a liberdade de
fazer os filmes que quisessem ao invés dos que os estúdios queriam. Isso já era
um passo na direção de um cinema independente e um cinema de autor, que
são características do Cinema Novo. Também falavam da necessidade de usar
equipes pequenas com orçamentos mais baixos, além de muitos outros assuntos
relacionados aos problemas que a indústria enfrentava. Maria Rita Galvão (O
desenvolvimento das ideias sobre cinema independente) e José Inácio de Melo Souza
(Congressos, patriotas e ilusões) têm estudos importantes sobre os congressos, e eu
abordo o assunto brevemente no terceiro capítulo de The Film Industry in Brazil.
MORAES, F. R. de | 251

Quais seriam as principais preocupações do Cinema Novo?

Cacá Diegues disse várias vezes que o Cinema Novo queria apenas três
coisas: mudar o cinema brasileiro, mudar o Brasil e mudar o mundo. Vou
deixar de fora o desejo de mudar o mundo, mas, de fato, o Cinema Novo
queria mudar o Brasil e o cinema brasileiro. Os participantes do movimento
não estavam interessados no tipo de filme que estava sendo feito no país, nem
pelos filmes europeizados da Vera Cruz, nem pelas chanchadas da Atlântida.
Queriam fazer um cinema social e político ao invés de um cinema comercial.
A ideia era explorar, de uma perspectiva crítica, as contradições do país – a
pobreza, a fome, a marginalização, a violência – e assim contribuir para os
debates que estavam ocorrendo no país, naquela época. Além desse aspecto
político, também queriam explorar novas linguagens cinematográficas e
não aderirem às convenções do cinema comercial. Acharam modelos no
Neorrealismo Italiano (a ideia de filmar nas ruas, com equipes pequenas, e
orçamentos baixos) e na Nouvelle Vague francesa (o conceito do cinema de
autor), mas cada diretor seguia suas próprias preferências. Por isso, Raquel
Gerber podia falar, em relação ao movimento, de uma “ortodoxia nuclear”
(uma visão crítica sobre a realidade brasileira) e de uma “heterodoxia
expressiva” (em termos de estilos cinematográficos). De certa forma, é
isso que tento mostrar no meu livro sobre o Cinema Novo, focalizando
as distintas trajetórias, preocupações e abordagens estilísticas dos cinco
escritores escolhidos.

A falta de recursos financeiros como realidade do cinema levou a uma


estratégia cinematográfica conhecida como: transformação da “escassez
em significante9”. O que significa essa expressão?

Transformar “escassez em significante” é uma expressão usada por


Ismail Xavier para descrever a estratégia de alguns filmes da primeira fase
do Cinema Novo. Não tendo a sua disposição financiamentos que os
igualariam ao cinema internacional, imbuíram a relativa pobreza dos seus
meios em elementos significativos do filme. O uso da câmera na mão e da
cinematografia em Vidas Secas seriam exemplos perfeitos: com a imagem
instável que acompanha o caminhar da família de retirantes ou o céu quase
branco que representa a aspereza e dureza da região. Isso tem sua expressão
9 Glauber fala também sobre a estética da forma.
252 | Entrevista com o professor Randal Johnson

teórica em Uma Estética da Fome, de Glauber Rocha (1965), ou, em outro


contexto, no manifesto Por um Cine Imperfecto, do cubano Julio García
Espinosa (1970).

De forma resumida, como foi a evolução do Cinema Novo e a aliança


entre os cineastas do Cinema Novo com a Embrafilme?

Apesar dos baixos orçamentos, o financiamento sempre foi


problemático para o Cinema Novo. Antes do golpe, alguns filmes
conseguiram financiamento do Banco Nacional de Minas Gerais, de
José Luiz de Magalhães Lins, outros, da Comissão de Auxílio à Indústria
Cinematográfica (CAIC), no de Estado de Guanabara, então sob o governo
de Carlos Lacerda. De modo geral, os cineastas viam algum nível de apoio
estatal essencial, assim como se via em, praticamente, todo o mundo. No
entanto, nem todos os cinemanovistas apoiavam a criação do Instituto
Nacional do Cinema por um decreto baixado pelo presidente militar
Humberto Castello Branco, em 1966. Ainda assim, praticamente todos
acabaram participando dos seus programas de apoio. O mesmo pode ser dito
com a criação da Embrafilme, em 1969. O Cinema Novo, eventualmente,
teria um peso importante na Embrafilme, particularmente, durante a gestão
do diretor Roberto Farias entre 1974 e 1979.

Muitos foram os filmes financiados pela Embrafilme. Gostaria que o Sr.


falasse um pouco sobre a importância, em termos e em números, dessa
empresa para a viabilização de produções cinematográficas brasileiras,
apesar de tantas críticas. Os cineastas financiados pela Embrafilme eram
proibidos de se expressarem contra o regime. Havia algum tipo de cen-
sura ou métodos de se impedir críticas ao governo? O filme Os cafajestes
seria um bom exemplo? Quais outros o Sr. destacaria?

O papel da Embrafilme era ajudar no desenvolvimento do cinema


nacional, através de vários programas de apoio à produção e à distribuição.
Não tinha a responsabilidade de censura, propriamente dita, que era uma
função, naquela época, da Divisão de Censura de Diversões Públicas,
que estava vinculada ao Ministério da Justiça. Que eu saiba, portanto, a
Embrafilme não censurou nenhum filme. Poderiam ter acontecido pressões
internas a respeito de um filme ou outro, mas censura como tal, não. Houve
MORAES, F. R. de | 253

casos em que filmes foram impedidos de circular. Um exemplo é Iracema:


Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky e Orlando Senna, que dirigiram
em 1975. Dado o tipo de película usada, revelaram o filme num laboratório
na Alemanha, onde seria exibido na televisão. Devido ao fato de não ter sido
revelado no Brasil, não se enquadrava, tecnicamente, na definição oficial
de “filme brasileiro” e não podia ser exibido no país como tal. Também
não podia ser exibido como filme estrangeiro, porque, obviamente, era
brasileiro. Essa interdição burocrática, que na realidade era uma forma
velada de censura, durou até 1980, quando ganhou o Festival de Brasília
e foi distribuído pela própria Embrafilme. Outro exemplo notório é o caso
de Pra Frente Brasil (1982), dirigido por Roberto Farias, que havia sido
presidente da Embrafilme entre 1974 e 1979. O filme ganhou o prêmio de
Melhor Filme no Festival de Gramado em 1982, mas foi proibido dentro
de uma semana. Na época, o presidente da Embrafilme, que coproduziu o
filme, teve que renunciar. Foi liberado sem cortes depois das eleições, que
ocorreram no segundo semestre daquele ano. O que acontece com a censura
é o seguinte: o cinema é uma atividade cara, e a ideia de produzir um filme
com a possibilidade de perder o investimento por causa de censura pode levar
a uma autocensura, evitando certos assuntos ou abordagens potencialmente
problemáticos.

Sobre a segunda fase do cinema novo (1964-1968), haveria um o par-


adoxo entre o período (de extrema repressão militar) e, concomitante-
mente, o fortalecimento do Cinema Novo, enquanto movimento. Em
segundo lugar, uma transição do objeto e foco. O Brasil deixou de ser
rural e passou a ser urbano. Isso teria ficado claro nos filmes da segunda
fase?

Roberto Schwarz publicou na França, em 1970, um ensaio essencial


para entender esse período: Cultura e política, 1964-69, incluído depois no
livro O Pai de Família e outros estudos. Simplificando, entre outras coisas,
o argumento de Schwarz é que nessa fase inicial da ditadura, a esquerda
manteve hegemonia no campo cultural, incluindo, naturalmente, o cinema.
Apesar da censura e do aumento na repressão, entre 1964 e 1968, foram
lançados filmes como Menino de Engenho (1965), O Desafio (1966), O Padre
e a Moça (1966), A Grande Cidade (1966), Terra em Transe (1967), Garota
de Ipanema (1967), A Falecida (1968), O Bravo Guerreiro (1968), e Fome
254 | Entrevista com o professor Randal Johnson

de Amor (1968), entre outros, inclusive documentários importantes como


Viramundo (1965). Enfim, os cinemanovistas continuaram produzindo
nesse período, embora as condições políticas fossem mais difíceis que antes
do golpe (e não devemos esquecer-nos da interrupção, pelos militares,
do filme Cabra Marcado para Morrer em 1964). As coisas ficaram ainda
mais complicadas depois do AI-5 em dezembro de 1968. Pode-se ver pelos
próprios títulos que esse período ou fase é bem mais urbano que rural.

Em seu livro Cinema Novo x 5, o Sr. revela o seguinte senso comum,


entre os cineastas de diferentes orientações: “Sem o apoio financeiro
e proteção do Estado brasileiro não seria possível suportar o poder do
cinema estrangeiro no mercado nacional”10. Tal realidade escrita e refle-
tida, em 1982, ainda se mostra uma realidade contemporânea?

A grande maioria das indústrias cinematográficas do mundo depende


de algum tipo de apoio estatal, seja ele direto ou indireto, e isso em grande
parte pela ocupação de mercados nacionais pelo cinema estadunidense. A
forma do apoio pode variar muito, desde políticas de exibição compulsória
a diversas formas de subsídio, subvenção, prêmios, coprodução, apoio à
comercialização, incentivos fiscais, assim por diante. No Brasil, a primeira
lei de exibição compulsória data dos anos 30, e foi se expandindo muito
lentamente até chegar a 140 dias por ano em 1980, isto é, cada cinema no
país era obrigado a exibir filmes brasileiros 140 dias por ano. O apoio estatal
aumentou depois da criação do Instituto Nacional do Cinema, em 1966, e
da Embrafilme, em 1969, embora houvesse alguns tímidos programas de
apoio antes disso. Os vários programas de financiamento evoluíram até a
extinção da Embrafilme por Fernando Collor, em 1990, baseado na sua
agenda neoliberal e na ideia de que o estado não tem papel a desempenhar
em relação à cultura (uma ideia que está se repetindo hoje, com muito
mais antagonismo e virulência). O apoio foi se reconstruindo, depois do
impeachment de Collor, com a Lei Rouanet e, mais importante, com a Lei
do Audiovisual e seu programa de incentivos fiscais. Com isso, o apoio foi
se modificando e expandindo, com o Fundo Setorial do Audiovisual, os
Funcines e outros programas.
Gostaria de repetir que, praticamente, todas as indústrias
cinematográficas do mundo recebem algum tipo de apoio governamental,
10 Minha tradução de: RANDAL JOHNSON. Cinema novo x 5, p 12.
MORAES, F. R. de | 255

e o Brasil não é exceção. Lamentavelmente, parece que o atual governo está


tentando sabotar o cinema brasileiro pela asfixia da Ancine, ameaças de
confisco do Fundo Setorial e até pela paralisação da Cinemateca Brasileira
em São Paulo. É um descaso não apenas pelo cinema, mas também pela
cultura
No livro The Film Industry in Brazil tentei traçar o desenvolvimento
da indústria cinematográfica e, especialmente, das relações entre o cinema e
o Estado. O livro foi publicado em 1987, portanto, antes da crise que levaria
ao fechamento da empresa depois da posse de Collor, em 1990.

De uma forma geral, o Estado brasileiro, historicamente, se mostrou


“patrono, fiador, regulador, repressor e, às vezes, produtor” do cinema
brasileiro. Gostaria que o Sr. falasse um pouco dessa realidade e sobre
esse “jogo complexo de interesses (internos e externos)” nessa relação
Estado e cinema.

Sempre há diversos interesses em jogo quando se trata de apoio estatal


à produção cinematográfica. Fala-se que a criação do Instituto Nacional do
Cinema, em 1966, surgiu dos esforços de um grupo “universalista”, que se
posicionava em oposição a um grupo nacionalista (o Cinema Novo). Há
divisões entre aqueles que favorecem um cinema cultural e independente e
há aqueles que preferem um cinema comercial. Em certa época, essa divisão
foi descrita como a diferença entre o “cinemão” e o “cineminha”, embora,
na realidade, seja uma falsa dicotomia. O interessante é tentar entender essas
diferenças e pensar no seu impacto sobre a produção.
Quando estava fazendo pesquisa para The Film Industry in Brazil:
Culture and the State (A indústria cinematográfica no Brasil: Cultura e o
Estado), que saiu em 1987, comecei a me interessar pela relação entre os
intelectuais/artistas modernistas e o Estado, em grande parte, por causa da
leitura de Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945), do sociólogo
Sérgio Miceli. Elaborei um projeto de pesquisa com o título The Social
Relations of Brazilian Literature (As relações sociais da literatura brasileira).
A ideia era examinar a dinâmica política da produção literária no Brasil
durante um período crucial de sua história (1922-1945), através da análise
das trajetórias intelectuais e capital simbólico de quatro escritores: Cassiano
Ricardo (1895-1974), Mário de Andrade (1893-1945), Octávio de Faria
(1908-1980) e Graciliano Ramos (1892-1953). Esses escritores representam
256 | Entrevista com o professor Randal Johnson

duas gerações literárias – uma que surgiu nos anos 20, outra, nos anos 30
– e ocupam quatro posições diferentes no campo literário: dois na direita
(Ricardo e Faria) e dois na esquerda (Ramos) ou centro-esquerda (Andrade).
Os quatro também levavam vidas públicas ativas, trabalhando com agências
governamentais, a imprensa e/ou partidos políticos (fariam menos que os
outros). Portanto, suas respectivas posições no campo são, eminentemente,
representativas de constelações mais amplas de escritores e intelectuais.
Minha ideia era escrever um livro sobre o assunto, mas a pesquisa nem
sempre segue uma linha reta. Publiquei artigos sobre os quatro escritores,
além do que seria o capítulo introdutório do livro, que saiu na Revista USP,
numa tradução de Antônio Dimas (A dinâmica do campo literário brasileiro,
1930-1945), e ensaios sobre assuntos relacionados ao projeto. Mas outras
coisas interferiram, e não cheguei a terminar o livro. Por exemplo, em
meados dos anos 80, criei, junto com outros colegas, um grupo de estudos
sobre a relação entre cultura e Estado. O primeiro livro que lemos foi A
Reprodução, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Aí comecei a me
interessar pela obra de Bourdieu, e, graças ao contato com Sérgio Miceli,
que foi à Universidade da Flórida como professor visitante, acabei passando
vários meses em Paris acompanhando as discussões do grupo de Bourdieu
na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Numa reunião com
Bourdieu, sugeri a organização de um livro que reunisse os seus ensaios
principais sobre literatura e arte, que estavam dispersos em revistas na
França e outros países. Ele gostou tano da ideia que o resultado foi o livro
The Field of Cultural Production: Essays on Art and Literature (O campo de
produção cultural: ensaios sobre arte e cultura), que saiu em 1993. Servi
como organizador, tradutor e editor de tradução do livro, além de escrever
uma longa introdução. Depois disso, traduzi a parte de Bourdieu, no seu
longo diálogo com o artista alemão, Hans Haacke, que foi publicado em
1995 com o título Free Exchange (Intercâmbio livre), além de servir como
tradutor e editor de tradução para outro livro de Bourdieu, Practical Reason:
On the Theory of Action (Razão prática: sobre a teoria da ação), que saiu em
1998. Também, em mais um desvio do projeto iniciado, comecei a ver os
filmes de Manoel de Oliveira, o que resultou num livro publicado em 2007.
MORAES, F. R. de | 257

Essa questão, de alguma forma, conecta-se com aquilo que o Sr. levan-
tou nos artigos: A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945) e
The Institutionalization of Brazilian Modernism11. Nesses ensaios, o Sr.
fala que os textos literários constituiriam uma rede de relações sociais
vinculadas a relações de poder12. O que é exatamente isso?

Cada campo de atividade tem suas hierarquias baseadas nos valores


específicos daquele campo. No campo econômico, esse valor seria capital
econômico; no campo político, seria capital político, e assim por diante.
No campo de produção literária, o capital econômico é, muitas vezes, um
fator secundário; primário é o que Bourdieu chama de capital simbólico,
ou ainda, o reconhecimento e prestígio que um determinado escritor tem
no campo, e isso determina a estrutura de poder (simbólico) no campo.
Por que alguns escritores ou escritoras permanecem, enquanto outros, não?
Por que alguns são publicados pelas editoras mais importantes, enquanto
outros, não? Por que alguns são resenhados pelos críticos mais importantes,
enquanto outros, não (e o que determina a importância desses críticos)? Por
que alguns fazem parte do cânone, enquanto outros, não? Porque existe uma
rede de relações sociais – as instâncias de consagração – que eleva algumas
obras ou escritoras e rebaixa outras, mesmo que seja apenas a partir da
omissão de, simplesmente, não falar sobre a obra. Hoje a universidade tem
um papel importante nesse processo; antes, eram os críticos de jornal. Nem
sempre é a questão da qualidade da obra que importa. Nos anos 30, o campo
literário estava altamente politizado, e os comentários críticos, muitas vezes,
tinham mais a ver com a posição política do escritor do que com a qualidade
da obra. Às vezes, nem sequer reconhecem certas obras ou escritores como
legítimos dentro do campo. Cito três exemplos no artigo A dinâmica do

11 Nesse ensaio, “a literatura e a prática literária não são totalmente autônomas,


nem, inteiramente, autocontidas (...) constituiriam sistemas dinâmicos ou redes de relações
sociais que estão intimamente ligadas a relações frequentemente sutis de autoridade e poder”
(JOHNSON, Randal. The Institutionalization of Brazilian Modernism. University of Florida,
1990, p. 5-23..
5 (Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:918221/. Acesso em
24 de fevereiro de 2021.)
12 “(...) a literatura e os textos literários não são totalmente autônomos, nem
inteiramente autossuficientes (...), mas constituem uma rede dinâmica de relações sociais
intimamente vinculada a relações sutis de autoridade e de poder” (JOHNSON, Randal. A
dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945). n. 26, 1995. 50 anos de final de Segunda
Guerra, p. 164-181, p. 166).
258 | Entrevista com o professor Randal Johnson

campo literário, que teria sido o primeiro capítulo do livro não terminado,
um de Lúcio Cardoso, outro de Marques Rebelo e o terceiro de Jorge
Amado. Escrevendo sobre Em Surdina, de Lúcia Miguel-Pereira, Amado diz
o seguinte: “Espero que a Srta. Lúcia Miguel-Pereira [...] decida-se a escrever
romances e deixe para trás suas ideias preconcebidas e suas explicações, que
são ótimas em artigos, mas inúteis nas páginas de um romance”. Enfim,
através do estudo dos quatro escritores que mencionei, minha ideia era
mapear as estruturas de poder do campo literário nos anos 30.

Segundo o Sr., os críticos que canonizaram o movimento modernista


teriam rejeitado as tendências menos progressistas desse movimento13.
Quais seriam as possíveis motivações, a seu ver, para essa negação ou
rejeição?

Falo um pouco sobre isso no artigo A Institucionalização do


Modernismo Brasileiro. Há várias razões para isso, especialmente, a partir da
racha que houve dentro do movimento, em 1926, com a criação do Partido
Democrático, em São Paulo, em oposição ao Partido Republicano Paulista.
Escritores como Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado
estavam afiliados ao PRP (Partido Republicano Paulista); Mário de Andrade,
ao PD (Partido Democrático). Na década seguinte, foram membros do PD
que criaram o Departamento de Cultura em São Paulo, além da própria
USP, que é talvez o centro principal para o estudo do Modernismo no país.
É claro que a qualidade literária faz parte, mas não há dúvida que a posição
política dos escritores de direita também tem muito a ver com isso.

O senhor, em recente entrevista, disse que, ao ver Viagem ao Princípio


do Mundo (de Manoel de Oliveira), Terra Estrangeira (de Walter Salles)
e o Céu de Lisboa (de Wim Wenders), teria surgido o interesse pelo cin-
ema português . Desse interesse, nasce o livro Manoel de Oliveira pela
editora da Universidade de Illinois (2007). Manoel de Oliveira era um
cineasta bastante “original, não ortodoxo (...). Em termos de criativi-
dade cinematográfica ele seria muito mais jovem que muitos cineastas
com metade de sua idade”14 (tradução livre). Ao mesmo tempo, Manoel
13 Due to the complex “’homogenizing’ process of canon formation, many critics
have tended to ignore or simplistically dismiss less-than-progressive tendencies of Modernism”.
14 RANDAL JOHNSON, Manoel de Oliveira, p. 2.
MORAES, F. R. de | 259

era, extremamente, católico e colocava um pouco de sua religiosidade


em seus filmes, como a Divina Comédia (de 1991). Gostaria que o sen-
hor falasse um pouco sobre a possível dualidade dessa grande figura.

Sim, Manoel de Oliveira era católico, mas nunca foi dogmático ou


fez proselitismo nos seus filmes. Aborda a religião em alguns filmes – O Acto
da Primavera (1943), Le Soulier de Satin (1985), Mon Cas (1986), Non,
ou a Vã Glória de Mandar (1990), Palavra e Utopia (2000), entre outros
–, mas geralmente para mostrar as distâncias enormes entre ideais cristãos
e o comportamento humano. A Divina Comédia (1991), que não é uma
adaptação de Dante, é um bom exemplo. Embora a Bíblia seja uma das
fontes do filme, há várias outras: Dostoievsky (Crime e Castigo, Os Irmãos
Karamazov), Nietzsche (O Anti-Cristo) e José Régio (A Salvação do Mundo).
De acordo com Oliveira, todos os textos usados lidam de alguma maneira
com o problema do pecado e a possibilidade de redenção. A história se
passa num manicômio, e quase todos os personagens são pacientes, além
de representarem figuras bíblicas, literárias ou filosóficas. O filme não
tem um enredo propriamente dito, mas avança por uma série de longos
diálogos, normalmente entre pares de personagens (por exemplo, Sonya e
Raskolnikov, o profeta e o filósofo), ao mesmo tempo que reconstrói cenas
de suas fontes, como o Jardim de Éden, a Última Ceia, a ressurreição de
Lázaro, os assassinatos de Raskolnikov, e assim por diante. Nesse sentido,
é um filme bastante complexo. Abre com a questão de transgressão (Adão
e Eva e a maçã) e termina com o arrependimento e pedido de redenção de
Raskolnikov. Como em muitas outras obras de Oliveira, o filme oferece
mais questões que respostas.
Talvez, por causa do seu catolicismo, Manoel de Oliveira foi um
cineasta profundamente ético. Ele fala da ética em múltiplas ocasiões,
em entrevistas e em suas próprias escritas. Numa longa entrevista que
concedeu a Antoine de Baecque e Jacques Parsi (publicado como livro
com o título Conversas com Manoel de Oliveira), ele diz o seguinte: “Tenho
uma deontologia para o cinema em geral e para cada filme em particular.
Esforço-me por me manter no interior desta deontologia, e creio que é o que
estabelece a unidade, o equilíbrio, o sentido e a identidade de cada filme”.
O termo “deontologia” deriva da palavra grega para “dever”, e pode
ser definido como “A ciência do dever, ou o ramo do conhecimento que
260 | Entrevista com o professor Randal Johnson

lida com obrigações morais”15. Concepções de deontologia focalizam uma


obrigação de agir de acordo com algum princípio familial, social, legal ou
religioso – e, não, baseado em consequências ou teleologia – como a base de
valor moral. A posição deontológica de Oliveira deriva, a meu ver, de suas
reflexões sobre o mundo moderno, formadas, pelo menos em parte, de uma
combinação de sua formação religiosa e, talvez, de uma noção mais kantiana
de ética e de uma reflexão intensa sobre o lugar e a natureza do cinema em
seu contexto social e estético mais amplo.
Oliveira expressa uma postura profundamente ética em sua discussão,
em múltiplos filmes, de arte e vida, vida e morte, a relação entre ideais
religiosos e morais, a realidade social, o bem e o mal, amor e desejo e a
possibilidade de descobrir a verdade da existência dos seres humanos. Em
alguns momentos, o seu posicionamento ético assume uma coloração
religiosa, em outros, é puramente secular. Os seus filmes levantam muitas
questões, mas, raramente. oferecem respostas, e nunca são prescritíveis. Ao
contrário, apresentam situações envolvendo a conduta humana em escalas
individuais, nacionais e globais para provocar reflexão no espectador. Ao
mesmo tempo, questionam convenções cinematográficas tradicionais ou
mainstream, que, a seu ver, impedem o tipo de reflexão que Oliveira desejava.

Ainda sobre Manoel de Oliveira e, especificamente, sobre Francisca. Go-


staria que o Sr. falasse um pouco sobre a importância do produtor Paulo
Branco para obra de Manoel?

Paulo Branco foi essencial para a carreira de Oliveira. Quando


o cineasta lançou Amor de Perdição, em Portugal, foi o maior fracasso. É
que ele filmou duas versões, uma para o cinema, outra para a televisão; as
duas em 16mm e em cores. A versão para a televisão foi exibida em seis
segmentos no outono de 1978, mas em preto e branco. O ritmo lento, o
enquadramento teatral, o estilo de atuação e o uso de tableaux vivants faziam-
no inapropriado para a televisão, tornando-o severamente criticado. Um
crítico chegou a dizer que representava um exemplo de como não adaptar
o romance ao cinema. No ano seguinte, Paulo Branco lançou o filme na
sala Action République, em Paris, onde teve o maior sucesso, estabelecendo a
fama de Oliveira como um grande cineasta moderno. Le Monde até noticiou
15 Minha tradução de: “the branch of ethics concerned with the nature of duty and
obligation” (Oxford English Dictionary)
MORAES, F. R. de | 261

o lançamento na capa do jornal. Depois disso, Paulo Branco produziu todos


os filmes de Oliveira, desde Francisca (1981) até O Quinto Império (2004).
Em outras palavras, produziu 21 dos 27 longas que o cineasta fez depois de
Amor de Perdição. O fato conhecido mais curioso é que, quando Oliveira
ganhou fama internacional com Amor de Perdição, já tinha 71 anos.

No seu currículo, há vários livros que ainda não comentamos: Tropi-


cal Paths: Essays on Modern Brazilian Literature (1993), Black Brazil
(1999), A Companion to Latin American Cinema (2017) e Axé Bahia:
The Power of Art in an Afro-Brazilian Metropolis (2018). O que pode
nos dizer sobre esses livros?

Tropical Paths é uma coletânea de ensaios que organizei em


homenagem ao meu orientador de tese, Fred P. Ellison. Inclui contribuições
de estudiosos que o conheciam bem, muitos dos quais tinham sido
professores visitantes da Universidade do Texas: Haroldo de Campos, João
Alexandre Barbosa, Affonso Romano de Sant’Anna, Walnice Nogueira
Galvão, Massaud Moisés, Fábio Lucas e Silviano Santiago, além de colegas
e orientados dele. Os outros são livros coorganizados. Black Brazil surgiu
de um simpósio que Larry Crook e eu organizamos na Universidade da
Flórida, em 1993. Benedita da Silva fez o keynote16. Também participaram
pessoas como Antônio Pitanga, João Jorge Santos Rodrigues (do Olodum),
Carlos Hasenbalg, Jeferson Bacelar, Anani Dzidzienyo, Antônio Risério, e
Maria José do Espírito Santo França, entre outras. Como indica o título, A
Companion to Latin American Cinema é uma coletânea de ensaios sobre o
cinema latino-americano contemporâneo. Foi iniciativa de Stephen Hart
da University College London (Universidade Pública de Londres). Ele me
convidou, junto com Maria Delgado, da Universidade de Londres, para
ajudá-lo na organização. Finalmente, Axé Bahia17 surgiu da exibição do
mesmo nome que ocorreu no Museu Fowler, da UCLA, entre setembro de
2017 e abril de 2018. A iniciativa foi do curador para América Latina do
Fowler, Patrick Polk, e éramos quatro curadores: o Patrick, a historiadora
Sabrina Gledhill, o historiador da arte Roberto Conduru e eu. A exibição
incluiu artistas como Goya Lopes, Ayrson Heráclito, Caetano Dias, Nádia
Taquary, Jota Cunha, Mestre Didi, Rubem Valentim, Pierre Verger, Carybé,
16 Minha tradução: discurso de abertura.
17 Resenha disponível em: https://muse.jhu.edu/article/725754/pdf
262 | Entrevista com o professor Randal Johnson

Mário Cravo Neto, José Adário dos Santos (Zé Diabo), Éder Muniz, entre
vários outros. O livro, que é muito bonito, com muitas ilustrações, conta
com contribuições sobre a arte baiana, enfatizando os artistas presentes na
exibição. Levou-nos quatro anos – várias viagens à Bahia e muitas horas de
discussões sobre quem e o que incluir – para organizar a exposição, mas
valeu a pena.

Quais são seus planos, quando o mundo voltar ao normal?

Aposentei-me de UCLA em 2018. Gosto muito de poder me levantar


de manhã e fazer o que quiser, sem compromisso, sem prazo. No entanto,
me comprometi a escrever um livro sobre o cinema brasileiro, desde o
período mudo até o presente, para uma editora na Inglaterra. Será um tipo
de “companion volume”18. Há alguns outros possíveis projetos no ar, mas
nada concreto.
Entrevista realizada em: 14/03/2021.

Bibliografia

CASTAÑEDA, David. Axé Bahia: The Power of Art in an Afro-Brazilian


Metropolis (review). The MIT Press. Volume 52, Number 2, p. 80-81,
2019. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/725754/pdf

DIMAS, Antonio. Sobre letras e Cinema: entrevista com Randal Johnson.


Teresa revista de Literatura Brasileira [16 ]; São Paulo, p. 278-285, 2015

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema: Macunaíma, do modernismo


na literatura ao cinemo novo. São Paulo: TA Queiroz, 1982.

JOHNSON, Randal. Cinema Novo x 5 Masters of Contemporary Brazilian


Film (Latin American Monograph series). University of Texas Austin Press,
1984. Edição do Kindle.

JOHNSON, Randal. The Film Industry in Brazil: Culture and the


State. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1987. Disponível em:

18 Minha tradução: volume complementar.


MORAES, F. R. de | 263

https://digital.library.pitt.edu/islandora/object/pitt%3A31735057894150/
viewer#page/34/mode/2up

JOHNSON, Randal. Manoel de Oliveira. Champaign/Urbana: University


of Illinois Press, 2007.

JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema, Diálogo e Recriação: o


caso Vida Secas. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/2029595/mod_resource/content/2/Adapta%C3%A7%C3%A3o.pdf.
Acesso em: 30 de outubro de 2020.

JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-


1945). 50 anos de final de Segunda Guerra, n. 26, , p. 164 – 181, 1995.

JOHNSON, Randal. As relações sociais da produção literária. Revista


de crítica literária Latino-Americana, ano XX, n.º40. Lima-Berkeley, p.
189-203 /,2º semestre de 1994. Disponível em: https://www.jstor.org/
stable/4530766?seq=1

JOHNSON, Randal. The institutionalization of Brazilian Modernism.


Brasil/Brazil: A Journal of Brazilian Literature, Brown University, 1990,
p. 5-23, 1990.

Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/item/


bdr:918221

JONHSON, Randal. Authoritarian Fiction: Octávio de Farias’s Tragédia


Burguesa. Ideologies and Literature (journal of hispanic and lusobrazilian
literatures), 3 vol Minneapolis, Univ. of Minnesota, n.1, spring, 1988.

JOHNSON, Randal. Art and Intention in Mario de Andrade. In: Homenagem


a Alexandrino Severino - Essays on the Portuguese Speaking World. Host
Publications, Inc Austin Texas, 1993. Disponível em: https://books.google.
com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=eUljuF4noKoC&oi=fnd&pg=PA167&
dq=Art+and+Intention+in+M%C3%A1rio+de+Andrade&ots=fgn0aLN
ncA&sig=VW8yi8_mLEFIt8YR5mcHiwL9xbc#v=onepage&q=Art%20
and%20Intention%20in%20M%C3%A1rio%20de%20Andrade&f=false
264 | Entrevista com o professor Randal Johnson

JOHNSON, Randal. Graciliano and Politics in Alagoas In: Graciliano Ramos


and the Making of Modern Brazil. Memories, Politics and Identities.
VILLARES, Lucia e BRANDELERO, Sara (orgs). University of Wales
Press, 2017. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-
BR&lr=&id=T-yVDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA21&dq=Randal+Grac
iliano+and+politics+in+alagoas&ots=_RFVItivmK&sig=C62z5Vsh_g-
kZDEtQDzadTfFeoM#v=onepage&q=Randal%20Graciliano%20
and%20politics%20in%20alagoas&f=false

JONHSON, Randal, POLK, Patrick Arthur, Patrick CONDURU,


Roberto, GLEDHILL, Sabrina. Axé Bahia: The Power of Art in an Afro-
Brazilian Metropolis. Fowler Museum at UCLA, 2018.

JOHNSON, Randal. Notes On A Conservative Vanguard: The Case


of Verde-Amarelo/Anta. Hispanic Studies Series, v. 4, p. 31-42, 1988.

VILLARES, Lucia e BRANDELERO, Sara. Graciliano Ramos and the


Making of Modern Brazil. Memories, Politics and Identities. University
of Wales Press, 2017.

Como citar este artigo

MORAES, F. R. de. Entrevista com o professor Randal Johnson.


Fragmentum, Santa Maria, p. 239-264, 2022. Disponível em:
10.5902/2179219465482. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
ISSN 1519-9894

Fragmentum, Santa Maria, n. 59, p. 265-271, jan./jul. 2022 • https://doi.org/10.5902/2179219470419


Submissão: 18/05/2022 • Aprovação: 04/09/2022
Resenha

REDES DE PESQUISA NO ACONTECIMENTO DO V


SEDISC

FLORES, Giovanna B.; GALLO, Solange L. M.; NECKEL, Nádia R.


M.; DALTOÉ, Andréia S.; SILVEIRA, Juliana; MITTMANN, Solange;
LAGAZZI, Suzy; PFEIFFER, Claudia C.; ZOPPI-FONTANA, Mónica G.
(Orgs.) Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. Vol. 5. Campinas,
SP: Pontes Editores, 2021.

Andréia da Silva Daltoé (UNISUL)1


Claudia Pfeiffer (UNICAMP)2

em la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas
Paulo Leminski (2013, p. 93)

Estar no terreno da Análise de Discurso de linha materialista (AD)


é comprometer-se com a luta de que fala Leminski (2013) em epígrafe e
com as demais lutas que daí derivam. É deste lugar, desta implicação e deste
afetamento de que falamos.

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – PPGCL


da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Doutora em Letras (2011) pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Líder do Grupo de Pesquisa Relações de
Poder, Esquecimento e Memória (GREPEM- CNPq/UNISUL) e do Coletivo Pró-Educação
(Tubarão/SC); Integrante do Grupo de Estudos Pecheutianos (GEP-CNPq/Unipampa);
Email: andreiadaltoe@gmail.com
2 Pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp e professora do
Programa de Pós-Graduação em Linguística do IEL/UNICAMP; Doutora em Linguística
(2000) pela UNICAMP; líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Políticas de Saúde,
junto com Carlos Correa da FCM/UNICAMP; email: claupfe@gmail.com

Artigo publicado por Fragmentum sob uma licença CC BY-NC-ND 4.0.


266 | Redes de pesquisa no acontecimento do V SEDISC

Desde o surgimento da AD com Pêcheux na França – poderíamos


dizer com a AAD-69, mas o caminho sempre começa antes –, nossa prática
teórico-analítica compromete-se com uma luta política que, não dissociada
da prática discursiva, propõe-se a enfrentar as forças de poder que tentam
justamente apagar esta relação para melhor exercer seus fins. Por isso que,
ao encontro da nossa epígrafe, recuperamos também Althusser (apud
PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 210), para dizer que:

[...] na luta política ideológica e filosófica, as palavras são também armas,


explosivos, ou ainda calmantes e venenos. Toda a luta de classes pode, às
vezes, ser resumida na luta por uma palavra, contra uma outra [...]. O
combate filosófico por palavras é uma parte do combate político.

Se antes já compreendíamos a força e a necessidade de nosso fazer


neste campo do saber, hoje mais ainda quando enfrentamos ameaças cada
vez mais concretas contra uma já frágil democracia e mesmo contra nossa
própria existência. Nesta trincheira, nossa arma é a palavra, é a ousadia
a que nos impele Pêcheux, é a potência de uma teoria que nos ajuda a
dessuperficializar os discursos que nos dominam, mas é também tudo isso
potencializado na insurreição de construir laços quando nos querem isolados
e desarticulados.
Nosso agir, portanto, não é um agir individual, solitário entre os
gabinetes, departamentos e salas de aula, mas um agir coletivo que explica
a motivação e a beleza da criação do Seminário Análise de Discurso em
Rede: Cultura e Mídia - SEDISC, que se organiza como um espaço de
integração em redes de pesquisa, congregando grupos de pesquisa de todo o
território nacional e da América Latina – “Um verdadeiro acontecimento”
como assim significa Pfeiffer (2017, p. 9).
Este preâmbulo para dizer que resenhar o Livro da 5ª edição do
SEDISC de 2021, em suas 420 páginas, é dizer desta força coletiva que
desde o início era inspiração, mas que no anos de 2021 ganhou uma
importância singular: apesar de contornarmos a distância territorial pela
opção de um encontro virtual, ainda vivíamos os horrores e as incertezas
da tragédia pandêmica da Covid-19 e as consequências de decisões políticas
que nos abandonaram à própria sorte.
O V SEDISC se deu, portanto, nas contingências deste momento
tão difícil e que assim se mantém: na época, eram mais de 170.000 vidas
DALTOÉ, A. da S.; PFEIFFER, C. | 267

perdidas para a Covid e um silêncio sobre elas ensurdecedor, em 2021 já


passávamos do meio milhão; eram e são Joões Albertos; Kauãs; Zezicos
Guajajaras; continuamos sem saber quem mandou matar Marielles;
estávamos e estamos em meio a ataques permanentes à ciência, às
universidades, à escola, às instituições públicas do país; eram as queimadas
no Pantanal e na Amazônia; são as populações ribeirinhas, indígenas e
quilombolas ameaçadas constantemente pela Covid, pelo agronegócio, pela
grilagem, pela mineração... É a necropolítica (MBEMBE, 2018) que assola
o Brasil de modo devastador.
Com a emoção à flor da pele, é que dizemos deste Vol. 5 na confluência
da rememoração do encontro, do contato com a força e a urgência dos
textos ali reunidos, todos comprometidos com o desafio de 2021, quando
o V SEDISC se propôs a Ler o Brasil hoje, apesar da angústia e da dor,
sustentando-se por um gesto de interpretação que, conforme Orlandi (2014,
p. 49), é “uma questão ética e política, é uma questão de responsabilidade,
pois ciência e política se atravessam em conjunturas sócio-históricas sempre
particulares, por isso mesmo, muito significativas”.
Em meio a tudo isso, o V SEDISC se deu como um sopro de resistência
e de persistência e se fez um encontro de múltiplas dimensões para muito além
do que prevíamos quando discutíamos como manter a realização do evento
prevista para 2020. Pensamos em postergá-lo, ansiando pela possibilidade
de ser presencial em 2021, mas sabendo que havia uma chance muito
grande de ainda ser necessário fazê-lo de modo remoto. Decisão tomada
quanto à sua manutenção em 2020, muitas reuniões foram necessárias para
que déssemos a forma que imaginávamos ser a mais acolhedora e possível
nas agendas de pesquisadores com seus corpos exauridos pelas telas, pelas
cadeiras, pelo Brasil. Também não queríamos uma mera transposição de um
evento presencial em remoto. Com isso pudemos abrir para outros formatos
e modos de exposição, com vídeos, áudios, pôsteres, debates ao vivo e na
plataforma da Unisul; também ocupamos 8 semanas, a partir do dia 08
de outubro, nas terças e quintas das 17h00 às 19h00 para os encontros ao
vivo de abertura, das mesas-redondas, simpósios, lançamento de obras e das
conferências de encerramento.
Naquele período, as terças e quintas já amanheciam melhores com
a expectativa do encontro que viria a acontecer. Encontro de reflexões,
proposições, indagações, análises; encontro de compromisso, luta,
resistência; encontro de emoções, afeto, laço, suporte, grupo. Trabalho
268 | Redes de pesquisa no acontecimento do V SEDISC

vigoroso, rigoroso, amoroso. O SEDISC foi um grande e retumbante


encontro.
E só foi assim porque foi um gesto coletivo. Somos 9 organizadoras
desta 5ª. edição de três instituições de ensino e pesquisa – UNISUL,
UNICAMP e UFRGS. Trabalhamos muito. Rimos muito. Nos desesperamos
juntas e juntas fomos encontrando caminhos possíveis. Nossas reuniões
de organização às sextas-feiras no fim de dia se tornaram festivas. E mais
festiva a cada sim que recebíamos das parcerias convidadas para serem
conferencistas, palestrantes nas mesas, coordenadores de simpósio e de
sessão de comunicação, e monitores; para realizar o vídeo de abertura de
nosso SEDISC; para criar o ambiente digital onde o SEDISC se daria; e
muito mais, tivemos muito apoio efetivo e afetivo. Queremos fazer uma
menção especial ao apoio infindável dos profissionais de TI da UNISUL;
aos monitores fantásticos; ao trabalho lindo de Mara Sala da UNISUL, que
orientou a montagem do vídeo de abertura pela discente Juliana Antonello;
ao trabalho sensível da Juliana da Silveira, nos demais vídeos e vinhetas,
contando com as fotos fortíssimas de Narciso Tenório; e, finalmente, ao
trabalho hercúleo de Giovanna Flores e Juliana da Silveira na execução diária
das inúmeras dimensões de trabalho que permitiram que o V SEDISC
acontecesse.
Dentre tudo que aprendemos e vivenciamos, um muito deste SEDISC
materializado, após leitura de pares avaliadores, na valiosa contribuição de
parte das pesquisadoras e pesquisadores que integraram a programação do
Evento, mostrando-nos, usando palavras de Lagazzi (2021, p. 139) que:

Em nosso olhar discursivo, falar de interpretação é pensar em possibilidades


de diferentes leituras, em derivas que questionam e desorganizam o que nos
parece evidente e natural, localizando a interpretação em suas determinações
históricas, em relações que se tecem materialmente.

O SEDISC tradicionalmente se ancora em 6 eixos temáticos, que


procuram perscrutar, a partir de diferentes ordens significantes, processos
discursivos importantes de serem trazidos à discussão. Há, também,
atravessando esse olhar discursivo, outros gestos sensíveis que se nutrem
em práticas, campos disciplinares e teóricos distintos da análise do discurso
materialista, promovendo um profícuo diálogo.
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Nesses atravessamentos, propusemos que o ponto de ancoragem


comum de reflexão fosse o de ler o Brasil hoje enquanto uma prática de
resistência, de luta, de urgência. Em relações parafrásticas, já estávamos
familiarizados com Ler o Capital; Ler o arquivo hoje; (Re)ler Michel Pêcheux
hoje... mas Ler o Brasil hoje do V SEDISC nos brindou com leituras
surpreendentes, inéditas, plurais, experimentadas em coletivo, em falar com
e não por.
Neste compromisso, o Livro de 2021 trouxe em seus textos,
distribuídos em 6 sessões, questões fundamentais de arquivo, cultura,
sentido, sujeito, memória, materialidades e tantas outras que nos ajudaram
a pensar criticamente a arte, o corpo, a tecnologia, a escola, a pandemia,
o urbano, o pedagógico, a mídia... implicados num fazer teórico-analítico
que não sucumbe à força de uma ideologia dominante que se esforça em
separar os saberes sobre o sujeito do conhecimento científico e os efeitos
que produzem uma formação social capitalista, como nos alertava Pêcheux
([1969] 2011).
Todavia, não foi fácil ler o Brasil hoje e continua não sendo, mas cá
estamos, do outro lado da trincheira, fazendo valer o que Pêcheux (1988)
nos ensinou: não há prática científica fora da prática política. Vamos fazendo
resistência ao dizer quando muitos nos querem calados e vamos procurando,
conforme Leminski, “a porta que esqueceram de fechar, o beco com saída,
a porta sem chave, a vida”. Afinal, como nos diz Orlandi (2012, p. 234),
“é porque a língua, a ideologia e o Estado falham em sua articulação do
simbólico com o político, que a resistência é possível: não aquela da forma
heroica, mas aquela que se dá na divergência de sujeitos que teimam em (r)
existir”.
Nos parece que nosso ler sempre será da ordem desta teimosia de que
fala Orlandi e que toca Guimarães Rosa (1985), em “A vida também é para
ser lida. Não literalmente”, indo ao encontro do que fazemos em Análise de
Discurso (AD): teimamos em ler a palavra em vida, em sua práxis, enlaçada na
teoria, em batimento. E o fazemos mesmo nesta ambiguidade que engendra
Guimarães: lida como adjetivo, do ato de ler, mas também como substantivo,
de labuta, de esforço fora do comum, a lida nossa de todo dia. Esta ambiguidade
nos ajuda a pensar que lemos a vida em sua crueza, rudeza, mas também em
toda sua beleza e potência. E isso é possível, continuando com Guimarães,
porque “O caminho é resvaloso” “a gente cai, mas levanta”, só que, para isso,
precisamos “de pés livres, de mãos dadas e de olhos bem abertos”.
270 | Redes de pesquisa no acontecimento do V SEDISC

Esta passagem diz muito do que aconteceu nesta edição do Evento,


mas também nos leva de volta àquele final de tarde de 14 de novembro de
2018, quando, no auditório da Pedra Branca, fechávamos o IV SEDISC
com um grande círculo, gritando para quem quisesse ouvir: “Ninguém
solta a mão de ninguém!”. De lá para cá, tantas lutas seguiram e, enquanto
lutávamos, entramos na maior crise sanitária do Século XXI com a Pandemia
da Covid-19. Mas não esquecemos desta promessa e viemos cada vez mais
entrelaçando-nos em parcerias teóricas e de afeto: esta é a boniteza do
SEDISC e é a boniteza da AD.
Finalmente, queremos dizer que o que se abre a ler no livro que aqui
resenhamos são reflexões teóricas e analíticas que contribuem para que
nos lembremos de nossa responsabilidade de persistirmos enlaçados na
delicadeza e agudeza de nossas leituras discursivas, mantendo o fôlego e a
coragem necessários para continuarmos nossa escuta do social, recusando o
idealismo de uma língua e de um sujeito fora da história, firmando nossa
posição “ética e política: uma questão de responsabilidade” (PÊCHEUX,
1983/2008, p. 57).

Referências:

MBEMBE, A. Necropolítica. 1ª edição [2003]. São Paulo: N-1, 2018.

LAGAZZI, Suzy. A arte da ilustração materializando o social. In: FLORES,


Giovanna B.; GALLO, Solange L. M.; NECKEL, Nádia R. M.; DALTOÉ,
Andréia S.; SILVEIRA, Juliana; MITTMANN, Solange; LAGAZZI, Suzy;
PFEIFFER, Claudia C.; ZOPPI-FONTANA, Mónica G. (Orgs.) Análise
de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. Vol. 5. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2021.

LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia.


Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

ORLANDI, Eni P. Ciência da Linguagem e Política: anotações ao pé das


letras. Campinas: Pontes Editores, 2014.
DALTOÉ, A. da S.; PFEIFFER, C. | 271

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do


óbvio. [1975] Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.

PÊCHEUX, Michel. [1983]. O Discurso: estrutura ou acontecimento.


Campinas: Pontes Editores, 2008.

PÊCHEUX, Michel. As Ciências Humanas e o “momento atual” [1969]. In:


Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados: Eni P. Orlandi.
Campinas: Pontes Editores, 2011.

PFEIFFER, Claudia. Apresentação. In: FLORES, G. B.; GALLO, S. L.


M.; LAGAZZI, S.; NECKEL, N. R. M.; PFEIFFER, Claudia C.; ZOPPI-
FONTANA, Mónica G. (Orgs.) Análise de Discurso em Rede: Cultura e
Mídia. Vol. 3. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras Estórias). - 6ª ed.- Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Como citar este artigo

DALTOÉ, A. DA S.; PFEIFFER, C. Redes de pesquisa no acontecimento


do V Sedisc. Fragmentum, Santa Maria, p. 265-271, 2022. Disponível
em: 10.5902/2179219470419. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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