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JANUS

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JANUS:
DUAS VOZES FEMININAS E ALGUNS CONTOS

“Difícil, para aquela atriz, não é suicidar-se todas as noites no terceiro


ato. É voltar à vida para receber os aplausos.”
― Marina Colasanti, Hora de alimentar serpentes

E DIFÍCIL, PARA NÓS ESCRITORAS, NÃO É ESCREVER EM NOSSO


COMPUTADOR TODAS AS NOITES. É VOLTAR A
ESCREVER DEPOIS DE CADA PONTO FINAL

1ª edição

MINELY BRONDANI
STEFANY HENGEN

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Copyright © 2024 de Mileny Brondani e Stefany Horta

Todos os direitos reservados. Este ebook ou qualquer parte dele não


pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização
expressa, por escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações
breves em uma resenha do ebook.

Primeira edição, 2024

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Musa

Chegou em casa e tirou os sapatos, desfez o coque do cabelo, arrancou


blusa, saia e sutiã e desabou no sofá. Cansada, exausta, abatida. Pensou em
levantar e cozinhar algo para o jantar, mas desistiu. Rolando para o lado, ela
começou a se arrastar para fora do aconchego e deu de cara com seu
reflexo na tv. Da tela escura, o que refletia não era a imagem cansada e
flácida que tinha de si mesma, esta era esbelta, os cabelos pareciam
modelar o rosto magro, ondulando até as pontas rebeldes que jaziam como
uma coberta sobre o peito nu.

Levantou em um rompante e foi até o espelho do banheiro. Com a luz


acesa, voltou a ver as olheiras sob os olhos, criando sombras desagradáveis
que consumiam a luz de seu rosto. Os cabelos frisados com o volume
opaco. Mas ainda via resquícios da beldade de antes. Voltou para a tv e
permaneceu exaltando a versão que a encarava, passando as mãos pelos
ombros, raspando as unhas em uma carícia suave ao longo do pescoço,
escorrendo os longos dedos pelo peito. Naquele reflexo, ela era ousada e
maliciosa de forma elegante, sensual de modo equilibrado, com um
deliberante sorriso que escondia certa selvageria.

De joelhos em frente ao móvel, o aparelho desligado refletindo com mais


intensidade, conforme as luzes ao redor o tocavam, ela encarou com
atenção cada detalhe seu que sabia que não possuía de verdade. Os grandes
olhos, o nariz anguloso, os lábios cheios e entreabertos, a língua os
atravessando em uma tentativa maquiavélica de hidratá-los. Suas mãos
acariciaram o rosto e desbravaram pelo corpo todo com afinco, produzindo
arrepios e causando estremecimento. Ela era a musa de si mesma.

Sem conseguir se conter, beijou o rosto vindo da TV. Magnífico, teatral e


nada poderia se igualar ao sentimento de luxúria e poder que a dominou.
No instante em que se afastou, o reflexo sorriu para ela, que ainda tinha
apenas rubor estampado no rosto sério.

Sem compreender direito, ela assistiu enquanto sua párea dançava as


longas pernas para longe, em um caminhar oblíquo, e quis mais que tudo

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gritar para que ela ficasse, que a deixasse deslumbrar-se por si mesma um
pouco mais.

O reflexo, já um tanto distante em sua própria realidade inversa, acenou.


Um convite. Deveriam juntar-se, unir-se, fundir-se. Da forma que fosse
possível, compreendeu. Com essa convicção em mente, ela apenas segurou
as laterais da televisão e chocou a própria cabeça contra o objeto repetidas
e repetidas vezes. E viu que sua outra versão sorria de volta, em aprovação,
como se a instigando a continuar, ir mais fundo. Assim ela o fez.

Conforme o gosto metálico anuviava seus sentidos, ela viu a si mesma uma
última vez, mas agora do ponto de vista oposto. Tornou-se a própria musa,
finalmente, e com um leve suspiro, deu as costas e caminhou para longe. Da
luz, do que antes fora real e do rosto deformado e cheio de sangue que a
admirava de longe.

Mileny Brondani

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Eu morri pela primeira vez quando eu tinha oito anos

Era véspera de Ano Novo quando eu morri pela primeira vez. Mamãe havia
comprado um vestido novo, branco e macio como a neve. Eu odiava
vestidos! Ainda, deixei que ela me arrumasse como a boneca de porcelana
que era. Naquele dia ela me deixou usar batom pela primeira vez! Era uma
data especial e eu estava crescida. Não crescida o bastante para usar saltos,
mas crescida o bastante para pintar minha boca de rosa, o vermelho ainda
não era permitido. Mamãe também deixou minha irmã usar batom e ela
explodiu de alegria. Mas era apenas um batom, e nós éramos apenas
crianças.

Quando terminamos de nos arrumar, descemos e fomos brincar com os


filhos dos amigos da mamãe, mas eu me cansei depois de poucos minutos
brincando de pega-pega. Minha saúde era fraca. Frágil. Ao menos era o que
diziam os adultos. Mamãe me levou para o quarto dela e me deu minha
bombinha. Aos oito anos já sabia muito bem como usar aquilo sozinha. Ela
ficou ao meu lado por um tempo, até que chamaram pelo seu nome no
andar de baixo. Minha irmã havia caído enquanto corria pela casa e chorava
alto pela dor dos ferimentos em seu joelho. Mamãe saiu e me deixou
sozinha. Eu disse que ficaria bem. Eu não fiquei.

Ele era um grande amigo da mamãe. Se conheciam desde antes de eu


nascer e era o meu padrinho. Dindo como chamamos aqui na minha terra.
Também tinha um filho, um garoto de dez anos que costumava xingar
palavrões e contar piadas sujas para as outras crianças. Ele ria. "É apenas
um garoto, ora."

Ele estava procurando pelo banheiro quando me viu, sentada na cama da


mamãe, abraçada com o Sr. Tumnus, meu antigo bode de pelúcia e melhor
amigo na época. Nas minhas brincadeiras o Sr. Tumnus tinha vida e me
protegia. Quem dera não fossem só minhas fantasias infantis e o Sr.
Tumnus tivesse me defendido. Ele se aproximou e disse que meu cabelo era
bonito. Eu sorri. Crianças gostam de elogios. Ele também disse que meu
vestido era bonito. Eu sorri. Até que ele tocou meu rosto. Eu não sorri. As
coisas ficaram estranhas.

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O que aconteceu depois não foi culpa da minha mãe. Aposto que não era
fácil cuidar de duas filhas sendo mãe solteira. Tão pouco foi culpa da minha
irmã, ela era só uma criança, e crianças ralam os joelhos. Não foi culpa do
meu vestido. Também não foi culpa do meu batom. Não, não foi minha
culpa. Afinal, eu tinha apenas oito anos quando morri pela primeira vez.
Stéfany Hengen

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Monólogo Mãe Natureza

Eu estou aqui desde o início de tudo, antes deles, até. Eu soprava, corria,
ardia, flutuava. Era meu próprio lar. Quando chegaram, logo me
descobriram, claro! Fui a primeira a dar boas-vindas. Os acolhi na sombra,
os abriguei em cavernas e sob árvores, os alimentei, hidratei, aqueci,
resfriei. Fui gentil, como sempre.

Com o passar do tempo, evolui e me tornei maior, mais brilhante, mais


feroz. Por vezes diminui, mas minha beleza ainda estava lá, imponente. Mas
eles, ah, eles já não temiam a mim. Me conheciam. Bem, o tanto quanto eu
permitisse. Os deixei correr por desertos e mergulhar no mais profundo de
minhas águas. Eu cedi tudo de mim para que eles se sentissem satisfeitos.

Então, eles cresceram. Cresceram como nunca antes. Até os céus, em força,
em espírito, em ganância. Eu, que sempre ajudei, já não servia mais. Agora
sou arrancada, queimada, esmagada, entupida. Eu choro, eu grito, eu aviso.
Eles chamam minha dor de desastre.

Desastre é saber que eles não percebem que trilham sua própria ruína na
minha dor

Oh, foi um desastre!

E foi mesmo.

Foi um desastre me perder de mim mesma, quando apenas tentei ajudar.


Foi um desastre que eles tenham se perdido dentro de si, e agora não
saibam voltar.

A coisa mais triste, é que eles não percebem que eu sou auto suficiente.
Nunca precisei deles para sobreviver, eu faço minha sobrevivência. Tudo
em mim funciona em harmonia, tudo coopera, mesmo quando se agita. E
assim eu sigo. Até agora, sendo destruída, desmatada, ferida, mas eu sei que
vou voltar. Eu tenho algo que eles não têm: tempo. E o meu tempo é
paciente, afinal, para quê ter pressa?!

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Um dia eles irão entender - pelo menos assim eu espero - que eu sobrevivi
de tudo que há, eu sou tudo que eles vêem, mas eles precisam de mim.
Precisam dos meus rios, dos meus mares, das minhas matas. Precisam do
meu ar e dos meus frutos. Precisam da minha terra e até dos meus céus.
Precisam de tudo em mim, tudo o que eles se esforçam tanto para destruir.

Eu fui gentil de mais. Ou talvez de menos? Eu fui gentil realmente? Sim.

Não tenho dúvidas de minhas intenções. Eles chegaram até onde estão
porque eu ajudei.

Ajudei com tudo que tenho. Tinha.

Mas eu sei me refazer. Eu vou nascer de novo. Crescer de novo. Fluir de


novo. Brilhar de novo. Vou me restaurar e assobiar alto quando correr meus
ventos por aí. Quando restarem apenas os resquícios de sua espécie, os
restos deixados voltarão para mim, pois de mim saíram. Então eu serei
completa de novo. Completa com o que sobrar, até ser a hora de me
reinventar. Afinal, eu estava aqui antes. Muito antes. Muito mesmo. Já vi
coisas que eles nem imaginam. Já vi outras espécies se erguerem para
morrer. É triste ver tudo se repetir.

Até que esse tempo chegue, eu vou continuar reagindo. Vou continuar
explodindo e ardendo, me erguendo e quebrando em grandes e furiosas
ondas, rodando e tremendo tudo, vou continuar, mesmo que aos poucos,
mesmo que devagar. É assim que eu choro. E não sei fazer diferente.

Mileny Brondani

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Problemas borbulhantes

Ela estava sentada à mesa de um elegante restaurante, observando as


bolhas efervescentes que subiam pelo champanhe que enchia sua taça. O
vestido longo e dourado refletia a luz suave do local enquanto esperava
ansiosamente por uma oportunidade que lhe permitisse fugir. Ao redor, seu
namorado conversava de forma animada com familiares enquanto
gesticulava para ela. Ele parecia orgulhoso, e por um breve momento ela
perguntou para si mesma… O que ela própria parecia?

Olhou para sua taça de champanhe novamente, contemplando a


efervescência das bolhas que agora pareciam simbolizar as inúmeras
perguntas que borbulharam em sua cabeça nos últimos segundos.

É claro que reconhecia o propósito para qual aquele jantar havia sido
planejado. A sua família, a família dele, as milhares taças de champanhe e a
comida cara. A música romântica, a decoração extravagante e, no bolso do
paletó dele, o anel de noivado que tinha sido da mãe dele, e da mãe da mãe
dele, e da mãe da mãe da mãe dele. Tão logo o momento chegou, precisou
levantar e ir até o centro do salão; o vestido arrastando no chão parecia
arrastar consigo todo o peso que a decisão a ser tomada carregava.

O namorado, noivo a vir ser, havia preparado um discurso meticulosamente


elaborado para expressar todo o amor que sentia. Porém, quando chegou o
momento de ouvir a resposta dela, o que ELA tinha para dizer, as palavras
pareciam ter se perdido no vazio, deixando-os sem nada a falar. Ela pode
observar o amor, uma vez seguro entre as mãos dele, escapar
sorrateiramente, como areia fina escorrendo por entre seus dedos.

Você merece mais. Alguém que te ame. Não é você, sou eu. Palavras que não
conseguem remediar o irremediável.

Meses mais tarde, quando indagada sobre o que havia desandado naquele
relacionamento, responderia apenas que os problemas surgiram como
borbulhas inesperadas em uma taça de champanhe; uma mistura
efervescente de emoções indescritíveis que se tornaram, por fim, sua
própria narrativa silenciosa de como o amor que uma vez sentiu, se acabou.

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Stefany Hengen

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Árvore da vida

Naquela manhã ensolarada, morna e colorida, ela havia acordado


especialmente motivada. Queria pentear os cabelos, vestir uma de suas
melhores roupas, se arrumar e comer bem. Queria tirar medidas e apreciar
a si mesma em frente ao espelho, se fotografar de calcinha e sutiã e
endeusar as medidas que sua juventude lhe conferia. Ela saltitava pela casa,
ao som de uma música que somente sua mente nada confusa conseguia
ouvir. O gato preto se embrenhando em seus pés a cada passo embalado
que dava. A acompanhando como um amante ou um escudeiro.

A legging verde evidenciava os músculos definidos das coxas, enquanto


fazia força para levantar e mover os sacos de terra da garagem até o
quintal. Os seios inchados pinicavam de encontro ao tecido áspero do
invólucro com adubos. Decidida a devolver à natureza tudo que lhe
pertencia, havia comprado uma muda de árvore, queria observar pelos
próximos anos enquanto seus esforços rendiam avelãs no quintal, com
raízes fortes e bem plantadas.

Alguns vizinhos, ao passar pela casa bem cuidada e de cercado branco,


erguiam os olhos, curiosos, na tentativa de compreender os esforços
daquela jovem, vestida de natureza dos pés à cabeça. Observando-a
analisar cada centímetro do próprio pátio, em busca do metro quadrado
perfeito para o plantio, o canto mais adequado para a boa rega. Mal podiam
conceber metade do que se passava por ela, apenas vislumbrar, de certa
forma obcecados, sua obstinação impetuosa.

Havia, primeiro, cavado um buraco grande e fundo para enterrar tudo


adequadamente. Umedeceu primeiro e despejou os restos para cobrir o
fundo, deixando a placenta por último, então cobriu tudo com a pequena e
delicada mudinha. Em volta, porções generosas do condimento que
fertilizaria aquela vida no solo. Depois, com uma pá, foi realocando grandes
punhados de terra em volta, cobrindo cada cantinho e fresta, garantindo
que o solo estivesse suficientemente coberto e protegido. Cada etapa do
processo foi realizada com o mais maternal dos sentimentos, ela era
gratidão pura. As línguas antigas chamam água de fonte de vida, portanto
ela só poderia finalizar o processo irrigando a pequena árvore, que logo
geraria seus próprios frutos descendentes.

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Tudo aquilo lhe custou parte da manhã, a tarde inteira e o início da noite,
mas ao tardar, ela finalmente havia conseguido. Depois do banho, poderia
relaxar com uma xícara fumegante de chá espiralando aroma de camomila
em sua direção, enquanto limpava a terra enfiada sob as unhas e
relembrava os feitos do dia, banhada pela luz do luar. Foi quando ela
lembrou de um ditado popular, que decidiu entrar e escrever.

Sentada em frente à tela do computador, a inspiração lhe veio quando o


vento uivou forte através das janelas, com as persianas abertas ela
enxergava a aveleira pequena e ainda frágil a se multiplicar, espalhando sua
genealogia pelo seu quintal. E assim, começou a digitar sua narrativa
ancestral. A história dela não começou com um incipit de princesas nem
seguiu o raciocínio bravo de grandes heroínas, não. Suas palavras brotaram
simples. Cultas, como sacerdotisas, mas sedutoras, como feiticeiras:

Para ser verdadeiramente pleno, dizem que uma pessoa precisa realizar
três feitos ao longo da vida: ter um filho, plantar uma árvore e escrever um
livro.

Mileny Brondani

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Iris

A fogueira morria em brasas. O luar incapaz de iluminar noite tão escura


onde trevas ameaçavam querer ficar para sempre. O que resta para ela
provar?

O primeiro estronto ressoou à distância. O brilho do fogo queimando e o


grito de inocentes logo lhe alcançaram no topo daquele monte. A luz da
tragédia iminente que discorria logo abaixo iluminou os traços de Íris; seu
cabelo desmazelado, rosto encardido com sujeira de carvão, os pulsos
feridos, o olhar cansado e os trapos rotos e furados que lhe cobriam o
corpo. Presa em sua cintura, a espada de ferro negro. Talvez, um dia, Iris
tenha sido bela. Quer dizer, não que fosse feia, muito ao contrário eu digo.

Mas a imaculada beleza angelical que poderia ter existido em tempos mais
fáceis agora estava manchada — Ela era a imagem santa de um anjo perdido
em loucura.

Ela deu o primeiro passo para iniciar sua descida: abaixo de si, ao final do
monte (Ou início, quem sabe dizer?) a batalha acontecia.

— Senhora! Acorda e levanta-te!

Voltou o rosto para aquele que lhe falava acima. Nada. Apenas o luar fraco a
encarava de volta.

— Olhai-me. Por acaso não mais me reconheces?

Ela estava olhando. Só que nada via. Então, tremendo, tornou a virar o rosto
para frente e continuou a andar rumo a batalha que precisava enfrentar. A
cada passo dado, a espada presa à sua cintura se tornava mais e mais
pesada. Já era difícil carregar. O que resta para ela provar?

— A despedida não necessita ser tão longa quanto a vida, senhora. — a


mulher, a guerreira, a idosa era incapaz de parar e ouvir aquela voz. Iris
apenas andava. — Senhora! Acorda e levanta-te!

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Será que ninguém via? Em suas lembranças existia uma névoa torpe... Iris
não sabia quando tinha começado, quando tinha terminado, ou quando
havia se entregado para a perdição. Era por isso que não o via? Ah, o
inferno com isso. A quem esconder que apresentava tal mácula?
Desgraçada. Bandida. Imoral. Ela não descia para ganhar aquela batalha.
Punir-se era seu objetivo.

— Senhora! Acorda e levanta-te! — raiva borbulhante fervia através da


neblina que fazia morada em sua mente.

— Cala-te! Me deixe ir, maldita voz sem rosto.

E foi quando ela pode ouvir a Voz sorrir. Vozes sorriam? Iris não sabia, mas
Aquela estava sorrindo. Maldita. Qual razão tinha para sorrir? Não via seu
sofrimento?
Iris parou de caminhar. Tinha chegado ao campo de batalha, seu fatal
destino final. Era mesmo? Já não sabia mais. Confusa, levou a mão até a
espada presa junto a seu corpo, quente como brasa lhe castigava a pele já
machucada. Ela merecia. Ela merecia?

— Senhora! Acorda e levanta-te! Não machuques tão preciosa carga.

— Bonita, sim, mas não vês que está manchada?

— Apenas tu, senhora, se importa com tais manchas. Ninguém mais.


Senhora!

Acorda e levanta-te.

E foi quando, pela primeira vez, que Iris abriu os olhos e acordou. Não
existia monte. Não existia guerra. Apenas ela. Seu quarto. Seus
machucados. E seus gatos enroscavam-se em si, tal com um abraço
reconfortante. A menor até mesmo lambia as cicatrizes gravadas na pele
clara. Confusa, ela levantou, sentou-se e encarou a janela aberta.

Uma Coruja com sangue em suas asas a encarou de volta antes de voar para
longe.

A Voz calou-se, ainda sorrindo.

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Ela havia acordado e levantado.
E nada mais restava para provar.

Stefany Hengen

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24
Frenético, distraído e assustador

Espirrei o perfume para cima e parei para vislumbrar a nuvem aromática,


antes de desfilar sob ela. Dei uma última retocada no batom e estava
vestindo a jaqueta quando ouvi a buzina. Juntei bolsa, chaves e celular e
desci. Ele nunca havia sido pontual, mas estava lá, em frente ao meu prédio,
às 20 horas em ponto, como havia dito que seria. Sorri.

Faziam duas semanas que não nos víamos, desde que o mudaram de setor
no trabalho. A mudança foi uma promoção, mas ele encarou a troca como
castigo.

— Boa noite, gata. – Ele me cumprimentou com um beijo.

— Olá. – Sorri para ele.

Ele deu a volta no carro, olhando ao redor, e abriu a porta do passageiro


para mim, muito cavalheiro. Depois que entrei no carro, ele revisou o banco
atrás do meu, se olhou no reflexo da pintura e disse algo que não entendi.
Foi estranho, admito, mas não liguei.

— Como foi sua semana? Já faz um tempo que a gente não se fala. –
Perguntei.

Ele ficou doente dois dias após a promoção, e desde então estava
recusando minhas ligações e respondendo de forma monossilábica. Não foi
estranho, já que ele costuma ser mais recluso, sempre guardando as coisas
mais para si, lidando com tudo sozinho, mas estamos saindo há alguns
meses, esperava que ele ao menos tentasse se comunicar.

— Bem. Eu estou melhor. E você?

— Que bom que melhorou. Eu estou bem, as coisas estão indo... – Ele riu do
nada, balançou a cabeça de forma negativa e batucou os dedos na testa –
Hã, bem.

— Que ótimo. É, isso aí. Ótimo.

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Então, passamos uma boa parte do percurso em silêncio.

E não aquele tipo de silêncio bom, não. Foi mais do tipo esquisito, sem
saber o que falar. Eu estava incerta sobre o que fazer com as mãos, senti
meu couro cabeludo começar a pinicar com o nervosismo e, por fim, fiquei
encarando as luzes dos carros na nossa frente. De canto de olho, percebi
que as mãos dele estavam tremendo. Achei que estava imaginando, mas
quando ele fez uma curva, pude ver de forma nítida. Não estava frio, na
verdade, estava bem abafado, então prestei mais atenção.

Seus olhos estavam caóticos, ele olhava para todos os lados, parecia ler
cada placa, letreiro e pichação pelo caminho. Ouvi um sussurro e percebi
que ele soltava algumas palavras aleatórias ao vento, como se estivesse
ponderando algo ou conversando sozinho. Ele mantinha a mão direita no
volante e começou a coçar a cabeça com a esquerda, como se quisesse
cavar o próprio crânio com as unhas. O barulho do roçar de cabelos, o
frenesi do encontro entre unha e couro cabeludo, a calça preta sendo
tingida com pequenas partículas de pele capilar morta.

— Você está bem mesmo? Fez alguma consulta para saber o que eram
aqueles sinto…

— Eu preciso contar uma… NÃO!

Ele gritou e deu um soco no volante. O carro deslizou de leve e alguns


motoristas em volta buzinaram em protesto.

— Rich, o que houve? Por que você gritou?

Os tremores nas mãos ficaram mais evidentes e ele começou a dar


batidinhas na própria cabeça, um sorriso oblíquo se formando lentamente,
manchando sua linda face com um semblante maquiavélico.

— Eu preciso te contar, mas eu não posso. Eu quero… NÃO, NÃO, NÃO… eu


preciso contar: Eu não estou bem.

— Jura?!

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— Eu sei – Ele soltou uma gargalhada curta e um risinho, depois suspirou
de forma manhosa – AH, ESSAS COISAS, EU SINTO ELAS AQUI. – E
apontou para a própria cabeça.

Ele me encarou, as pupilas estavam retraídas, como se me visse, mas não


focasse em mim, exatamente. Parecia frenético, distraído e assustador.

— Rich, para o carro. Rich, POR FAVOR, PARA ESSE CARRO!

— Eu vou, eu… DROGA… por favor, gata, só ME ESCUTA!

Minhas mãos suavam e o cheiro do meu perfume me deixou tonta, o


desespero se espalhava e eu podia sentir a adrenalina se juntando aos meus
sentidos rapidamente. De repente o carro parecia pequeno de mais, o ar
parecia seco de mais, meus músculos doíam e eu precisava correr.

— Eu não melhorei, eu menti. SIM! NÃO, MERDA! Quando me trocaram de


setor eu sabia que ia ser ruim. Eu sabia, sim, sabia. As pessoas de lá... – A
risada de novo, como se soubesse de algo, mas não pudesse evitar – Eles
são ruins, o lugar é uma merda, eu ouço essas coisas e sei que é culpa deles,
mas NÃO, eu, eu, eu...

— Do que você está falando? Meu Deus, cuidado, ai, minha nossa, EU NÃO
QUERO MORRER, RICHARD!

Num rompante causado pelo tremor, ele desviou do caminho para o


restaurante. Senti meu corpo eriçar, um calafrio percorreu minha espinha e
minhas mãos tateavam o carro, em busca de algo em que pudesse me
segurar de verdade.

Estávamos agora em uma rua mais escura, mas ainda movimentada.


Músicas tocavam no volume máximo ao redor, acho que estávamos
próximos de alguma boate ou clube. Fosse o que fosse, a situação piorou.

— Rich, me conta o que está acontecendo com você. Você está me


assustando e, pelo amor de Deus, para esse carro, você está descontrolado.

Então, ele coçou a cabeça com mais força e suas mãos começaram a se
embrenhar nos cabelos escuros. Os cachos – que eu tanto adorava – saíram

27
aos montes, enrolados nos dedos. Os olhos ficaram vermelhos e o rosto se
assemelhava no tom, parecia que seus olhos saltariam pelas órbitas. Até
que o impensável aconteceu: filetes de sangue começaram a escorrer de
seus ouvidos, manchando a gola de sua camiseta e havia uma gosma junto.
A principio eu não compreendi – e agora penso que gostaria de ter
continuado na ignorância.

Minhocas começaram a sair com o sangue.

— Eles fizeram isso comigo, gata. Foram eles, eu sei que sim. Colocaram
aqui, em mim.

Minhocas.

Saindo de seus ouvidos.

— Richard, que porra é… AI MEU DEUS!

O barulho dos pneus chamou minha atenção e as luzes ficaram mais


intensas, fechei os olhos com força, sentindo minhas pupilas às cegas, por
causa de todas as luzes, então veio o baque. O barulho preencheu meus
ouvidos, mas consegui ouvir Richard gritar, então o carro virou e, apesar de
me sentir consciente disso, de sentir quando minha bolsa me atingiu no
rosto com força e do pinicar dos meus cabelos que pareciam voar por todos
os lados, não tive coragem de levantar os olhos. Os sons ao redor eram
estranhos para mim, as texturas e cheiros também.

E tinha o medo.

Então, mesmo querendo ver o estrago, mesmo querendo entender o que


estava acontecendo, mesmo com as vozes se aproximando e com uma dor
persistente, não reagi. Conseguia ouvir Richard se lamentando e rindo e
gritando, com o som gelatinoso se chocando e preenchendo o carro com
um odor de terra.

Por isso, apenas fiquei lá, imóvel. E continuei sem abrir os olhos.

Stefany Hengen

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29
Meramente tolerado

Era uma vez uma rua comum. Nessa rua, destacava-se uma casa que, à
primeira vista, emanava beleza exterior, mas se você pudesse olhar para
dentro através de qualquer janela, veria que a verdade desbotava a fachada
encantadora daquele lar - se é que poderíamos chamá-lo assim. E não por
causa da decoração sem graça que havia sido escolhida cinco anos atrás
para enfeitar seus cômodos, mas devido às cenas que se desenrolaram todo
final de tarde.

Se em qualquer noite você pudesse espiar através da janela da sala de


jantar, veria uma mesa de jantar cuidadosamente posta com uma refeição
pronta e intocada, e, sentados a ela, um casal que aos olhos de qualquer um
que os observasse mais pareciam estranhos distantes do que dois amantes.

Toda noite, sem exceção, você seria capaz de ver o olhar da mulher
procurar o homem à sua frente, e o dele permanecer pousado nas folhas do
jornal do dia.

— O que está lendo? — perguntava ela.

Alguma noticia nova? Como foi o trabalho? Quer que eu esquente seu prato?

As perguntas tentavam atravessar a barreira de indiferença que pairava


entre eles, mas mesmo diante do desfile de palavras, a atmosfera
permanecia carregada de desolação. Naquela sala, onde a beleza se
desvanece diante de muros invisíveis, o jantar de toda noite se tornava uma
representação amarga daquilo que um dia fora a promessa de um amor a
ser celebrado, mas que agora se limitava a ser meramente tolerado.

Stefany Hengen

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31
“As bibliotecas estavam cheias de ideias, talvez a mais
perigosa e poderosa de todas as armas.”

Sarah J. Maas

FIM

32

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