JANUS
JANUS
JANUS:
DUAS VOZES FEMININAS E ALGUNS CONTOS
1ª edição
MINELY BRONDANI
STEFANY HENGEN
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Copyright © 2024 de Mileny Brondani e Stefany Horta
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Musa
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gritar para que ela ficasse, que a deixasse deslumbrar-se por si mesma um
pouco mais.
Conforme o gosto metálico anuviava seus sentidos, ela viu a si mesma uma
última vez, mas agora do ponto de vista oposto. Tornou-se a própria musa,
finalmente, e com um leve suspiro, deu as costas e caminhou para longe. Da
luz, do que antes fora real e do rosto deformado e cheio de sangue que a
admirava de longe.
Mileny Brondani
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Eu morri pela primeira vez quando eu tinha oito anos
Era véspera de Ano Novo quando eu morri pela primeira vez. Mamãe havia
comprado um vestido novo, branco e macio como a neve. Eu odiava
vestidos! Ainda, deixei que ela me arrumasse como a boneca de porcelana
que era. Naquele dia ela me deixou usar batom pela primeira vez! Era uma
data especial e eu estava crescida. Não crescida o bastante para usar saltos,
mas crescida o bastante para pintar minha boca de rosa, o vermelho ainda
não era permitido. Mamãe também deixou minha irmã usar batom e ela
explodiu de alegria. Mas era apenas um batom, e nós éramos apenas
crianças.
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O que aconteceu depois não foi culpa da minha mãe. Aposto que não era
fácil cuidar de duas filhas sendo mãe solteira. Tão pouco foi culpa da minha
irmã, ela era só uma criança, e crianças ralam os joelhos. Não foi culpa do
meu vestido. Também não foi culpa do meu batom. Não, não foi minha
culpa. Afinal, eu tinha apenas oito anos quando morri pela primeira vez.
Stéfany Hengen
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Monólogo Mãe Natureza
Eu estou aqui desde o início de tudo, antes deles, até. Eu soprava, corria,
ardia, flutuava. Era meu próprio lar. Quando chegaram, logo me
descobriram, claro! Fui a primeira a dar boas-vindas. Os acolhi na sombra,
os abriguei em cavernas e sob árvores, os alimentei, hidratei, aqueci,
resfriei. Fui gentil, como sempre.
Então, eles cresceram. Cresceram como nunca antes. Até os céus, em força,
em espírito, em ganância. Eu, que sempre ajudei, já não servia mais. Agora
sou arrancada, queimada, esmagada, entupida. Eu choro, eu grito, eu aviso.
Eles chamam minha dor de desastre.
Desastre é saber que eles não percebem que trilham sua própria ruína na
minha dor
E foi mesmo.
A coisa mais triste, é que eles não percebem que eu sou auto suficiente.
Nunca precisei deles para sobreviver, eu faço minha sobrevivência. Tudo
em mim funciona em harmonia, tudo coopera, mesmo quando se agita. E
assim eu sigo. Até agora, sendo destruída, desmatada, ferida, mas eu sei que
vou voltar. Eu tenho algo que eles não têm: tempo. E o meu tempo é
paciente, afinal, para quê ter pressa?!
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Um dia eles irão entender - pelo menos assim eu espero - que eu sobrevivi
de tudo que há, eu sou tudo que eles vêem, mas eles precisam de mim.
Precisam dos meus rios, dos meus mares, das minhas matas. Precisam do
meu ar e dos meus frutos. Precisam da minha terra e até dos meus céus.
Precisam de tudo em mim, tudo o que eles se esforçam tanto para destruir.
Não tenho dúvidas de minhas intenções. Eles chegaram até onde estão
porque eu ajudei.
Até que esse tempo chegue, eu vou continuar reagindo. Vou continuar
explodindo e ardendo, me erguendo e quebrando em grandes e furiosas
ondas, rodando e tremendo tudo, vou continuar, mesmo que aos poucos,
mesmo que devagar. É assim que eu choro. E não sei fazer diferente.
Mileny Brondani
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Problemas borbulhantes
É claro que reconhecia o propósito para qual aquele jantar havia sido
planejado. A sua família, a família dele, as milhares taças de champanhe e a
comida cara. A música romântica, a decoração extravagante e, no bolso do
paletó dele, o anel de noivado que tinha sido da mãe dele, e da mãe da mãe
dele, e da mãe da mãe da mãe dele. Tão logo o momento chegou, precisou
levantar e ir até o centro do salão; o vestido arrastando no chão parecia
arrastar consigo todo o peso que a decisão a ser tomada carregava.
Você merece mais. Alguém que te ame. Não é você, sou eu. Palavras que não
conseguem remediar o irremediável.
Meses mais tarde, quando indagada sobre o que havia desandado naquele
relacionamento, responderia apenas que os problemas surgiram como
borbulhas inesperadas em uma taça de champanhe; uma mistura
efervescente de emoções indescritíveis que se tornaram, por fim, sua
própria narrativa silenciosa de como o amor que uma vez sentiu, se acabou.
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Stefany Hengen
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Árvore da vida
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Tudo aquilo lhe custou parte da manhã, a tarde inteira e o início da noite,
mas ao tardar, ela finalmente havia conseguido. Depois do banho, poderia
relaxar com uma xícara fumegante de chá espiralando aroma de camomila
em sua direção, enquanto limpava a terra enfiada sob as unhas e
relembrava os feitos do dia, banhada pela luz do luar. Foi quando ela
lembrou de um ditado popular, que decidiu entrar e escrever.
Para ser verdadeiramente pleno, dizem que uma pessoa precisa realizar
três feitos ao longo da vida: ter um filho, plantar uma árvore e escrever um
livro.
Mileny Brondani
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Iris
Mas a imaculada beleza angelical que poderia ter existido em tempos mais
fáceis agora estava manchada — Ela era a imagem santa de um anjo perdido
em loucura.
Ela deu o primeiro passo para iniciar sua descida: abaixo de si, ao final do
monte (Ou início, quem sabe dizer?) a batalha acontecia.
Voltou o rosto para aquele que lhe falava acima. Nada. Apenas o luar fraco a
encarava de volta.
Ela estava olhando. Só que nada via. Então, tremendo, tornou a virar o rosto
para frente e continuou a andar rumo a batalha que precisava enfrentar. A
cada passo dado, a espada presa à sua cintura se tornava mais e mais
pesada. Já era difícil carregar. O que resta para ela provar?
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Será que ninguém via? Em suas lembranças existia uma névoa torpe... Iris
não sabia quando tinha começado, quando tinha terminado, ou quando
havia se entregado para a perdição. Era por isso que não o via? Ah, o
inferno com isso. A quem esconder que apresentava tal mácula?
Desgraçada. Bandida. Imoral. Ela não descia para ganhar aquela batalha.
Punir-se era seu objetivo.
E foi quando ela pode ouvir a Voz sorrir. Vozes sorriam? Iris não sabia, mas
Aquela estava sorrindo. Maldita. Qual razão tinha para sorrir? Não via seu
sofrimento?
Iris parou de caminhar. Tinha chegado ao campo de batalha, seu fatal
destino final. Era mesmo? Já não sabia mais. Confusa, levou a mão até a
espada presa junto a seu corpo, quente como brasa lhe castigava a pele já
machucada. Ela merecia. Ela merecia?
Acorda e levanta-te.
E foi quando, pela primeira vez, que Iris abriu os olhos e acordou. Não
existia monte. Não existia guerra. Apenas ela. Seu quarto. Seus
machucados. E seus gatos enroscavam-se em si, tal com um abraço
reconfortante. A menor até mesmo lambia as cicatrizes gravadas na pele
clara. Confusa, ela levantou, sentou-se e encarou a janela aberta.
Uma Coruja com sangue em suas asas a encarou de volta antes de voar para
longe.
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Ela havia acordado e levantado.
E nada mais restava para provar.
Stefany Hengen
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Frenético, distraído e assustador
Faziam duas semanas que não nos víamos, desde que o mudaram de setor
no trabalho. A mudança foi uma promoção, mas ele encarou a troca como
castigo.
— Como foi sua semana? Já faz um tempo que a gente não se fala. –
Perguntei.
Ele ficou doente dois dias após a promoção, e desde então estava
recusando minhas ligações e respondendo de forma monossilábica. Não foi
estranho, já que ele costuma ser mais recluso, sempre guardando as coisas
mais para si, lidando com tudo sozinho, mas estamos saindo há alguns
meses, esperava que ele ao menos tentasse se comunicar.
— Que bom que melhorou. Eu estou bem, as coisas estão indo... – Ele riu do
nada, balançou a cabeça de forma negativa e batucou os dedos na testa –
Hã, bem.
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Então, passamos uma boa parte do percurso em silêncio.
E não aquele tipo de silêncio bom, não. Foi mais do tipo esquisito, sem
saber o que falar. Eu estava incerta sobre o que fazer com as mãos, senti
meu couro cabeludo começar a pinicar com o nervosismo e, por fim, fiquei
encarando as luzes dos carros na nossa frente. De canto de olho, percebi
que as mãos dele estavam tremendo. Achei que estava imaginando, mas
quando ele fez uma curva, pude ver de forma nítida. Não estava frio, na
verdade, estava bem abafado, então prestei mais atenção.
Seus olhos estavam caóticos, ele olhava para todos os lados, parecia ler
cada placa, letreiro e pichação pelo caminho. Ouvi um sussurro e percebi
que ele soltava algumas palavras aleatórias ao vento, como se estivesse
ponderando algo ou conversando sozinho. Ele mantinha a mão direita no
volante e começou a coçar a cabeça com a esquerda, como se quisesse
cavar o próprio crânio com as unhas. O barulho do roçar de cabelos, o
frenesi do encontro entre unha e couro cabeludo, a calça preta sendo
tingida com pequenas partículas de pele capilar morta.
— Você está bem mesmo? Fez alguma consulta para saber o que eram
aqueles sinto…
— Jura?!
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— Eu sei – Ele soltou uma gargalhada curta e um risinho, depois suspirou
de forma manhosa – AH, ESSAS COISAS, EU SINTO ELAS AQUI. – E
apontou para a própria cabeça.
— Do que você está falando? Meu Deus, cuidado, ai, minha nossa, EU NÃO
QUERO MORRER, RICHARD!
Então, ele coçou a cabeça com mais força e suas mãos começaram a se
embrenhar nos cabelos escuros. Os cachos – que eu tanto adorava – saíram
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aos montes, enrolados nos dedos. Os olhos ficaram vermelhos e o rosto se
assemelhava no tom, parecia que seus olhos saltariam pelas órbitas. Até
que o impensável aconteceu: filetes de sangue começaram a escorrer de
seus ouvidos, manchando a gola de sua camiseta e havia uma gosma junto.
A principio eu não compreendi – e agora penso que gostaria de ter
continuado na ignorância.
— Eles fizeram isso comigo, gata. Foram eles, eu sei que sim. Colocaram
aqui, em mim.
Minhocas.
E tinha o medo.
Por isso, apenas fiquei lá, imóvel. E continuei sem abrir os olhos.
Stefany Hengen
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Meramente tolerado
Era uma vez uma rua comum. Nessa rua, destacava-se uma casa que, à
primeira vista, emanava beleza exterior, mas se você pudesse olhar para
dentro através de qualquer janela, veria que a verdade desbotava a fachada
encantadora daquele lar - se é que poderíamos chamá-lo assim. E não por
causa da decoração sem graça que havia sido escolhida cinco anos atrás
para enfeitar seus cômodos, mas devido às cenas que se desenrolaram todo
final de tarde.
Toda noite, sem exceção, você seria capaz de ver o olhar da mulher
procurar o homem à sua frente, e o dele permanecer pousado nas folhas do
jornal do dia.
Alguma noticia nova? Como foi o trabalho? Quer que eu esquente seu prato?
Stefany Hengen
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“As bibliotecas estavam cheias de ideias, talvez a mais
perigosa e poderosa de todas as armas.”
Sarah J. Maas
FIM
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