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Larrosa Elogio Da Escolal

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Alexandre Paes
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Elogio da escola

Coleção
Educação: Experiência e Sentido

Organização
Jorge Larrosa

Elogio da escola
Copyright © 2017 Jorge Larrosa
Copyright © 2017 Autêntica Editora

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá
ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem
autorização prévia da Editora.

coordenadores da coleção revisão


educação: experiência e sentido Lívia Martins
Jorge Larrosa
capa
Walter Kohan
Alberto Bittencourt
editora responsável (sobre quadro Na porta da escola,
Rejane Dias de Nikolai Petrovich Bogdanov-Belsky, 1897)
editora assistente diagramação
Cecília Martins Larissa Carvalho Mazzoni

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Elogio da escola / organização Jorge Larrosa ; tradução Fernando Coelho


-- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2017. -- (Coleção Educação :
Experiência e Sentido)

ISBN 978-85-513-0287-3

1. Educação - Filosofia 2. Educação - Finalidade e objetivos 3. Escola


4. Professores - Formação I. Coelho, Fernando. II Larrosa, Jorge. III. Título.
IV. Série.

17-08245 CDD-370.1

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação : Filosofia 370.1

Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo


Rua Carlos Turner, 420 Rua Debret, 23, sala 401 Av. Paulista, 2.073,
Silveira . 31140-520 Centro . 20030-080 Conjunto Nacional, Horsa I
Belo Horizonte . MG Rio de Janeiro . RJ 23º andar . Conj. 2310-2312.
Tel.: (55 31) 3465-4500 Tel.: (55 21) 3179 1975 Cerqueira César . 01311-940
São Paulo . SP
Tel.: (55 11) 3034 4468
www.grupoautentica.com.br
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura.


Digamos, com Foucault, que escrevemos para transformar o que
sabemos e não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos
anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura,
essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas
verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra
coisa, diferentes do que vimos sendo.
Também a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido
à educação. Educamos para transformar o que sabemos, não para
transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a educar é a
possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em
gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a
deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do
que vimos sendo.
A coleção Educação: Experiência e Sentido propõe-se a tes-
temunhar experiências de escrever na educação, de educar na
escritura. Essa coleção não é animada por nenhum propósito
revelador, convertedor ou doutrinário: definitivamente, nada a
revelar, ninguém a converter, nenhuma doutrina a transmitir.
Trata-se de apresentar uma escritura que permita que enfim
nos livremos das verdades pelas quais educamos, nas quais nos
educamos. Quem sabe assim possamos ampliar nossa liberdade
de pensar a educação e de nos pensarmos a nós próprios, como
educadores. O leitor poderá concluir que, se a filosofia é um gesto
que afirma sem concessões a liberdade do pensar, então esta é uma
coleção de filosofia da educação. Quiçá os sentidos que povoam os
textos de Educação: Experiência e Sentido possam testemunhá-lo.
Jorge Larrosa e Walter Kohan*
1

Coordenadores da Coleção

*
Jorge Larrosa é Professor de Teoria e História da Educação da
Universidade de Barcelona e Walter Kohan é Professor Titular de
Filosofia da Educação da UERJ.
SUMÁRIO

Apresentação
Elogio da escola: o desafio de pensar uma forma sem função
Karen Christine Rechia, Geovana Mendonça Lunardi
Mendes, Ana Maria Hoepers Preve..................................................... 09

Primeira parte – Elogio da escola


A língua da escola: alienante ou emancipadora?
Jan Masschelein, Maarten Simons................................................. 19
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar
uma voz pedagógica
Maarten Simons, Jan Masschelein................................................. 41
Em defesa de uma defesa: elogio de uma
vida feita escola
Walter Omar Kohan................................................................. 65
Sobre a precariedade da escola
Inés Dussel............................................................................ 87
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões
Pedagógicas da II República Espanhola
Jorge Larrosa, Marta Venceslao....................................................113

Segunda parte – Em defesa da escola: notas à margem


A politização e a popularização como domesticação
da escola: contrapontos latino-americanos
Inés Dussel, Jan Masschelein, Maarten Simons..................................147
Sobre a escola que defendemos
Walter Omar Kohan, Jan Masschelein, Maarten Simons.......................161
Skholé e igualdade
Maximiliano Valerio López, Jan Masschelein, Maarten Simons.............177
A escola: formas, gestos e materialidades
Jorge Larrosa e outros, Jan Masschelein, Maarten Simons......................195

Terceira parte – Exercícios de pensamento sobre a escola


Filmar a escola: teoria da escola
Maximiliano Valerio López .........................................................225
Curar uma exposição sobre a escola:
um exercício de pensamento
Daina Leyton............................................................................235
Desenhar a escola: um exercício coletivo
de pensamento
Jorge Larrosa, Eduardo Malvacini, Karen Christine Rechia,
Luiz Guilherme Augsburger, Juliana de Favere, Caroline Jaques Cubas....249

Quarta parte – Mirar a escola: uma mostra de cinema


Celebração da revolta:
a poesia selvagem de Jean Vigo
David Oubiña...........................................................................273
Elogi de l’escola e escolta:
o ordinário da escola em imagens
Karen Christine Rechia, Caroline Jaques Cubas.................................285
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma
topologia das infâncias e suas relações com a escola
Patrícia de Moraes Lima...............................................................299
APRESENTAÇÃO

Elogio da escola: o desafio de


pensar uma forma sem função

Karen Christine Rechia, Geovana Mendonça,


Lunardi Mendes, Ana Maria Hoepers Preve

E a arte de apresentar não é apenas a arte


de tornar algo conhecido; é a arte de fazer
algo existir, a arte de dar autoridade a um
pensamento, um número, uma letra, um gesto,
um movimento ou uma ação e, neste sentido, ela
traz este algo para a vida.
(Masschelein; Simons, 2015, p. 135)

É na atmosfera de fazer algo existir, que apresentamos este


livro. Tentamos, dessa forma, aproximar os leitores de uma dis-
cussão sobre o que é a escola, fundamentalmente a partir da obra
Em defesa da escola: uma questão pública, dos filósofos da educação
Jan Masschelein e Maarten Simons (2015). Pretendemos, com
esta constelação de textos que orbitam, mais ou menos próximos
à obra acima citada, deslocar a discussão acerca da função ou do
papel social da escola, para pensar seus elementos constitutivos.
Ao envolver os leitores nessa atmosfera, temos claro que
essa configuração de textos, à semelhança do livro dos autores,
pode ser apropriada tanto pelos que defendem a escola, como
pelos que a condenam. No entanto, para além do binarismo

9
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que comporta tanto a defesa quanto a condenação, gostaríamos


que esses escritos fossem tratados muito mais como exercícios
de pensamento, no sentido de “trazer ao mundo” aspectos da
escola, do estar na escola, do ordinário da escola, de uma me-
mória escolar em suas atualizações, do chiaroscuro no cotidiano
escolar, do repetitivo na escola, enfim, de tudo o que a compõe
e a faz existir como lócus para o espaço e o tempo livres.
Todavia, isso não seria possível sem as proposições fun-
damentais, as articulações, a montagem, a disposição de ce-
nários, a reunião de personagens tão inspiradores, enfim, sem
“a presença” do educador e filósofo Jorge Larrosa. Portanto,
oferecemos aos leitores um livro coletivo, cuja centralidade
é a escola e seu caráter público, comum e de igualdade, mas
cuja materialidade só foi possível devido ao trabalho atento,
insistente e amoroso de Jorge Larrosa.
Os textos que compõem este livro foram produzidos a
partir das atividades de um grande projeto denominado “Elogio
da Escola”, que aconteceram entre agosto e novembro de 2016,
em Florianópolis, ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil.
Toda a mobilização intensiva em torno de ideias, exercícios e
escritas partiu de uma proposição de Larrosa:
Elogio. Do latim elogium e do grego elegeíon. Com raiz
indo-europeia leg, remete a uma inscrição, normalmente
um dístico, feita sobre uma tumba ou sobre uma imagem
com a intenção de louvar ou elogiar o defunto ou o per-
sonagem. Daí seu parentesco semântico com “epitáfio”
(formada pelo prefixo epí, “sobre”, e o substantivo táphos,
“tumba”) e etimológico com “elegia” (composição po-
ética, normalmente escrita em dísticos, para lamentar a
perda de algo ou de alguém).
Escola. Do grego skholé, literalmente “tempo livre”, tra-
duzido para o latim como otium, “ócio”. O termo latino

10
Apresentação

schola designa o lugar ou o estabelecimento público des-


tinado ao ensino. Poderíamos dizer que a palavra escola
remete, fundamentalmente, ao tempo (livre) e ao espaço
(público) dedicado ao estudo.
A ideia então era pensar o lugar da escola, ou melhor, o
que compõe uma escola, num mundo que parece se preocupar
apenas com sua função ou sua dissolução. Em certa medida,
a provocação de Larrosa é esta: elogiar a escola também pode
ser cantar o seu fim. Ao mesmo tempo, ao nos trazer a raiz e o
sentido grego da palavra, nos lança dois pilares fundamentais
que perpassam a maior parte dos textos aqui apresentados:
tempo livre e espaço público.
Na verdade, esses dois argumentos trabalhados por Jan
Masschelein e Maarten Simons, na obra Em defesa da escola,
fizeram com que esta fosse, ao mesmo tempo, referência e
interlocução para todas as atividades propostas neste projeto e
que culminaram no livro aqui apresentado.1
Não podemos deixar de dizer que a escolha da referida
obra não foi aleatória. Em realidade, está calcada justamente em
seu caráter aparentemente controverso e contundente. Porém,
como afirmam nossos autores, “nós nos recusamos firmemente
a endossar a condenação da escola. Ao contrário, defendemos
sua absolvição. Acreditamos que é exatamente hoje – em uma
época em que muitos condenam a escola como desajeitada à
realidade moderna e outros até mesmo parecem querer aban-
doná-la completamente – que o que a escola é e o que ela faz
se torna evidente” (2015, p. 10). Destarte, é fundamentalmente

1
É importante destacar que uma discussão em torno das ideias do livro
citado foi realizada num seminário organizado por Inés Dussel, intitulado
“Seminario Internacional – El futuro de la escuela: debates en torno a la
educación pública”, que ocorreu na Cidade do México, nos dias 9 e 10 de
outubro de 2014.

11
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

nessa recusa que encontramos motivos para insistir em colocar


a escola “sobre a mesa”, mais uma vez.
Por conseguinte, os vários movimentos realizados no
que denominamos Elogio da Escola procuraram estabelecer
uma leitura atenta da obra por grupos de pessoas interessa-
das, em diversos momentos e lugares. Nesses espaços-tempos
criados – como as Derivas, o Seminário preparatório para o
Seminário Internacional, o Ciclo de Cinema, a Exposição
sobre um desenho de Escola – foram promovidos debates,
exercícios, leituras e escrituras em torno, substancialmente,
do que é o “escolar”.2 Tal como propuseram nossos autores
em seus escritos, nós nos debruçamos exaustivamente sobre
suas “questões”: de suspensão, de profanação, de atenção e de
mundo, de tecnologia, de igualdade, de amor, de preparação e,
finalmente, uma questão de responsabilidade pedagógica. Em
suma, os intensos debates e exercícios de pensamento gerados
ao longo de todo esse percurso estão aqui impressos.
Assim, na primeira parte deste livro, os autores, de distin-
tas maneiras, versam sobre um “Elogio da Escola”, na forma
de uma linguagem e uma voz pedagógica ( Jan Masschelein e
Maarten Simons), de uma vida feita escola (Walter Kohan), de
uma precariedade da escola (Inés Dussel) e de uma capacidade
de skholé ( Jorge Larrosa e Marta Venceslao).
Na segunda parte, “Em defesa da escola: notas à margem”,
o leitor pode acompanhar as proposições feitas aos pedagogos
Jan Masschelein e Maarten Simons, em torno de sua obra Em
defesa da escola: uma questão pública. Os autores respondem aos
argumentos desenvolvidos por Inés Dussel, Walter Kohan e
Maximiliano López, assumindo o desafio de contestar alguns
referenciais da obra citada e, ao mesmo tempo, de elucidar as

2
Programação disponível em: <https://www.elogiodaescolaudesc.com/2016>.
Acesso em: 27 ago. 2017.

12
Apresentação

críticas que fazem com que seu texto provoque reações tão
ambíguas. Nesse sentido, a última seção desta parte é composta
por dez perguntas formuladas por participantes do curso “A
escola: formas, gestos e materialidades”, ministrado por Jorge
Larrosa. O curso teve como finalidade ler, discutir e propor
um diálogo com nossos autores de referência.
Como pensar a escola em sua materialidade e, por conse-
guinte, como materializar essas formas dá o tom dos escritos
em “Exercícios de pensamento sobre a escola”, que compõem
a terceira parte. No texto “Filmar a escola: teoria da escola”,
Maximiliano López escreve sobre o filme homônimo, produ-
zido pelo Núcleo de Estudos em Filosofia, Educação e Poética
(FEP) da UFJF, sob sua direção. A escola é ali apresentada em
imagens em movimento.
Daina Leyton, em “Curar uma exposição sobre a escola:
um exercício de pensamento”, escreve sobre uma exposição no
Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) com obras de
arte escolhidas e outras produzidas com este tema, obras que
convidam ao exercício. Ter a escola, e mais especificamente a
educação, como matéria-prima.3
O último texto dessa parte é coletivo: “Desenhar a escola:
um exercício coletivo de pensamento”. Jorge, Eduardo, Karen,
Luiz, Juliana e Caroline contam ao leitor sobre um intenso
exercício de desenhar uma forma para a escola. Através de
derivas no espaço urbano, os grupos envolvidos acionaram,
sob a orientação de Jorge Larrosa, noções de tempo, espaço,
matérias, atividades e tecnologias para esboçar o que cabe
numa escola. Por meio de protocolos preestabelecidos e con-
versações, o grande grupo materializou toda esta proposta

3
Com curadoria conjunta de Felipe Chaimovich, curador do Museu de
Arte Moderna de São Paulo (MAM), e Daina Leyton, coordenadora do
setor educativo, a exposição Educação como matéria-prima aconteceu em
2016 no MAM.

13
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

na forma de uma exposição, presente no DVD encartado


neste livro.
Na quarta e última parte intitulada “Mirar a escola: uma
mostra de cinema”, os escritos giram em torno de filmes que
trazem a escola, suas formas, sujeitos e situações como leitmotiv.
A seleção não diz respeito a filmes que falam sobre a escola, ou
tão somente sobre temas pedagógicos, não se refere a aspectos
educacionais independentes do espaço no qual se articulam,
mas a películas que mostram a escola, a colocam em evidência.
O primeiro filme é Zero de conduta (1933), de Jean Vigo,
cuja trama se passa em um colégio interno. Acompanhamos
seu cotidiano até culminar em uma rebelião dos garotos con-
tra o controle dos adultos. David Oubiña, ao afirmar que o
filme “é um ensaio poético da liberdade versus a autoridade”,
descreve algumas das características vigorosas de Jean Vigo
em seu cinema.
Caroline Jaques Cubas e Karen Christine Rechia se aven-
turam a cotejar dois documentários catalães, Elogi de l’escola
(2010) e Escolta (2014), ambos filmados no espaço escolar. O
interesse das autoras é justamente o de pensar a escola, na es-
cola, sobre a escola, através do cinema.
No texto seguinte, a autora Patrícia de Moraes Lima busca
certa topologia das infâncias presentes no espaço institucio-
nalizado da escola, ao analisar o filme Ser e Ter (2002), cuja
narrativa versa sobre uma pequena escola multisseriada numa
cidade rural francesa.
A essas quatro partes soma-se um DVD, que contém
o filme de Maximiliano López, Teoria da Escola, e os docu-
mentários catalães Elogi de l’escola (2010), de Cinema en curs
e A Bao A Qu, e Escolta (2014), de Pablo García Pérez de
Lara, constituindo-se uma expressiva trilogia sobre o espaço,
o tempo e as materialidades escolares. Somado a essas obras
audiovisuais, há um registro da exposição do Museu de Arte

14
Apresentação

Moderna de São Paulo (MAM), A educação como matéria-prima,


e do processo da exposição das derivas urbanas intituladas
Desenhar a escola: um exercício coletivo de pensamento, em Floria-
nópolis, expostas no Museu da Escola Catarinense (MESC) e
realizadas no Instituto de Documentação e Investigação em
Ciências Humanas (IDCH) do Centro de Ciências Humanas
e da Educação (FAED/UDESC).
Por fim, afirmamos que a ideia de elogio é diferente da
de defesa, celebração, ou apologia da escola. Tomamos elogio
no sentido grego de mostrar o que é, ou seja, de mostrar as
virtudes da escola. O leitor por certo perceberá que os textos,
filmes e exercícios não buscam idealizá-la, mas tão somente
mostrá-la. Asseguramos, assim, que a escola segue existindo
a cada vez que é apresentada, pois, como enuncia nossa epí-
grafe, “a arte de apresentar não é apenas a arte de tornar algo
conhecido; é a arte de fazer algo existir”. De certa maneira,
na sua “forma”, a escola é mais potente que em sua “função”.

Referência
MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública.
Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica,
2015. (Coleção Educação: Experiência e Sentido.)

15
Primeira parte
ELOGIO DA ESCOLA
A língua da escola: alienante
ou emancipadora?1

Jan Masschelein, Maarten Simons


Tradução: Fernando Coelho

Em defesa de nossa defesa


Poderia soar ultrapassado ou arrogante, conservador e,
para alguns, agressivamente neocolonial tentar defender a
escola como afirmamos no título do nosso pequeno livro,
publicado em português como Em defesa da escola: uma questão
pública, em 2014. De fato, em diversos lugares pelo mundo
(incluindo o contexto brasileiro e, de modo mais amplo, o sul-
americano) a escola tem sido acusada de ser um maquinário
normalizador, colonizador e alienante, que impõe, estabelece
e reproduz mais ou menos violentamente certa ordem social
(com frequência a de um Estado-nação), na qual a língua cer-
tamente desempenha um papel central. Com efeito, a língua
da escola é uma questão que não tratamos em nossa defesa,
mas tencionamos realizar uma tentativa muito preliminar,
sem prevenções e indubitavelmente muito discutível, de li-

1
Uma versão inicial deste texto foi publicada em inglês no livro O ato de educar
numa língua ainda por ser escrita (Rio de Janeiro: NEFI, 2016) e em português,
em versão diferente e com outra tradução, na revista Childhood & Philosophy
(Rio de Janeiro: UERJ, v. 13, n. 27, maio-ago. 2017).

19
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

dar com ela nesta contribuição. Contudo, queremos lembrar


explicitamente que não pretendemos defender a escola como
uma instituição do Estado. Quisemos e ainda queremos tirar
a escola das mãos daqueles que a confundem com todos os
tipos de mecanismos manipuladores e institucionalizantes.
Não ignoramos nem trivializamos esses mecanismos – de
modo nenhum –, mas pensamos que é mais justo falar educa-
cionalmente e de modo apreciativo sobre a escola em primeiro
lugar. Nossa ambição foi articular as experiências escolares,
não as experiências institucionalizadas que com frequência
são mobilizadas para atacar a escola (ver também o capítulo
“Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma
voz pedagógica”, neste volume). Mas para deixarmos claro
desde o início, queremos enfatizar que a escola, assim como
a democracia, é uma invenção (igualmente surgida na Grécia
Antiga e talvez ainda mais radical do que a própria invenção
da democracia), e como tal nada tem a ver com o tipo de
aprendizagem natural ou informal que é frequentemente (im-
plícita ou implicitamente) adorada por aqueles que se opõem a
formas institucionalizadas (ou “artificiais”) de aprendizagem.
Na verdade, presumimos que a nossa análise explícita das
acusações dirigidas à escola e a extensa atenção que demos
a todos os tipos de domesticação da escola sejam suficientes
para certificar o leitor do livro de que somos conscientes
da maior parte das críticas (incluindo-se a feita por radicais
desescolarizadores como Ivan Illich) que têm sido, com fre-
quência e corretamente, dirigidas à escola. Esperamos que
isso ajude o leitor, pelo menos por um momento, a desfazer
a forte inclinação (muito comum e de fato assaz acrítica) de
recolocar em cena todas aquelas frustrações bem conhecidas
e facilmente reconhecíveis que dizem respeito à escola (que é
enfadonha, disciplinadora, formal, “morta”, não relacionada
ao mundo da vida, excludente, etc.). Convidamos o leitor

20
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

a acompanhar-nos em nosso esforço de explorar o que faz


da escola uma escola a partir de um ponto de vista educacional.
Esse não é um ponto de vista sociológico em termos de
funções, nem filosófico em termos de ideias ou propósitos,
nem psicológico em termos de desenvolvimento, nem ético
em termos de valores, normas ou relações interpessoais, nem
ainda político em termos de luta ou interesses. É um ponto
de vista educacional em termos das operações efetivas e reais
realizadas por um arranjo particular de pessoas, tempo, espaço
e matéria. Essas operações são emancipadoras em si mesmas
(se a escola não estiver domesticada).

Resumindo a escola
Resumamos brevemente essas operações, uma vez que de-
veremos tê-las presentes ao tratar da questão da língua escolar:
(1) a operação de considerar cada um como “estudante” ou “alu-
no”, isto é, suspendendo, não destruindo, os laços de família e do
Estado ou de qualquer comunidade “fechada” ou definida; (2)
a operação de suspensão, isto é, de colocar temporariamente fora
do efeito da ordem ou do uso habitual de coisas; (3) a operação
de criar “tempo livre”, isto é, a materialização ou espacialização
do que os gregos chamavam de skholé: o tempo para o estudo
e o exercício; (4) a operação de fazer (conhecimento, práticas)
públicas e colocar (a elas) sobre a mesa (o que também poderia ser
chamado de profanação); (5) a operação de tornar “atento” ou de
formar uma atenção que se apoie em um duplo “amor”, tanto pelo
mundo como pela nova geração, e em práticas disciplinadoras,2
para tornar a atenção e a renovação possíveis. A escola (como

2
Esta disciplina não tem a ver com a normalização de corpos e práticas,
mas com a capacitação da atenção e a obtenção de uma forma que permita
cuidar. Poder-se-ia pensar na disciplina do atleta para manter o seu corpo (e
mente) em boa forma.

21
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

forma pedagógica) consiste, então, em uma associação de pessoas


e coisas como um modo de lidar com, prestar atenção a, cuidar
de alguma coisa – obter e estar em sua companhia – na qual esse
cuidado implica estruturalmente uma exposição. A escola nesse
sentido, isto é, como forma pedagógica, não está orientada para
nem domesticada por uma utopia política, nem ainda por uma
ideia normativa de pessoa, mas é em si mesma a materialização de
uma crença utópica: cada um pode aprender tudo. Essa crença não é,
a nosso ver, um tipo de objetivo ou alvo (projeto no futuro), mas
o ponto de partida. Há claramente outros pontos de partida pos-
síveis quando se fala de aprendizagem (por ex., certos estudantes
deveriam a priori ser excluídos de algumas matérias; a habilidade
natural é um critério decisivo para decidir sobre quando e o que
aprender). A escola, para nós, torna possível o “cada um pode”,
por um lado, e o “tudo”, por outro. Em outras palavras, em vez
de pensar como uma escola utópica ou um sistema educacional
utópico seriam (como muitas vezes é o caso), sugerimos olhar
para a escola em si mesma, e através do que ela faz por meio da
sua forma pedagógica, como a materialização da ideia utópica
de que cada um pode aprender tudo. O que a forma escolar faz
(se funciona como uma escola!) é o duplo movimento de trazer
alguém para uma posição de ser capaz (e portanto transformar
alguém em um aluno ou estudante), o que é ao mesmo tempo
uma exposição a algo de fora (e assim um ato de apresentação e
exposição do mundo).
Ademais, como já afirmamos acima, somos conscientes de
como, desde a sua origem até os dias de hoje, a “escola” como
forma pedagógica esteve sujeita a todos os tipos de táticas e
estratégias, mais ou menos efetivas, para neutralizar, recuperar,
instrumentalizar ou domesticá-la, significando que o que é cha-
mado de escola muitas vezes não é escolar em absoluto. E como
hoje, em parte por causa dos desenvolvimentos das TICs (isto
é, aprendizagem digital), se chega a dizer que a escola em breve

22
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

desaparecerá. E, claro, nossa defesa da escola não menosprezou as


críticas devastadoras e profundas contra a escola como sendo algo
como uma prisão, como um maquinário subjugador, opressivo,
colonizador, bancário, ou como uma tecnologia antiquada de
poder. Entretanto, não quisemos sustentar que a escola como a
conhecemos hoje, enquanto instituição ou organização, é escolar
no sentido em que tentamos elaborar. Mas acreditávamos e ainda
acreditamos que vale a pena tentar desenterrar as operações radi-
cais e revolucionárias da escola como uma prática e um arranjo
pedagógicos para tornar coisas públicas e para reunir pessoas e o
mundo, os quais surgiram na Grécia.
Sustentamos, com efeito, que exatamente como os gregos
inventaram um modo particular de lidar com a vida em comu-
nidade, o qual é chamado de democracia (e que provocou, é
certo, grandes questões e debates acerca de sua “essência”, sua
“desejabilidade”, sua “efetividade”, desde o início), eles tam-
bém inventaram um modo particular de lidar com o mundo
comum em relação às novas gerações. Isto não é socialização
ou iniciação, mas precisamente educação escolar, ou seja, tirar
a nova geração de (qualquer) família e colocá-la na escola. A
escola é em primeiro lugar e primordialmente um arranjo
particular de tempo, espaço e matéria em que os jovens são
colocados em companhia de (alguma coisa de) o mundo de um
modo específico. Tentamos explorar aquilo em que consiste
essa invenção educacional, não para idealizar o passado (não
se trata de modo algum de romantizar a escola), ou pior, para
retornar ao passado (restaurando a escola tradicional). A razão
pela qual assumimos essa abordagem é que pensamos que ainda
vale a pena lidar com o futuro do nosso mundo e das gera-
ções vindouras nesse modo pedagógico que chamamos escola.
Embora, exatamente como com a democracia, permaneça a
questão que deve ser discutida e que merece a nossa atenção
(isto é, uma questão pública). Muitas das acusações dirigidas à

23
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

escola parecem ser a articulação de um desprezo total a quase


todos que estão envolvidos com a educação.
Há muitas versões desse olhar de reprovação para a edu-
cação, variando desde a acusação frequente de que o ensino
não é um verdadeiro trabalho, até a de que a pesquisa edu-
cacional não é uma pesquisa verdadeira, ou ainda que a teo-
ria e a filosofia da educação são marginais. A nosso ver, esse
desprezo de fato exprime como a sociedade lida com o que
é imaturo, com menores, e que se aceita e se protege sempre
a ideia de que estar envolvido em assuntos sérios exige um
tipo de maturidade ou que se seja adulto. Não há sempre um
medo profundo que motiva esse tipo de atitude? Resulta do
reconhecimento de que a geração vindoura de fato se torne
a nova geração, e questiona direta ou indiretamente o que
os adultos valorizam e assumem como dado. Em nosso livro
Em defesa da escola, corremos o risco de usar a noção de escola
como a configuração de espaço-tempo sempre artificial que
torna essa experiência educacional radical possível, ao invés de
usar o conceito para o que torna essa experiência impossível.
Na realidade, pensamos que é nosso dever como teóricos da
educação tirar o conceito de escola das mãos daqueles que o
usam apenas para expressar frustrações ou expectativas políticas,
econômicas e éticas (isto é, para instrumentalizá-lo em relação
a ideais ou projetos políticos ou éticos). Se a escola não satisfaz
as expectativas de alguém, não é também por que os jovens
(às vezes) não satisfazem expectativas, não cabendo, portanto,
ou não querendo caber na imagem que temos em mente para
eles? Se é esse o caso, tudo isto é acerca do medo da escola,
na medida em que a escola remete ao tempo e ao espaço que
começam a partir da pressuposição de que seres humanos não
têm um destino (natural, social ou cultural, etc.), e que portanto
devem ter a oportunidade de encontrar o seu próprio destino.
Queremos reservar o conceito de escola para essa simples mas

24
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

abrangente pressuposição. E a desescolarização, para nós, tem


a ver com a pressuposição inversa de que a sociedade tem que
impor um destino para os jovens através do desenvolvimento
do que chama de seus “talentos naturais”, através da projeção
de uma imagem predefinida da pessoa educada, do verdadeiro
cidadão, do eterno aprendiz e assim por diante.

Exercícios para a familiarização


Sugeriu-se que ao defendermos a escola estamos olhando
para o passado de um modo idealizado, com nossas costas volta-
das para o futuro e sem notarmos os cruciais desenvolvimentos
históricos, os desafios atuais e outras conceitualizações úteis.
Não estamos seguros disso. Temos nós outros a experiência
de viver no presente e de tentar nos abrir para o futuro pela
intervenção em conceitualizações atuais da escola incluindo
narrativas históricas (da crescente normalização, da educacio-
nalização, etc.), que são parte das nossas conceitualizações.
Nesse sentido, nosso livro talvez seja uma contranarrativa.
Ou para continuar numa linguagem foucaultiana: o livro não
tem em vista uma ontologia crítica, mas criativa, do presen-
te, e a história não é usada para “desfamiliarizar” através da
advertência de como a educação escolar é de fato opressiva
devido aos poderes políticos, econômicos ou outros, mas para
“familiarizar” pela lembrança do que a escola torna possível,
e isso também devido ao fato de termos sido jovens.
A fim de esclarecer ainda mais o que tencionávamos e
estamos tentando fazer, e o que estamos defendendo e jul-
gamos muito digno de defesa – e que não é nem o “ensino”
nem a “aprendizagem”, mas a “escola” –, queremos aproveitar
esta oportunidade para abordar de um modo “familiarizador”
a questão realmente difícil e desafiadora da língua da escola.
Uma questão que surgiu com força em discussões que tivemos

25
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

sobre o nosso livro no Brasil durante os dois últimos anos, mas


que é agora muito debatida em nosso próprio país em relação a
questões de migração (incluindo a chegada de refugiados) e de
identidade (nacional). Trata-se de uma questão que está enfática
e talvez também paradigmaticamente presente em Bruxelas, não
somente capital da Bélgica (com suas três línguas oficiais) e da
“Europa” (“reconhecendo” todas as línguas “nacionais” dos seus
Estados-membros), mas também em outro sentido um ambiente
urbano extremamente multicultural e multilinguístico (mais
de 110 línguas são faladas nessa cidade). A questão da língua da
escola é, claro, também uma questão que já tem recebido muita
atenção de teóricos e críticos que lidam com a “escola” no que
diz respeito a questões sociais tais como o (neo)colonialismo, a
justiça e a equidade. Algumas das análises são famosas e influen-
tes. Por exemplo, a análise sociolinguística de Basil Bernstein
(1971), que faz uma distinção entre o uso de um código restrito
e de um elaborado, sugerindo uma clara relação de classe so-
cial; uma análise que Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron
(1970) sustentaram, embora dentro de um contexto teorético
diverso; o ataque incisivo de Ivan Illich contra o modo pelo qual
várias autoridades políticas impuseram uma língua “nacional”
através da desvalorização de línguas vernáculas (1981/2009).
E, sem dúvida, a crítica de Paulo Freire ao modo pelo qual as
“palavras” (língua) do grupo social dominante (os opressores)
não só alienam os oprimidos de suas experiências, mas também
funcionam como um mecanismo para instalar e reproduzir uma
ordem social injusta existente (1968/1970).
Embora reconheçamos a importância dessas análises – e
voltaremos a algumas delas –, em nossa contribuição tentare-
mos oferecer algumas reflexões em uma perspectiva diferente.
Deveríamos também afirmar desde o início que não temos uma
resposta clara e definida, e portanto não construiremos um ar-
gumento sistemático, mas queremos oferecer algumas reflexões

26
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

em forma de sugestões, hipóteses e possíveis consequências.


Essas reflexões não pretendem estabelecer a questão da língua
na escola, mas abrir (ou apenas iniciar!) outra abordagem para
essa questão, a qual chamamos de um alinhamento estritamente
pedagógico com o que havíamos indicado: pensar sobre a
língua a partir (de exigências) da escola (e não do indivíduo,
da família, da sociedade) como um arranjo para oferecer aos
“menores” (e talvez também minorias) ao mesmo tempo a
oportunidade de encontrar ou definir o seu próprio destino
(isto é, tornarem-se alunos ou estudantes) e para questionar
direta ou indiretamente o que os “adultos” (ou outras maiorias)
valorizam e lhes apresentam. Talvez isso possa ajudar a pensar
sobre a questão da língua em uma perspectiva que não é ime-
diatamente ocupada por considerações políticas, sociológicas ou
psicológicas externas, que não implica de modo nenhum que
estas não sejam importantes. Esperamos que uma abordagem
pedagógica da língua escolar possa esclarecer como a educação
escolar é intrinsecamente política (de uma perspectiva inter-
na), embora não no sentido de ser instrumental para objetivos
políticos predefinidos fora da escola.
Avançar além dessas considerações políticas externas e
abordar a questão da língua da escola em uma perspectiva
pedagógica são o verdadeiro desafio que temos que enfrentar.
Contudo, mais uma vez, parece que é impossível discutir a
língua da escola sem entrar imediatamente em uma discussão
política, sofrendo a acusação de sempre assumir previamente
uma posição política. Não queremos desconsiderar a política
nas questões linguísticas envolvidas, mas ao introduzir uma
perspectiva pedagógica sobre a língua da escola esperamos
que se torne possível olhar para a política da língua da escola
sob outro prisma. A hipótese pedagógica que elaboraremos
pode ser reformulada como segue: a língua da escola é sempre
uma língua artificial, uma vez que deve abordar, por um lado,

27
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

a próxima geração como a nova geração e, por outro, deve


tentar transformar os “objetos” (algo do mundo) em assuntos
escolares. A educação escolar “exige”, por assim dizer, uma
língua particular por razões pedagógicas. O resultado é que
somente na escola, enquanto se é exposto à língua artificial
da escola, algo como uma língua materna (a língua falada em
casa ou em uma comunidade local) e uma língua paterna (a
língua oficial, institucionalizada e/ou do Estado), assim como
a sua relação (potencialmente conflituosa), se tornam uma
questão. Provavelmente essas “línguas” precedem à língua da
escola, mas é a escolarização que transforma a sua existência e
a sua relação em uma questão. Por essa razão, nossas reflexões
tentarão levar em conta algumas observações que têm sido
feitas em relação à língua “materna” e “paterna”.3 Entretanto,
tentaremos indicar por que e em que sentido poderíamos di-
zer que a língua da escola é de fato a língua das crianças (ou
talvez melhor: a do aluno ou estudante) e a língua dos poetas
e por que isto implica uma crise ou interrupção radical da
lógica (edípica) de qualquer família (incluindo a “nacional”,
“nativa” e “científica”, etc.).4

3
Essas noções podem ser tomadas de diferentes modos, e as tomamos aqui
em referência à língua (possivelmente línguas no plural) falada em casa,
a língua materna, e a língua oficial (possivelmente também no plural),
a língua paterna. Esse uso dos termos é diferente, por ex., de Thoreau,
para quem a língua paterna se refere à língua escrita (literária) (ver
STANDISH, 2006), ou, por ex., Illich, que não usa a noção de língua
paterna, mas diferencia a língua vernácula da língua materna (ILLICH,
1981/2009). A língua materna é a língua artificial imposta pelo Estado
como a oficial.
4
Com isso queremos dizer que com frequência abordamos a escola de
um ponto de vista da família (quer no sentido da família privada, quer
no sentido da nacional) como um lugar em que a busca de identidade,
o complexo ou a luta identitária entre pai e mãe acontece. Contudo,
sustentamos que a escola, em que cada um se torna aluno como qualquer
outro (e lembramos que um dos principais significados da palavra latina

28
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

A língua da escola: um caso de amor


Talvez seja importante, em primeiro lugar, esclarecer
mais detalhadamente o que temos em mente quando nos
referimos à língua da escola. Pode significar pelo menos
duas coisas. Primeiro, o que é frequentemente chamado de
língua de instrução ou comunicação, e portanto a língua
comum em que ou através da qual os estudantes aprendem.
Segundo, há a língua, ou com frequência as línguas, que os
estudantes aprendem (a falar, escrever...) na escola ou que eles/
elas aprendem ou estudam durante o tempo escolar. Nosso
foco recai sobretudo no primeiro significado, ou seja, a lín-
gua que é parte de práticas pedagógicas nas escolas. Como
foi anunciado antes, formularemos a hipótese de que esta
língua é sempre artificial, que não é uma língua “natural”
(não vernácula ou nativa), nem um tipo de língua “sagrada”,
que é conservada ou protegida por uma autoridade qualquer.
Ser a língua artificial significa que é sempre algo “feito”.
Para dizê-lo sem rodeios: ninguém de fato fala a “língua da
escola” em casa ou no trabalho (com exceção do professor).
Quando deixam a família e entram na escola, os estudantes
confrontam-se frequentemente com a língua que difere da
que eles/elas estão acostumados a falar. A língua falada em
casa pode ser uma língua completamente diferente, ou um
tipo de dialeto. Neste ponto, avançaremos enfaticamente
que a diferença entre dialetos e línguas realmente diferen-
tes não é a questão principal aqui, o que importa é que a
língua da escola sempre é diferente daquela falada, por as-
sim dizer, “antes” da escola. Mas a língua falada na escola
também é diferente da língua (ou línguas) faladas “depois”

“pupillus” é “órfão”) interrompe essa lógica edípica dentro de qualquer


família.

29
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

da escola. Estas podem ser dialetos, mas também línguas


institucionalizadas e protegidas ou “oficializadas” de uma
comunidade ou país. Certamente, a língua da escola tem
conexões com essas outras línguas, mas é sempre uma língua
transformada, modificada.
Levando em conta as características típicas da escola como
forma pedagógica, e considerando a escola como parte de um
arranjo escolar pedagógico, há pelo menos duas razões pelas
quais a língua da escola é artificial, ou mais precisamente: duas
operações pedagógicas que fazem a língua da escola.
A primeira é que a escola é o lugar em que a matéria
(assunto) deixa uma marca na língua. Tome o exemplo do
professor de física, história ou matemática. Uma língua espe-
cífica – no caso extremo de uma língua altamente formalizada
ou simbólica – é necessária para que o mundo (da física, da
história, da matemática) se torne um objeto de estudo. Não se
trata apenas do fato de que algumas palavras não fazem parte
(ainda) do vocabulário utilizado na família ou na comunidade
local. Não é apenas que a língua da escola seja mais formal.
Talvez isso tudo seja o caso. A principal questão aqui não é
apenas a diferença entre o código restrito e elaborado que es-
conde diferenças de classe, como mencionou Bernstein (1971).
O que queremos enfatizar é que a língua da escola é sempre
parcialmente marcada ou mesmo coconstruída pela matéria.
E por essa razão é sempre uma língua que é de algum modo
“esvaziada” ou “limpada” de todos os tipos de imposições ou
associações (culturais, sociais, políticas...), e exatamente porque
é usada para apresentar o mundo aos/às estudantes, ela quer no-
mear o mundo sem já cercá-lo.5 Não há língua completamente

5
Nesse contexto, temos que nos referir explicitamente a Paulo Freire, que
no terceiro capítulo do seu livro Pedagogia do oprimido afirma que palavras
“reais” são sempre ação no mesmo momento (sem ser ativismo), elas são
ações sobre o mundo, o que em nosso entendimento implica que como

30
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

neutra, mas a língua na escola – pelo menos no momento em


que contribui para “fazer” a escola – é exitosa em nomear o
mundo (e trazer algo para o primeiro plano) sem qualquer dos
tipos de imposições e reivindicações de predomínio.
A segunda razão para o caráter artificial da língua das
escolas é que nas escolas – pelo menos no sentido em que
usamos a palavra escola – fala-se à nova geração e ela é con-
vidada a deixar o seu mundo da vida. Consiste na exposição
e na reunião de jovens em torno de uma matéria (assunto) de
preocupação. Em outras palavras, é uma língua que deveria
ter a força de reunir e expor de tal modo que os jovens fossem
colocados na “(ex-)posição” na qual se tornam estudantes, e
assim fossem capazes de começar a dar sentido, eles próprios,
ao mundo e fossem capazes também de “formar” a si próprios
pela prática e o estudo, pelas habilidades e o conhecimento.
Como tal, essa língua está convidando a falar, e portanto
também é sempre uma língua que pode alcançar, que pode ser
esticada, que pode ser mudada sem muitas consequências. Em
certo sentido, é um tipo de língua poética: pode ser dirigida
a qualquer pessoa, e embora convide e mostre, não impõe
necessariamente expectativas. A língua da escola é aqui uma
língua que permite à próxima geração tornar-se de fato a nova
geração, sendo portanto uma língua que não é reivindicada
pelos professores (ou outros), mas uma língua de palavras que
podem ser dadas (ou distribuídas).
Reunindo ambos os aspectos, e valendo-nos das ideias
de Hannah Arendt, afirmamos que a língua da escola é um

palavras elas não são apropriadas. Elas nomeiam o mundo e ao fazer isso
podem transformar o mundo. E as mesmas palavras (por ex., a capital do
Pará é Belém) podem ser ditas como palavras reais (ou seja, quando essas
palavras obtêm significado ou vêm à vida mas também podem receber
novos significados) ou como palavras alienantes (quando elas são apenas
conhecimento morto).

31
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

tipo (estranho) de língua amorosa que põe em cena o amor


combinado pelo mundo e pela nova geração. É uma língua
de nomeação (sem interdição), de convite (sem interpelação),
para fazer algo (matéria) falar (sem silenciar os estudantes),
para dar palavras (sem impor definições fechadas ou pedir
retorno) de hiperfuncionalidade (exatamente por remover
funções específicas). Provavelmente isto também explica que a
língua da escola está muitas vezes próxima da língua dos “po-
etas”, por um lado (língua para nomear, convidar, inspirar,
fazer falar),6 e da língua da ciência ou da língua acadêmica
(uma língua altamente funcional e abstrata), por outro lado,
pois ambas são línguas que também são trabalhadas ou feitas
(não sendo a língua nativa de ninguém). Mas essas línguas
são ao mesmo tempo muito diferentes da língua da escola.
Não se trata apenas de alcançar o mundo, mas também a
próxima geração. Aqui, provavelmente, a repisada observação
(como reclamação) de que o professor é “artificial e afetado”

6
Como parêntese, é interessante notar que se atribui aos sofistas, – aos quais
devemos a primeira articulação da crença em que seres humanos têm que
encontrar o seu próprio destino, e nesse sentido eles se relacionam com o
surgimento da “escola” –, o fato de terem continuado a tradição dos poetas
gregos, que não estavam a serviço de Apolo, o deus da sabedoria, mas
recebiam a sua língua de Mnemosine, a deusa da memória, e suas filhas,
as Musas, que antes de tudo dizem e lembram “estórias”, comunicam o
seu entusiasmo e inspiram – e não impõem – “significado”, e nesse sentido
podem contribuir para “formar” pessoas ou permitir que se formem a si
mesmas. Essa formação implica crucialmente a memória e a apresentação. É
revelador o fato de que, para que o contador de estórias orais memorizasse
o conteúdo, os poemas contivessem muita repetição e epítetos formulares
para manter a estrutura de hexâmetro. Eles eram, podemos dizer,
gramaticalizados. E podemos lembrar que a Ilíada e a Odisseia foram
transmitidas em dialeto grego épico, que é um dialeto puramente literário,
que combina vocabulário e mesmo formas gramaticais de vários dialetos
gregos. Ninguém nunca falou épico como a sua língua nativa. A partir disso
podemos dizer, com efeito, que a língua da escola é de certo modo a língua
de “poetas”, que nunca é “nativa” e é sempre crucialmente artificial (ou
ainda ficcional, isto é, “feita”).

32
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

demais ou “acadêmico” demais no seu linguajar. Mas isto


poderia explicar também por que a língua da escola é ao
mesmo tempo também uma língua algo familiar, ou seja, que
alcança a vida familiar e o mundo da vida dos estudantes.
Mas, novamente, não é a língua “deles”, e quando a língua
da escola desejasse tornar-se a língua deles, seria difícil al-
cançar o mundo (além do seu mundo da vida). Seria difícil
fazer uma exposição e dar ao mundo a oportunidade (de
objetar, tocar...). Poder-se-ia dizer que essa língua dentro do
arranjo escolar – e quando de fato funciona como arranjo
escolar – é um (puro) meio de comunicação, ou talvez mais
precisamente, um meio de comunicação.
Deve estar claro que a nosso ver a questão sobre a língua
da escola relaciona-se, na verdade, com a questão óbvia de
como as gerações podem se comunicar. Contudo, é importante
sermos mais precisos acerca disso. A questão das gerações, em
nossa visão pedagógica, não se refere a uma questão de idade
ou de tempo que implica a pressuposição de que as gerações
são dadas e evoluem (como um tipo de lei da natureza). As
gerações são sempre feitas, e elas vêm à existência como o re-
sultado do ato de colocar algo sobre a mesa e libertá-lo. Elas
não preexistem a esse ato escolar. O ato escolar torna possível
uma nova geração, e isso implica que a língua da escola seja
artificial, e de fato nunca possa ser possuída, mas aberta para
uso livre. Se é esse o caso, deveríamos evitar fazer da questão
da língua da escola rápido demais uma questão política de línguas
de minoria e de maioria, ou de línguas oficiais e aquelas que
não são oficialmente reconhecidas ou protegidas. A língua na
escola – e novamente temos de enfatizar: se funciona como
língua da escola – nunca pode ser apenas uma língua de maio-
ria (nem de uma minoria). Claramente, a língua da escola é
frequentemente a língua da maioria, ou muito próximo da sua
língua, mas não é (mais) a sua língua.

33
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Explorando as consequências de uma hipótese


Os esboços anteriores e breves devem ser suficientes para –
esperamos – formular a nossa hipótese: a língua da escola é sempre
uma língua artificial (purificada, funcionalizada...) que permite à
próxima geração nomear o mundo e, enquanto o faz, torna-se a
nova geração. Essa hipótese também pode ser formulada de um
modo mais radical: não importa qual língua é falada na escola,
mas quando uma língua se torna uma língua de escola, a escola
impõe certas operações sobre a língua para poder atuar como
uma escola. Esperamos que a hipótese tenha alguma credibili-
dade no sentido de estarmos preparados para pensar além com
base nesse delineamento e explorar as suas consequências. Mas
esta é uma hipótese real para nós, no sentido de que não estamos
certos (ainda) se essas consequências podem sustentar a hipótese
ou miná-la completamente.
Uma consequência – e de certo modo assaz radical – seria
não apenas que a língua da escola é uma língua artificial, mas
também que a língua falada na escola é bastante arbitrária e
parcialmente acidental. É arbitrária sob a condição de que as
ligações (e as expectativas relacionadas a essas ligações) com a
língua materna ou paterna sejam suspensas. Para reformular essa
afirmação: a língua da escola sempre vem de algum lugar (e é
provável que venha em muitos casos por imposição ou outros
jogos de poder mais ou menos abertos), mas a sua genealogia
(e obrigações de família – em relação à mãe/lar ou pai/nação)
deveria ser suspensa a fim de oferecer à próxima geração a
educação escolar. A língua da escola é de certo modo uma
escolha arbitrária, mas uma escolha que impõe responsabili-
dades pedagógicas específicas que exploraremos na próxima
consequência. Há um elemento adicional aqui: de fato, uma
vez que a escola tem a ver com a possiblidade de se relacionar
com aquilo que define a vida de alguém (isto é, tem a ver com

34
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

emancipação) e não apenas com estar imerso ou cercado por


isso, a escola sempre deveria, pelo menos, incluir a profanação
da língua materna (ou língua da família). O que significaria,
por exemplo, que, para uma família árabe viver em Bruxelas,
a língua árabe deveria estar presente na escola, mas como uma
matéria do modo como indicamos anteriormente.
A segunda consequência é que uma vez que a língua da
escola é uma língua que não é (ainda) falada pelos estudantes
(em graus variáveis), é responsabilidade da escola – por amor à
próxima geração – ensinar ou fazê-los aprender a língua da escola.
Para dizê-lo de modo mais direto: esta é de fato uma questão
de dialeto, e dever-se-ia tomar cuidado para não transformá-la
rápido demais em uma questão cultural, social ou política. Ao ter
(ou “decidir” sobre) uma língua escolar particular, diferentes
estudantes (de diferentes origens) são colocados imediatamente
em um começo ou posição inicial, e a escola tem de compensar
e remediar esse fato. Novamente, sugerimos ver essa questão não
imediatamente em termos de atos de imposição cultural ou como
uma questão de raciocínio deficitário ou “tratamento” imposto.
Essas categorias (críticas) só fazem sentido se a língua da escola
é abordada em termos de minoria e maioria, língua oficial ou
da família. Como se esclareceu antes, preferimos considerá-la
algo intergeracional e artificial, e portanto a questão talvez seja
primordialmente “didática” (ou seja, como compensar a diferença
em uma situação inicial?).
A terceira consequência talvez seja a de que na educação
escolar a língua paterna ou materna é a um só tempo transfor-
mada em uma matéria. E nesse sentido também se torna a língua
que começa a gaguejar, a hesitar, a despedaçar-se, é analisada,
invertida, recomposta, recriada – a língua do estudante/crian-
ça. Novamente, devemos ser mais precisos em relação a isso. A
existência da língua escolar artificial, e ao ser confrontado com
ela, faz algo aparecer como língua materna ou língua paterna

35
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

(semelhantemente à ideia de que a existência da escola transforma


a sociedade em uma questão de preocupação). Talvez essa seja
a primeira responsabilidade em relação à próxima geração: gra-
maticalizar a língua paterna ou materna, e permitir que a língua
se torne um objeto de estudo, isto é, algo com que se relacionar
(ao invés de se estar completamente absorvido ou imerso nela).
Isso implica, primeiramente, que a língua deve estar
“disponível” ou ser ”dada” de alguma maneira, deve ser re-
presentada ou deve ser possível tê-la à mão, por assim dizer
(para consumi-la repetidamente). Portanto, a língua tem que
ser gramaticalizada primeiramente no sentido de que deve ser
“escrita” (tomado em sentido amplo). Significa que não po-
demos ter escola sem escrita. Escrever torna possível voltar ao
que é dito, ao que é conhecido, arquivá-lo, passar para frente,
analisá-lo como um “objeto”, retomá-lo, etc. Em segundo
lugar, a gramaticalização refere-se também à gramática não
apenas em sentido estrito, mas de modo mais amplo à externa-
lização e materialização do que permanece costumeiramente
cercado (os elementos básicos, princípios, regras, definições...).
“Naturalmente” não se encontrará a língua transformada em
letras/cartas que são encontradas no alfabeto ou na caixa do
correio. Sem essa gramaticalização do “natural” privamos as
crianças de se relacionarem com o mundo e com o que as
definem em grande medida (isto é, precisamente a língua).
Portanto, há de fato uma diferença entre “aprender fazendo”
e a “aprendizagem escolar”. Ainda que, realmente, as gramá-
ticas sejam frequentemente chatas e muito inúteis em termos
de uso imediato, é o conhecimento das gramáticas (em senti-
do amplo) que permite que não fiquemos apenas absorvidos
ou trancados em nosso próprio mundo da vida.7 Podemos

7
E pensamos aqui também que estamos muito perto da prática educacional
real à qual Paulo Freire deu forma. De fato, ela tinha a ver com a alfabetização

36
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

também reformular isto como segue: se a escola afirma que


o português ou o holandês é a língua da escola, deve reco-
nhecer não apenas que é a “escola portuguesa” ou a “escola
holandesa” (como uma língua materna ou paterna), mas ao
mesmo tempo permitir que os estudantes se relacionem com
a sua língua materna ou paterna.
A quarta consequência é que a escola tem que oferecer
sempre mais do que uma língua a ser aprendida e estudada como
matéria. Esta é de fato uma maneira poderosa (a única?) de con-
tribuir para a profanação da comunicação, ou seja, permitir aos
jovens a experiência da habilidade/potencialidade de comunicar
e a habilidade/potencialidade de traduzir. Mais línguas ajudam a
impedir que a língua da escola se transforme em uma ferramenta
para batizar a nova geração. Aqui devemos ter presente que essas
línguas também se tornam um objeto de “estudo” (não apenas
prática). Ou dito de outra forma: na escola pelo menos duas
línguas devem ser gramaticalizadas para permitir a experiência
crucial da “traduzibilidade”, a experiência de estar-no-meio
ou, como Michel Serres afirma, na dobra do dicionário. Em
The Troubadour of Knowledge, Serres (1997) exprime a sua pro-
funda gratidão por ter sido forçado, uma vez que era canhoto, a
aprender a escrever com a mão direita na escola. Ele se tornou
um “canhoto frustrado”, ou melhor, uma “metade completa-
da” (“corpo completado”) que fez a experiência da “mão em si

em termos de escrita (e leitura) como uma gramaticalização do mundo


da vida. Especialmente se olhamos para as velhas imagens dessa prática,
pensamos que o que se pode ver é como o mundo da vida “natural” se
torna “escrito” para poder relacionar-se com ele em vez de ficar aprisionado
nele. Aqui podemos encontrar a força emancipadora ou política da escola no
sentido desenvolvido acima. Uma força política que não é derivada do fato
de que seria instrumental para um projeto político particular concebido ou
pretendido por outros, mas que está internamente relacionado com a prática
que permite uma distância através das operações escolares reais (incluindo
gramaticalização e baseando-se no amor do qual falamos acima).

37
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

mesma” (handiness) como tal, e diz que esse foi, contrariamente


ao que “nós” esperaríamos hoje, o mais revolucionário evento
da sua vida. Disso podemos concluir que a escola tem a ver com
a força que nos puxa da nossa “direção natural”, que nos força
a atravessar o rio e deixar o nosso ninho. Põe em movimento
uma mutação (incluindo sofrimento, mas também alegria) sem a
qual, segundo Serres, nenhum aprendizado real pode acontecer.
Retornando a essa mutação, essa “viagem das crianças” (que é
“o significado nu da palavra grega pedagogia”), ele usa a imagem
de alguém que está nadando através de um rio, deixando uma
margem na qual está (ou pertence), por ex., uma língua – diga-
mos, o português – para chegar à outra margem em que ele se
recoloca (ou pertence), por ex., outra língua – digamos, o inglês.
Contudo, Serres insiste para que não esqueçamos o nado e o
rio no meio ou o meio como rio: “[...] no meio da travessia, até
mesmo o chão está faltando; qualquer sentido de pertença, de
apoio desparece” (Serres, 1997, p. 5). Atravessando o rio chega-se
à outra margem em que a outra língua é falada, mas se passa
através de um “terceiro mundo” que “não tem direção a partir
da qual encontrar todas as direções” (p. 7). Passar um limiar sem
(uma) referência (ou em que todas as referências são abandona-
das, ou estar igualmente longe), ser muito sensível: “tempo e
lugar de extrema atenção”, “não ser nada a não ser potencial”
(p. 25). Agora, não se fala simplesmente duas línguas, passa-se
“incessantemente através da dobra do dicionário”, “habitando
ambas as margens e espreitando o meio [...] do qual partem
vinte ou cem mil direções” (p. 6). Assim, aprender outra língua,
passar a dobra do dicionário, como viagem pedagógica, permite
essa experiência de traduzibilidade – que talvez envolva sempre
também a experiência do que é “ter” uma língua.
A quinta e última consequência que queremos sublinhar
muito brevemente é a de que domesticar a língua da escola
(através da imposição de línguas oficiais ou de outras maiorias)

38
A língua da escola: alienante ou emancipadora?

talvez seja também uma (e a primeira) maneira muito efetiva


de domesticar e neutralizar a escola.8
Fazer a língua da escola uma língua oficial (a língua do
Estado ou de qualquer autoridade) sempre implica transformar a
escola em um modo de socialização (e portanto de reprodução).
E também explica que as contrarreações a essa domesticação
pelas políticas linguísticas talvez não sejam muito eficazes se elas
(somente) impuserem uma língua de minoria como nova língua
da escola. O frequente resultado de tal política de minoria é
que a escola se transforma em um lugar de contrassocialização,
sendo usada para a produção de uma nova sociedade que a velha
geração tem em mente para a próxima geração. O risco aqui é
que a próxima geração seja privada da escolarização (seja apenas
socializada), e então da possibilidade de se tornar a nova geração.
Talvez a escola seja o lugar errado para acontecerem políticas
linguísticas e políticas identitárias e guerras culturais correlatas.
Isto não quer dizer que as guerras não sejam importantes, mas

8
Pensamos que é isto que Illich (1981/2001) “esquece” em sua análise do
modo como a imposição da “língua materna” (isto é, “a língua que as
autoridades do Estado decidiram que deve ser a primeira língua”) é de fato
uma mineração ou capitalização de comuns (o vernáculo) e está fazendo
as pessoas dependentes de uma instituição que as ensina esta “língua
materna”. Para Illich, a escola é a instituição do Estado que em primeiro
lugar ensina às pessoas que elas precisam dessa instituição (e portanto se
tornam dependentes) para se tornarem livres ou independentes (serem
capazes de participar da comunicação). Pensamos, contudo, que ele está
confundindo a “escola” como uma forma pedagógica em nosso sentido com
a instituição de um Estado. Ele está na verdade aceitando uma perspectiva
funcionalista externa e negligenciando os elementos que ele próprio parece
reconhecer (nesse texto e em outros, por ex., aqueles sobre a alfabetização
e a visualização que também implicam uma gramática, um artífice, uma
distância em relação ao oral pela escrita e uma distância em relação à
escrita pela leitura em voz alta) como sendo importantes para possibilitar o
estudo, e que, a nosso ver, podem ser relacionados com a “escola” como a
entendemos. Parece haver uma flutuação constante do vernáculo ao oral e
implicitamente também o “natural” ou “nativo”.

39
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que devemos ser cuidadosos para que elas sejam travadas em um


tempo e lugar que sejam organizados a partir do amor tanto pelo
mundo quanto pela próxima geração.
Queremos pedir para que não se entenda isto como uma
súplica pela escola como um lugar seguro de paz e entendi-
mento. É nossa expressão da forte crença em que a sociedade
pode ser mudada e renovada, que a emancipação é possível por
meio da escola, e que uma “luta” intergeracional é diferente (e
talvez mais produtiva a longo prazo) de uma guerra política ou
cultural em termos de identidade (isto é, em termos de uma
luta edípica entre a língua materna e a paterna). Mas somente
se também dermos à escola e à sua língua uma oportunidade.
A resposta simples e ao mesmo tempo radical à pergunta “que
língua se deve falar na escola?” (por exemplo, em Bruxelas
ou em qualquer outro lugar) é: não importa. Contanto que a
sua gramaticalização e estudo sejam aceitos juntamente com a
gramaticalização de outra língua. E provavelmente esses atos
escolares envolvam uma política muito mais radical do que a
atual política de identidade sobre cultura e língua.

Referências
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BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. La Reproduction: Éléments pour une
théorie du système d’enseignement. Paris: Éditions de Minuit, 1970.
FREIRE, P. Pedagogy of the Oppressed. New York: Herder and Herder,
1968/1970.
ILLICH, I. Shadow Work. London; NewYork: Marion Boyars, 1981/2009.
MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública.
Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte:Autêntica, 2014. (Coleção
Educação: experiência e sentido.)
SERRES, M. The Troubadour of Knowledge. Ann Arbor: University of
Michigan Press, 1997.
STANDISH, P. Uncommon Schools: Stanley Cavell and the Teaching
of Walden. Studies in Philosophy and Education, n. 25, p. 145-157, 2006.

40
Experiências escolares: uma tentativa de
encontrar uma voz pedagógica1

Maarten Simons, Jan Masschelein


Tradução: Fernando Coelho

Introdução
Como falar sobre a educação escolar hoje? Talvez a questão
propriamente dita não tenha sido colocada de modo adequa-
do, uma vez que tendemos a falar sobre aprendizagem. Como
então falamos sobre a aprendizagem? Fala-se dela como de
um processo, e assim é abordada como se tivesse um começo
e um fim. O fim é comumente tratado em termos de conhe-
cimento, habilidades, atitudes ou competências. O processo
propriamente dito é visto como uma força de transformação,
ou cada vez mais como um processo de construção ou de
produção. Aprender é considerado, assim, como um processo
de mudança, e dependendo da abordagem o processo de mu-
dança é conceituado diferentemente. De um ponto de vista
psicológico, os processos de aprendizagem são essencialmente
processos de desenvolvimento ou de crescimento. Em uma

1
Uma versão inicial deste texto foi publicada em inglês no livro O ato de
educar numa língua ainda por ser escrita (Rio de Janeiro: NEFI, 2016) e em
português, em versão diferente e com outra tradução, na revista Childhood
& Philosophy (Rio de Janeiro: UERJ, v. 13, n. 28, set.-dez. 2017).

41
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

perspectiva econômica da teoria do capital humano, aprender


tem a ver com acumulação (de capital). De um ponto de vista
sociológico, aprender relaciona-se com processos de habitua-
ção, reprodução, apropriação ou aquisição, que são funcionais
para o estabelecimento ou a mudança de ordens (existentes).
De um ponto de vista biológico ou neurocientífico, aprender
consiste no processamento de informação e adaptação, cone-
xão e associação. A educação ou a escola são então os arranjos
organizacionais ou institucionais que visam a tornar possíveis
esses processos de aprendizagem (estimular, fomentar, susci-
tar ou facilitá-los). Poder-se-ia dizer que nessas abordagens a
educação escolar é sempre tratada em uma perspectiva externa;
ela é funcionalizada ou instrumentalizada, implicando-se de
algum modo que aprender é em si mesmo algo “natural” que
pode ser concebido sem se levar em conta a escolarização “ar-
tificial”. Levamos em conta a escolarização a fim de avaliar se
ela facilita ou melhora (ou não) a aprendizagem. E hoje, nessas
perspectivas externas, a escolarização é considerada cada vez
mais um arranjo institucional ineficiente ou não funcional.
A filosofia da educação ou a teoria educacional criticam
frequentemente as perspectivas psicológicas, econômicas, so-
ciológicas ou biológicas sobre a educação e a aprendizagem.
Mas é surpreendente notar que elas também se prendem a uma
perspectiva externa, funcionalizante ou instrumentalizadora.
Nesta contribuição, queremos tocar nessa perspectiva onipre-
sente da filosofia da educação, mostrando, por um lado, como
ela de fato repete a maneira pela qual pensadores magistrais
da área da filosofia e da teoria social e política tendem a tratar
e a domar a educação e a aprendizagem; tentamos, por outro
lado, oferecer uma perspectiva pedagógica interna que relacione
explicitamente a aprendizagem à escolarização “artificial”. Ou
dito de outro modo, queremos tentar falar pedagogicamente
sobre o que está em jogo na aprendizagem escolar. Esta, con-

42
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

tudo, não se refere a narrativas comuns acerca de (boas, más,


grandiosas, tristes) experiências de aprendizagem na escola.
A língua pedagógica que temos em mente busca dar voz à
experiência enquanto aprendizagem escolar.
A contribuição está estruturada em cinco partes. Co-
meçaremos (1) com um caso típico recente de um pensador
magistral que está lidando explicitamente com a “mudança”,
e tem a ver, portanto, com a aprendizagem: Peter Sloterdijk.
Em seguida (2) distinguiremos vários tipos de filosofia e teoria
(social/política) de acordo com a “metáfora” (ou exemplo)
que elas usam para conceber o significado da aprendizagem,
e indicaremos como isto resulta frequentemente em uma
instrumentalização ou marginalização da educação. Indica-
remos, em seguida (3), como a filosofia da educação corre o
mesmo risco de instrumentalizar e marginalizar a educação
e naturalizar a aprendizagem. Tomando distância desta, que-
remos (4) apontar a importância do meio artificial da escola
a fim de apresentar uma voz pedagógica que propõe pensar
a aprendizagem como uma experiência escolar crucial e in-
trínseca. Na conclusão (5), sugerimos algumas razões pelas
quais os filósofos (incluindo os filósofos da educação) parecem
esquecer frequentemente que eles também foram à escola.

Um caso para começar: como


Peter Sloterdijk aborda a escola
Se a educação tem a ver com mudança, como podemos
pensar a mudança que está envolvida na educação? Poderíamos
tomar como ponto de partida o trabalho recente de Peter
Sloterdijk. Ele faz menção a um mandamento de Rilke que
aparece em um torso de pedra, “você deve mudar a sua vida”,
em seu livro que carrega o mesmo título (Sloterdijk, 2014a).
Nesse livro, que reflete claramente o trabalho de Nietzsche,

43
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Pierre Hadot e Michel Foucault sobre a arte da existência e as


práticas ou tecnologias do eu, Sloterdijk escreve uma história
das técnicas e ideias frequentemente esquecidas sobre como e
por que se deve mudar a própria vida. Claramente ele aborda
a educação, particularmente, a educação escolar moderna
como o tempo e o espaço em que “a vida muda” está sendo
organizado. Entretanto, ele parece entender e desqualificar
imediatamente essas “práticas de mudança” como sendo ins-
titucionalizadas, normatizadas ou governadas pelo Estado.
Sloterdijk não reconhece as operações educacionais próprias
que estão envolvidas nessas práticas, pois sua preocupação e
seu interesse não são primeiramente educacionais, mas so-
bretudo relacionados à ética e à estética, sendo portanto sua
intenção julgar a mudança educacional e a educação escolar
com padrões éticos e estéticos.
Em seu livro Die schrecklichen Kinder der Neuzeit [“As ter-
ríveis crianças dos tempos modernos”, em tradução livre],
publicado em 2014, o foco não é a mudança individual, mas
a mudança intergeracional, e como, gradualmente, a preocu-
pação com a desconexão em relação à tradição – pais, cultura
comum, normas e valores – se transformou em leitmotiv da
Modernidade (Sloterdijk, 2014b). Ele rastreia as raízes da
Modernidade até chegar à Antiguidade grega, mas também
ao cristianismo primitivo, em que, por exemplo, o foco não é
tanto a família ou o filho ou a filha obedientes, mas as figuras
daqueles que se livram da vida familiar – e da tradição como
um todo – para dedicar as suas vidas a um futuro que não é
apenas continuação de um passado dado. Jesus, ou a figura de
Jesus, é claramente, de acordo com Sloterdijk, uma encarnação
desse movimento antigenealógico.
Não é, escreve ele, a lógica do herdeiro, mas a lógica do
bastardo. Embora a Igreja Católica Romana posteriormente
suavize essa lógica, é aqui que se encontra, segundo Sloter-

44
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

dijk, uma das origens do indivíduo livre moderno e talvez,


atualmente, da figura do empreendedor. Para essas figuras, a
genealogia, a tradição, a transmissão geracional e as normas
e valores herdados são algo que é preciso transgredir, ou pelo
menos parecem não ser algo que poderia dar significado e
orientação à vida de alguém e ao futuro da sociedade. Essas
figuras são, por assim dizer, agentes de mudança. Enquanto
antes da Modernidade apenas alguns tinham a oportunidade e
a coragem de agir como “bastardos”, desconectando-se das suas
casas, famílias e comunidades, ser um agente de mudança se
transformou, de acordo com Sloterdijk, em um modo comum
de existência para muitos doravante.
Não entraremos nos detalhes relativos às conclusões pessi-
mistas – ou talvez realistas – desse livro, mas queremos chamar
a atenção para como Sloterdijk aborda a questão da mudança em
uma perspectiva particular. Enquanto se poderia argumentar
que o que ele descreve – a interrupção da história, a ideia de
deixar a sua casa ou o movimento de se distanciar dos seus pais,
que representariam uma orientação coercitiva do passado para
o futuro – é de fato aquilo em que consiste a educação, ele
raramente aborda a educação como tal. Ele focaliza a cultura,
a política e a religião, mas com uma exceção. Na introdução
de seu livro, ele fala brevemente e um tanto enigmaticamente
da “aprendizagem” como “a mais negligenciada noção dos
dias atuais”. Ele parece sugerir que deveríamos considerar a
noção de aprendizagem muito mais cuidadosamente hoje, que
deveríamos até mesmo desejá-la e celebrá-la, e – pelo menos
esta é a nossa interpretação – esperar que será “a aprendizagem”
que de algum modo nos salvará da condição pós-moderna, na
qual já não acreditamos no passado como em tempos pré-mo-
dernos, mas também já não acreditamos no otimismo futurista
da Modernidade. Entretanto, são apenas 3 ou 4 frases em um
livro de 400 páginas. Desse modo, embora a sua principal

45
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

preocupação não seja a educação, ele parece esperar tudo dela.


De repente, um vocabulário educacional, ausente ao longo de
todo o livro, surge como um requisito para conduzir-nos para
fora da idade sombria do pós-modernismo.

“Aprendizagem social”, “ infância”, “ensino”


e os filósofos do “ jogo”
Tomamos os dois livros recentes de Sloterdijk apenas
como um exemplo para mostrar quão frequentemente os
filósofos e os teóricos sociais, políticos e culturais discutem
a questão da mudança, da transformação e das gerações, em-
bora não tratando em detalhes a educação, ou, pelo menos,
não tentando explicitamente entender que tipo de mudança
é típico da educação e da aprendizagem. Ao mesmo tempo, o
vocabulário educacional desempenha um papel no seu tra-
balho. Conquanto frequentemente escrita em comentários
marginais, ainda assim todas as esperanças são depositadas
nela. No que segue, distinguimos filósofos da aprendizagem
de filósofos da infância, filósofos “do ensino” e filósofos do
“jogo”, e indicamos brevemente que papel as questões relacio-
nadas à aprendizagem desempenham nas suas cenas teóricas.
Em sua teoria social e política, Habermas (1981), por
exemplo, busca entender a mudança e a transformação social
e política. Contudo, ao mesmo tempo, ele tem de valer-se
de conceitos tais como capacidades cognitivas e processos de
aprendizagem social para “explicar” mudanças de uma visão
de mundo para outra. Seu ponto de vista é sociológico e políti-
co, mas ele precisa empregar conceitos do campo da educação
para salvar ou finalizar o seu projeto sociológico e político.
Similar a Latour (2004), que introduz o conceito de “curva
de aprendizagem” para explicar como uma mudança gradual
de uma constituição social para outra se dá, sem que essa

46
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

mudança seja imposta de fora (política) ou de dentro (moral


e ética). Para Sloterdijk, mas também para Latour e Haber-
mas, a educação e a aprendizagem parecem ser conceitos que
indicam um processo de mudança, mas sempre de um modo
ou de outro esses conceitos são postulados como necessários
para salvar ou fechar o seu projeto intelectual ético, político
ou social, ou seja, para explicar como as mudanças éticas,
políticas e sociais se dão. Como tal, a mudança educacional
e o significado educacional de mudança estão sendo ignora-
dos ou depreciados. E se é conceituada, de um modo ou de
outro, a educação é restringida a uma forma de socialização
(habituação, aquisição) ou – em círculos progressivos – a uma
tentativa de contrassocialização. Finalmente, as teorias sociais
e culturais desses filósofos da aprendizagem (sociais) são teorias
sobre adultos, sobre como eles precisam da aprendizagem,
mas sem se tornarem crianças.
Por filósofos da infância queremos nos referir a autores
como Jean-François Lyotard e Giorgio Agamben, e talvez até
Hannah Arendt. Lyotard (1988) se vale especificamente dos
conceitos de “infância” ou “infantia” para abordar questões
que são colocadas além da linguagem ou além do sistema
capitalista, mas que, contudo, desempenham um papel central
ou “assombram” o sistema. Usando a imagem da infância –
pelo menos como in-fantia, isto é, que não fala – a sua ambição
é conceituar condições e eventos que ainda não pertencem
aos nossos discursos e línguas comuns, e, portanto, é um tipo
de infância que continua a desempenhar um papel central na
idade adulta. Ele refere-se a isso como uma falta inicial, uma
ausência de determinação que não é (pode) nunca (tonar-se)
completa, e continua a fazer a idade adulta refém. Para isso,
ele se vale, por um lado, das ideias de Freud sobre a estrutura
do trauma e do afeto (tendo sempre dificuldade em encontrar
uma expressão na língua), e, por outro lado, o conceito de

47
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Hannah Arendt de natalidade ou de capacidade de começar.


De modo similar, Agamben (2002) introduz o conceito de
“enfance/infancy” ou “infantia” para pensar a condição de
potencialidade que ainda não é atualizada, e portanto para
pensar a experiência de ser capaz de falar como tal. Mais
precisamente, é, de acordo com Agamben, a experiência da
linguagem como a experiência do homem que é um animal
que tem linguagem, que é capaz de falar e portanto também
de não falar ou de ficar em silêncio. Sem entrar em detalhes,
e sendo injustos com a complexidade do trabalho desses au-
tores, pensamos que as suas referências à educação e infância
se tornam frequentemente imagens ou metáforas para pensar
sobre o que está em jogo na vida adulta. Para eles, a educação
e a aprendizagem não são os conceitos centrais. E se os seus
pensamentos forem traduzidos em (filosofia da) educação,
talvez não seja surpresa que a educação corra o risco de ser
colocada em termos terapêuticos ou éticos. O risco é um tipo
de personalização por colocar no centro da cena, de um modo
ou de outro, uma relação dialógica ou analítica entre pessoas,
ou seja, a pessoa do professor e a pessoa do aluno. A questão
pedagógica central não é transformada em uma questão de
socialização ou contrassocialização, mas se torna o ato de
“fazer justiça” (a alguém, ou à própria enfance/infancy) em
termos de “abrir futuros” como “capacidades de agir e falar”.
Certamente de um modo diferente, podemos incluir
também alguns filósofos do ensino a esse tratamento ético da
educação. Embora não possamos, tampouco, expô-lo em sua
complexidade, podemos apontar o uso que Levinas faz da me-
táfora do ensino para descrever a maneira pela qual a demanda
ética é inscrita antes que o sujeito venha a si (Levinas, 1998).
É uma descrição que no contexto da filosofia da educação é
invertida com frequência, por assim dizer, para entender o
ensino como quase idêntico a uma relação ética. Uma abor-

48
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

dagem ética da educação que é frequentemente relacionada a


uma compreensão da ética em termos de ser intimado ante a
“face do outro” como a “Lei” além de qualquer lei, etc. Talvez
outra versão dessa filosofia do ensino ético seja a obra de Judith
Butler (2005) sobre o papel decisivo de um ato de interpelação
na constituição da subjetividade. Alinhada a isso, há a interpre-
tação do ato de ensinar como trabalho em concordância com
a lógica da interpelação e o enfoque na dimensão relacional e
performativa da subjetividade da criança.
Ademais, tais filósofos da enfance/infancy e os do ensino
deveriam, talvez, ser distinguidos dos filósofos do jogo. De novo,
sem pretender dar um posicionamento final sobre a complexi-
dade da sua obra, poderíamos pensar em Wittgenstein (1965),
sendo o seu conceito de jogo da linguagem o mais inteligente.
Provavelmente aqui o foco e a preocupação já se colocam muito
mais na prática da educação, embora a experiência da educação
e a especificidade dos eventos e das relações educacionais e de
aprendizagem sejam muito menos mencionadas. A educação
nessas linhas não é uma questão de socialização ou capacidade
de agir, mas uma matéria de iniciação.
Enquanto todos esses filósofos e teorias reconhecem que
a infância e a mudança por meio da educação sejam impor-
tantes, e enquanto postulam a existência de condições de
infância, a educação e a infância são ao mesmo tempo “ins-
trumentalizadas”, seja como uma condição temporária, um
mal necessário, um fator lógico em vista da mudança ética,
política ou social, seja como uma imagem ou uma prática
para conceituar o que é difícil de conceituar na vida adulta.
Na perspectiva de tais filosofias da idade adulta, e pensando
em conformidade com essas linhas instrumentais, a educação
e a aprendizagem são frequentemente marginalizadas, depre-
ciadas ou – quando reconhecidas – celebradas como um caso,
metáfora ou exemplo único.

49
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

O risco da/para a filosofia da educação


O risco da/para a filosofia da educação e da/para a teoria
educacional é o de se verem presas no mesmo movimento de
instrumentalização ou mesmo de marginalização da educação
ou aprendizagem naturalizante. O risco é que a educação e a
aprendizagem sejam consideradas prevalentemente um cam-
po de aplicação de teorias desenvolvidas em outro campo e
com outros propósitos, ou que seja um campo de prática com
uma função ou significado que deve ser derivado de outras
práticas não educacionais. Esse risco é real não tanto porque
a teoria e a filosofia da educação se valeriam da psicologia
(do desenvolvimento), da economia (e da teoria do capital
humano), da biologia ou da neurociência. Tomar distância
explicitamente dessas disciplinas é (ainda) em grande medida
de central importância para o seu próprio entendimento e
sua própria definição. O risco é real precisamente porque
a filosofia e a teoria da educação tendem frequentemente a
depender de pensadores magistrais (incluindo-se filósofos)
tais como Habermas, Wittgenstein, Latour, Levinas, Lyotard,
Agamben, Rorty, Arendt, etc. Ao mesmo tempo em que está
frequentemente engajada em grandes esforços para deslindar
as complexidades da obra dos pensadores magistrais, a filo-
sofia da educação frequentemente transforma (implícita ou
explicitamente) a educação e a aprendizagem em um campo
de aplicação ou ilustração, se a educação e a aprendizagem,
como uma preocupação educacional genuína, não é mar-
ginalizada completamente em nome de uma preocupação
política, social ou ética.
O “imperativo da mudança” – como colocado por Slo-
terdijk (2014a) –, mas de modo mais geral o discurso sobre a
mudança, para o qual os filósofos e os teóricos da educação
são atraídos de tempos em tempos, de fato está levando, e com

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Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

frequência, a um entendimento da educação ética, política e


socialmente “colonizado”. É colonizante, uma vez que o “você
deve mudar a sua vida” ou o “nós queremos mudar a nossa – in-
cluindo a sua e a deles – vida” estão sempre envolvidos, e sempre
incluem um tipo de julgamento como seu ponto de partida.
A mudança é motivada por um julgamento ou avaliação de
que algo é de algum modo errado ou insuficiente ou precisa
de luz e claridade, e de que a mudança é necessária, buscada,
almejada, sugerida, requerida ou desejável. A mudança por
meio da aprendizagem se torna uma questão de necessidade.
Aprender é motivado por uma obrigação ou chamado (mo-
ral, ético), ou por novos regulamentos ou responsabilidades
políticas; transforma-se em uma questão de socialização (e de
acordo com a necessidade de reprodução social). Em outros
discursos, ela é colocada como uma questão de investimento
em capital humano (e segue a necessidade de acumulação de
capital e taxas de retorno), ou uma questão de desenvolvimento
e crescimento cognitivo e afetivo (de acordo com certas nor-
mas, estágios e funções cerebrais). É a mudança que é sempre
motivada por uma finalidade e/ou por uma falta. Quando
a mudança é dirigida a um futuro ou resultado projetado, a
mensagem que acompanha é: “nós, vocês ou eles queremos
ou temos que chegar a algum lugar”. Quando é motivada por
uma falta, a mensagem é: “nós, vocês ou eles não temos ou
precisamos de algo”.
A fim de desenvolver uma voz pedagógica (interna) ou
dar uma voz à mudança pedagógica, sugerimos voltar à velha
distinção entre iniciação/socialização/desenvolvimento, por
um lado, e educação, por outro. A fim de esclarecer por que
e como fazer essa distinção, permita-se-nos fazer um breve
desvio pela influente distinção (mas, na verdade, velha e
tradicional) entre qualificação, socialização e subjetificação
(por ex., Biesta, Hasslöf, Ruitenberg). Para Biesta (2009),

51
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

por exemplo, essas são as três funções ou papéis da educação,


e ele afirma que todas três estão desempenhando um papel.
Certamente, Biesta quer focalizar especificamente o papel
da subjetificação – e o tornar-se uma pessoa, vir à presença
encontrando um lugar no mundo, não pela inserção em ordens
existentes, mas interrompendo ou perturbando-as –, contra os
papéis frequentemente dominantes de socialização e qualifi-
cação. A questão crítica, contudo, é se esses são os três papéis
ou funções que devem ser distinguidos quando se olha para
a educação a partir de uma perspectiva pedagógica/educacional.
Queremos pensar que este não é o caso, e que o refraseio de
Biesta de uma velha distinção é o resultado da combinação
de três diferentes abordagens que são exteriores à educação.
É como se a função de qualificação viesse à tona ao se olhar
para a educação a partir de uma perspectiva econômica, en-
quanto a socialização (e o processo de integração em normas
e valores sociais) é o termo central quando se olha através de
lentes sociológicas. A subjetificação, então, é o que surge ao
se abordar a educação politicamente (segundo uma leitura
particular de Rancière: tornar-se alguém que está ao mesmo
tempo desafiando a ordem social existente em termos de
igualdade) ou eticamente (de acordo com certa interpretação
de Levinas: tornar-se alguém que está sempre motivado por
um chamado do outro em termos de fazer justiça). Queremos
argumentar que essa qualificação, socialização e subjetificação
representam três versões da educação domesticadora; uma
domesticação ético-personalizadora ou político-equalizadora
da educação que impõe padrões éticos ou políticos à mudança
(subjetificação), uma econômica que impõe um valor de troca
ou cálculo de investimento (qualificação) e uma sociológica
que domestica a mudança educacional ao impor as regras da
reprodução social e cultural ou – em uma versão progressiva
– as regras da renovação e da mudança social (socialização).

52
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

Ou dito de outro modo, a distinção entre qualificação, so-


cialização e subjetificação não alcança uma perspectiva peda-
gógica/educacional. Em última instância, ela funcionaliza ou
instrumentaliza a educação e a aprendizagem, ela domestica
a aprendizagem ao impor finalidades ou funções externas.
Nas próximas seções sugerimos uma perspectiva diferente,
pedagógica, que leva a aprendizagem ou a educação de volta
à escola, e considera a aprendizagem escolar como um es-
tar-no-meio, não direcionado por nenhuma finalidade nem
por uma falta ou necessidade.

Formas pedagógicas artificiais


A nossa perspectiva pedagógica não está focalizando
a aprendizagem e a educação por meio da revelação do seu
verdadeiro papel ou função, nem é uma tentativa de revelar
a verdadeira natureza da aprendizagem ao liberá-la de suas
organizações históricas. Nossa perspectiva pedagógica parte
de um ponto de partida algo inusitado; ela quer dar voz à
experiência de aprendizagem como sendo a experiência do
estar-no-meio ao focalizar o sempiterno arranjo artificial
chamado “escola” que faz essa experiência possível. Em outras
palavras, queremos abordar as operações radicais do que cha-
mamos de formas pedagógicas e que – sempre artificialmente
– permitem que a aprendizagem e a educação aconteçam.
As operações pedagógicas (para realizar o estar-no-meio)
podem ser resumidas como segue (ver também Masschelein;
Simons, 2014). (1) Operações para fazer de alguém um “es-
tudante” ou “aluno”, isto é, suspender os laços familiares ou
estatais ou de qualquer “comunidade passada/existente” (isto
até certo ponto se refere ao bastardo de Sloterdijk). Implica
fazer que o indivíduo possa tornar-se parte de qualquer família/
comunidade que se lhe apresente. (2) Operações de suspensão

53
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

da costumeira ordem das coisas, e portanto deixar o seu uso


e funções comuns temporariamente sem efeito. Algumas coi-
sas (por ex., livros, ferramentas, palavras...) podem tornar-se
objeto de estudo, podendo-se começar o exercício com essas
coisas, precisamente porque o seu uso normal é colocado en-
tre parênteses. (3) Operações para colocar algo sobre a mesa
(profanação) e para fazer “tempo livre”, isto é, a materialização
ou a especialização da skholé. Na Grécia Antiga, skholé signi-
ficava o momento em que se escapava da determinação do
fazer. É sobre o não terminado, o não fazer a apropriação e a
destinação do tempo, e como tal um catalisador de começos.
A escola nesse sentido coloca alguém na posição de começar.
(4) Operações para fazer estar atento, isto é, para formar a
atenção, apoiando-se no “amor pedagógico” tanto por certas
coisas quanto pelos estudantes. Esta não é apenas uma questão
de atitude ou relação, mas é sobre o uso de técnicas e alguns
tipos de disciplina para chamar a atenção para algo. Disciplina,
contudo, não como uma categoria moral ou política, mas como
uma prática de habilitar. Pense-se, por exemplo, na disciplina
produtiva de atletas para ficar em forma.
As formas pedagógicas se referem, então, a associações
de pessoas e coisas em um arranjo como um modo para lidar
com, prestar atenção a, tomar conta de algo – para entrar e
ficar em sua companhia – em que este cuidado acarreta estru-
turalmente uma exposição, uma vez que é confrontado com
alunos ou estudantes. É crucial enfatizar a esta altura que as
formas pedagógicas não necessitam de uma utopia política
projetada ou um ideal normativo da pessoa educada (para o
qual elas seriam funcionais), mas são em si mesmas (na real e
particular maneira pela qual elas estão reunindo pessoas e
coisas) materializações de uma crença utópica: todos podem
aprender tudo. Esta não é uma afirmação factual, mas uma
crença. É outro modo de formular a suposição pedagógica

54
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

básica de que seres humanos nascem sem destino (natural,


social e cultural), e deveriam dar a si próprios um destino.
O que as formas pedagógicas fazem é habilitar o “todos po-
dem”, por um lado, e o “tudo”, por outro lado. Em outras
palavras, em lugar de pensar sobre tal coisa como uma escola
utópica (como se faz frequentemente), faz mais sentido ver a
aprendizagem escolar encarnando a ideia utópica de que todos
podem aprender tudo. O que a escola como uma forma peda-
gógica faz é o duplo movimento de trazer alguém para uma
posição de ser capaz (e portanto fazer de alguém um aluno
ou estudante) que é ao mesmo tempo uma exposição para
algo fora (e portanto um ato de apresentar e expor o mundo).
Esse duplo movimento não começa com as crianças tendo
certo destino (baseado nas suas habilidades naturais ou sociais
e identidades culturais), mas permite às crianças se tornarem
estudantes e encontrarem o seu próprio destino. Poder-se-ia
dizer que isto é porque a decisão de levar as crianças para a
“escola” é em si mesma uma intervenção política, e que a
escola não precisa de um ideal externo ou extra ou de uma
função política projetada.
Recorrendo a Michel Serres (1997), esse duplo movi-
mento poderia ser capturado no conceito de “ex-posição”, e
na forte experiência de alguém que aprende a nadar estando
na condição de não ser capaz (completamente) ainda de nadar,
e que contudo não está mais constantemente procurando um
lugar ou chão seguro sob os seus pés. É uma condição ou ex-
periência “intermediária” ou “no meio”, ou seja, a condição
na qual alguém deixou o seu lar seguro, o seu mundo da vida
ou a sua casa, e tudo é (ainda) possível quando confrontado
com o mundo lá fora. Nossa tese é de que essa condição e essa
experiência são uma condição educacional e uma experiência,
e não devem ser confundidas com uma condição e experiência
ética, psicológica ou política. Ademais, nossa tese é de que essa

55
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

condição de exposição é o que é habilitado ou preparado por


meio de formas pedagógicas específicas, sempre artificiais. É o
que está em jogo na aprendizagem “escolar”, e o que merece
ter uma voz e precisa de uma língua pedagógica.
Ao invés de narrar as (boas, más, grandiosas, tristes)
experiências de aprendizagem na escola, uma língua peda-
gógica procura dar voz à experiência enquanto aprendizagem
escolar. Não a experiência de uma condição na qual alguém
não é (ainda) capaz de, por exemplo, escrever ou contar. Mas
também não a experiência de ( já) ser capaz de escrever ou
contar. A experiência escolar se refere ao que é experimenta-
do no momento único em que escrever ou contar se tornam
uma possibilidade; a experiência enquanto se aprende antes
de ser de fato capaz de escrever ou contar, mas não apenas
a experiência de (simplesmente) não ser capaz de escrever
ou contar. Pense-se na criança que aprende a escrever. An-
tes de ser capaz de escrever, a criança tem (provavelmente)
a experiência de não ser capaz, mas ela não experiencia a
aprendizagem. Quando é capaz de escrever, talvez se lembre
do seu aprendizado, mas não experiencia ela mesma a apren-
dizagem. A experiência escolar é experiência no momento
em que a habilidade de escrever (e portanto de não escrever)
é experienciada como tal. As experiências escolares remetem
à experiência de estar-no-meio de coisas, à experiência de um
curso de vida interrompido em que novos cursos se tornam
possíveis. Talvez tenha a ver também com a experiência do
conhecimento e habilidade depois de cometer um erro. Ou
o que é experienciado depois de ser forçado ou convidado a
atravessar um rio e “se destacar da chamada direção natural”
(Serres, 1997, p. 8).
Queremos enfatizar mais uma vez que em uma perspectiva
pedagógica a “escola” não é uma instituição ou um tipo de
concha organizacional, mas o arranjo sempre artificial do tem-

56
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

po, do espaço e da matéria pelo qual você tem que passar para
ter essas experiências. Como consequência, o termo “escola”
não é usado aqui (como é com muita frequência) para uma
instituição chamada de normalizadora ou de um maquinário
de reprodução nas mãos das elites econômicas ou culturais. Há
reprodução e normatização, certamente, mas então a escola não
(e já não o faz) opera de uma forma pedagógica.
A questão, claro, é: qual é o papel ou o objetivo da
escola ou o que está em jogo na experiência escolar? Neste
ponto, queremos introduzir os conceitos de preparo e prá-
tica. A escola não consiste em fazer os estudantes e alunos
melhores performadores – embora isso lhes seja frequente-
mente demandado. A escola consiste na oferta aos/às jovens
do tempo e do espaço para que fiquem “em forma”, para que
trabalhem em seu “condicionamento” (intelectual, físico...),
e, claro, pode-se esperar que esse preparo e essa forma ou
condicionamento resultem em performances de excelência ou
em contribuições únicas mais tarde, mas é absurdo dizer que
a escola é responsável por isso. A escola consiste no preparo,
não em performances. O foco no preparo e na prática talvez
ajude a entender que as escolas nem sempre são os lugares nos
quais as gerações vindouras de fato aparecem como a nova
geração, e portanto nos quais a sociedade pode ser renovada.
Nem as escolas nem a sociedade podem ter controle sobre
essa renovação ou sobre como as gerações vindouras de fato
usam o seu preparo ou o seu estudo. Isso parece ser típico da
mudança ou da renovação pedagógica, e esse tipo de mudan-
ça é sempre o risco de uma sociedade que decide organizar
ou permitir formas pedagógicas de escolas. Essas sociedades
sempre confiam a mudança pedagógica à geração vindoura
(que pode se tornar uma nova geração). Essas sociedades não
“escolhem” iniciação ou socialização, mas a educação escolar.
Ou para sermos mais precisos: é com a educação escolar que

57
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

uma sociedade se torna de um modo particular consciente


de si mesma. Uma sociedade que permite a forma escolar
pensa – ou é provocada a pensar – de um modo diferente
sobre si mesma.
A forma escolar torna possível que uma “nova” e uma
“velha” geração venham à existência, juntamente com a ex-
periência de não haver ligação “natural” entre elas. Talvez
isso explique por que há tantas tentativas – tanto dentro das
escolas quanto da sociedade – para domesticar as escolas, ou
seja, para dar à mudança pedagógica uma direção específica, e
portanto impor normas psicológicas, éticas, políticas ou sociais.
Mas essa imposição tem a ver muitas vezes com o controle
dos riscos da educação escolar, e portanto já tem a ver com o
reconhecimento do potencial radical, e até mesmo revolucio-
nário das escolas. Decidir por ou permitir a educação escolar
implica aceitar que o que é valorizado por uma sociedade (e
seus adultos) está sendo colocado sobre a mesa, e portanto
pode ser fundamentalmente questionado e desafiado. A escola
se opõe a toda reivindicação de naturalização ou sacralização
e a todos os movimentos de conservadorismo e restauração
associados a essas reivindicações. É nesse sentido que a escola
está realmente afetando a sociedade e é sempre intrinsecamente
“política”. A forma escolar, com as suas pressuposições utópicas
e antinaturais, é uma intervenção política.

Para concluir: uma voz pedagógica como uma voz do meio


Começamos com a tendência entre os filósofos e os
teóricos da sociedade de naturalizar a aprendizagem e ins-
trumentalizar a educação escolar, e, portanto, de mover a
educação e a aprendizagem para as margens das suas teorias
e filosofias sobre a idade adulta. Queremos dar voz ao que
está no meio, e o que – na perspectiva desses adultos – talvez

58
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

seja rumor nas margens. Como conclusão, quiçá valha a pena


refletir sobre por que exatamente a escola e a aprendizagem
são frequentemente colocadas de lado, tratadas como margi-
nais ou são depreciadas. Pensamos (mas não estamos seguros
de) que foi Bernard Stiegler que uma vez fez a observação
de que os filósofos esquecem amiúde que eles também foram
para a escola, e não gostam de serem lembrados disso. Mas
por que não? Por que esse esquecimento, ou marginalização
e depreciação? Antes de ir mais a fundo nisso, é útil lembrar
outras manifestações do que é pelo menos uma relação am-
bivalente com a educação escolar (de alguém).
É surpreendente notar que as pessoas – especialmente em
momentos em que celebram as suas próprias realizações inte-
lectuais ou outras – não gostam de lembrar a sua dependência
em relação à escola ou à universidade no que diz respeito ao
que realizaram. É como se o seu passado educacional lançasse
uma sombra sobre o seu estado adquirido de adulto, e sobre
a liberdade e a libertação que associamos a esse estado. E, se
lembramos o papel das escolas e do estudo e exercício para o
que nos tornamos e para aquilo de que somos capazes hoje,
ou é para enfatizar que chegamos tão longe a despeito da
escola (e reafirmamos nossa independência) ou para contar
histórias daqueles professores raros, iluminados, que, apesar
do equipamento escolar normatizador, foram capazes de nos
mostrar o mundo real e a nossa liberdade como realmente é (e,
assim, essas histórias eivadas de agradecimento sobre profes-
sores inspiradores são frequentemente, também, apenas sobre
a reafirmação do próprio estado presente de independência).
Outra observação, relacionada à anterior, é que aqueles
que estão trabalhando em nossa educação escolar sempre têm
um tipo de posição marginal (que de algum modo perturba
a ordem social). Aqueles que escolhem tornar-se professores,
por exemplo, com frequência não escolhem colocar os seus

59
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

conhecimentos e habilidades a serviço da vida produtiva e


econômica, mas a serviço da geração vindoura. É uma posição
intermediária, ou seja, entre a família e a sociedade, entre a
nova geração e a sociedade adulta, e portanto uma posição que
é difícil de definir e que permanece ambígua. Há tendências,
é certo, reiteradas, de transformar a educação em um trabalho
comum ou em uma profissão. Mas, talvez, uma vez que ensinar
implica sempre estar fora-de-posição – algo similar à posição
dos artistas – essas tendências frequentemente falham, e têm
que falhar, se a educação consiste em colocar o mundo a uma
distância para estudá-lo. A esse respeito, deveríamos sempre
lembrar a figura do pedagogus – de onde vem a nossa noção de
pedagogo. Com frequência, essa figura era um escravo, mas um
escravo com privilégios, uma vez que lhe era permitido levar as
crianças à escola. Nesse sentido, ele era o escravo liberto, que
literalmente levava os jovens ao tempo livre, ou seja, ao estudo
e exercício. Na perspectiva da sociedade e da vida econômica
adulta, a posição dos professores, e de todos aqueles que estão
envolvidos com a educação (e, portanto, também pesquisadores
em educação), é de que estão vivendo uma vida nas margens.
Como figuras marginais, eles são não produtivos, e, assim,
vistos como não realmente importantes. Ao mesmo tempo,
considera-se que sejam instrumentais ou funcionais para a vida
real e para o mundo real produtivo (que quer reproduzir-se).
Mas poderíamos também olhar para esses papéis e posições
como exatamente libertados e libertadores, e, portanto, eles
são com frequência também invejados nesse aspecto.
A questão que deveríamos explorar mais a fundo é, contu-
do, sobre as razões da ambivalência, para não dizer diretamente
depreciação ou marginalização. A primeira razão poderia ser:
se a educação escolar, no sentido forte, consiste realmente na
mudança de alguém, e portanto consiste sempre no fato de
se tornar alguém diferente, é muito difícil lembrar quem essa

60
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

pessoa foi antes (implicando também que não há “alguém”


estável que experienciaria a mudança). Ou dito de outro modo:
é sempre na perspectiva da pessoa que alguém se tornou que se
retorna ao seu passado. Há uma espécie de irreversibilidade em
jogo, e assim a experiência e o processo escolar em si mesmos
são difíceis de lembrar. Provavelmente, ao fazer algum esforço,
poder-se-ia imaginar quem a pessoa era antes de ler ou estudar
um assunto, obra ou autor específico. Mas é sempre a projeção
de um estado de não-saber ou não-ser-capaz baseado no que é
experienciado hoje como saber ou ser capaz. Provavelmente há
esta tendência de esquecer, exatamente porque é difícil lembrar
a própria aprendizagem em sentido estrito. Poder-se-ia dizer
que a aprendizagem nesse sentido se aproxima da estrutura
do trauma e da lógica do inconsciente. Mas há uma diferença
fundamental; não é em relação a uma lembrança dolorosa, mas
em relação a um esquecimento alegre, e ele provavelmente
não precisa de análise ou terapia, mas celebração e gratidão.
A segunda razão possível é que as escolas sempre orga-
nizam uma “desordem fundamental”; arranjando um meio
sem direção e aceitando que “menores” e “novatos” possam
realmente questionar e desafiar “adultos” e “nativos”. A pro-
funda ambiguidade das sociedades que “decidem” ter escolas
é relacionada, poder-se-ia dizer, ao fato de que este é um ato
generoso, por um lado. Mas que o ato é acompanhado, por
outro lado, de um grande medo (e não aceitação) de que o
que é realmente valorizado e aceito se torne, de fato, real-
mente questionado ou objetado por menores ou “imaturos”,
mesmo sem razões ou argumentos. Algo que é, talvez, para
os filósofos (ou pelo menos muitos deles) ainda mais difícil
de lidar: a ausência de razão (ou razões). Em suma, a depre-
ciação, marginalização e instrumentalização da escola seriam
o resultado de um profundo medo de que a geração que está
chegando se torne de fato a nova geração.

61
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Mais razões devem ser formuladas, e algumas delas podem


ser encontradas no famoso texto de Adorno (1971) sobre os
“tabus” de ser professor. Mas, como conclusão, gostaríamos
de voltar à instrumentalização e marginalização que é central
à maioria, se não a toda filosofia que transforma a educação
em um campo de aplicações ou a usa como um campo para
ilustrações. Talvez devêssemos mesmo aceitar o desafio de re-
considerar uma narrativa filosófica que é frequentemente usada
para articular aquilo em que a educação consiste: a alegoria da
caverna, e a história sobre o filósofo iluminado que quer trazer
as pessoas enjauladas ou aprisionadas para a luz. Essa não é pre-
cisamente uma história filosófica sobre educação, sobre como
o filósofo-professor tem que libertar as pessoas acorrentadas
e mostrar que o que elas consideram verdade são meramente
sombras e representações? A história da caverna é a celebração
do status e do ethos do filósofo – ou pelo menos um filósofo
particular. É sobre a filosofia, uma posição filosófica particular,
mas não é sobre educação. Talvez precisemos de uma história
educacional/pedagógica para a experiência da aprendizagem
escolar. É uma história sobre como levar as pessoas para dentro
da caverna, isto é, para a escola, e, portanto, sobre como acor-
rentar as pessoas gentilmente a fim de dar-lhes tempo e espaço
para pensar, para estudar, mas também para apresentar-lhes o
mundo e pedir a sua consideração. Essa não seria uma história
filosófica (crítica) sobre como libertar os estudantes da escola,
mas uma história pedagógica sobre como trazer as crianças para
a escola. Sobre como dar-lhes a oportunidade de se tornarem
estudantes e oferecer-lhes a experiência da escola.

Referências
ADORNO, T. Erziehung zur Mündigkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1971.
AGAMBEN, G. Enfance et histoire. Paris: Payot, 2002.

62
Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

BIESTA, G. Good Education in an Age of Measurement: On the Need


to Reconnect with the Question of Purpose in Education. Educational
Assessment, Evaluation and Accountability, v. 21, n. 1, p. 33-46, 2009.
BUTLER, J. Giving an Account of Oneself. New York: Fordham University
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WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. New York: The Mac-
millan Company, 1965.

63
Em defesa de uma defesa:
elogio de uma vida feita escola

Walter Omar Kohan

Moro no Brasil desde 1997. Cheguei no início do mês de


maio desse ano, apenas alguns dias depois da morte de Paulo
Freire. Aprendi muitas coisas nestes anos no Brasil, do Brasil,
pelo Brasil, graças ao Brasil... Uma delas é que, para começar
a pensar em filosofia, em educação, ou em infância, um bom
caminho costuma ser olhar para, ou lembrar de, letras de
música popular brasileira. Refiro-me não apenas à busca de
uma inspiração para o início temporal de um pensamento, mas
para aqueles momentos em que o pensamento parece travar-se
ou mover-se em círculos e precisa de uma força que o tire do
lugar e o faça arrancar novamente. Como se Platão tivesse
razão lá no início do Fédon (61a) quando diz que a filosofia é
a música em mais alto grau (ou a música é a filosofia em mais
algo grau), pois a frase ὡς φιλοσοφίας μ ὲν οὔσης μ εγίστης
μουσικῆς (hos philosophías mèn ouses megístes mousikês) pode ser
lida nos dois sentidos.
Penso, em outras palavras, naqueles momentos em que
o pensamento precisa de uma infância, não apenas cronoló-
gica, mas como força de início. Sinto-me agora num desses
momentos, não só porque estou por iniciar a escrita de um
texto sobre a escola, mas por que acabo de escrever um outro

65
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

também sobre a escola e preciso de um novo início. Não que-


ro me repetir, fazer de conta, escrever sem escrever. Não o
merecem os amigos envolvidos na empreitada, não mereço eu
mesmo fazer isso comigo, muito menos a escola a ser defendi-
da... Então, vem a mim a letra do Samba da Bênção de Vinicius
de Moraes e Baden Powell que afirma que “a vida é arte do
encontro” e diz também “embora haja tanto desencontro pela
vida”. Parece-me que posso encontrar aí um início... Vamos
ver, tentaremos pensar essa coisa estranha que poder ser uma
arte, a do encontro, que habita, tanto como seu contrário, a
vida... Começarei pelo encontro com uma vida (uma vida em
particular) para a partir dela pensar o que ela nos diz sobre o
papel da escola na vida (ou da vida na escola) e assim, talvez,
possamos entender algo a respeito dessa relação numa vida
qualquer, em qualquer vida. E, quem sabe, a arte do encontro
que é a vida nos permita encontrar uma infância para a própria
vida escolar.

Elogio de uma pedagogia


Pensar significa, entre outras coisas, lembrar. Soube do
trabalho de Jan Masschelein em 1998, através de um artigo
seu sobre a infância e a relação pedagógica (Masschelein,
2003), de tom arendtiano e rancieriano no final dos anos
1990. Pareceu-me uma visão renovadora, inspiradora, naquele
momento em que nem H. Arendt nem J. Rancière eram tão
insistentemente evocados, como depois seriam, no campo
educacional brasileiro. Naquele período estava organizando
– junto a um grupo de colegas com os quais formávamos o
projeto “Filosofia na Escola”, na Faculdade de Educação da
Universidade de Brasília (UnB) – um Congresso Internacional
de Filosofia com Crianças, em Brasília, para julho de 1999.
Participariam do evento pessoas do mundo inteiro, muitas

66
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

trabalhando com Matthew Lipman, como Ann M. Sharp, e


me pareceu que poderia ser interessante expor aquelas pessoas
às ideias de Masschelein, vindas estas de uma tradição bastante
diferente da do pragmatismo estadunidense que está na base
de Filosofia para crianças. Porém, primeiro veio um pequeno
desencontro. Na época ainda não eram tão frequentes os
e-mails, então escrevi uma carta convite para Masschelein ao
endereço postal que estava no final do artigo publicado em
Educação & Sociedade; pouco tempo depois recebi um retorno
muito cordial dele agradecendo o convite mas justificando sua
impossibilidade de participar porque estaria viajando para o
Vietnã, a trabalho (de fato, nesse momento nem sequer tinha
entendido o lugar para onde viajaria, dado o caráter críptico
da letra manuscrita de Masschelein; só recentemente pude
entender esse lugar ao ler novamente aquela carta com a sua
ajuda). Algo travou em mim e não voltei a contatá-lo, até que
Jorge Larrosa, que frequentemente me falava de Jan e de seus
trabalhos com ele, me convenceu a organizarmos, junto com
Maximiliano López e Wim Cuyvers, um seminário conjunto.
Tratava-se de algo especial, com aparência de loucura,
ou pelo menos de algo que raramente poderia dar certo. Ou
então Jorge deve ter pintado dessa maneira o convite, sabendo
que assim me convenceria mais facilmente a aceitá-lo. Era o
ano de 2011 e eu já trabalhava desde 2002 na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na cidade do Rio de
Janeiro. Jorge nos contou que Jan costumava viajar para fazer
exercícios que consistiam em caminhar junto a estudantes
belgas com um colega arquiteto, Wim Cuyvers, por diversas
cidades do mundo, e que poderíamos propor-lhe que viessem
ao Rio com uma turma de estudantes. Finalmente, vieram
mais de trinta alunos belgas; o curso foi realizado em novem-
bro de 2012 e foi uma experiência profundamente marcante
para todos nós que participamos dela.

67
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Boa parte dos membros do Núcleo de Estudos de Filosofias


e Infâncias (NEFI) da UERJ se envolveram na organização.
Juntamos a seu grupo mais de trinta alunos brasileiros, que
com os belgas caminharam pela cidade, em duplas, em busca
de skholé. Organizamos um livro com várias colaborações dos
participantes e dos organizadores do curso, entre elas do próprio
Masschelein, que conta algo de suas viagens anteriores (Kohan;
Martins; Vargas, 2013). Nesse livro, com Jorge escrevemos
sobre os desdobramentos do exercício, pois acompanhamos os
estudantes belgas até a apresentação do seu trabalho final em
Leuven, no final do período. Como parte de nossa preparação
para o seminário, os membros do NEFI também lemos alguns
livros e textos de Masschelein, preparação que depois ajudaria
na publicação de dois dos seus livros em português: Em defesa da
escola (Masschelein; Simons, 2013) e A pedagogia, a democracia,
a escola (Masschelein; Simons, 2014).
Devo agradecer a Jorge a sua insistência e generosidade.
Foi importante conhecermos Masschelein a partir de sua prática
pedagógica, porque assim seus escritos ganharam um sentido
completamente novo quando relacionados a essa prática. Tive
oportunidade depois de acompanhar e participar de outros
exercícios pedagógicos que, de alguma forma, reforçaram
aquela impressão inicial e mostraram Masschelein como um
intelectual vivo, comprometido, constantemente preocupado
com o mundo e com seu papel de pedagogo. Compartilhar
seu trabalho traz a sensação de estarmos diante de um raro
exemplo daqueles professores que habitam a universidade co-
locando permanentemente em questão a si mesmos e os modos
e sentidos dessa presença.
Não se trata, apenas, de um detalhe. Ao contrário: a
academia está cheia de tanta formalidade, tanto faz de conta,
tanta dualidade entre o discurso e a prática, que conhecer
a prática pedagógica de Masschelein significa também uma

68
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

espécie de contracorrente, uma forma de habitar a escola-


universidade fazendo a mesma escola-skholé declamada nos
livros: como se a skholé que inspira a sua escrita respirasse na
vida pedagógica com que Masschelein habita a universidade.
De modo que este texto está inspirado não só nas leituras das
obras de Masschelein, mas também na sua forma de habitar
o mundo universitário. Para sermos justos com Vinicius de
Moraes, no encontro entre a vida que se mostra nos livros
e a que se evidencia na forma em que se anda pelo mundo.
Também é preciso esclarecer, por ser este um texto ins-
pirado na vida como arte do encontro, que existe uma espé-
cie de autoria compartilhada nos textos de Masschelein, que
também se percebe em sua forma de habitar a universidade.
Escutemos, ou leiamos o próprio Masschelein em uma nota
de esclarecimento com tom de confissão escrita a propósito da
publicação, entre nós, de A pedagogia, a democracia, a escola. Aí,
o autor belga afirma como esses escritos foram feitos, todos
eles, “a quatro mãos”:

Talvez seja incomum, mas é necessário começar men-


cionando que, embora alguns dos textos que estão aqui
reunidos tivessem apenas um autor no momento de sua
publicação, muitos deles têm, na verdade, dois autores;
além disso, alguns dos textos produzidos por apenas uma
pessoa não poderiam ter sido escritos sem a existência desse
outro autor. De fato, Maarten Simons e eu passamos a sen-
tir que é impossível falar, pensar e escrever sozinhos sobre
a maioria das coisas que são abordadas nos textos. Outro
nome para essa experiência, talvez o único, é amizade.
A amizade não se resume a intimidade ou privacidade. É
uma experiência mundana; para os amigos o mundo se
torna objeto de preocupação, algo para se pensar, algo que
provoca a experimentação e a escrita. Uma filosofia da
educação – na medida em que encara o mundo – é possível

69
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

sem a amizade? Evidentemente, de modo institucional, ela


nunca foi firmemente obrigatória para indicar e reivin-
dicar a contribuição pessoal de alguém ou, pelo menos,
para indicar uma ordem de nomes. Isso reduz o tempo e
o espaço para a amizade, constitui a sua banalização. Para
este livro, decidimos, juntamente com Walter Kohan (com
quem escrevemos a Cor-respondência), que Maarten e
eu fôssemos autores. Achamos que esta seria a coisa certa
a fazer, mesmo que, como mencionado anteriormente,
alguns dos textos, inclusive estas notas introdutórias, se-
jam ou tenham sido publicados antes sob apenas um autor
(Masschelein; Simons, 2014, p. 7).

A posição de Masschelein ganha ainda mais sentido


nesses tempos de competitividade e produtivismo individu-
alistas da academia. Sua afirmação da amizade como pedra
basilar de um modo de entender e habitar o espaço acadêmico
usualmente conhecido como “filosofia da educação” cons-
titui uma forma concreta de vida acadêmica outra, de uma
maneira dissonante de viver a universidade. Duas vidas se
encontram para renovar um espaço que vai perdendo vida a
cada passo. Assim, a vida da amizade tem, para Masschelein,
não o sentido de uma relação pessoal afetiva ou amorosa,
de algo particular ou privado, mas, ao contrário, de uma
experiência mundana. Ou seja, a sua amizade com Maarten
Simons diz respeito a um certo estilo de vida acadêmica, a
uma maneira específica de tornar as coisas públicas e de (pre)
ocupar-se com o mundo. A vida dos amigos projeta-se num
mundo público, de uso geral, comum. Justamente essa preo-
cupação compartilhada, comum, dos amigos com o mundo
é a condição e ao mesmo tempo o sentido principal dos seus
escritos com M. Simons. A escrita deixa de ter seu sentido
localizado numa utilidade ou efeito de aproveitamento para
se tornar um corre-corre acadêmico que é ela o próprio locus

70
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

onde se dá um modo de vida, onde se compartilha uma certa


preocupação com o mundo. Masschelein escreve com Simons
em nome de um sentimento compartilhado pelo mundo co-
mum: a escrita testemunha uma forma de amizade. Também
a amizade encontra uma outra vida nessa escrita da vida
acadêmica compartilhada.
De modo que cada vez que aqui escrevamos “Mass-
chelein” pode-se ler também, ou melhor, dever-se-ia ler
“Masschelein e Simons”. Essa forma de habitar a universidade
está também relacionada a uma compreensão e uma prática
da pesquisa educacional, que envolve, para os autores belgas,
três marcas principais: a) o pesquisador envolve-se na pesquisa
de uma forma que ele próprio se transforma. Nesse sentido,
a pesquisa em educação se caracteriza por um trabalho do
pesquisador sobre si: assim, uma pesquisa é educacional porque
coloca em questão, primeiramente, o próprio pesquisador; b)
a educação é, de alguma forma, o tema ou o problema que
está sendo pesquisado. Nesse segundo sentido, uma pesquisa
é educacional porque trata de educação, porque permite
elucidar ou problematizar uma questão educacional, porque
confere sentido a uma prática educacional; c) finalmente, a
pesquisa educacional trata de tornar algo público, de tornar-se
atento ao mundo em sua verdade e disponibilizar a pesqui-
sa para qualquer um. Nesse terceiro sentido, uma pesquisa
educacional disponibiliza uma percepção sobre o mundo que
não era perceptível. Eis o seu valor ou sentido educacional
(Masschelein; Simons, 2014).
Destacamos, novamente, que não se trata apenas de um
enunciado teórico, de uma eventual contribuição aos estudos
sobre a pesquisa acadêmica, mas de uma prática, um exercício,
uma forma de habitar a universidade que, no caso dos autores
belgas, tem como base institucional concreta o Laboratorium
voor Educatie en Samenleving na Universidade Católica de

71
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Leuven (KU Leuven). Nesse espaço trata-se, sobretudo, de


reinventar a pesquisa educativa; de fazer, através dela, escola
como skholé, ou seja, de parar um pouco o tempo vertiginoso
da produtividade acadêmica à qual alguns pretendem sub-
metê-la para experimentar nela algo de tempo livre a partir
de deslocamentos provocados pelos exercícios de caminhada
como os mencionados anteriormente.
O próprio Masschelein, num relato autobiográfico ainda
em fase de publicação, sobre o que significa hoje fazer uni-
versidade, conta como chegou teórica e existencialmente a
essa concepção:

Estando muito cansado de ser um crítico e des-cons-


trutor de teorias e práticas educacionais e infeliz com o
modo como meu trabalho acadêmico com os alunos estava
acontecendo, fui convidado, no início de 2002, por um
amigo arquiteto, Wim Cuyvers, para me juntar a ele e seus
estudantes em uma viagem a Sarajevo. Quase 40 horas
em um ônibus com um grupo misto de estudantes de ar-
quitetura e ciências educacionais a uma cidade devastada
pela guerra, para que os alunos caminhassem ao longo
de linhas arbitrárias e pensassem o projeto de uma nova
escola para Sarajevo. Foi o início de uma nova prática,
construindo um novo olhar. Desde esse momento viajei
todos os anos, muitas vezes com Wim, ou outros amigos e
colegas, com estudantes de pós-graduação, durante 10 a 14
dias por cidades em crise ou cidades pós-conflito (Sarajevo,
Belgrado, Tirana, Bucareste, Kinshasa, Tânger, Atenas,
Bruxelas), megalópolis não turísticas na China (Shenzhen,
Chongqing), pequenas cidades banais (St-Claude, Genk) e,
mais recentemente, por convite de Walter Kohan, a uma
cidade icônica (Rio de Janeiro). Durante essas viagens,
os alunos foram convidados a caminhar dia e noite ao
longo de linhas arbitrárias desenhadas em mapas da cida-

72
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

de, linhas que começam e que levam a nenhum lugar em


particular, linhas sem plano, cruzando bairros, edifícios,
áreas, aleatoriamente. Ao longo destas linhas eles mapea-
ram suas observações e registraram parâmetros, pensaram
no projeto que iriam apresentar. À noite, as observações
eram traduzidas em pontos em mapas compartilhados, em
esboços e considerações. Eu andei igualmente ao longo
destas linhas diariamente; durante longas conversações
noturnas fiz a cada um dos estudantes perguntas muito
simples: O que você viu? O que você ouviu? O que você
acha disso? O que você faz com isso? No final da viagem,
os estudantes tiveram que apresentar seus mapas e dese-
nhos publicamente, em algum lugar da cidade-paisagem
(Masschelein, 2016, [s.p.]).

Dessa forma apresenta-se Masschelein: uma espécie de Ja-


cotot andante, um professor que caminha com seus estudantes e
lhes faz as perguntas do mestre ignorante para que eles explorem
toda a potencialidade de sua inteligência. Um mestre que não
ensina a caminhar, mas que manda caminhar arbitrariamente
e caminha junto aos seus estudantes submetendo-se à mesma
arbitrariedade, à do caminho, à do que, nele, pode chamar a
sua atenção; um mestre que escuta seus alunos e cuida para que
essa caminhada seja feita com atenção; um mestre que pede
para registrar cartograficamente as observações e para tirar
delas todo o proveito que seja possível em termos do projeto
(“a nova escola”) que dá sentido ao caminhar; um mestre que
dispõe para o encontro com os estudantes um tempo que vai
muito além do tempo cronometrado da instituição; um tempo
demorado, de longas conversações; um mestre que sai do seu
lugar e que leva consigo a academia para se expor junto aos
seus estudantes à arbitrariedade dos caminhos da cidade.
Certamente, houve, como no caso do mestre ignorante,
um antes e um depois; uma primeira viagem transformadora,

73
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

uma experiência inicial comovedora que tornou impossível


para Masschelein continuar realizando da mesma maneira sua
prática acadêmica. Se para Jacotot a passagem foi da razão
explicadora à razão dos iguais, no caso de Masschelein foi da
crítica intencional das teorias e práticas pedagógicas a uma
pedagogia prática da atenção. Houve também, no mestre,
uma história vivida para que essa experiência ecoasse de uma
forma peculiar: “Estava muito cansado [...] e infeliz [...]”. E
houve, também, sempre, a amizade no início do caminho.
A partir daquela primeira viagem a Sarajevo com o amigo
Wim Cuyvers e a sua turma, durante os últimos quinze anos,
Masschelein realiza sistematicamente, com cada turma de
alunos do primeiro ano do mestrado em Ciências da Educa-
ção da KU Leuven, viagens pedagógicas nas quais exercita e
coloca à prova suas ideias sobre a escola e a pedagogia, a sua
“pedagogia pobre” (Masschelein; Simons, 2014).
Mais recentemente, Masschelein tem experimentado al-
gumas formas alternativas de viagem: em 2015, os estudantes
pegaram um ônibus de baixo custo e foram até algum lugar
afastado do Leste Europeu; em 2016, a viagem foi de barco em
torno do Rochedo de Gibraltar. Contudo, o sentido principal
das viagens mantém-se o mesmo: é sempre o de promover
uma “educação formadora de mundo” (Masschelein, 2013,
p. 259), aquela que afasta os estudantes das perspectivas crí-
ticas, a que busca obter uma “opinião formada sobre tudo”,
para submergi-los em práticas de atenção para tornar o mundo
verdadeiro ou real, para que o mundo fale a eles de outra for-
ma, para que cada um possa “estar presente no presente” (p.
262), através de exercícios de caminhada e percurso por uma
cidade mediante linhas traçadas sempre arbitrariamente pelo
pedagogo, cuja função principal é justamente traçar essas linhas
e manter atentos, nelas, os caminhantes. O pedagogo, profes-
sor universitário, vive uma espécie de experiência de amizade

74
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

com os estudantes, no sentido de alguém que compartilha,


com eles, uma preocupação com o mundo e que compartilha,
com eles, uma exposição ao que o caminho pode porventura
trazer de mundo.

Elogio de uma filosofia?


Talvez por que minha vida acadêmica esteve sempre
atravessada de uma forma ou outra pela filosofia, desde que
o conheci me pareceu ver em Masschelein uma recriação de
uma certa maneira de atualizar uma vida filosófica. Ele se
aproximaria daquela ascese filosófica que Michel Foucault
pareceu buscar obstinadamente entre os antigos gregos nos
seus últimos cursos. Neles, Foucault mostra que com Sócrates
a filosofia não nasce apenas como doutrina, teoria ou sistema,
mas também como um cuidado com a própria vida, como um
fazer da própria vida um problema crucial para a pensamento:
por que se vive da maneira em que se vive e não de outra?
Nessa leitura de Foucault, o que de fato Sócrates inaugura é a
vida como problema para a filosofia e também a filosofia como
educação, como educação de si mesmo e dos outros no seu
caminhar pela cidade interrogando os seus outros habitantes.
Há duas características importantes nessa tradição da
figura do educador socrático: a) ele não leciona, não “dá
aula”, não transmite um saber ao qual os alunos deveriam
chegar; b) outros aprendem com ele. O gesto socrático seria
deslocar o sentido da transmissão do saber para o cuidado:
como Sócrates nada sabe, nada pode transmitir em termos de
saber, e como é o único que cuida de si, o que mais cuida do
que é importante cuidar na pólis, ele transmite essa relação
de cuidado que os outros aprendem, à sua medida, com ele.
Assim, Sócrates faz os outros prestarem atenção a uma
dimensão de sua vida que não percebem antes de falar com

75
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

ele, chama a cuidarem do que não cuidam, diria Foucault,


a olhar para o mundo com interesse, poderíamos dizer com
Masschelein. Sócrates parece ser uma espécie de pedra de
toque para chamar a atenção do outro e fazer com que ele
pense e viva de outra maneira. Sócrates não fala a partir de
nenhuma posição social ou papel em particular, não cumpre
um papel institucional, nenhuma função corporativa, mas ele
funciona como uma espécie de voz que fala a alguém e diz
algo assim como “se você não mudar sua vida, sua vida perde
algo valioso para o mundo, você perde sua própria potência/
potencial, e o mundo também perde algo se você não estiver
acordado, atento”.
Certamente, esse Sócrates é uma figura mítica, excep-
cional. Ele parece estar afirmando ao mesmo tempo uma
experiência filosófica e educacional e, de alguma forma, a
inseparabilidade entre uma e outra. Desde que conheci o
modo de Masschelein habitar a vida universitária pareceu-me
que ele encarna, à sua maneira, essa figura do educador-filó-
sofo. Há também algumas diferenças, claro. A primeira diz
respeito ao que pareceria ser uma grande “vantagem” dessa
figura mítica socrática: ele não tem que responder a nenhuma
instituição, e é por isso a expressão de uma vida educacional
e filosófica livre dos liames e obrigações institucionais. Em
outras palavras, Sócrates faz escola sem escola, nas ruas, ao
ar livre, à sombra de uma árvore, e é aí que justamente se
afasta Masschelein, para quem a escola exige essa separação,
essa porta que se fecha e simbolicamente divide o escolar do
social. Um outro Sócrates do qual Masschelein explicitamente
quer se separar tem a ver como esse “você tem que mudar
a sua vida”, que aparece para o pedagogo belga como um
mandamento ético que ocultaria ou dissimularia a experiência
educacional, que não teria a estrutura de um comando moral
imediato, mas que se refere ao des-fechamento do mundo e

76
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

à des-coberta de uma (im)-potencialidade (Kohan; Mass-


chelein, 2014). Em outras palavras, onde o filósofo diz “você
deve mudar a sua vida”, o educador diz “você não é in-capaz”,
“você pode colocar atenção no mundo”. O pedagogo seria
quem leva o aluno até a escola, o local onde o mundo se
des-fecha e a potência se des-cobre. Masschelein duvida que
esses elementos estejam presentes na prática de Sócrates e se
atenta, ao contrário, para a escola de Isócrates como figura
de referência no mundo grego antigo.
Contudo, a relação de Masschelein com a filosofia é bas-
tante ambivalente. Por um lado, ele realiza uma crítica muito
forte da tradição filosófica que ele vê nascer nesse gesto socrá-
tico-platônico aristocrático, de superioridade, através do qual
o filósofo afirma um caminho que deveria ser seguido para
sair da escuridão... Assim a filosofia teria, historicamente, se
não domado a escola, pelo menos contribuído para esquecê-la
ou negligenciar o seu caráter público fundamental... E, nesse
movimento, também ela impediria de ver a especificidade da
educação ou pedagogia como uma prática ou exercício que
permite uma certa experiência de atração, abertura ou des-
cerramento do mundo ao mesmo tempo que a (des-)coberta
da própria capacidade ou potência. Ou seja, enquanto o pe-
dagogo atrai alguém para o mundo ao mesmo tempo que lhe
faz sentir a sua própria potência, o filósofo, ao contrário, se
encarregaria de confirmar a impotência de qualquer um que
não seja filósofo (Kohan; Masschelein, 2014).
Por outro lado, os autores com os quais Masschelein dia-
loga, desde o próprio Isócrates entre os gregos, que fala curio-
samente em nome de uma certa ideia de filosofia que disputa
com Sócrates e Platão, são todos eles filósofos consagrados
pela tradição. Claro que também é verdade que os autores
contemporâneos que mais influenciam Masschelein – a saber,
J. Rancière, H. Arendt e M. Foucault – têm uma relação

77
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

igualmente ambígua e crítica relativamente à filosofia ou pelo


menos ao modo dominante de praticá-la. Vejamos com certo
detalhe essa retomada e essa relação.
De Isócrates, Masschelein toma sua ênfase – oposta à
escola socrático-platônica – na importância da filosofia para a
formação do julgamento da deliberação dos jovens para uma
vida democrática. Na sua leitura, Isócrates é significativo por-
que situa a filosofia do lado da opinião e a concebe como uma
prática e um estudo, um exercício da opinião e não um saber
hierarquizado ou superior (Kohan; Masschelein, 2014).
Ou seja, a filosofia seria uma espécie de prática em relação às
palavras (e não a formas ou ideias abstratas) que é adestrada
através do estudo e do exercício. Nesse sentido, Masschelein
vê em Isócrates um aliado contra a tradição aristocrática da
filosofia surgida da tradição socrático-platônica.
De J. Rancière, Masschelein toma a distinção entre polícia
e política que Masschelein estende ao que ele chama de o re-
gime pedagógico, a pedagogia e o pedagógico (Masschelein,
2003). Através dessa ênfase no pedagógico, Masschelein procura
liberar a educação de seu tom missionário, deixando de ser uma
tentativa de fazer algo com os alunos, seja para proporcionar
a eles determinadas competências, para emancipá-los ou para
o que quer que seja, e permitindo que a infância se mostre
não como fase ou etapa a ser educada, mas como potência e
como exposição de movimento, de deslocamento, de se co-
locar a caminho. Assim, o mestre, longe de ser quem forma a
infância, é quem procura manter o aluno nela para que, dessa
potência e exposição ao mundo, ele possa tirar toda a força da
qual é capaz. Mais recentemente, Masschelein tem concentrado
seus esforços em defender essa posição a partir de uma defesa
da escola como forma eminente de experiência igualitária de
tempo livre, espaço dissociado da experiência social do tempo
(Rancière, 1988).

78
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

A partir de H. Arendt, Masschelein se inspira nos “exercí-


cios de pensamento”, preocupados com o presente e com nossa
presença no presente, ou seja, com não nos esquecermos de
nós mesmos na fenda do tempo que habitamos, entre o passado
e o futuro. Esses exercícios intelectuais surgem e encontram
sentido num duplo amor: pelo mundo e pelas novas gerações
(Masschelein, 2014; Kohan; Masschelein, 2014). Também
a partir de Arendt, Masschelein se inspira para pensar o que faz
um professor: colocar algo sobre a mesa e afirmar assim a sua
autoridade e a sua responsabilidade. A autoridade diz respeito
não a um exercício de poder, mas ao sentido de autoria que
inaugura com a sua tarefa: algo com autoridade diz algo, sig-
nifica, abre um sentido, fala, dá vida, aumenta o mundo, cuida
dele: a partir do ato de um professor o mundo ganha um outro
sentido para o aluno. Daí nasce também a responsabilidade
pedagógica: colocar algo do mundo sobre a mesa, oferecê-lo
aos estudantes chama à responsabilidade por isso que se lhes
está oferecendo como objeto de estudo.
A partir da pensadora alemã, Masschelein e Simons tam-
bém se inspiram em algo que merece um aparte no Brasil em
tempos da “Escola Sem Partido”: a separação entre educação
e política. Contudo, essa separação tem um sentido oposto em
um e outro caso: para os autores belgas, a experiência escolar
não deve ser política no sentido de não estar submetida a uma
finalidade política previamente estabelecida por quem quer que
seja. Por isso, a escola enquanto escola não é política: porque,
quando ela é propriamente uma escola, não se submete a ne-
nhuma política afirmada fora do próprio âmbito escolar. Mas,
em outro sentido, para Masschelein e Simons a escola é emi-
nentemente política: a) porque o ato de criação de uma escola
por uma comunidade é um ato político, na medida em que
uma escola (enquanto escola) instaura um espaço para renovar a
ordem social, inclusive sem que os criadores da escola tenham

79
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

controle ou domínio sobre essa recriação ou renovação; e b)


porque a experiência escolar contém uma projeção fortemente
política na medida em que ela permite aos seus participantes
tomar distância do mundo tal como é habitado socialmente
para poder recriá-lo ou habitá-lo de outra maneira.
Assim, se para os defensores da “Escola Sem Partido” a
despolitização da escola comporta um enfraquecimento da sua
potência transformadora, para os autores belgas ela se fortalece
em sua potência política como locus em que a nova geração
poderá recriar o mundo. São duas ideias diametralmente opostas
de escola e de política: da ausência da política pela impotência
com que a instituição escolar é concebida em face da ausência
da velha política dos velhos como possibilidade da afirmação
de uma nova política dos novos.
Finalmente, uma outra influência filosófica significativa
em Masschelein e Simons é a do já mencionado Michel Fou-
cault, em particular do último Foucault, na visão afirmativa da
disciplina em sua leitura dos gregos, da áskesis, dos exercícios e
práticas de si que permitiriam uma certa libertação das práticas
de governo e um certo exercício prático da liberdade através
do cuidado de si... De alguma forma, o trecho autobiográfi-
co de Masschelein anteriormente citado ecoa a passagem do
Foucault do poder ao Foucault da estética da existência... Os
exercícios de pensamento propiciados pelos pedagogos belgas
são exercícios de autoformação e autoeducação, na medida em
que transformam o modo de ser de quem os pratica. Trata-se
de afirmar a vida de um sujeito como exercício, um trabalho
de si sobre si por parte de quem não quer ser governado pelo
outro ou pelos dispositivos do biopoder... São exercícios de
atenção para alimentar uma vida atenta, à espreita, uma espé-
cie de atletismo escolar, um expor-se para estar preparado à
exposição, uma vida estudantil de experimentos e exercícios
com outros, de exercícios de pensamento para pensar e ver

80
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

o mundo de outra maneira, para atentar e habitar de outras


formas o mundo comum...

Elogio de uma vida...


Quanto importam os nomes, as palavras, os adjetivos?
Quanto interessa o que é filosofia, educação, pedagogia? Afinal,
a filosofia, essa velha matrona, se mostra e se esconde, não se
deixa nunca apreender de uma única forma. E, sem perder a
inspiração de Vinicius de Moraes, estamos mais interessados na
vida como a arte do encontro, embora haja tanto desencontro
pela vida. Sob o guarda-chuva da filosofia, M. Serres marca o
caminho de uma pedagogia da sedução: “seduzir: conduzir a
outra parte. Bifurcar da condição dita natural” (Serres, 1991,
p. 28). Eis a sedução da vida pedagógica e filosófica de Mass-
chelein: ela nos conduz a uma travessia, nos afasta da condição
natural e nos transporta a um lugar ignorado; faz-nos sair dos
lugares cômodos, conhecidos, confortáveis.
Voltemos ao seu relato autobiográfico. Depois de apresen-
tar a virada que significou aquela primeira viagem a Sarajevo,
Masschelein oferece sua leitura do movimento provocado por
essa viagem:
No início, não fazia ideia do que estava me envolvendo.
Simplesmente aceitei o convite para ir a Sarajevo, para
deixar o espaço institucional da universidade e tentar
encontrar outras formas de lidar com a educação, com
os alunos, com o mundo em um momento em que eu
estava de fato muito perto de sair completamente da
vida acadêmica. Agora acho que foi o ponto em que eu
comecei a desviar, de certa forma comecei a gaguejar
e tive a sensação de que realmente outras práticas eram
possíveis, onde o meu estar encerrado neste beco sem
saída de uma posição crítica, que não faz nada mais do

81
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que julgar os outros e pedir aos outros que justifiquem


suas reivindicações para demonstrar que são de fato in-
capazes de fazê-lo ( já que parece não haver fundamentos
finais possíveis, somente históricos, sociais ou culturais),
perdia força de modo que novos pensamentos podiam
chegar a minha mente e eu podia começar a pensar de
forma diferente. De fato, eles podiam vir à minha mente
e não a partir de minha mente porque eu mesmo fiquei
exposto (fora de posição). E percebi que isso não tinha
nada a ver com a minha intenção de ficar exposto ou
“de mente aberta”, mas que tinha a ver com as condi-
ções materiais, espaciais, sensoriais, sociais e intelectuais
que caracterizaram mais ou menos involuntariamente a
viagem a Sarajevo, que me deixaram exposto, e “isso”
me fez pensar. “Isso” foram condições e questões que
reconstruí gradualmente só mais tarde e depois tentei
produzir mais conscientemente nas caminhadas subse-
quentes Masschelein, 2016, [s.p]).

A viagem a Sarajevo tirou Masschelein de seu lugar, o


fez mudar de posição, o expôs, de outra maneira, ao mundo.
Para isso, teve que se deixar levar, confiar e apostar no amigo,
na amizade, na força do mundo para se expor ao que ele pode
nos trazer: expor-se “às condições materiais, espaciais, senso-
riais, sociais e intelectuais que caracterizaram mais ou menos
involuntariamente” uma viagem, a Sarajevo ou a qualquer
outro lugar. Eis o que também ensina a pedagogia pobre de
Jan Masschelein: que não há aprendizagem sem entrega, sem
exposição a uma viagem que tire do lugar, que nos faça sair da
zona de conforto. Usualmente entendemos que uma prática
pedagógica leva outros a um novo lugar. É verdade. Mas o
que a vida de Masschelein ensina é que não há pedagogia sem
viagem pedagógica do pedagogo, sem que o próprio pedagogo
se deixe levar e saia de sua zona de comodidade.

82
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

Para escrever esse relato autobiográfico, ainda em fase


de preparação, Masschelein se inspira nas notas preparatórias
de Roland Barthes para os seus cursos e seminários de 1976-
19777, no Collège de France, sobre “como viver juntos” e
em uma referência que Foucault faz na aula de 7 de janeiro
de 1976, do curso É preciso defender a sociedade, quando afirma
que suas aulas aí não são propriamente aulas de um profes-
sor, mas uma espécie de prestação de contas, um declarar
publicamente, um submeter ao público a pesquisa que se faz,
pois, a princípio, o Collège de France é uma instituição de
pesquisa e não de ensino.
Masschelein nos leva a Barthes, que, na sua aula inaugural
na mesma instituição, afirma que gostaria de renovar, através de
sua prática, a maneira de apresentar o discurso, de “mantê-lo”
sem o impor. Sugere que um ensino é opressivo não pelo saber
ou cultura que ele transmite, mas pelas formas discursivas com
que ele é afirmado. Por isso, acrescenta algumas indicações
metodológicas:

Já que este ensino tem por objeto, como tentei sugerir, o


discurso preso à fatalidade de seu poder, o método não
pode realmente ter por objeto senão os meios próprios para
baldar; desprender, ou pelo menos aligeirar esse poder.
E eu me persuado cada vez mais, quer ao escrever, quer
ao ensinar, que a operação fundamental desse método de
desprendimento é, ao escrever, a fragmentação, e ao expor,
a digressão ou, para dizê-lo por uma palavra preciosamente
ambígua: a excursão (Barthes, 1996, p. 41-42).

Para interromper ou pelo menos aligeirar o poder do


discurso é preciso escrever através de fragmentos e expor por
meio de digressões. Para sintetizar as duas formas: ex-cursões,
palavra “preciosamente ambígua”, cursos fora do curso. Com
essa palavra, Masschelein concebe sua prática pedagógica, seus

83
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

cursos caminhantes, suas caminhadas cursantes: como ex-cur-


sões, cursos fora do curso. Assim percebe Masschelein sua vida
pedagógica na universidade, como um curso fora do curso.
E como a vida é a arte do encontro, seguimos lendo Bar-
thes, a quem nos levou Masschelein. E assim continua o francês,
depois de comemorar a ambiguidade da palavra “excursão”:
Gostaria, pois, que a fala e a escuta que aqui se trançarão
fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que
brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para
trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando
assim ao redor de um centro calmo toda uma área de
jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam
finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles
se faz (Barthes, 1996, p. 42).

As idas e vindas de uma criança que brinca em torno da


mãe. Que traz ora uma pedrinha, ora um fiozinho de lã. Mas o
que importa não é o que a criança leva ou o traz, mas o “dom
cheio de zelo” com que ela faz o que faz. Barthes dá razão a
M. Serres: “A viagem das crianças; eis o sentido desnudo da
palavra grega pedagogia” (1991, p. 27). Olhe o que encontra-
mos no final, Vinicius. A pedagogia é uma viagem infantil. A
vida é uma excursão. A vida pedagógica que nos oferece Jan
Masschelein é uma excursão infantil.

Referências
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Between Past and Future: Eight Exercises in Political Thought. New York:
Penguin, 1977.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1996.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

84
Em defesa de uma defesa: elogio de uma vida feita escola

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Encontrar escola: o ato educativo e a experiência da pesquisa em educação. Rio
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KOHAN,Walter; MARTINS, Fabiana;VARGAS, Maria Jacintha (Orgs.).
Encontrar escola: o ato educativo e a experiência da pesquisa em educação. Rio
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MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão
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MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A democracia, a pedagogia, a
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para o português de Lílian do Valle. O mestre ignorante. Belo Horizonte:
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RANCIÈRE, Jacques. Ecole, production, égalité. In: L’école de la démocratie.
Edilig: Fondation Diderot, 1988.
SERRES, Michel. Le tiers-Instruit. Paris: François Bourin, 1991.
SIMONS, Maarten; MASSCHELEIN, Jan. School Experiences: An At-
tempt to find a Pedagogical Voice. In: KOHAN,Walter; LOPES, Sammy;
MARTINS, Fabiana (Orgs.). O ato de educar em uma língua ainda por ser
escrita. Rio de Janeiro: NEFI, 2016. p. 249-258.

85
Sobre a precariedade da escola1

Inés Dussel
Tradução: Fernando Coelho

Elogiar a escola não é fácil em um clima político e cul-


tural em que a crítica antiescolar é conduzida tanto por lide-
ranças destacadas quanto por seus seguidores. Dizia Georges
Dumézil: a escola é esterilizante, deformadora, nefasta. Diz
Sir Ken Robinson: a escola mata a criatividade. A convicção
de que a escola é uma instituição autoritária e que combina
a obsolescência das suas formas e conteúdos com a rigidez e
a dificuldade de mudar está bem instalada no senso comum.
Essa crítica parte de alguns pressupostos sobre o que foi e
é a escola, os quais é conveniente desmontar, e esse é um dos
propósitos deste texto. Mas também cabe suspeitar das novas
autoridades que se levantam para tomar o seu lugar: as mídias
digitais, a autoaprendizagem, as instituições educativas “fei-
tas sob medida”. O fim do recinto escolar, promete-se, trará
a libertação total do ser humano, mas é preciso formular a
pergunta sobre que custos são impostos pelos novos modos de
submissão que acompanham essas liberdades, pergunta que não

1
Agradeço os comentários dos participantes do Seminário “Elogio da
Escola”, organizado pela UDESC e pela UFSC em Florianópolis, nos dias
11 e 12 de outubro de 2016, assim como a leitura cuidadosa de Darío Pulfer,
de Buenos Aires, que ajudou a introduzir matizes importantes no texto.

87
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

se ouve com a mesma frequência com a qual se vê a celebração


das TICs no debate público sobre a escola.
No elogio coletivo que se propõe neste livro, há um aspec-
to que desejo ressaltar, e que vai na direção contrária à crítica
habitual à escola por sua rigidez e conservadorismo. Proponho,
ao contrário, pensar acerca do seu caráter precário, instável,
sempre por fazer, e também sempre a ponto de ser destruída.
Em um ensaio recente, Martin Lawn convida à observação das
ruínas das escolas, os edifícios abandonados, como sintomas
do descalabro do projeto moderno da escolarização (Lawn,
2016). Desejo dar um passo a mais e, juntamente com Latour
(1993), dizer que “nunca fomos modernos”, que a escola mo-
derna sempre foi um espaço mais precário do que se postula ou
imagina, e que continua sendo assim atualmente, ainda que em
condições diferentes. Essas condições diferentes são as que eu
pretendo explorar neste capítulo, analisando distintas versões
possíveis da precarização e propondo uma leitura diferente
sobre o que é a escola e as suas condições para perdurar.
A precariedade está associada a enunciados que reconhe-
cem filiações diferentes. Uma delas pode ser vista no trabalho de
Judith Butler (2006) sobre as vidas precárias, que não são somente
as vidas fragilizadas dos excluídos e dos marginalizados, mas
que se conectam com o que há de precário e vulnerável na vida
mesma. Esse é para Butler o ponto de partida de uma ética e
de uma política que se opõem ao regime discursivo dominante
que não dá valor à vida, ao mortal, ao finito. Um exemplo
dessa negação da mortalidade é o “sem-fim” das tecnologias
digitais, que encontram um epítome na escrita dos blogs: sempre
“in progress”, sempre fazendo-se, nunca em forma terminada
e acabada, o que é uma evidência da dificuldade dessa nova
configuração cultural em aceitar e lidar com os limites da es-
crita e das possibilidades humanas (Fish, 2012; Cabrera, 2008).
Precário, então, não é o efêmero ou passageiro, mas o que dá

88
Sobre a precariedade da escola

conta de que há um princípio e um fim da vida, sendo esta,


portanto, digna de ser cuidada e apreciada em qualquer uma
de suas manifestações. Essa é uma primeira associação que é
conveniente trazer para repensar a escola.
Por ouro lado, a precarização surge no jargão econômico
e sociológico para falar das condições instáveis e imprevisíveis
como as que o capitalismo contemporâneo oferece. Por exem-
plo, fala-se do surgimento do “precariado”, em substituição ao
proletariado, advindo de relações estruturadas de contratação e
reprodução da força de trabalho (Standing, 2011). O precariado
é a “nova classe perigosa” que já não se define pela seguridade
trabalhista, mas pela flexibilidade e incerteza; para alguns ou-
tros críticos como Robert Castel (2006), a precariedade não
produz subjetivação, mas desfiliação, um vagar sem rumo que
empobrece as vidas humanas não somente no aspecto material,
mas sobretudo subjetivo.
Há algumas outras possibilidades disponíveis para pensar
a precariedade. A “crítica-artística” (como chamam Boltanski
e Chiapello [1997] a contenda que surge no calor de Maio de
68 e que postula a liberdade e o prazer como critérios funda-
dores) associa a precariedade já não à perda de horizontes ou de
dignidade das vidas humanas, ou à sua vulnerabilidade, mas a
movimentos que abrem novas possibilidades. Um exemplo dessa
aproximação é o trabalho do crítico de arte Hal Foster, que
analisa a precariedade como estética disruptiva, que se poderia
dizer emancipadora. Foster retoma do Oxford English Dictionary
a definição da palavra precário como uma derivação do latim
precarius, isto é, conseguido por rogo ou súplica, dependendo
do favor de outro, e portanto incerto. Precarius vem de precem,
prédica ou oração (Foster, 2015, p. 103). Essa raiz etimológica
remete a uma dimensão política da precariedade, porque dá
ênfase ao que outro(s) fazem ou não fazem, isto é, à autoridade
que outorga ou não um estado. Por isso, a precariedade é para

89
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Foster uma estratégia artística de ruptura, como se vê na obra


de Thomas Hirschhorn, que criou o Museu Precário Albinet
nos subúrbios franceses em 2004, ou erigiu monumentos a
filósofos como Spinoza no Bairro Vermelho de Amsterdã ou
a Gramsci no sul do Bronx. A arte fora do lugar estabelecido
politicamente para circular, a arte associada e inscrita nas vidas
marginais, mostra o que o poder ou a autoridade não fez, e
pede e convoca novas autoridades. A precariedade se mescla
ao surgimento, com a convocação para atuar e autorizar-se a
si mesmo, questionando as figuras de autoridade, as ordens e
os referentes sociais estabelecidos.
Nessa perspectiva, precarizar é uma forma de intervir em
um estado de coisas – uma disciplina, uma ordem social – que
permite pôr em evidência as exclusões ou as imposições e cri-
ticar ou subverter certo status quo. Assim explica um historia-
dor da arte espanhol quando diz que é preciso precarizar este
campo para “que em lugar de oferecer respostas claras, fixas
e inamovíveis seja pelo menos capaz de formular perguntas
que não são fáceis de responder – e que em algumas ocasiões
não podem ser respondidas” (Hernández Navarro, 2016, p.
17). Afirmações e propostas semelhantes a essa crítica-artís-
tica podem ser encontradas na pedagogia crítica das últimas
décadas. Assim como a intervenção de Hirschhorn sobre os
museus ou os monumentos, o chamado a precarizar a escola,
a des-discipliná-la e desestruturá-la, equivale a fazer dela um
espaço menos fixo e imóvel, questionar as suas autoridades,
desestabilizar as suas ordens.
Contudo, poder-se-ia discutir o pressuposto de que a
escola, ou qualquer outra instituição quejanda, é um espaço
fixo e imóvel, e que é a crítica ou a intervenção que a coloca
em movimento. Em uma perspectiva relacional pós-estrutural
como as que exprimem, com as suas variantes, Butler e Latour,
não se deveria dar por estabelecidas a fixidez e a imobilidade,

90
Sobre a precariedade da escola

nem considerá-las um a priori ontológico das instituições. A


escola é mais o resultado precário e provisório da montagem
de dinâmicas e relações heterogêneas do que o reflexo de
processos infraestruturais e/ou supraestruturais de dominação
e controle totais.
A direção da pergunta, então, se inverte: já não é como
desestabilizamos a escola, mas como entendemos que ela não é
nada estável. O que é preciso indagar é como, no contexto das
relações sempre precárias e em movimento, a instituição escolar
consegue sustentar-se de pé e pode estabilizar-se, ainda que seja
por alguns momentos. Nessa indagação, é útil retomar as linhas
centrais da Teoria do Ator em Rede (TAR), provavelmente
uma das perspectivas contemporâneas mais interessantes para
pensar o social, tanto porque mantém os desafios teóricos do
pós-estruturalismo, como porque não se contenta em assinalar
a multiplicidade nem abandona a tarefa política de “montar o
social” (Latour, 2005). Para a TAR, a durabilidade é algo por
que se tem de lutar, pelo qual se tem de trabalhar: a regra é o
movimento, e a estabilidade é o êxito de uma série de operações
para manter uma rede social junta e orientada.2 John Law (2009)

2
Em um trabalho anterior (DUSSEL, 2013), discuti algumas das implicações
da TAR para uma teoria da escolarização. Brevemente, seria preciso destacar
que o poder não é algo dado por sua função reprodutora, mas é muito mais
um efeito ou função da configuração de uma rede. Em particular, Latour
(2005) dá atenção aos “móveis imutáveis”, mediadores que atuam como
delegados de outras redes ou atores e que se transformam muitas vezes em
pontos obrigatórios de passagem, lugares ou artefatos ou personagens que
aparecem como aqueles que dão estabilidade a uma rede. Para entender a
perduração ou estabilidade da escola, seria preciso analisar quais são esses
“móveis imutáveis” que organizam ou estabilizam interações (o edifício
escolar, o quadro-negro e os uniformes poderiam estar entre eles). Nessa
conceituação, é preciso prestar especial atenção ao espaço e à escala, em
particular como as redes se estendem e vão traduzindo-se entre distintos
atores (LAW, 2009), porque é nesse movimento que se estabilizam e se
tornam eficazes.

91
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

destaca três tipos ou condições de perdurabilidade, que podem


ajudar a entender por que uma rede se mantém estável: materiais
(isto é, os recursos de que dispõem, a factibilidade de uma dada
montagem), estratégicas (condições políticas) e discursivas (a
hegemonia, as condições da discursividade que sustentam uma
montagem provisória). Essa abordagem da perdurabilidade soma
pluralismo e instabilidade: não é algo dado de uma vez por todas,
não é inércia, mas a estabilidade é um trabalho que exige muito
esforço, e não responde a um centro ou a uma lógica unívoca.
Por outro lado, é essa estabilidade provisória que permite que
a montagem produza certos efeitos, que podemos chamar, se-
guindo Castel, subjetivações, mas que também podem remeter
às aprendizagens e êxitos que se alcançam pela organização de
instituições e de fluxos sociais.
Nessa linha se definiram as escolas como “montagens so-
ciais frágeis, que são continuamente validadas e impulsionadas
por vários esforços de redes de atores sociais que têm interesses e
compromissos díspares” (Ball; Maguire; Braun, 2012, p. 70).
Ampliando essa perspectiva, proponho considerar a escola como
uma construção material, como uma montagem provisória,
instável, de artefatos e pessoas, ideias, que capturou algumas
dessas táticas e estratégias para educar o cidadão. Sustentar essa
montagem demandou e demanda muitos esforços: o esforço
dos professores para circunscrever as crianças em certas formas
de trabalho, o balizamento ou a vigilância de certa fronteira
do que se podia fazer ou não fazer na escola, a organização de
rotinas, rituais, modos de falar, de vestir, a disposição dos corpos
no espaço, a reforma da arquitetura escolar para dar lugar a
essas necessidades. Há muitos “fazeres ordinários”, cotidianos,
da escola (Chartier, 2000), os quais é preciso destacar para
analisar como é que esta consegue sustentar-se como instituição
relativamente estável. Chartier analisa os cadernos de aula, mas
também poderia ser analisado o trabalho das cozinheiras da

92
Sobre a precariedade da escola

escola, mostrado por Maximiliano López em sua bela Teoria


da escola (2016), que quebram centenas de ovos para preparar
a comida do dia, ou dos porteiros da escola, que regulam o
fluxo de entradas e saídas, recebem ou despedem as crianças,
deixam fora os pais ou outros adultos.
Neste ponto de reconceituação do que é a escola e como se
organiza, eu gostaria de propor um diálogo com a perspectiva
filosófico-política de Jan Masschelein e Maarten Simons sobre
a escola. Em seu livro Em defesa da escola (2014), sugerem que
ela implica, antes de tudo, uma suspensão de um tempo e de
um espaço para profanar o saber instituído, para pôr algo sobre
a mesa e convidar a questioná-lo e analisá-lo a partir de outros
lugares. É também um âmbito em que se educa a atenção, em
que se produz ou se promove um tipo de trabalho e de olhar
para o mundo que não está disponível em outros espaços, e que
é antes de tudo um espaço de iguais. Mas, retomando alguns
dos argumentos anteriores sobre a precariedade e instabilidade
das montagens, poder-se-ia perguntar como é que a escola
pode realizar esses atos de suspensão, quais são as condições
ou as operações que têm que ser postas em ação para fazê-lo,
quais são esses fazeres ordinários que permitem que o convite
a profanar o saber possa se concretizar em ações cotidianas, e
como se pode fazer para que isto que faz a escola, ou que faz
que a escola seja escola, perdure. Eu gostaria de dialogar com
a perspectiva de Masschelein e Simons a partir de algumas
contribuições da etnografia e da história da escola, que têm
uma visão mais desordenada e mais conflituosa do que é e do
que faz a escola, visão que me parece enriquecer os olhares e
também as políticas que podemos pensar em sua defesa.
Um aspecto que deveria ser considerado mais de perto
refere-se à escola como suspensão. O que é essa suspensão,
como se produz, em que condições? Considero muito sugestiva
a definição que dá o antropólogo Jan Nespor da escola como

93
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

“uma intersecção em um espaço social, um nó na rede de


práticas que se expande em sistemas complexos que começam
e terminam fora da escola” (Nespor, 1996, p. xiii). Nespor diz
também que as salas de aula são “espaços porosos e precários”
(p. xiii): as paredes da escola nunca contiveram de todo nem por
muito tempo o que se passava fora. Nesse sentido, poder-se-ia
dizer que se a suspensão era um gesto importante para con-
seguir produzir filiações diversas das familiares ou locais, um
espaço e um tempo de skholé, não é preciso acreditar que com
esse gesto a escola deixava de estar atravessada pelos tempos.
Podem ser tomados como exemplos dessas condições e
limites da suspensão os uniformes escolares que estudei em
minha tese de doutorado: eram superfícies ou artefatos em que
se inscreviam o poder do estado-nação sobre os corpos infantis,
o poder disciplinador, mas também, a partir de fins do século
XVIII e sobretudo no século XIX, a vontade igualadora jacobina
de que todos brilhassem de forma igual, porque eram iguais
na República. Como diz o filósofo Etienne Tassin, retomando
Hannah Arendt, “não há política senão da aparência, e essa é
a sua nobreza. [...] A política sempre está do lado daquilo que
se apresenta” (citado em Didi-Huberman, 2014, p. 24).3 Po-
der-se-ia pensar, também, que essa suspensão que o uniforme
impõe ao definir um corpo escolarizado é atravessada pela po-
lítica – e nesse sentido, seria preciso voltar a pensar a política e
a politização como parte do escolar e não somente como aquilo
que busca domesticá-lo (Simons; Masschelein, 2014, p. 100 et
seq.). O uniforme, em suas marcas concretas, sua cor, seu estilo,
sua textura, ao mesmo tempo em que ajudou a delimitar um
espaço do escolar, a estabelecer áreas e espaços em que a sua
razão e a sua lei eram vigentes (incluindo-se, às vezes, o lado de

3
No original: “Il n’y a de politique que d’apparence, là est sa noblesse. […] la
politique est toujours du côté de ce qui se présente […]”.

94
Sobre a precariedade da escola

fora da escola: sempre que se vestisse um uniforme era preciso


comportar-se como um escolar), também foi atravessado pelos
tempos, e definiu uma presença política do escolar na sociedade.
O exemplo do uniforme permite ver que a escola não é uma
instituição homogênea e unificada, mas, como já assinalamos,
uma montagem provisória de práticas, artefatos, pessoas, sabe-
res, que não se define somente pelas paredes ou pelas formas de
regras estatais, mas por complexas interações em várias direções,
entre elas as operações para montá-la. Suspender um tempo e
um espaço exigiu distintas operações, entre as quais definir
uma vestimenta própria e codificar uma série de interações
e regras sobre o seu uso, que ajudaram a estabilizar os limites
entre o dentro e o fora da escola. Nesse contexto, as perguntas
que poderiam ser chamadas de empíricas sobre como tal escola
consegue fazer tal operação se tornam mais importantes; nesse
caso, analisar por que os uniformes, quais, quando e até quando
permite entender melhor a rede de relações que se montam na
escola, e também as diferenças entre umas escolas e outras (entre
privadas e públicas, entre escolas de distintas regiões e nações,
entre regras mais rígidas e outras mais brandas). A continuidade
não é um dado imutável; pensar a partir de uma perspectiva que
parte do movimento e da instabilidade obriga a nos perguntar-
mos quais são as condições e operações que tornam possível essa
montagem particular e heterogênea, esse gesto de suspensão de
um tempo e um lugar e de profanação do conhecimento, e o
que sustenta unida e relativamente estável a instituição escolar.
Essas perguntas são mais importantes hoje, quando as escolas
estão mais precarizadas e fragilizadas, e quando parece que é
mais difícil manter montado aquilo que antes tinha melhores
condições para a durabilidade. Estão, por um lado, mais per-
meadas pelas condições de flexibilidade laboral e pela desfilia-
ção, pela comoção e pela emergência; são muitas as escolas que
trabalham em e a partir das “beiradas” do escolar, repensando

95
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

formas e rotinas para sustentar a escolarização como projeto de


integração à cultura. Mas também há códigos curriculares mais
fragmentários e instáveis, submetidos às novas demandas para
interessar e incluir distintas populações e a exigência da inova-
ção e atualização. Há certa resignação em não contribuir para
formar em algo comum e em relação ao fato de que a escola já
não é um assunto público, mas uma negociação local fechada e
submetida às relações de força imediatas. Tudo isso distancia as
escolas desse ideal de plenitude e estabilidade que se imaginava,
a partir da crítica que buscava desmontá-lo, a qual parece um
tanto defasada no que diz respeito às condições em que operam
as instituições escolares.
Eu gostaria de me deter um pouco mais nas condições
que existem para que a escola se sustente como tal, essas que
hoje parecem ainda mais incertas que antes. Para isso, seguirei
a reflexão que John Law (2009) propõe sobre os três tipos ou
condições da perdurabilidade das montagens sociais: a dis-
cursiva, a material e a estratégica, tratando de vinculá-los às
operações e trabalhos que fazem as escolas.
A durabilidade discursiva tem a ver com as condições da
discursividade ou da hegemonia que sustentam certas mon-
tagens. Seria preciso lembrar que a escola surgiu como um
intento de eliminar, superar ou atenuar a fragilidade humana
(Hamilton; Zufiaurre, 2014): sem a escolarização, sem a dis-
tribuição de certa experiência codificada, cada geração se veria
obrigada a começar de novo toda vez. O vínculo da escola com
a fragilidade da experiência e a transmissão humana é profun-
do e múltiplo, e talvez seja parte do que se procura negar ou
esconder atrás do mito de sua plenitude e estabilidade. O que
é evidente é que a escola, para sustentar-se como montagem,
precisa de condições discursivas que afirmem a sua importância
e a sua centralidade para a transmissão da cultura; sem essa
legitimidade, o que realiza tem poucas chances de perdurar.

96
Sobre a precariedade da escola

Como viemos argumentando desde o início deste texto,


as condições discursivas atuais são bastante adversas à sustenta-
bilidade dessa montagem escolar, algo de que também tratam
Masschelein e Simons quando discutem as estratégias de do-
mesticação da escola. Desejo sublinhar que a crítica antiescolar
tem vários pontos que surgiram no século XX. Por um lado, a
demanda pela democratização das escolas: poder-se-ia dizer que
foi na ordem de se fazer cada vez mais popular, cada vez mais
inclusiva, que a escola foi adotando formas e saberes do entorno e
das famílias (Hunter, 1998). O desafio de incluir a todos, de dar
lugar aos saberes populares e às demandas e necessidades locais
foi acarretando um deslocamento do ideal burocrático e abstrato
de igualdade educativa em direção de um ideal de inclusão lo-
calizada, adaptada, organizada segundo o gosto do público. Este
é provavelmente o momento em que se tornou mais difícil falar
de “a escola”, e construir condições discursivas para uma maior
durabilidade, porque começaram a surgir instituições com perfis
mais próprios e propostas distintas, “customizadas” para o poder
aquisitivo ou para a demanda das famílias. Destaco a ideia de
adaptação ao gosto do público, porque me interessa dar ênfase à
cadeia de associações entre adaptação local – audiência – consu-
mo de massas, entre o público e os públicos consumidores, que
foi acontecendo ao longo do século XX. A formação de uma
audiência televisiva foi simultânea à democratização de muitas
relações sociais, e à inclusão de muitos setores postergados à esfera
pública e ao consumo de massas (Meyrowitz, 1985). Embora
as relações entre cidadania e consumo sejam complexas (García
Canclini, 1995), é importante assinalar que há uma tensão im-
portante entre a demanda pedagógica de que a escola dê lugar a
histórias, experiências e saberes distintos, o crescimento da lógica
mercantil nas relações políticas e na ocupação do público por
essa lógica, e o projeto da escolarização erguido com base em
um ideal igualitário, para não dizer burocrático. Nessa tensão, os

97
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

dois primeiros elementos terminaram aliando-se e confluindo,


enquanto o terceiro foi declinando cada vez mais. Não é por
acaso, então, que tenha caído em desgraça a escola como espaço
diferenciado e separado (suspendido) da vida cotidiana, como
espaço público que pode colocar-se à margem das relações de
forças locais, e que seja cada vez mais forte a reivindicação de
que se pareça cada vez mais com o lado de fora imediato, que
se adapte às aprendizagens comuns, que tome suas tendências
e suas formas.
Esses discursos críticos pedagógicos confluem com outros
no questionamento das condições discursivas que sustentavam
a montagem escolar, sobretudo com movimentos discursivos da
tecnocultura que se erigem como as novas autoridades desses
tempos. Sigo aqui Miguel Morey, filósofo espanhol, grande leitor
e comentador de Foucault, em sua reflexão sobre a biblioteca e o
arquivo como duas formas de organizar o conhecimento. Morey
diz que Maurice Blanchot nos anos 1930, à guisa de grito de
guerra contra as velhas instituições do saber, se sublevou contra as
bibliotecas como “o esqueleto fundamental, essencial, das obras
limitadas que todo homem culto deve conhecer” (Morey, 2014,
p. 194). Nas palavras de Blanchot, “já não existe biblioteca, a par-
tir de agora, cada um lerá do seu modo” (La última palabra, 1935,
citado em Morey, 2014, p. 192). O gesto ou ação que propõe a
crítica antiautoritária da biblioteca é “fazer perder a autoridade
da biblioteca no que tinha de projeto único, unitário, de orde-
nação da cultura” (p. 192). Foucault, anos depois, radicalizará
esse gesto, saudando e celebrando que o desaparecimento de uma
forma de organizar a cultura, de sustentar um corpus organizado
da tradição, abre a possibilidade de que cada um possa ordenar a
sua própria biblioteca. Foucault opõe à monarquia da biblioteca (e
onde diz biblioteca poder-se-ia ler escola, que funciona mais ou
menos como instituição centralizadora da cultura) a pluralidade
do arquivo, sua horizontalidade.

98
Sobre a precariedade da escola

Contudo, com a explosão digital da cultura e o apareci-


mento de novos arquivos como a web, a situação muda. Para
Morey, é desnecessário insistir na celebração de novas liber-
dades, sendo preciso, porém, assinalar que também “tem algo
que soçobra”:

A substituição da biblioteca pelo arquivo implica um


ponto de crise, talvez o mais violento de nossa sociedade,
no fracasso educacional com o qual nos ameaça, o fra-
casso da formação. Se saber é cortar, que saber podemos
ensinar nas escolas? Se já não há biblioteca da tradição,
o que se pode ensinar? A promessa que acompanhava a
substituição da biblioteca pelo arquivo era uma promessa
de desaprendizagem, graças a ela íamos poder desaprender,
aprender a nos desprender das velhas amarras que atavam
nossa experiência e nosso comportamento aos ditados
de uma tradição enormemente enganadora, interessada
e sectária. Em lugar disso, agora está o espaço aberto do
arquivo. Mas desse espaço aberto não se produz nenhuma
pedagogia (Morey, 2014, p. 11).

Se “um saber [...] é um espaço de liberdade em relação


àquilo que a tradição determinava como enclausurado de uma
vez por todas” (Morey, 2014, p. 204), como educar se não há
tradição que possa autorizar uma adoção de profanação? Que
liberdade há quando é definida pelo algoritmo das máquinas
de busca, que já não se apoiam em uma tradição, mas em uma
hierarquia de interesses econômicos complexa e opaca, formas
culturais dominantes e lugares comuns? Que espaço resta para
que o sujeito tome distância desse arquivo? A discursividade
que se impõe com a cultura digital propõe a popularidade, a
imediatez e a emocionalidade como as novas pedras de toque
da cultura (Van Dijck, 2013); a profanação perde o seu fio e o
seu potencial emancipador quando é uma operação cotidiana

99
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

e se converte em estratégia de mercado para vender a última


novidade – algo sobre o que voltarei adiante. O fato de que a
tradição e a transmissão também tenham caído em desgraça,
que estejam tão deslegitimadas pelos discursos políticos e pe-
dagógicos contemporâneos, fala das dificuldades para que uma
certa operação escolar possa perdurar. É preciso incorporar este
espaço nas teorizações atuais sobre a escola para se poder pensar
também nos desafios que enfrenta.
Em relação às condições materiais e estratégicas para a
perdurabilidade da montagem escolar, eu gostaria de propor
algumas reflexões sobre outra série de desafios que, como o
último que foi lançado, vêm das mudanças na cultura material
e tecnológica desta época e das novas condições do capitalismo.
Como assinalam Masschelein e Simons, a suspensão que a
escola tem que fazer implica produzir uma atenção e realizar um
trabalho sobre a percepção. Essa produção requer certas condições
que estão sempre em movimento. Uma contribuição relevante
para entender como se produziu essa educação da atenção é
dada por Jonathan Crary (2008) em sua história da atenção.
Crary estuda as tecnologias e discursos que permitiram educar
a percepção para que houvesse um esforço e uma disposição em
acordo para atender a certas coisas e não a outras, deixar para trás
as distrações periféricas e concentrar a observação em um foco.
É interessante verificar que essa educação da atenção andou na
contramão das primeiras “instruções disciplinares”, incluindo
as educativas, no início do século XIX, que se planejaram para
transformar os sujeitos no objeto da atenção e da vigilância,
como o panóptico. Ao contrário, até fins do século XIX, a
escola e também o cinema e a publicidade propuseram algo
diferente: são os sujeitos que devem regular a sua atenção, fazer
um uso proveitoso e eficiente em diversas situações sociais. As
condições do cinema e das escolas, ainda que com suas diferen-
ças, buscaram individualizar, separar e imobilizar os sujeitos em

100
Sobre a precariedade da escola

assentos ou em espaços que permitiram focalizar a sua atenção


em um ponto. Como diz Crary, foram “métodos para contro-
lar a atenção que utilizam a divisão e a sedentarização, criando
corpos simultaneamente controláveis e úteis, apesar de gerarem
a ilusão de que oferecem opções e interatividade” (Crary, 2008,
p. 80). As tecnologias interativas, então, também são meios nos
quais se dá a captura da atenção, ou, melhor dizendo, a produ-
ção de uma certa atenção, que tem pontos de contato com as
formas anteriores, mas que também introduz algumas novidades
importantes com as “experiências de imersão” e cinésicas dos
videogames e a realidade aumentada.
Na escola contemporânea, essas novas condições costumam
ser tematizadas como um problema de atenção, um déficit de
atenção ou um excesso de distração. Convém responder a esses
argumentos com a análise de Crary de que a educação da aten-
ção não excluiu a distração ou a desatenção: sempre é um fluxo
instável, que requer que seja regulado e reforçado. Crary afirma
que até fins do século XIX o tempo “livre” ou de recreio foi
sendo colonizado, em um processo cada vez mais estendido que
chega até agora, quando a cultura digital invade cada vez mais
os tempos e os espaços. “A informação e os sistemas telemáticos
simulam a possibilidade de divagar e evadir-se, mas em realidade
constituem modos de sedentarização e separação nos quais a re-
cepção de estímulos e a padronização de respostas produzem uma
mescla sem precedentes de atenção difusa e quase-automatismo,
que pode manter-se por períodos de tempo extremamente lon-
gos” (Crary, 2008, p. 82). Certamente, pode-se dizer que o que
acontece em relação às telas não é somente quase-automatismo,
atenção difusa e flutuante: há momentos de intensa criatividade,
de compromisso forte, de um envolvimento similar ao estudo,
com um foco de atenção claro. Mas em uma economia da atenção
que luta veementemente pelo “tempo disponível de cérebros”
para vendê-los a quem melhor paga (Stiegler, 2009; Citton,

101
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

2014), gerando estímulos cada vez mais imersivos e poderosos


para capturar os indivíduos, que possibilidades tem a escola de
produzir uma educação da atenção que tenha características,
ritmos e conteúdos diferentes da tecnocultura dominante? Que
condições materiais e estratégicas tem para conseguir algumas
montagens mais perduráveis nesse outro tipo de proposta de
atender o mundo de outro modo, com outras perspectivas e ou-
tras temporalidades? Que chances tem o trabalho com a atenção
profunda que propõe, em um contexto em que a hiperatenção,
mais fragmentária e dispersa, mais imediata e imersiva, domina
as indústrias culturais? Suspendermo-nos hoje implica uma ação
explícita de desconectar-se das redes que interpenetram todas
as relações sociais; as salas de aula com celulares são, mais do
que nunca, espaços porosos e precários que são atravessados por
múltiplas dinâmicas.
A regulação da atenção parece ter cedido a outras agências.
Poder-se-ia dizer que, como a escola, o cinema e a televisão
lutam por se recriarem como formas de circulação e consumo
que podem incluir as telas domésticas ou dos dispositivos.
Surge a convergência de meios e de negócios entre produtos
e formas de distribuição que permitem ver em tempos deter-
minados por cada usuário o que antes se dava em alguns canais
de distribuição; caem as grandes cadeias de televisão e surgem
novos atores, tais como plataformas de distribuição de conte-
údo (iTunes, Netflix, Hulu e similares). Mas diferentemente
desses meios, a escola, como um âmbito que propõe um tempo
de iguais e um tipo de trabalho com o saber diferente e com
autoridades que não têm a ver com a popularidade e a imedia-
tez, encontra cada vez mais problemas para recriar-se nessas
novas condições, porque a sua forma não pode acomodar-se
ao consumo individual efêmero sem perder algumas de suas
características centrais. Muitos professores sabem disso muito
bem, sobre suas costas recai a tarefa de atender simultaneamente

102
Sobre a precariedade da escola

demandas contraditórias e impossíveis de satisfazer em toda a


sua extensão: o modelo do consumo, a medida, o “ just-in-ti-
me” não combinam muito com a organização pedagógica e
material da aula.
Se são evidentes as dificuldades que as escolas encontram
para suspender um tempo e um espaço e para produzir uma
atenção sobre certas coisas do mundo que são trazidas para tra-
balhar em comum, eu gostaria de acrescentar outra dificuldade,
associada à ação de profanação do saber que Masschelein e Simons
postulam como uma das características centrais da escola, e como
uma ação que permite uma emancipação dos limites epistêmicos
e afetivos de cada um. Um requisito para essa profanação do saber
é que possa haver uma relação de horizontalidade, de igualdade
nesse acesso e problematização do objeto da cultura que é colo-
cado em relação (seja um texto, uma peça mecânica, um mapa
ou um filme). A escola como espaço de iguais deveria convidar
todos a se aproximar de novo, como nova experiência, desses
objetos que habilitam um encontro distinto com o mundo, e
que permitem a cada um apropriar-se dele, encontrar um lugar
nele, acessar suas linguagens como modos de representação das
experiências humanas.
Assim, a horizontalidade não é somente nem principal-
mente o resultado de uma interação docente-aluno, mas uma
condição mais geral da ação pedagógica, e aqui valeria a pena
voltar a pensar sobre a inquietude de Miguel Morey: que pe-
dagogia se segue de um espaço aberto como o Google? O que
acontece com a horizontalidade onde não há, ou ao menos
parece não haver, hierarquias ordenadas por uma tradição?
Para abordar essa questão, retomo algumas ideias que Walter
Benjamin elaborou em um escrito de 1928:

Se há séculos [a escrita] começou a inclinar-se gradual-


mente, passando da inscrição vertical ao manuscrito que

103
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

repousava inclinado nos atris, para acabar apoiando-se


na letra impressa, agora começa, com idêntica lentidão, a
levantar-se outra vez do solo. O jornal já é lido mais na
vertical do que na horizontal, e o cinema e a publicidade
submetem por completo a escrita a uma verticalidade
ditatorial (Benjamin, 1928, p. 29).
Para Benjamin, a ditadura perpendicular, a posição do su-
jeito diante da escrita, frente a frente, supõe um vínculo com o
saber com menos liberdades do que a horizontalidade. Podemos
deter-nos um pouco mais na espacialidade e materialidade da
profanação: pode-se profanar algo que se tem em frente, ou
precisa-se de um olhar oblíquo, da linha do horizonte? Em
que medida a profanação requer uma mediação, uma distância?
Benjamin sugere, nesse breve texto, que essas novas formas
verticais da cultura reinstalam uma relação de culto, religiosa,
com os seus produtos: olhamos as imagens da publicidade ou os
meios com o mesmo fascínio com que se olhavam as imagens
sagradas. Algo similar foi assinalado por Monsiváis (2007),
quando analisou o poder das imagens do cinema e o poder da
iconosfera nos imaginários contemporâneos como continuida-
de das velhas imagens religiosas. Seguindo esse fio dos meios
verticais e horizontais, pode-se dizer que, paradoxalmente, a
cultura digital que anuncia o fim das mediações e a circulação
livre dos saberes, a completa autonomia do indivíduo para
libertar-se das velhas autoridades e a profanação como gesto
cotidiano, implica muitas vezes exatamente o contrário em
sua verticalidade, algo ainda mais marcado na imersividade
que os videogames propõem, que já não permitem “fazer
tela”, condição para a subjetividade segundo a psicanálise – ou
distanciar-se para ganhar reflexividade.
A ditadura perpendicular das telas traz outros condicionantes
para a profanação dos saberes, que fazem a relação com o pro-
fundo, a densidade de planos, versus a platitude das telas. Nessa

104
Sobre a precariedade da escola

linha, o diálogo com o trabalho da historiadora da arte Anne


Friedberg, que estudou como a ideia de janela e tela podia asso-
ciar-se a trajetórias mais amplas culturalmente sobre a perspectiva
e a profundidade, trazendo um olhar um tanto distinto sobre o
problema do vínculo com os saberes e a materialidade das ações
pedagógicas nesta época. Para Friedberg, “o ‘espaço’ vernáculo
da tela do computador tem mais em comum com as superfícies
do cubismo – frontalidade, supressão da profundidade, capas
sobrepostas – do que com a profundidade estendida da perspec-
tiva renascentista” (Friedberg, 2006, p. 3). Isso desarticula algo
que foi central para o pensamento crítico, que foi a possibilidade
de perspectiva. A tela se desprende da janela como abertura ao
mundo, a um mundo com uma densa cadeia de planos e uma
linha de fuga para o horizonte, e começa a ser mais um espaço
de encerramento, de sedentarização, de des-complexificação
do mundo. Não é casual que um dos sites mais populares de
apoio escolar no Brasil se chame “Descomplica”: a promessa das
novas tecnologias é simplificar o mundo, economizá-lo, fazê-lo
doméstico a tal ponto que deixe de ser mundo e se torne uma
projeção dele.
A perspectiva é a possibilidade da distância, e também de
confrontar pontos de vista. Friedberg traz o que Leon Battista
Alberti, considerado o “inventor” da perspectiva, dizia em De
Pictura (1435): “Grande, pequeno, largo, curto, alto, baixo, amplo,
estreito, luz, obscuridade, brilhante, tenebroso, e tudo do seu
tipo, [...] só podem ser conhecidos por comparação” (citado em
Friedberg, 2006, p. 243). Essa comparação, em um contexto de
convergência dos múltiplos aparelhos, como a televisão, o cine-
ma, o rádio, o computador, o telefone em uma só tela, produz
outros efeitos, que aplainam essas diferenças. Diz Friedberg:
“como donos das janelas de múltiplas telas, agora vemos o mundo
em quadros fraturados espacial e temporalmente, através de ‘ja-
nelas virtuais’ que se apoiam mais no múltiplo e no simultâneo

105
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

do que no singular e no sequencial” (p. 243). Quando tudo se


traduz ou se reduz a uma janela na qual a incomensurabilidade
fica assimilada a outros quadrados, todos iguais ainda que di-
ferentes, seria preciso ver que condições existem para produzir
operações de saber que reconheçam a alteridade e a diferença
nas linguagens e experiências dos outros, e possam resistir ao
influxo de assimilar tudo à mesma corrente avassaladora.
As tecnologias em sala de aula pressupõem, assim, desafios
muito maiores do que citações da Wikipédia: há condições
epistemológicas e ontológicas que começam a inverter-se e
que terão efeitos que, embora ainda sejam tênues, já falam da
dificuldade de sustentar operações críticas de profanação dos
saberes e de um certo tipo de atenção para o mundo como
os que a escola procurava instituir, de formas nem sempre
exitosas, mas que iam em uma direção muito distinta da que
se impõe hoje.
Aproximo-me assim da conclusão do meu argumento,
que quer elogiar a precariedade da escola para insistir em que
é necessário dotá-la de condições de certa perdurabilidade,
condições que na atualidade parecem cada vez mais difíceis de
se conseguir. Se a proposta político-epistemológica da escola
moderna se baseava nessas operações de suspensão, de corte,
de profanação, de equalização horizontal, seria preciso então
chamar a pensar o que se poderia fazer, o que poderíamos fazer
para que possa perdurar como montagem precária, ainda que
seja um pouco mais, até que surja alguma outra instituição que
substitua o seu relevo, e embora essa estabilidade esteja sempre
à beira de sua destruição, que é também o da afirmação de sua
vida e sua potência.
Um primeiro elemento é fortalecer essas condições dis-
cursivas para a perdurabilidade dessa montagem precária. Tem-
se a impressão de que muitas das propostas críticas, embora
venham da esquerda, seguem o mesmo movimento do novo

106
Sobre a precariedade da escola

capitalismo criativo ou cognitivo, reproduzindo as oposições


entre a durabilidade (o polo negativo) e a mobilidade (polo
positivo), o apego (stickness) e a disseminação (spreadability), que
é erigida como novo valor ou mercadoria ( Jenkins, 2013). Em
seu rechaço da perduração, da repetição e da acumulação, a
crítica antiescolar que teve o seu auge em 1968 aparece hoje
alinhada, paradoxalmente, com instituições e regimes de
poder que outrora eram seus inimigos (Dussel, 2016). Seria
preciso revisar essas perspectivas críticas, sem cair na nostalgia
da velha escola, inútil e irrelevante nessas novas condições;
mais que isso, é preciso pensar propositivamente, com vistas
no futuro, imaginando o que do mundo queremos trazer à
ação da profanação, que convites podemos fazer para esse
encontro, que arquitetura e que disciplina ajudam melhor na
suspensão, que formas a escola toma ou pode tomar para atuar
como esse espaço de iguais. E ainda que não tenha tratado
deles neste texto, esse repensar passa de maneira central por
um trabalho com os professores, as famílias, os estudantes,
experimentando e expandindo novas formas de fazer escola
nessas condições.
Mas também temos que pensar nas condições materiais
e estratégicas, nas políticas e na cotidianidade do escolar. É
preciso imaginar novos dispositivos, tecnologias, artefatos ou
saberes que dialoguem melhor com essas novas condições do
saber, e que se inscrevam nas formas concretas com que hoje
se faz escola. Seria preciso considerar, com toda a seriedade
que merece, que tecnologias vamos usar e para quê; que dis-
posição da sala de aula ajuda melhor a realizar alguns desses
gestos ou ações. Que conteúdos ou saberes são trazidos para
esse encontro que ajudem nas direções que importam nesses
tempos, sem abandonar a tarefa política da montagem, como
diz Latour (2005), precisamente porque é precário e poroso.
Não se trata de estruturar uma nova série de receitas ou de

107
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

passos para fazer escola, mas sim de concretizar e de dar forma


a essas inquietudes e preocupações. Seria preciso pensar o que
do mundo é trazido para esse encontro, para que a escola não
entregue às novas autoridades das indústrias tecnoculturais o
seu lugar como âmbito público, como âmbito de construção
do comum. Diferentemente de Morey, que considera que
não há pedagogia no espaço aberto do Google, creio que é
preciso alertar sobre as hierarquias e ordens que constroem
os algoritmos, sobre as pedagogias do “des-complica”, sobre
a simplificação e o aplainamento do mundo. Por isso, os mo-
mentos e os espaços de trabalho com as tecnologias digitais na
escola me parecem centrais para que possamos transformá-las
em objetos a profanar, isto é, para que possamos problemati-
zá-las, questioná-las e olhá-las em distintas perspectivas, para
que possamos estabelecer um corte e nos distanciarmos da
corrente de padronização e dos caminhos que vão armando
os algoritmos da popularidade.
O que segue será igual em relação ao precário e instável
em relação ao de antes, mas as formas de conectividade, hipe-
ratenção e aplainamento do mundo apresentam novos desa-
fios para ir armando novas montagens provisórias. Enquanto
vamos pensando e ensaiando, proponho ficarmos com a ideia
do historiador da arte Didi-Huberman sobre o vínculo entre
saber e cortar, que Morey toma de Foucault:
A questão de “cortar” me parece mais importante hoje
em dia, em uma época na qual se pensa que saber é saber
o máximo de coisas, fazer bases de dados vendo tudo
no YouTube. Tudo isso é muito importante, sim. Mas
o ato fundamental é o de cortar. Cortar não quer dizer
fatalmente reduzir o sentido. Corta-se fazendo uma
montagem. Mas ao fazer uma montagem, pode-se abrir
o sentido em perspectivas consideráveis (Didi-Huberman,
2014, p. 149).

108
Sobre a precariedade da escola

O fio da montagem é valioso, e seria preciso segui-lo. Na


época da informação “sem fim”, do arquivo para-humano da
cultura, talvez a escola seja o espaço para aprender a cortar, a
deter-se, a criar uma série distinta, e exercitar-se nisso. Profanar
é problematizar, questionar, acercar-se de perspectivas distintas,
interrogar com linguagens novas aquilo que já se tinha visto
ou acreditado. Seria preciso ensinar a perdurar nesses gestos,
e daí o valor do exercício cotidiano. O elogio da precariedade
da escola passa por apreciá-la, cuidar dela, expandi-la, para que
não se estabilize nem no efêmero nem no descartável, mas como
uma condição vital de uma montagem que está sempre à beira
de sua destruição, mas também em movimento, aberto, capaz
de apresentar o mundo e de ajudar a criar novas montagens,
imaginando outros futuros.

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Sobre a precariedade da escola

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Filme
Teoria da Escola. Dir. Maximiliano López. Brasil, UFJF-NEPE, 2016. 33
minutos.

111
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões
Pedagógicas da II República Espanhola

Jorge Larrosa, Marta Venceslao


Tradução: Fernando Coelho

Aí está, e que cada um pegue o que puder, o que


quiser, o que lhe servir e nada mais.
(Ramón Gaya, relembra, quase sessenta anos
depois, o que foram as Missões Pedagógicas)

Uma declaração de amor.


(Nota prévia de Jorge Larrosa)

Há alguns meses, Marta e eu demos uma disciplina de


mestrado intitulada “Cultura, arte e sociedade inclusiva”, cuja
proposta era pensar maneiras de entender as práticas artísticas
e culturais no contexto de categorias sociais como pobreza,
desigualdade ou exclusão. Um tanto surpreendidos por certo
espírito hipercrítico dos estudantes diante de muitas das coisas
que lhes mostrávamos, e inspirados também pela maneira como
eles elaboraram alguns estados de espírito como a raiva ou o
mal-estar para colocá-los na base da sua maneira de entender
tanto a pesquisa, como o trabalho com o social, propuse-
mos uma distinção entre duas maneiras de nos relacionarmos
com o mundo, as quais chamamos de “distância crítica” e

113
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

“aproximação amorosa”, e decidimos pedir aos estudantes,


como exercício de aula, uma “declaração de amor”, ou seja, que
mostrassem alguma experiência educativa, artística ou cultural,
no âmbito do “social”, que eles acreditassem que poderia ser
inspiradora, da qual pudéssemos aprender algo ou na qual, ao
menos, valesse a pena determo-nos por um momento, pres-
tarmos-lhe atenção, deixarmo-nos dizer alguma coisa por ela.
Marta preparou a sua própria declaração de amor, dedicou-a
às Missões Pedagógicas da II República Espanhola, e, quando
a apresentou em aula, comovido pela força das imagens e pelo
assombro dos estudantes, eu soube claramente que esse tinha
que ser o tema do meu “elogio da escola” em Florianópolis.
Além disso, as minhas dificuldades para superar a hosti-
lidade com a qual meus próprios alunos tendem a ler o livro
de Jan Masschelein e Maarten Simons (2014) sobre a escola
me haviam levado a pensar que esse é um livro que exige uma
leitura com um olhar amoroso tanto para a escola, como para
a tradição pedagógica: algo que não é fácil nesses tempos em
que está instalado o tópico da “crítica da escola tradicional”,
em que a própria escola é declarada todos os dias como sendo
enfadonha, obsoleta, ineficaz, inútil, anacrônica, etc., etc., etc.,
e no qual aos jovens aprendizes de educadores só se ensina a ver
a escola como algo que tem que mudar e se apresenta a tradição
pedagógica como um museu de antiguidades.
De modo que pedi a Marta as suas notas e as suas fontes,
o que tinha escrito e o seu material de trabalho, e lhe pedi per-
missão para reelaborá-los no contexto deste Seminário, assegu-
rando-lhe que manteria, isso sim, o tom amoroso e agradecido,
e que, portanto, submeteria à sua consideração e ao seu critério
o resultado deste trabalho, aceitando, desse modo, todas as su-
gestões que julgasse bem me dar. E assim o fizemos. Por isso a
dupla autoria deste texto. E daí, por último, que ao duplo amor
no qual, segundo Hannah Arendt, se decide a educação (o amor

114
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

ao mundo e o amor à infância), nos atrevamos a acrescentar um


terceiro: o amor à escola. Sabendo que o que chamamos de “a
escola” é um acontecimento que se dá, às vezes, somente às vezes,
em uma instituição escolar cada vez mais submetida às lógicas
econômicas e sociais ou, nas palavras de Jan e de Maarten, cada
vez mais domesticada.

As Missões
Aquele que impulsionou as Missões Pedagógicas, Manuel
Bartolomé Cossío, tinha sido colaborador e discípulo de Fran-
cisco Giner de los Ríos (o fundador, em 1876, da Institución
Libre de Enseñanza, que tinha revolucionado a pedagogia
espanhola do fim do século XIX e início do XX), e tinha sido
também, desde 1904, o primeiro catedrático da primeira Cá-
tedra de Pedagogia que teve a universidade espanhola. Cossío
estava na Suíça em 14 de abril de 1931, dia da proclamação da
II República, e imediatamente pegou um trem para Madri. À
sua chegada à estação estava esperando por ele Domingo Bar-
nés, diretor do Museu Pedagógico, para lhe dizer que o novo
governo ia impulsionar imediatamente o tão acariciado projeto
das Missões e que iam nomeá-lo diretor do seu Conselho. De
fato, as Missões foram criadas no mês seguinte, no dia 29 de
maio, na dependência do Ministério de Instrução Pública e
Belas Artes. A primeira Missão se realizou entre 17 e 23 de
dezembro, e foi uma das primeiras iniciativas em um período
da história da Espanha que se caracteriza, justamente, por seu
extraordinário impulso pedagógico. Tanto a obra educativa da
II República Espanhola, como as próprias Missões Pedagógi-
cas têm sido amplamente estudadas, a bibliografia é imensa,
e nos limitaremos aqui aos poucos dados que consideramos
relevantes para oferecer um mínimo contexto e para sublinhar
a importância do assunto.

115
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

As Missões eram constituídas por cinco artefatos portá-


teis de ação cultural e educativa: o Museu do Povo (também
conhecido como Museu Ambulante), o Serviço de Cinema,
as Bibliotecas Ambulantes, o Coro do Povo e o Teatro do
Povo (que incluía um teatro de títeres chamado Palco de
Fantoches). Eram pensadas para o fomento e a difusão da
cultura na Espanha rural, isolada e analfabeta. Pretendiam
também impulsionar certa renovação pedagógica nas esco-
las das aldeias mais desassistidas, organizando cursos para
professores. Durante os seus quase cinco anos de existência,
chegaram a 7.000 povoados, muitos dos quais praticamente
inacessíveis. Em cada um deles se deixava uma coleção de
100 livros, um gramofone com discos e outros objetos cul-
turais. Delas participaram mais de 500 missionários, entre
professores, normalistas, inspetores de ensino e estudantes
universitários. Entre os juveníssimos missionários, havia
pessoas que se tornariam depois artistas, escritores, poetas,
músicos, cineastas, filósofos e pedagogos de grandíssima
importância.1 Alguns dos missionários foram fuzilados
se, no momento da sublevação militar, se encontravam em
zona franquista, e outros morreram na frente de batalha ou
na repressão do pós-guerra, e a maioria se exilou depois da
queda da República. Por último, as Missões tiveram ecos
muito importantes em países como o México, a Argentina, o

1
No Conselho das Missões estavam os poetas Antônio Machado e Pedro
Salinas. Entre os missionários havia dramaturgos como Alejandro Casona
ou Antonio Buero Vallejo; poetas como Luís Cernuda, Miguel Hernández
ou Federico García Lorca; pintores como Ramón Gaya ou Maruja Mallo;
cineastas como José Val de Omar; músicos como Eduardo Torner; linguistas
como María Moliner; filósofas como María Zambrano; escritores como
Rafael Dieste; pedagogos e pedagogas como Concepción Sainz-Amor ou
Valentín Aranda, e alguns dos que logo seriam grandes pedagogos do exílio
americano como Herminio Almendros em Cuba ou Modesto Bargalló,
Luís Santullano e José de Tapia no México.

116
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

Uruguai, a Venezuela, a Guatemala, o Equador ou Cuba, em


muitos casos com a colaboração ativa de espanhóis exilados.
Em todo caso, não nos faremos de historiadores (não
vamos resumir aqui o que foram as Missões) e tampouco apre-
sentaremos as Missões como um modelo pedagógico (o mundo
mudou muito e os artefatos pedagógicos que as Missões puse-
ram em ação já não são novidade, e inclusive podem parecer
velhos e antiquados). O que vamos fazer é mostrar como as
Missões (e, em particular, o Museu do Povo) encarnam certa
“ideia de escola”, como o extraordinário acervo documental
que se conserva apresenta certa “imagem da escola”, como
essa ideia, assim como essa imagem, se tornaram impossí-
veis (talvez já fossem impossíveis no momento mesmo do seu
aparecimento), bem como sugerir algumas reflexões sobre o
que podemos aprender com essa impossibilidade na tarefa de
reinventar a escola nesta nossa época tão hostil ao que Jan e
Maarten chamam de “o escolar”, ou seja, aquilo que faz que
uma escola seja verdadeiramente uma escola, ou, para dizer de
outro modo, que mereça o nome de escola.

Os viajantes
O espírito das Missões foi um espírito viajante. A ideia,
ou a inspiração, ou o sonho das Missões, não surgiu das es-
tatísticas, do que poderia ser, como se diz agora, um “diag-
nóstico das necessidades”, fabricado com informações defi-
citárias sobre o que alguns chamam de “a realidade”, mas
apareceu como efeito da paixão viajante que se apoderou dos
institucionistas já em fins do século XIX, de suas viagens por
todo o país (em ônibus precários ou em vagões de terceira
classe, dormindo em albergues modestíssimos ou em choças,
chegando a lugares em que raramente se viam forasteiros) e
de sua relação assombrada com a paisagem, com a pobreza

117
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

e também com as formas de cultura e de sabedoria popular


que encontraram por essas terras de Espanha. Um dos mais
próximos colaboradores de Cossío, Luís Santullano, depois
de uma viagem à França e à Bélgica, comissionada pela Junta
de Ampliação dos Estudos, para conhecer escolas e métodos
pedagógicos modernos, montou em 1912 uma pequena bi-
blioteca de duas dúzias de livros e se dedicou a percorrer as
aldeias de Zamora lendo com os professores. Como conta
em uma carta ao mesmo Cossío: “[...] irei pelos povoados
e vou fazer exclusivamente leituras com grupos de quatro,
seis professores, os quais, parece-me, se não leem, é porque
não sabem ler, porque nunca pegaram gosto por um livro”
(citada em Otero, 2006, p. 75). De fato, as expedições de
professores e inspetores para conhecer o que havia de mais
avançado da pedagogia europeia (subvencionadas pela Junta
de Ampliação dos Estudos) se completavam, muitas vezes,
com estadas em zonas rurais pobres e afastadas. O mesmo
Santullano, que logo em seguida foi um notável membro do
Conselho das Missões, sempre pensou que, além de levar os
professores ao estrangeiro para a sua formação pedagógica,
também tinha que levá-los às aldeias mais pobres, e que isso
também era fundamental para a formação.
Por outro lado, uma vez constituídas as Missões, também
se colocava em jogo o espírito aventureiro dos jovens missioná-
rios, porque, como dizia Cossío, “a aventura os seduz sempre, a
aventura de andar e de ver, e a experiência os faz retornar com
mais riqueza de corpo e alma do que a que tinham quando
partiram” (Otero, 2006, p. 89). E é verdade que, para muitos
desses jovens, a participação nas Missões pressupunha uma
verdadeira experiência de formação e de transformação que
deixou uma marca profunda tanto em sua vida como em seu
trabalho posterior, fora ou não do caráter pedagógico, ou, como
costumava dizer Rafael Dieste, “imprimia caráter”.

118
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

Ademais, na volta das expedições missionárias, não so-


mente tinham de redigir um informe escrito para a Memória
do Conselho, como também tinham de passar, se fosse possível,
em casa de Cossío, para contar a ele de viva voz o que tinham
visto, o que tinha acontecido com eles, o que tinham pensa-
do. E isso à vontade, em conversas informais, sem o recurso a
métodos de observação ou de registro, pondo em jogo a sua
capacidade de olhar, de escutar, de sentir, de pensar, de falar,
de escrever, de contar e, sobretudo, pondo todas essas capa-
cidades em jogo ante a escuta atenta de um velho enfermo e
praticamente inválido do qual se sentiam, sem dúvida, muito
diferentes, mas que admiravam, reconheciam e respeitavam,
ou seja, ante alguém a quem não se podia dizer qualquer coisa.
Ramón Gaya diz que essas conversas eram muito divertidas
e que Cossío, quando os missionários lhe contavam as suas
experiências, “exultava, porque, claro, se sentida respondido”
(Gaya, 2003, p. 29).
Parece-nos muito belo este “se sentir respondido”, por-
que mostra que as Missões não eram concebidas como um
projeto, mas como uma pro-posta, ou seja, como algo que se
colocava no mundo, que se fazia no mundo, mas cujos efeitos
não se pensavam em termos de resultados, mas em termos de
res-postas. Como se Cossío enviasse todos esses dispositivos
educativos e culturais e todos esses jovens por esses povoados
de deus, não para obter algo, mas como se fossem perguntas,
propostas, cartas de amor que se mandavam com a esperança
de receber algumas respostas. E o que não daríamos nós para
poder escutar esses relatos de viagem, essas respostas trazidas
por um punhado de jovens inquietos à casa de um enfermo,
que poderiam sem dúvida figurar em um livro de Jacques Ran-
cière que nós amamos especialmente, esse que conta o modo
como alguns viajantes especialmente sensíveis descobriram e
ao mesmo tempo inventaram algo que se poderia chamar de

119
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

“o povo”.2 Logo diremos algo sobre este ponto crucial a nosso


ver, e nos contentaremos agora em assinalar que a experiência
das Missões e dos missionários poderia ser o primeiro capítulo
de um livro ainda por escrever que poderia intitular-se, em
homenagem a Rancière, “Curtas viagens – pedagógicas – ao
país do povo”, à medida que essa experiência aparece, ou se
revela, uma forma particular do povo que poderíamos cha-
mar, talvez, “o povo capaz de skholé”, na qual está em jogo a
possibilidade ou a impossibilidade mesma da escola.

Os missionários
O Conselho das Missões, e o próprio Cossío, se deram o
trabalho de selecionar cuidadosamente os missionários ou, nas
palavras de Cossío, “as pessoas que possam oferecer a cultura,
o desinteresse, o entusiasmo e o tato necessários”. Não houve
procedimentos institucionais de seleção, critérios profissio-
nais mais ou menos objetivos, ou cursinhos de formação nos
quais os jovens pudessem aprender as metodologias adequadas,
senão que se insistiu em conhecer as qualidades pessoais dos
jovens, o que antes era chamado de “caráter”, uma vez que
eram os que, também nas palavras de Cossío, “iam entregar
o seu melhor” (Gaya, 2003, p. 137) ou, em outro lugar, visto
que eram eles os que iam “ensinar e divertir, pagando assim
com a sua pessoa, que é mais preciosa, a dívida de justiça que
contraíram com a sociedade, como privilegiados do saber e
da fortuna” (Otero, 2006, p. 88). Cossío sempre insistiu em
que o mais importante era saber escolher as pessoas adequadas,

2
O livro começa assim: “Neste livro se tratará de viagens. Menos, contudo, de
ilhas longínquas ou paisagens exóticas do que desses rincões bem próximos
que oferecem ao viajante a imagem de outro mundo. No outro lado do
estreito, um pouco afastado do rio e da estrada geral, no final da linha
de transportes urbanos vive outro povo, a menos que seja simplesmente o
povo” (RANCIÈRE, 1991, p. 7).

120
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

ele mesmo conversou amplamente com muitos dos aspirantes,


seguramente para certificar-se de que reuniam ou não o que,
segundo ele, bastava para ser missionário: “sentir-se atraído
pelas orientações em que a missão se inspirava, ter algo para
oferecer, e aspirar a conquistar a suficiente graça para chegar
com ela ao ânimo da gente humilde” (Otero, 2006, p. 92). E
em uma maravilhosa entrevista sobre o que foram as Missões,
um Rafael Dieste quase ancião descrevia assim as características
próprias dos missionários: “o mais necessário era uma disposição
especial, sinceramente fraternal, para comunicar-se com o povo
[...]. Os talentos particulares de cada um, seu cabedal, maior
ou menor, de conhecimentos, seu humor – grave, meditativo
ou expansivo – tinham que ser postos em jogo de acordo com
essa prévia e sustentada disposição comunicativa” (Otero,
2006, p. 138-139).
Tratava-se de provar no caráter dos missionários a presença
de coisas tão estranhas (e tão fora de moda e tão desconhecidas
ou mal interpretadas pelo discurso pedagógico hoje dominante)
como o humor ou o estado de espírito (a forma existencial
básica de estarem abertos ao mundo), a disposição comuni-
cativa (à qual Cossío se refere com a bela palavra “graça”), o
conhecimento e a cultura (o que cada um tem para oferecer,
para dar, para fazer que de privilégio de uns se transforme
em doação dos outros, isso que, no dizer de Ortega, somente
tinha sentido em existência compartilhada e em sua formação
“vivificadora”), a fraternidade (certa maneira de entender a
igualdade e a comunidade), o tato (certo sentido do trato
humano, das relações e das distâncias), o desinteresse (certo
sentido da gratuidade do que se faz), o sentir-se atraído (não
identificado ou comprometido, mas atraído) pelo espírito das
missões, pelo alento que as inspira e, portanto, sua capacidade
de entregar “o seu melhor” (de “pagar com a sua pessoa” uma
dívida de justiça).

121
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

E algo disso, algo do privilégio das qualidades pessoais,


que hoje chamaríamos de “competências profissionais”, pode
ser visto também no modo como tratavam que os professores
com os quais faziam os cursos acreditassem em seu próprio
esforço e em sua própria capacidade de invenção mais do que
em qualquer método ou receita que se lhes pudesse ensinar
ou recomendar. Nas palavras de Cossío: “dá-me um bom
professor e ele improvisará o local da escola se faltar, ele in-
ventará o material de ensino [...], mas deem-lhe por sua vez
a consideração que merece, o melhor que ele leva consigo no
próprio valor da sua pessoa” (Otero, 2006, p. 80). Porque isso
é o que entregam tanto os missionários como os professores
e, portanto, isso é aquilo com que trabalham, com o próprio
“valor de sua pessoa”.

O Museu Ambulante
A partir de agora, falaremos explicitamente das Missões
como uma “espécie de escola” e, sobretudo, da maneira como
encarnam certa “ideia de escola”. E o faremos concentrando-
nos no Museu Ambulante, também chamado de Museu do
Povo, que consistia em duas coleções com 14 cópias cada uma
(em tamanho real) de grandes obras do Museu do Prado (Ri-
bera, Zurbarán, Murillo, Goya, Velázquez e El Greco, além de
cópia em tamanho menor de algumas gravuras dos Caprichos,
dos Disparates e dos Desastres de la guerra, de Goya). Do Museu
Ambulante se encarregavam Ramón Gaya (um jovem pintor
autodidata, de 21 anos, que tinha sido sugerido por Pedro Sa-
linas) e Antônio Sánchez Barbudo (jovem poeta e periodista),
que costumavam ser acompanhados por Rafael Dieste, Luís
Cernuda e pelo cineasta e fotógrafo José Val de Omar.
Diremos, para começar, que o Museu Ambulante era
concebido como um artefato de comunização da cultura. E

122
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

a palavra “comunização” não tem a ver com comunicação,


mas com comunismo, ou seja, com a operação de converter
em um bem comum (de todos e para todos) algo que estava
relativamente privatizado. O patrimônio artístico espanhol,
tomado como um legado público, como algo que pertencia
ao povo espanhol, devia ser levado até as pessoas que nunca
tinham tido, nem poderiam ter, a oportunidade de visitar os
museus da capital. Nas palavras de Cossío, lembradas por Gaya,
“quero ensinar esses tesouros às pessoas que nunca os viram.
Porque também são seus. Mas em absoluto não quero dar-lhes
nenhuma lição. Somente quero que saibam que existem e que,
ainda que estejam encerrados no Museu do Prado, também
são seus” (2003, p. 26).
O processo de criação do Museu e a maneira como se
realizava a sua instalação foram “atos de amor” em si mesmos.
Trabalhou-se detidamente na seleção das obras. Decidiu-se
não fazer cópias técnicas ou profissionais, mas encarregá-las a
pintores de verdade, a jovens pintores que amam esses quadros,
para garantir assim não somente que as cópias fossem fiéis, mas
que tivessem “vida”, que os quadros fossem, de alguma maneira,
vivificados, no momento mesmo de sua reprodução, como se o
fato de serem copiados para a sua apresentação ou sua represen-
tação para o povo analfabeto não significasse uma perda de sua
aura, mas que, pelo contrário, lhes desse uma aura nova, uma
nova força, uma nova vida. E se decidiu também não modificar
o tamanho dos quadros e apresentá-los em toda a sua grandeza,
ainda que isso representasse enormes dificuldades de transporte
e instalação.
O Museu era instalado em escolas ou câmaras municipais,
e era montado com o máximo decoro e bom gosto possível: as
paredes do local eram cobertas com lençóis brancos, colocava-se
música ambiente clássica e flores na sala. O Museu era aberto de
manhã para quem quisesse vê-lo, e à tarde havia falas: uma, de

123
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

caráter histórico, da qual costumavam encarregar-se Sánchez


Barbudo, Dieste ou Cernuda, e outra, de caráter pictórico, da
qual se encarregava Gaya. Este desenhava ou pintava enquanto
falava, e, quando acabava a exposição, as pessoas podiam levar
os esboços. Eram organizadas sessões especiais para crian-
ças nas quais se lhes forneciam materiais para que fizessem
suas próprias cópias do quadro que mais gostassem. Ademais,
davam-se às crianças pequenas cópias dos quadros para que
pudessem levar para casa. Finalmente, depois das atividades
próprias do Museu, realizavam-me audições de música clássica
e de canções populares, e, se Val del Omar estivesse presente,
fazia-se uma sessão de cinema. Se fosse possível, realizava-se
uma atividade, que chamavam de “fala ilustrada”, na qual
Sánchez Barbudo lia e comentava fragmentos de Dom Quixote
ou dos contos do Conde Lucanor, enquanto Gaya ilustrava as
histórias desenhando com carvão em grandes rolos de papel
colados nas paredes do local, ou da praça. Ao final, as pessoas
podiam levar também os desenhos.
Assim, podiam-se discutir muitas coisas, porque somos
críticos, inteligentes e progressistas e, sobretudo, porque viemos
ao mundo depois e podemos nos permitir o luxo de olhar para
trás com certa condescendência. Podemos criticar a seleção dos
quadros e dizer, por exemplo, que supõe uma concepção pa-
trimonial, canônica e elitista da cultura, muito distanciada da
cultura popular, seja ela qual for, ou discutir o fato de que so-
mente se levaram obras clássicas, e não contemporâneas, quando
o maior responsável pelo Museu, Ramón Gaya, já era um pintor
excelente e estava muito atualizado sobre a arte de vanguarda
da época. Podemos dizer que as pessoas ficavam reduzidas à
condição de público, de espectadores, de receptores. Poderíamos
distanciar-nos também da ideia de progresso cultural que subjaz
ao dispositivo, de atraso das pessoas ou da dialética civilização/
barbárie, ou cultura/incultura, ou centro/periferia, ou cidade/

124
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

campo. Tudo isso poderia ser discutido e, portanto, poderia ser


matizado. Mas acreditamos que no gesto mesmo do Museu há
muitos elementos interessantes sobre o que é uma escola e sobre
como um artefato artístico portátil pode constituir, em si mesmo,
uma escola, ou uma ideia de escola que, por muito distante que
esteja das convenções de nossa época, ainda pode ensinar-nos
algumas coisas e, sobretudo, fazer-nos pensar.
Em primeiro lugar, queremos destacar o cuidado com o
quê, com a seleção das materialidades que se transformam em
matérias escolares, em matérias de estudo, com a seleção do
que a escola, entendida neste caso como um artefato funda-
mentalmente visual, dá a ver, com o fato de que a escola não
pode apresentar qualquer coisa e, portanto, não pode apresen-
tar as coisas de qualquer maneira. Continua a comover-nos o
fato de que os missionários selecionassem o que para eles era
“o melhor”, o mais interessante e o mais digno que podiam
entregar, o que para eles constituía “o maior tesouro”, e não
se limitassem a pensar no que era “o adequado”. Assim, eles
sabiam aonde levavam o Museu e com que tipo de gente iam
trabalhar, mas não havia nenhuma elaboração disso que hoje se
chama de “o perfil”, ou “as características”, ou “os interesses”,
ou “as necessidades” dos destinatários. E não somente tinham
que levar “o melhor”, mas também tinham que apresentá-lo
nas melhores condições. É muito interessante o fato de não se
encarregarem as cópias a copistas especializados, mas encomen-
dá-las a pintores de verdade, a pintores que trabalham em suas
próprias obras, que estão concentrados em sua própria relação
com a pintura, mas que, ao mesmo tempo, respeitam e amam
as obras que copiam. E é muito interessante também que sejam
pintores, e não professores de arte, aqueles que “fazem falar”
os quadros do Museu. Há uma expressão de Cossío sobre Gaya
que é muito bela e que diz que o que ele gostava era “a sua
maneira de estar diante da pintura”. Portanto, para que haja

125
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

escola, não basta que haja pinturas, é necessário que haja pessoas
que saibam estar diante das pinturas e que saibam, assim, estar
diante das pessoas, que tenham essa disposição comunicativa,
essa “graça”, esse saber estar aí.
Em todo caso, esse empenho de Cossío, aparentemente
inútil, de cuidar da matéria que se mostra, não somente dá para
uma conversa interessante sobre o que é, o que poderia ser, a
aura entendida pedagogicamente, mas também expressa uma
relação amorosa com aquilo que se ensina. E essa mesma relação
amorosa pode ser vista também no cuidado com que se tratava
o espaço no qual era instalado o Museu. A escola, dizem Jan e
Maarten, tem a ver com uma separação dos espaços. Também
continua nos emocionando imaginar as pessoas dessas aldeias
preparando o lugar, limpando-o, adornando-o, como se dizia
antigamente, “engalanando-o”, como se estivessem tratando de
honrar essas obras, de recebê-las como merecem, de dar a elas
não somente um lugar, mas o melhor lugar possível, esse que
se dá, ou se dava, aos hóspedes, quando ainda havia sentido a
hospitalidade. Acreditamos, ademais, que esse engalanamento
do lugar não somente denotava uma maneira de receber, mas
também preparava uma maneira especial de estar aí. O lugar
onde se instalava o Museu se transformava em um lugar de
uma reunião, e de uma reunião ao mesmo tempo festiva e ce-
lebrativa. Para nós, o cuidado do espaço tem algo que passa por
transformá-lo em casa (em razão da hospitalidade, do agrado de
“receber em casa” alguém ou algo que vem de fora), mas tem
algo, sobretudo, que passa por transformá-lo em templo, em
lugar de celebração e de culto coletivo. Não podemos deixar de
recordar que a palavra “aula” significa, tanto em grego quanto
em latim, um círculo cerimonial ou um pátio cercado em que
se faziam cerimônias e, por extensão, um pátio aberto nos palá-
cios, daí o sentido de conselheiro áulico, ou seja, que a aula era
um espaço cerimonial ou o lugar daqueles que não tinham um

126
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

lugar ou uma posição definida na estrutura do Estado. E algo


de aula tinha o Museu do Povo, uma vez que abria um lugar
à parte, um lugar que não correspondia a nenhum dos lugares
que já existiam nas aldeias, algo parecido com o que Foucault
chamou de uma “heterotopia”, e à medida que era um lugar
onde, estritamente, não ia se fazer nada, ao menos nada que não
fosse celebrar juntos e acudir juntos à visita fugaz das cópias de
umas pinturas que vinham de um lugar tão longínquo, física e
simbolicamente, como o Museu do Prado.
Por outro lado, para nós é claro que o gesto de compor e
montar o Museu Ambulante é um gesto que exprime igual-
dade e não, em absoluto, desigualdade. Vejam se não é o que
conta Ramón Gaya acerca do que lhes disse Cossío antes de
sair em missão:
Cossío nos disse: “eu o deixo nas mãos de vocês. Porque
são vocês que vão me dizer como tem que funcionar o
Museu. A única coisa que lhes digo é que não quero que
tenha qualquer caráter pedagógico”. Depois nos disse: “há
uma palavra, a palavra Missões, pela qual estive lutando, mas
não se encontrou outra. Gostaria que vocês não tivessem
nada de missão, e tampouco que o que disserem a essas
pessoas não tenha nada de escolar ou de suave”. Cossío
escreveu algumas palavras que lemos na primeira saída,
mas ele mesmo, quando no-las entregou, nos disse: “creio
que têm um ar um pouco sonso. Eu, no início, pensava que
tinham que ter um tom paternal, mas vejo que esse tom
é ofensivo. Procurem não ofender as pessoas. Vocês vão
ensinar a elas coisas, mas não vão com ar de presunção”.
Nós, jovens de vinte e um, vinte e dois, vinte e três anos
no máximo, gostamos muito da simplicidade e da retidão
de Cossío, porque isso não era comum (Gaya, 2003, p. 23).
Quando Cossío diz que não quer que o Museu seja peda-
gógico, que não quer que tenha nada de missão, que não quer

127
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que o tom com o qual o missionário se dirija às pessoas seja


suave ou paternalista, que não quer que seja um tom escolar,
que não quer que seja um tom pedante e, sobretudo, quando
diz que isso que é tão belo e que continua a nos emocionar,
que “procurem não ofender as pessoas”, o que está dizendo é
que não os tratem como tontos, ou como ignorantes, ou como
crianças, ou como inferiores, mas que os tratem de igual para
igual, apelando ao que têm de mais digno, ao próprio “valor
de sua pessoa”.
Este mesmo gesto de igualdade está, a meu ver, no caráter
desinteressado do Museu. Gaya se exprime em relação a isso
assim: “as pessoas sempre nos perguntavam: ‘mas isso serve
para algo?’ Eu nunca quis responder essa pergunta porque inu-
tilizava toda a ideia de Cossío. Cossío não queria que servisse
para nada concreto, apenas queria que existisse, queria dar isso
de uma maneira desinteressada” (2003, p. 27). E esse mesmo
desinteresse é o que expressa o mesmo Gaya nas últimas linhas
de sua conferência: “Eu nasci na incultura, não sou devoto de
nada, porque a devoção a qualquer coisa me horroriza, mas
acredito que é melhor não impor nada. E isso se vê na natureza,
se prestar atenção. Os pássaros pegam a semente que querem,
ou uma formiga, que lhes faz muita ilusão, mas não se pode
dar de comer a eles. E nada mais. Gosto do trabalho cultural
se é feito assim, gosto se é feito sem impor nada. Ou seja, sem
missionear” (p. 33).
E nós pensamos que esse gesto de instalar o Museu porque
sim, sem devoção, sem intenções precisas, sem nenhum cálculo
sobre seus efeitos ou seus resultados, como um presente ou,
talvez melhor, como a devolução de uma dívida de justiça, faz
que não seja concebido como um instrumento para a igualdade
futura, mas, de algum modo, já a faz no presente, no fato mesmo
de que instala uma heterotopia, um espaço outro, no qual as
pessoas podem exercer uma capacidade que antes não tinham,

128
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

uma capacidade para a qual antes não havia lugar, e na qual se


realiza, definitivamente, a igualdade entre todos.

O luxo
Seguindo com o desinteresse, com a gratuidade, com a
igualdade, com a natureza do presente (ou da devolução da
dívida) que se atribuía ao Museu, talvez o assunto essencial
seja a maneira como as Missões pensavam a sua relação com
o tempo livre, cuja separação e democratização constitui, no
dizer de Jan e de Maarten, o essencial da escola.
Em suas aulas na Universidade Complutense de Madri,
Cossío costumava usar a etimologia para ressaltar que skholé
em grego é o mesmo que otium em latim, que escola é si-
nônimo de tempo livre e, por extensão, de ocupação livre,
de jogo desinteressado com o saber, de liberdade de pensar
e de sentir. Com palavras nas quais ressoa o desinteresse do
juízo estético kantiano ou a educação estética proposta por
Schiller, Cossío insistia em que a escola existe para despertar
nos estudantes o puro desejo de saber, e, no limite, o nobre
desinteresse. E dizia também que o ócio tem um valor em si,
precisamente porque seus afazeres não servem, porque valem
por si mesmos, e porque o propósito fundamental da educação
é “a celeste diversão que a humanidade, por miserável que
seja, persegue com afã tanto quanto o alimento” (citado por
Otero, 2006, p. 239).
Daí que Cossío insistisse em que o Museu do Povo não
ensinasse estritamente nada. Para ele era bastante que os campo-
neses sentissem e gozassem desses quadros como seus. E o que
mais lhe interessava era que soubessem que, além do trabalho
com que ganhavam o seu sustento, havia um mundo de gozos
intangíveis ao qual tinham direito, e que podiam exercer esse
direito “para sentir as coisas por si mesmas, para contemplá-las,

129
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

para gozar de sua beleza, não como meio, mas como um fim”
(Otero, 2006, p. 89).
Eram justamente essa busca da alegria e essa despreocu-
pação com os resultados que reparavam a injustiça ancestral
que o povo sofria: a de ter sido tratado sempre como sujeito
do trabalho e da necessidade. A injustiça não está somente na
repartição desigual da riqueza, também da “riqueza cultural”,
mas está, fundamentalmente, na repartição desigual do tempo,
no fato de que algumas pessoas sejam despossuídas do seu tempo
e, portanto, de sua vida, no fato de que, para alguns, nunca
haja tempo para outra coisa que não seja a estrita necessidade.
Para Cossío, a educação e especialmente a arte deviam ser
entendidas como gozo e como jogo, e para isso era essencial
manter uma distinção forte entre o trabalho produtivo e o
jogo improdutivo. O gozo somente é obtido através de uma
atividade livre, de uma atividade cujo fim está em si mesmo,
de um emprego livre das próprias forças, de um interesse,
poderíamos dizer, desinteressado, ou seja, através do jogo. Por
isso, Cossío insistia na separação dos tempos e em que a tarefa
das Missões devia ser entendida como uma ação para o tempo
de ócio, ou melhor, como uma ação que criava um tempo para
jogar e para gozar, para perder, um tempo para nada. E isso era
especialmente relevante para o Museu, porque, para Cossío,
não somente havia uma estreita relação entre arte e jogo, mas
a arte devia ser entendida como jogo e, afinal, idealmente, a
própria vida devia ser entendida como jogo, ou seja, como arte.
Um dos missionários que colaborou com o Museu do
Povo, Enrique Azcoaga, se exprime assim sobre isso: “Os
missionários, durante os primeiros dias, buscávamos que nosso
público se desse conta de que a cultura, a não ser como dis-
ciplina, podia ser uma festa [...]. Entre nós, que dedicávamos
muitas horas a considerar como tinham que ser nossas atua-
ções, tentávamos que o entendimento do artístico fosse algo

130
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

assim como uma convivência com o pleno e o belo, realizado


da maneira mais natural possível” (Otero, 2006, p. 140). E
seguramente bastará o último parágrafo de um texto muito
belo, de um breve tratado sobre as distintas artes, que Cossío
escreveu para que os missionários lessem, se considerassem
oportuno, na inauguração de cada uma das instalações do
Museu Ambulante:
E se os homens inventaram o pintar, que, segundo pare-
ce, é coisa de luxo, séculos, muitos séculos antes de que
inventassem coisas tão úteis e necessárias como carroças,
enxadas ou arados, e se ademais continuaram sempre
pintando, talvez pela ânsia irresistível que sentiam de fazer
coisas belas, não deve ser inteiramente uma loucura que a
obra justiceira das Missões queira levar os povos campo-
neses para o gozo e ensino de que tanto desfrutam já os
cortesãos, umas modestas cópias, ao menos, das melhores
pinturas que, como magnífico tesouro, guarda a nação em
seus museus (Cossío in Otero, 2006, p. 369).
Desse modo, as Missões e, em especial, o Museu do Povo,
eram considerados como “coisa de luxo”, e, como é de esperar,
isso era o que incomodava todo mundo. Em primeiro lugar, in-
comodava a Espanha clerical e anti-ilustrada, que acreditava que
os camponeses, com seu entendimento rústico e sem formação de
nenhuma classe, não somente não necessitavam da cultura, mas
também não podiam aproveitá-la. O raciocínio era impecável:
os lavradores não entendem, não podem entender, e portanto
é inútil levar a eles qualquer coisa, sendo as Missões um luxo.
Mas também a Espanha politicamente progressista utilizava um
argumento que chega à mesma conclusão: a situação de atraso
dos camponeses não é um problema de cultura, mas é assunto
econômico e político, tem a ver com a exploração e com a sub-
missão, e, portanto, a tentativa de desenvolver um labor cultural
sem fazer nada para mudar essas condições não tem sentido.

131
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

As Missões, desse ponto de vista, seriam uma atividade que não


conduziria à transformação social e, portanto, também seria
um luxo. Ademais, o que poderíamos chamar de a Espanha
regeneradora, modernizadora, comprometida com o progresso
econômico e social, também via como um luxo as Missões, que
se propunham levar aos povos o teatro, a música, o cinema, a
arte, a literatura e outras coisas completamente prescindíveis.
Por outro lado, as Missões Pedagógicas tiveram que con-
viver com as Missões Católicas, concebidas fundamentalmente
como um antídoto contra a influência dissolvente e corruptora
da cidade e, sobretudo, dos novos pensamentos críticos e laicos
que começavam a circular pelo campo, os quais, portanto, já
não estavam submetidos ao controle do clero. Tiveram que
conviver também com as Missões Populares, de inspiração
comunista ou anarquista, que percorriam os povos criando a
consciência nas pessoas e organizando a transformação social.
E tiveram que resistir a todas as tentativas, muito poderosas,
que trataram de usar as Missões como veículo para ensinos
práticos ligados, por exemplo, à modernização das formas de
trabalho ou a campanhas de tipo sanitário ou higienista. Além
disso, depois do começo da Guerra Civil Espanhola, em 1936,
quando as prioridades mudaram e já não havia tempo para lu-
xos, a cultura passou a ser pensada como uma arma de guerra
contra o fascismo, ou seja, como propaganda. Para alguns, as
Missões eram coisa de “vermelhos”, para outros, eram coisa de
“burguesinhos com pouco comprometimento”, e para outros
ainda eram coisas de “intelectuais de salão”, de “artistas e de
poetas”, de pessoas bem-intencionadas mas pouco práticas,
cegas às enormes necessidades de todo tipo que extenuavam a
Espanha rural. Quando diziam que levar 14 cópias do Museu
do Prado aos rincões mais pobres e longínquos da Espanha
era “coisa de luxo”, o que estavam dizendo era “que não havia
tempo para isso”, que havia coisas muito mais urgentes e muito

132
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

mais necessárias para fazer. E tudo isso acontecia, ademais, em


uma época cheia de tensões, de conflitos e de contradições,
na qual mudanças irreversíveis para a vida de todos estavam
acontecendo. Não somente porque a Espanha tinha se trans-
formado em um campo de batalha entre as enormes forças
que disputavam a hegemonia na Europa, não somente porque
a guerra se anunciava no horizonte, mas porque as mesmas
formas de vida camponesa estavam destinadas a desaparecer
pela lógica implacável da modernização.
As Missões buscavam manter, inutilmente, certa ideia
de escola contra todas as forças que procuravam, nos termos
de Jan e Maarten, a sua domesticação, em especial contra os
que lhes censuravam o seu caráter apolítico, contra os que
lhes censuravam o seu caráter pouco ou nada prático, pouco
comprometido com o progresso econômico ou com as ne-
cessidades sociais. Por outro lado, a delicada dialética cidade/
campo ou modernização/tradição que inspirava as Missões,
que fazia que pensassem que estavam levando ao campo o
mais interessante das cidades e, ao mesmo tempo, que estavam
dignificando e preservando a cultura e a tradição camponesa,
mostrou-se inútil frente às enormes forças econômicas, mas
também culturais, que já estavam desfazendo o mundo rural.
Digamos que a ideia de escola que as Missões encarnavam
estava submetida, como a escola atual, ainda que de outro
modo, às lógicas implacáveis que buscam pôr a escola a serviço
da economia, da sociedade ou da política, e, sobretudo, que
buscam adaptá-la aos tempos correntes.

O povo
Até aqui foi feita uma mínima exposição das Missões Pe-
dagógicas como “escola”, a partir de sua concepção dos tempos,
dos espaços, das materialidades e dos sujeitos. Gostaríamos agora

133
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

de dizer algo, não tanto sobre as Missões, mas sobre as imagens


das Missões. E o faremos tomando como ponto de partida um
texto de Didi-Huberman que está em um livro que Inés Dussel
trouxe a última vez que esteve em Barcelona. O texto, intitula-
do “Volver sensible/ hacer sensible”, faz parte do livro coletivo
que se intitula ¿Qué es un pueblo?, e está muito relacionado com
um excelente trabalho do mesmo autor, cujo título é Pueblos
expuestos, pueblos figurantes. Nesses trabalhos, Didi-Huberman fala
sobre a maneira como a fotografia e o cinema produziram certas
representações, certas formas de visibilizar, ou de fazer visível, o
povo, e sobre como essas formas, às vezes, consistem em “fazer
aparecer essa imagem que relampeia, que surge e desvanece no
instante mesmo em que se oferece ao conhecimento, mas que,
em sua fragilidade mesma, compromete a memória e o desejo
dos povos, ou seja, a configuração de um porvir emancipado”
(Didi-Huberman, 2014b, p. 77-78). Para Didi-Huberman, que
nisso segue Walter Benjamin, fazer sensível o povo consiste em
fazer visíveis momentos passageiros da história, tradições frágeis
e efêmeras, acontecimentos mínimos, os quais é preciso saber
fazer presentes no presente arrancando-os do conformismo que
sempre está a ponto de subjugá-los à medida que os transforma
em “história” ou em “documento”. E, por outro lado, apoian-
do-se em Jacques Rancière, fazer sensível o povo constitui uma
revolução estética, um dissenso estético, no sentido em que dá a
ver outra coisa além das maneiras convencionais e consensuais
nas quais o povo, seja ele qual for, já foi previamente situado
em um lugar e em uma condição que se definem como os que
lhes são próprios. Para Didi-Huberman, fazer sensível o povo
não consiste em fazer imagens que sejam “representativas” da
condição popular, mas em apresentá-las de uma maneira que nos
faça esfregar os olhos: “[...] quando a humanidade não esfrega
os olhos – quando as suas imagens, as suas emoções e seus atos
não se veem divididos por nada –, então as imagens não são

134
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

dialéticas, as emoções são pobres de conteúdo e os atos não se


orientam para nenhum porvir” (2014b, p. 76-77).
Nesse sentido, gostaríamos agora de dizer algo sobre como
o incrível acervo fotográfico que as Missões produziram contém
imagens que fazem que esfreguemos nossos olhos. Diremos, pri-
meiro, que as fotos das Missões são pensadas e realizadas como
uma obra coletiva, ou melhor, anônima, como uma tarefa da
qual participam, ou podem participar, todos os missionários. As
fotos são enviadas ao Conselho das Missões, na maioria das vezes
sem o nome do autor, e é o próprio Conselho que as classifica,
as edita, as contextualiza e, em algumas ocasiões, as publica em
revistas ou periódicos. Algo parecido com o que ocorre com
outros grandes projetos fotodocumentais da mesma época, tam-
bém dos anos 1930, como as produzidas no contexto da Grande
Depressão para a Farm Security Administration (algumas delas
de fotógrafos famosos como Walker Evans e Dorothea Lange),
as produzidas pela Associação Russa de Fotógrafos Proletários,
ou as do projeto britânico Mass Observation. Nesses projetos
se documenta o trabalho dos operários e dos camponeses, as
novas formas de miséria nas cidades e no campo, o desespero
do desemprego urbano e a épica das grandes migrações rurais,
as difíceis condições de vida do povo trabalhador nos fins dos
anos 1930 e a extraordinária dignidade humana com a qual
enfrentava essas condições. Por outro lado, a Guerra Civil Es-
panhola produziu várias imagens do povo muito poderosas,
algumas delas de fotorrepórteres tão famosos como Robert Capa,
principalmente a imagem do “povo em armas” que combate o
fascismo, a do “povo martirizado” vítima do fascismo, e a do
“povo a caminho do exílio” que, derrotado, foge do fascismo.
Mas as fotografias das Missões, contudo, nos fazem esfregar os
olhos por outra razão: não pela maneira como retratam o povo
em sua inscrição geográfica, econômica, social ou política, mas
pela maneira como o fazem sensível em sua inscrição pedagógica.

135
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Fotógrafos como José Val de Omar ou Gonzalo Me-


néndez-Pidal, mas também muitos missionários anônimos,
tinham a função de documentar os lugares e os lugarejos, a
preparação e a realização das atividades das Missões, o trabalho
dos missionários e a reação das pessoas. Essas fotos eram depois
selecionadas, editadas, remarcadas, fragmentadas e publicadas.
E, nessa operação, deixavam de ser documentos e se transfor-
mavam em imagens, ou seja, adquiriam a capacidade de pro-
duzir significado por si mesmas. Despojadas de seu contexto, as
imagens que enviavam os missionários mostravam camponeses
alegres, curiosos, atentos, abertos, interessados, concentrados e
receptivos, camponeses como nunca antes vistos. Mostravam
também camponeses no cinema, no teatro, no museu, na sala
de concertos, na biblioteca, camponeses onde nunca antes
tinham sido vistos.
O que essas fotos mostram não é a vida miserável, a con-
dição bárbara ou atrasada, a ignorância, a submissão, a opressão
ou a exploração do povo. Tampouco mostram sua pureza ou
autenticidade, a sua condição de depositário ou guardião de uma
verdade, de uma sabedoria, de uma cultura ou de uma moral
que constituiriam a sua essência. Nem sequer se trata de sua
tomada de consciência social ou política, da transformação do
povo oprimido em povo revolucionário. Se essas imagens fazem
que esfreguemos os olhos não é porque sejam representativas
do próprio do povo, do que o distingue como tal povo, mas
porque mostram o que, no povo, é impróprio do povo mesmo,
não o que o distingue, mas o que o iguala: a sua capacidade para
experimentar, como qualquer outra pessoa, esse luxo e esse gozo
da existência que é, no dizer de Cossío e dos missionários, a arte
e a cultura, a sua capacidade para olhar os quadros do Museu do
Prado. Nas fotos das Missões se faz presente, “em sua fragilidade
mesma”, um povo capaz de skholé, ou seja, a possibilidade mesma
da escola como suspensão, pelo menos por um tempo, da própria

136
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

condição, da própria identidade, e como experiência, pelo menos


por um tempo, da igualdade de todos, “a configuração de um
porvir emancipado”. O que nessas imagens se faz sensível não
é tanto o que poderia ser a “verdade” da condição popular, seja
esta social, econômica, política ou cultural, mas uma distribuição
distinta, propriamente escolar, da repartição socialmente dada
das capacidades e das incapacidades.
Muitos missionários falam em seus informes da realida-
de brutal com a qual se encontram, de sua visão das crianças
esfarrapadas e cheias de piolhos, das mulheres com enfermida-
des congênitas, das moradas insalubres e sem luz, do trabalho
embrutecedor, da necessidade de comida e de remédios, das
centenas de mãos que pedem esmola a esses “cerca de cinquenta
de estudantes, saudáveis e alegres, que chegam com a sua carga
de romances, cantares e comédias” (diferentes missionários da
Missão de Sanabria, citados em Otero, 2006, p. 203). Outros,
ou os mesmos, viram também nesse povoado miserável outro
povo mais sábio e mais verdadeiro, ou, como Rafael Dieste,
encontraram esse povo no qual ainda estava a semente e a raiz
do melhor da tradição cultural espanhola, também dos roman-
ces, dos cantares e das comédias que eles levavam. Dieste conta
como o povo conhecia os contos que eram representados e sabia
de memória os romances que eram lidos, seguramente porque
os tinham lido quando crianças, ou tinham ouvido de seus pais,
ou os escutavam ainda na voz das velhas e das moças, e que, ao
ver como isso que eles sabiam, que eles eram, era algo valioso,
“sentiam que o seu próprio ser não estava errado”, e isso os aju-
dava “a se manterem na estima de seus próprios valores” (citado
em Otero, 2006, p. 155).
Naturalmente, os jovens missionários viram o próprio do
povo, as carências populares e a identidade popular, o que o povo
“necessitava” e o que o povo “era”. Mas quando montaram os seus
teatrinhos, instalaram os seus museus, projetaram os seus filmes,

137
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

cantaram as suas canções e pegaram os seus livros, fizeram algo


inédito: criaram um espaço que antes não existia (um espaço,
como o Museu, que não era próprio do povo, que era “coisa
de luxo”), abriram um tempo que antes não existia (um tempo,
como o tempo livre, o tempo para contemplar os quadros do
Museu, que não era próprio do povo, que era “coisa de luxo”)
e colocaram materialidades, coisas, que antes não existiam (os
quadros de Velázquez, ou de Goya, que eram “coisa de luxo”).
Nem o povo “necessitava” desse espaço, desse tempo e dessas
coisas “de luxo” (as necessidades populares eram de outra or-
dem), nem correspondiam, portanto, com a sua identidade, com
a sua forma de ser, com a sua experiência, com as suas formas
de vida, porque essas coisas “de luxo” eram espaços, tempos e
coisas de almofadinhas ou das pessoas da capital, de burgueses,
de artistas e de poetas, de gente que tem tempo para ir a esses
lugares, para se ocupar dessas coisas. Mas eles fizeram o que não
era necessário fazer, o que não servia para nada, e fotografaram
as pessoas, e mostraram algo desconhecido, algo que podia ser
lido, ainda que fosse um instante, nesses rostos atentos e nesses
olhares incandescentes. Luís Cernuda viu nesses mesmos olhares
o resplendor efêmero da possibilidade humana quando escreveu
que “tinham tal brilho e vivacidade que tinha pena de pensar
como, no transcorrer do tempo, a inércia, a falta de estímulo e
o sórdido ambiente afogariam as possibilidades humanas que
naqueles olhares apareciam” (Cernuda in Otero, 2006, p. 179).
Porque o possível, nessa citação de Cernuda, não é a utopia, no
sentido do que está em espera, do que algum dia será, talvez,
real, mas remete ao que algum dia brilhou em algumas formas
de existência que não estavam previstas por suas condições de
possibilidade, que significavam um excesso em relação a essas
condições, mas que, ao mesmo tempo, definiam já algo como a
possibilidade de outro mundo. E é precisamente aí, nesse excesso,
nesse luxo, nisso que não está previsto por suas condições, nesse

138
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

brilho e nessa vivacidade dos olhares populares, é aí onde, por


um instante, as imagens das Missões anunciam um povo capaz
de skholé, um povo novo, um povo que não é, que não existe em
parte nenhuma, mas que pode ser, e pode ser porque alguma vez
o vimos e, ao vê-lo, esfregamos os nossos olhos.
As imagens das Missões inauguram uma estética par-
ticular, uma forma de abordar os rostos do povo dissecando
as delicadas nuances de emoções observadas no próprio ato
de olhar descobrindo. E isso, talvez, mais do que qualquer
avaliação do seu sucesso ou fracasso, justifica todo o esforço
missionário. A maneira como as Missões tornam visível ao povo
é o que realiza, em si, uma revolução estética que faz justiça,
que devolve ao povo, como dizia Cossío, tudo o que lhe fora
subtraído, sua capacidade de apreciar a arte em condições de
igualdade com todos os outros. Algo que é emancipatório, não
tanto porque prometa a possibilidade de escapar, um dia, da
dominação, mas porque oferece, aqui e agora, a possibilidade
de viver vidas diferentes das que eles viviam. No espaço em
que o Museu do Povo é instalado, pode ser visto o que nunca
antes tinha sido visto: a coexistência, em uma mesma imagem,
dos rostos do povo com obras do Museu do Prado. O Museu
do Povo dá ao povo um lugar que não é o seu, um lugar que é
puro luxo, um lugar no qual ele pode afastar-se, por um mo-
mento, de sua própria condição e do âmbito de possibilidades
que essa condição demarca. Também lhe dá um tempo que
não é o seu, um tempo que é puro luxo, um tempo em que
pode afastar-se, por um instante, do tempo de necessidade e do
tempo do trabalho. E dá também ao povo algumas coisas que
não são suas, que não correspondem com as suas necessidades,
seus interesses, seus modos de fazer e de viver. O que faz o
Museu do Povo é dar ao povo, como seu, o que não era seu.
Essa é a dívida de justiça da qual falava Cossío. E é aí onde o
que nos mostram as fotografias das Missões supõe um desvio

139
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

(ou um excesso, ou uma alteração, ou um acontecimento) no


âmbito do visível, no mero fato de fazer sensível, e, portanto,
pensável, um povo capaz de skholé, um povo que pode dispor de
um tempo que não é o seu, um povo que pode habitar lugares
que não lhe correspondem, um povo que pode relacionar-se
com materialidades que não foram feitas para ele, e um povo,
definitivamente, que pode exercer capacidades que até então
lhe eram negadas. O que relampeia nessas imagens, o que faz
que esfreguemos nossos olhos, é que modificam uma ordem
sensível, não somente a dos espaços e dos tempos em que se
inscrevem os corpos e os rostos do povo, mas sobretudo o de
como, nessa inscrição deslocada, se distribui de outro modo a
repartição de suas capacidades, se determina de outro modo
o que o povo pode.
E é verdade que essa revolução estética (como o projeto de
escola que as Missões encarnaram) foi tão frágil e tão vulnerável,
que não podia durar muito, como se contivesse uma promessa
imediatamente cancelada, apenas o anúncio da possibilidade do
impossível. A década de 1930 é uma época de grandes lutas nas
quais as imagens fazem guerra. É a época na qual a fotografia e
o cinema se colocam a serviço da denúncia e da mobilização,
ou seja, a serviço da propaganda. No ano de 1934, com a Frente
Popular, a identidade revolucionária e antifascista se sobrepõe
à identidade educativa das missões, tal como a tinha definido
Cossío, e as próprias Missões Pedagógicas terminam em 1937,
transformadas em Missões Populares. Nesse mesmo ano, os
negativos do Conselho das Missões foram transferidos para o
Ministério da Propaganda, e muitas dessas imagens foram usadas
em outros contextos e para outras coisas. O pavilhão espanhol
da Exposição Universal de Paris de 1937, para o qual Pablo Pi-
casso pintou Guernica, continha muitas fotos desse arquivo. O
povoado retratado pelos missionários se transformou também em
uma imagem que o governo da República usou para a guerra.

140
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

O que para Cossío era um ato de justiça, entregar ao povo


o que era seu e, sobretudo, dar a ele as condições para o seu des-
frute, se via agora como inócua democratização de uma forma
de gozo burguês que tinha quer ser combatida. A literatura,
o cinema, a pintura e o teatro tinham que se redefinir para se
transformar em armas da guerra em curso. A inutilidade prática
das Missões, sua exclusiva atenção ao despertar dos sentidos e
ao desfrute da vida contemplativa, não podia ter tempo nem
espaço nesse mundo. E as imagens do povo já não podiam ser
as das pessoas absortas, atentas e surpresas na emoção de uma
descoberta ou de um gozo estético que não lhes correspondia.
Mas no pouco tempo em que duraram, fizeram-se fotografias
nas quais ainda podemos ver a imagem de uma escola desar-
mada, de uma escola que não é o território de nenhuma luta,
de uma escola que, em sua própria existência, constitui uma
imagem de paz.
Em suas Breves viajes al país del pueblo (Curtas viagens ao
país do povo), Jacques Rancière fala da experiência política
de sua geração como algo que tinha a ver com distanciar-se
dos livros “para capturar a realidade viva”, essa realidade “que
estava aí, denunciando o vazio dos livros e, contudo, perfei-
tamente semelhante ao que os livros deixavam esperar”. Os
jovens comprometidos, diz Rancière, iam ver por si mesmos
o que antes tinham lido, ouvido ou sonhado. Também os
jovens missionários da II República Espanhola encontraram
nas aldeias remotas da Espanha o que já sabiam: a condição
miserável do povo, suas necessidades infinitas, seu sofrimento
imemorial, e também essa sabedoria, essa arte de viver e essa
verdade que se tinha encarnado nos romances, nos cantares e
nas comédias. Mas nessa viagem levavam um caminhão carre-
gado de pinturas, um projetor de cinema, alguns livros, algu-
mas canções, alguns títeres e, sobretudo, sua própria graça, sua
própria pessoa, sua própria capacidade de cantar, de contar, de

141
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

ler e de pintar. E com isso montaram “uma espécie de escola”,


produziram situações inéditas, e tiraram tempo para produzir
imagens que mostravam algo diferente do que já sabiam. E é
aí, nesse deslocamento mínimo, nesse ínfimo excesso, nessa
loucura absurda, nesse luxo, nesse gesto utópico que, segundo
Rancière, “desfaz as certezas do lugar” e surpreende “o mapa
dos lugares e trajetos geralmente conhecido com o nome da
realidade” (Rancière, 1991, p. 8-9), onde esses jovens viajantes
produzirão, talvez sem sabê-lo, algumas imagens que ainda
fazem que esfreguemos os olhos.

Aí está (nota final de Jorge Larrosa)


Na epígrafe deste texto, colocamos as palavras com as
quais Ramón Gaya terminava, em 1991, uma conferência
na Casa dos Estudantes, sua recordação das Missões, de suas
viagens com o Museu do Prado pelos povoados da Espanha:
“Aí está, e que cada um pegue o que puder, o que quiser, o
que lhe servir e nada mais”. Com essas palavras, Gaya resumia
o gesto que abre a escola, esse gesto no qual alguém, como
dizem Jan e Maarten, coloca algo em cima da mesa, aponta
e diz: “Aí está”. Esse gesto é o que fizeram os missionários
em cada uma das instalações do Museu: “aí está”. E esse
mesmo gesto é o que Marta e eu quisemos fazer hoje aqui:
“aí está”. E esse “aí está” subjaz também a uma imagem do
professor que Peter Handke elabora a partir de uma de suas
obras: “Tive um grande professor. O professor aponta e diz
‘Olhe’; a resposta é: ‘Sim, vejo’ (Walter Percy a propósito de
seu professor Alexander Percy)” (Handke, 2006, p. 232).
Em todo caso, “aí está”, estas palavras e estas imagens que
trouxemos de muito longe, tanto no espaço quanto no tempo,
para que vocês também, talvez, assim como nós, esfreguem
os olhos, e para que vocês também, talvez, assim como nós,

142
Um povo capaz de skholé: elogio das Missões Pedagógicas da II República Espanhola

as amem, sabendo que, segundo Handke, de novo Handke,


“o verbo para o amor: suscitar” (p. 62).
E sobre as enormes tensões que fizeram que as Missões
Pedagógicas, essa “coisa de luxo”, fossem impossíveis, e que a
imagem do povo capaz de skholé fosse tão efêmera, me limitarei
a citar outra nota de uma fala de Handke, muito bela, sobre as
relações entre a escola e a cidade, que transcrevo agora como
uma homenagem à maneira como Jan Masschelein nos fez pen-
sar a escola, não como algo que deve ser pensado em relação à
sociedade, mas, pelo contrário, como algo do qual é a própria
sociedade que deve prestar contas. Algo que subjaz à maneira
como Sócrates encara o seu discurso na Apologia de Sócrates, tra-
duzida também como Defesa de Sócrates, texto que está na base
das estratégias discursivas da Defesa da Escola: não é a filosofia
que deve submeter-se à cidade, é a própria pólis que deve justi-
ficar-se com a filosofia. Handke se exprime assim: “Magnífica
paisagem no Talmud: ‘O mundo não existe senão para o alento
dos estudantes’. E: ‘Não se deve incomodar os estudantes, nem
mesmo para a construção do santuário’. E: ‘Toda cidade sem
estudantes será destruída’” (p. 153).

Referências
CERNUDA, Luís. Con el Museo del Pueblo. Soledades de España. In:
OTERO, E. (Ed.). Las Misiones Pedagógicas: 1931-1936. Madrid: Amigos
de la Residencia de Estudiantes, 2006.
COSSÍO, Manuel B. Significación del Museo. In: OTERO, E. (Ed.). Las
Misiones Pedagógicas: 1931-1936. Madrid: Amigos de la Residencia de
Estudiantes, 2006.
DIDI-HUBERMAN, G. Pueblos expuestos, pueblos figurantes. Buenos Aires:
Manantial, 2014a.
DIDI-HUBERMAN, G.Volver sensible/ hacer sensible. In: BADIOU, A. et
al. ¿Qué es un pueblo? Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2014b.
GAYA, R. Mi experiencia en las Misiones Pedagógicas. Con el Museo
del Prado de viaje por España. In: BURUAGA, Gonzalo Sáenz de (Ed.).

143
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Val del Omar y las Misiones Pedagógicas. Madrid: Amigos de la Residencia


de Estudiantes, 2003.
HANDKE, P. À ma fenêtre le matin. Carnets du rocher 1982-1987. Lagrasse:
Verdier, 2006.
MASSCHELEIN, J; SIMONS, M. Defensa de la escuela: una cuestión pública.
Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014.
OTERO, E. (Ed.). Las Misiones Pedagógicas: 1931-1936. Madrid: Amigos
de la Residencia de Estudiantes 2006.
RANCIÈRE, J. Breves viajes al país del Pueblo. Buenos Aires: Nueva Vi-
sión, 1991.

144
Segunda parte
EM DEFESA DA ESCOLA:
NOTAS À MARGEM
A politização e a popularização como
domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

Inés Dussel, Jan Masschelein, Maarten Simons


Tradução: Fernando Coelho

I.D.: Um dos argumentos do livro de Jan Masschelein e


Maarten Simons afirma a necessidade de defender a escola uma vez
que há muitas tentativas de domesticar o “seu caráter democrático,
público e renovador” (2014, p. 97). Entre essas tentativas, aparece
em primeiro lugar a politização da escola, que a transforma em
uma estratégia para remediar problemas sociais ou para produzir
uma nova cidadania, o que restringe o seu potencial de renovação
do mundo e de oferecer um tempo livre e sem utilidade prees-
tabelecida. Também se menciona a popularização como outra
forma de domesticação contra a qual é preciso resistir. Popularizar
a escola implica aproximar o ensino ao mundo dos alunos, suavi-
zando as tensões do esforço escolar que requer “elevar-se acima
de si mesmo” e do próprio mundo (p. 118). Para Masschelein e
Simons, a popularização, ao deixar os alunos sempre no mesmo
lugar, infantiliza e dificulta avançar e expandir o mundo.
A crítica à politização e à popularização da escola costuma
ser articulada com base em posições conservadoras, que negam a
possibilidade de debates ou discussões políticas ou éticas na escola
e que insistem na nostalgia da escola republicana, que imaginam

147
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

com saberes inamovíveis e excludentes. Mas Masschelein e Simons


propõem outra linha de leitura para esses dois problemas, vincu-
lada à distinção arendtiana entre política e pedagogia. Enquanto
a primeira tem a ver com a negociação e a luta entre diferentes
grupos ou projetos sociais, a pedagogia oferece uma mesa de
trabalho que não deve ser uma mesa de negociações, mas tornar
“possível o exercício, o estudo e a preparação” (p. 101). A oferta do
professor para profanar os saberes “permite e anima que a jovem
geração se experimente a si mesma como nova geração” (p. 101).
Ao contrário, a politização da escola transforma os estudantes em
“cidadãos que têm algo a aprender” (p. 102), algo que não podem
descobrir por si mesmos, mas que lhes é dado de antemão. A
educação, nesse caso, se transforma em doutrinamento.
Eu gostaria de fazer um contraponto a esse argumento de
Simons e Masschelein a partir da experiência latino-americana
recente, em que a politização e a popularização foram formas fun-
damentais para articular alguns experimentos pedagógicos que,
ao menos em minha perspectiva, são muito mais interessantes
e complexos do que o mero doutrinamento ou a infantilização.
Nesses experimentos, puseram-se em jogo formas de fazer escola,
que sustentaram uma suspensão do contexto e uma proposta de
pôr algo sobre a mesa para trabalhar e questionar, formas que
se aproximam, mas ao mesmo tempo se distanciam, da ideia de
escola postulada por Jan e Maarten. Desejo incluir outras tensões
e conflitos na aproximação à política e à pedagogia, pensando no
que a política habilita e produz, em sua possibilidade de propor
ou construir posições e vínculos com o saber que permitem
expandir o próprio mundo, ainda que para isso tomem formas
que podem aparecer como “populistas” ou “popularizantes”.
O primeiro contraponto pode ser formulado a partir de como
se pensa a política e a politização. Pelo menos até há pouco tempo,
em que houve uma mudança de registro nos governos da América
do Sul, na região foram produzidas tentativas e experimentos

148
A politização e a popularização como domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

igualitaristas na pedagogia e também em outras esferas sociais os


quais seria preciso analisar com mais cuidado. Por exemplo, Justin
McGuirk estudou o Alto Comedero em Jujuy, na Argentina, um
complexo habitacional na periferia pobre desenvolvido de forma
autogerida pelo Movimento Tupac Amaru (cuja líder, Milagro
Sala, foi presa pelo governo de Macri). Chamou a atenção de
McGuirk o fato de que o complexo tinha piscinas, que não eram,
como previa, “retângulos modestos”, mas um “grandioso parque
aquático com figuras de morsas gigantes e de pinguins, e uma
ponte que o cruza pelo meio” (Mcguirk, 2015, p. 71). Diz o
inglês que “observar uma criança correndo para se jogar na água
basta para validar todo o conceito”. O complexo aquático “dá uma
bela resposta de forma simbólica” às construtoras e aos políticos
que pensam que a habitação social tem que dispor do mínimo,
diminuindo o gasto do Estado: “as piscinas são uma forma rela-
tivamente barata de fazer que as pessoas se sintam ricas” (p. 71).
Pode-se fazer um paralelo com os operários que Rancière
descreve em A noite dos proletários, que queriam ganhar o tempo
“destinado a reproduzir a força de trabalho” para “apropriar-
se do idioma e da cultura do outro, a ‘noite’ dos poetas e dos
pensadores” (Rancière, 2013, p. 13). Da mesma maneira, os
operários do Tupac Amaru também querem ganhar o espaço ao
utilitário e ao mínimo para se apropriarem dos símbolos e das
experiências de jogo e de prazer que até agora lhes eram vedados.
McGuirk não deixa de assinalar as contradições nessa forma de
urbanismo, que conjuga de modo estranho “a zona residencial,
o parque temático tipo Disney e o socialismo radical” (p. 72),
mas mantém a abertura para ver as mudanças de posição que essa
experiência autogerida cria nos habitantes do complexo e a ruptura
que marca com os modelos de urbanização para setores populares.
A comparação com os proletários que Rancière descreve
não é por acaso, porque a inspiração rancieriana pode ser notada
especialmente em muitos dos experimentos pedagógicos realiza-

149
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

dos na Argentina na última década. Por alguns anos, funcionários


e professores participaram da leitura de O mestre ignorante (2003), e
a questão da igualdade como ponto de partida se transformou em
um nó central das políticas, tanto em nível dos ministérios, como
das instituições escolares (Maddonni, 2014; Redondo, 2016).
É preciso dizer que esse impulso rancieriano combinava bem
com a tendência igualitarista ou plebeia já presente na sociedade
argentina, e também com o movimento anti-institucional que se
criou com as assembleias populares e com o que se vayan todos, de
2001 (Rinesi, 2015). Essa experimentação pedagógica teve, em
ocasiões, êxitos muito interessantes, como as Orquestras Juvenis,
a entrada de novos saberes na escola, como a história recente, e
alguns outros programas ou ações concretas que buscaram “dar
voz” e “dar visibilidade” a posições ou atores até então margi-
nalizados. Escolas inteiras se puseram a mudar o currículo, as
rotinas e as formas de participação para experimentar como se
faria para construir um espaço de iguais. Mas também é preciso
sublinhar que a política ministerial propôs a igualdade como
um imperativo, a partir dos documentos, das ações de formação
docente e dos programas de apoio a escolas mais pobres. E ainda
que a política oficial tenha muitas limitações para regular o que
fazem os diferentes atores educativos, não se deve subestimar o
que significou enquanto força e impulso este novo imperativo da
igualdade. Diz a esse respeito Charlotte Nordmann, colocando
em diálogo a sociologia de Bourdieu com a filosofia de Rancière:
Ao nos adaptarmos constantemente à “debilidade” dos
alunos, acabamos por nos fechar em um círculo de im-
potência que somente é possível quebrar postulando a
igualdade intelectual de todos. É preciso escutar o que
nos diz Rancière sobre a necessidade de se deparar com
verdadeiras dificuldades para avançar: somente obrigado
e forçado – pela pressão de uma situação, de um impe-
rativo – começa-se a pensar (Nordmann, 2010, p. 194).

150
A politização e a popularização como domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

O imperativo que força a começar a pensar, e a fazer,


gerou vários dos experimentos pedagógicos mais interessantes
da última década. Um deles, assaz documentado,1 foi o tema
de um documentário recente, Después de Sarmiento (Francisco
Márquez, Argentina, 2015). Trata-se da experiência desenvol-
vida em um colégio da cidade de Buenos Aires, singular por
sua história recente e por sua direção, muito comprometida e
entusiasta. A escola se localiza em um bairro de classe média
alta no centro da cidade de Buenos Aires, e no passado teve
alunos de famílias aristocráticas; era uma escola “tradicional”,
seletiva social e academicamente. Contudo, nos últimos 25
anos a população estudantil mudou abruptamente, em parte
pelo êxodo das classes médias e altas para as escolas privadas,
e também pela inclusão de outros setores na escola média. Os
estudantes vêm agora em sua maior parte de um assentamento
urbano-marginal (espécie de favela) localizado na estação de
trem que fica a poucas quadras da escola. A escola também re-
cebe filhos de trabalhadoras domésticas da região, e um grupo
de alunos de uma escola nacional de balé situada a duas quadras.
O documentário de Francisco Márquez sobre a experiência
desse colégio começa com uma cena muito significativa: um
ato escolar no qual se canta o hino a Sarmiento (o homem com
cujo nome foi batizada a escola), que é tocado primeiro em sua
versão tradicional e logo em seguida em ritmo de cumbia, um
gênero musical que goza de pouco prestígio cultural, mas que é
muito popular entre os setores mais pobres. A câmera capta bem
a mudança de estado dos alunos, que antes estavam parados em
filas, mais ou menos distraídos, escutando o hino “de sempre”,
e agora olham com surpresa e sorridentes em razão da cumbia no
ritual escolar. Uma imagem é particularmente eloquente: um

1
Entre outros trabalhos sobre a experiência dessa escola, ver Zelmanovich
(2013) e Dussel (2014).

151
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

dos jovens decide tirar os fones de ouvido para escutar melhor


o hino-cumbia. Ao menos uma vez, é mais interessante o que
se passa na escola do que o que escuta em seu telefone. Tocar
a cumbia no ato público poderia ser considerado uma estratégia
de popularização; contudo, em outro contraponto com o que
assinalam Masschelein e Simons, seria preciso pensar se não é um
gesto que é necessário para dar as boas-vindas, para poder come-
çar a trabalhar em e com a ambivalência dos setores populares
em direção da cultura escrita e suas instituições (Petit, 2009).
Esta ambivalência em relação à cultura escrita se torna
evidente na dificuldade que os professores têm para que os
alunos consigam apropriar-se de alguns dos seus códigos. A
diretora fala de uma “palavra desvitalizada”, sem intensidade,
uma experiência escolar que não deixa vestígio. Os alunos leem
pouco e se queixam ou desistem de abordar os textos difíceis;
fazem blogs ou usam redes sociais, mas o nível da produção
escrita continua sendo muito baixo. A diretora do colégio de-
cide, em um momento, começar a dar aulas de literatura, para
experimentar ela também como se aborda essa dificuldade de
aproximar esses garotos das operações de leitura e escrita que
a escola quer promover. O documentário mostra como ela ex-
perimenta usando textos curtos, relatos centrados em dilemas
morais sobre a legalidade e a ilegalidade, com escritas que falem
de suas experiências de perdas e de tomada de decisões. Criam-se
grupos especiais, pequenos, com tutores que fazem um acompa-
nhamento personalizado dos alunos com maiores dificuldades.
Tudo isso, também, poderia ser visto como mais do mesmo, mais
do que já têm em seus mundos próprios; contudo, no esforço
para que se apropriem de modos de ler e escrever, há sem dúvida
um convite a “elevar-se acima de si mesmos”, a esforçar-se por
dominar códigos que sejam difíceis para eles. O cineasta mostra
as dificuldades que a professora e os tutores encontram nesse
caminho: nem todos conseguem, nem sempre as estratégias têm

152
A politização e a popularização como domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

bom resultado. Mas, como dizia Nordmann, sem o imperativo


político da igualdade, essas cenas não teriam lugar porque não
seria preciso esforçar-se para pensar como criar um espaço para
esses novos sujeitos. A politização, a demanda por uma função
política da escola, parece ser o impulso que ajuda essa escola a
funcionar como escola, com os limites visíveis.
Outra linha interessante que o documentário propõe se
concentra na experiência política da escola, que permite um olhar
diferente do político como doutrinação. O filme conta, durante
boa parte da trama, as vicissitudes da criação de um centro de
estudantes que é promovido pela direção da escola, e que coloca
a participação como outro imperativo porque está convencida
da importância de que aprendam a ser cidadãos. A escola tem
dois turnos bem diversos: o da manhã recebe os alunos de classe
média e classe média baixa, enquanto ao turno da tarde vêm
sobretudo alunos do assentamento. Há longas cenas em que se
mostram as discussões entre grupos de alunos dos dois turnos que
não conseguem entrar em um acordo para fazer um centro de
estudantes único. São vistas ofensas contidas, às vezes explícitas,
tanto como as perspectivas contrapostas; aparece explicitamente a
política tal como a descreve Arendt, a da negociação e do conflito
entre grupos. Os docentes tentam mediar, insistindo em que, se
conseguirem se entender, darão uma lição à sociedade que quer
vê-los divididos; há, a partir da pedagogia e da política, um ob-
jetivo predefinido, pré-formatado, que não espera que a jovem
geração faça o seu caminho, mas lhe diz por onde deve ir para
contribuir para a reforma social. Contudo, no fim os estudantes
conseguem o que queriam e encontram, na negociação entre os
dois turnos, uma forma de fazer circular a palavra e discutir a
representação que começa a mover as posições de cada grupo, e
também as dos professores, que recuam. Não chegam ao centro
de estudantes, mas criam uma forma ad hoc de representação na
qual cada grupo se sente mais ou menos à vontade.

153
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Essa situação deixa a impressão de que a discussão política


pode se transformar, em certas condições, em outra forma de “ele-
var-se acima de si mesmo” e de expandir o mundo, assim como
de conhecer outras perspectivas diferentes das do seu próprio
mundo. Algo que este exemplo dá a pensar é que o que oferece
a escola não é somente o que passa diretamente pelo professor,
ou por uma mesa de trabalho, mas também por experiências e
encontros que desafiam o ponto de partida, que são verbais mas
também são afetivos, corporais, visuais. Fazer parte desse espaço,
ver-se cara a cara, comunicar-se, irritar-se e voltar a se escutar,
são ações que vão armando outra posição política e também de
relação com o saber e a linguagem. Por outro lado, seria preciso
estudar melhor quais efeitos tem a possibilidade da representação
política: pode haver aí uma forma de gramaticalização do mundo
da política, mesmo que não passe por uma disciplina escolar, e
ainda que o discurso dos professores soe esclerosado e previsí-
vel? Quais são as condições que permitem que essa experiência
fuja à doutrinação e acabe do lado diferente do que se previa?
Seguramente, são muitas essas condições, mas uma condição
importante parece ser a permissão para experimentar em torno
do imperativo da igualdade e da participação.
A experiência do Colégio Sarmiento mostra alguns elemen-
tos que me parecem poder ajudar a pensar na politização e na
popularização de maneiras outras que não a pura domesticação
da escola. Dá a impressão de que, neste caso e provavelmente
em muitos outros, a política e a aproximação ao mundo próprio
dos alunos não são o que restringe ou domestica a escola; ao
contrário, são condições importantes para que haja escola, para
que nela se realizem essas operações que podem transformá-la
em um espaço-tempo democrático, público, renovador, como
o definem Masschelein e Simons. Seria preciso, também, pen-
sar o lugar da experimentação nessa forma de pensar a escola,
para dar lugar aos que arriscam e acreditam, por uma vontade

154
A politização e a popularização como domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

política, estratégias que busquem aproximar mundos e derrubar


fronteiras. Em uma época em que os muros voltam a estar na
moda no discurso público, isto parece cada vez mais necessário.

Referências
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escuela. In: DUSSEL, I.; Reyes-López, L. La dimensión social de la lectura.
La escuela: un espacio que no se puede abandonar. México DF: Conaculta,
2014. p. 7-37.
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ricana Tradução de Eva Cruz. Madrid: Turner Libros, 2015.
NORDMANN, Ch. Bourdieu/Rancière. La política entre sociología y filosofía.
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PETIT, M. El arte de la lectura en tiempos de crisis. México DF: Océano
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RANCIÈRE, J. El maestro ignorante. Barcelona: Laertes, 2003.
RANCIÈRE, J. El filósofo y sus pobres. Tradução de M. Bardet e N. Gol-
dwaser. Los Polvorines: Universidad Nacional de General Sarmiento, 2013.
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da Educação) – Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación,
Universidad Nacional de La Plata, La Plata, 2016.
RINESI, E. Populismo, democracia y “nueva izquierda” en América Latina.
In:VÉLIZ, C.; REANO,A. (Eds.). Gramáticas plebeyas. Populismo, democracia
y nuevas izquierdas en América Latina. Buenos Aires: Ed. UNGS-UNDAV,
2015. p. 23-51.
SIMONS, M.; MASSCHELEIN, J. En defensa de la escuela: una cuestión
pública. Buenos Aires: Miño, 2014.
ZELMANOVICH, P. Las paradojas de la inclusión en la escuela media, a partir
de una lectura de la posición de los docentes en el vínculo educativo. Aportes del
psicoanálisis a la investigación del malestar en las prácticas socio-educativas. 2013.
343f.Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Facultad Latinoamericana
de Ciencias Sociales, Buenos Aires, 2013.

Filme
Después de Sarmiento. Dir. Francisco Márquez.Argentina, 2015. 76 minutos.

155
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

J. M. e M. S.: Permitam-nos exprimir a nossa admiração


pelo modo intrigante em que Inés Dussel elabora a partir do nosso
pensamento, ao mesmo tempo em que o expande e incrementa,
fazendo-o ir a novas direções. Permitam-nos também dizer que
ficamos um tanto surpresos com o fato de nosso livro ter chamado
tanta atenção no contexto sul-americano. Talvez isso tenha a ver
com o fato de que nesse contexto o conceito de “escola” ainda
seja explícita e imediatamente relacionado à experiência colonial,
certamente, mas também a tentativas engajadas de mudanças
sociais e políticas em uma situação de grande injustiça social,
exploração e pobreza. E, assim, a escola não é apenas uma questão
de florescimento e desenvolvimento individual, mas uma questão
extremamente pública. A esse respeito, estamos dizendo que Inés
também não está questionando o possível papel da escola como
tal – um papel que é, para nós (conforme tentamos indicar também
em outras partes deste livro) precisamente muito político através de
suas pressuposições de liberdade e igualdade pedagógicas e através
do modo pelo qual elas afetam com operações muito concretas
a ordem social existente – mas propõe, e pensamos que correta-
mente, sofisticar o modo pelo qual abordamos a domesticação da
escola em termos de sua politização e popularização. Portanto,
aceitamos inteiramente as suas observações e sugestões.
Essas observações nos ajudam a esclarecer em que sentido
a politização e a popularização estão contribuindo para a do-
mesticação da escola, e em que sentido a escola, a nosso ver, está
relacionada com a política e não deveria simplesmente descar-
tar o mundo da vida dos seus estudantes. Parece que Inés está
aludindo à motivação política que energiza muitas tentativas de
fazer a escola e de experimentar com o fazer a escola. De muitos
modos, pode-se dizer que essa também é a nossa motivação,
como pensamos que Inés reconhece. De fato, é precisamente
porque almejamos tanto considerar a questão da escola como uma
questão muito pública – uma questão que afeta profundamente

156
A politização e a popularização como domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

as “nossas” sociedades, e que ter escolas é uma intervenção polí-


tica – que quisemos tentar articular o que faz uma escola ser uma
escola. Que isso seja político consiste no modo pelo qual as escolas
conseguem interromper as conexões entre corpos e capacidades,
posições, futuros atribuídos a eles ou predefinidos, ou projetados
para eles. Mas elas o conseguem oferecendo liberdade e igualdade
pedagógicas que se relacionam aos exercícios e estudos que permitem
formar a si mesmo (ver nossa resposta a Maximiliano López no
capítulo “Skholé e igualdade”, neste livro).
E talvez haja um tipo de confusão em torno dos conceitos de
escola e política, em parte também porque não fomos suficiente-
mente claros em nosso uso desses conceitos. Nossa tese principal
é a de que devemos evitar que a escola se torne um instrumento
para governar a sociedade. O conceito de politização – e admiti-
mos que é impreciso – em nosso entendimento de fato refere-se
sobretudo a um tipo de “governamentalização das escolas”. E
essa governamentalização varia de pedir que as escolas resolvam
questões sociais a esperar que as escolas ofereçam a educação que
é necessária para produzir ou criar a imagem de uma sociedade
justa que nós – como mais velhos – temos em mente. Mas, como
enfatizado anteriormente, não pensamos que a escola em si mesma
– a própria existência da aprendizagem escolar, ou seja, a aprendi-
zagem marcada pela liberdade e pela igualdade – seja uma inter-
venção política. Se este é o caso, a questão é quem pode ou deve
defender a escola, quem pode ou deve solicitar experimentação.
Devem os governos desempenhar um papel nisso? (E Inés está se
referindo a certa “imposição” da parte do governo). A nosso ver,
sim, eles podem e devem. Os governos sustentarem a escola, por
meio de políticos e políticas, é diferente de a escola se tornar um
instrumento governamental. Como indicado previamente, prefe-
rimos fazer uma analogia com a democracia. Quem deve defender
a democracia? A nosso ver, ninguém em particular, e, portanto,
todos. É uma questão pública. Mas defender a democracia, assim
como defender a escola, significa também que você defende algo

157
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que excede os seus interesses pessoais e possivelmente o seu status


e reivindicações atuais. Ao defender a escola, e formas correlatas
de liberdade e igualdade, você reconhece que ninguém possui o
mundo, e que a geração futura deve ter a possibilidade de tomar
conta do mundo também.
Talvez, e esse é apenas um tipo de hipótese que vale a pena
explorar, devêssemos pensar um tipo de liberalismo que permita
que as escolas existam, e experimentar com as escolas. Como
Foucault elaborou de modo detalhado, o liberalismo como um
modo de governamentalidade incluiu um tipo de autolimitação do
lado do governar e do governo: levar em conta a “natureza” do
que está sendo governado. Nesse sentido, a governamentalidade
liberal é uma forma econômica de governar em um duplo senti-
do: ela calcula os custos de governar (em termos de intervenções
governamentais limitadas) e governa pelas liberdades econômicas
de atores de mercado. O “homo economicus” torna-se, portanto, o
limite e o instrumento para governar.
Faria sentido pensar em um liberalismo pedagógico, que
fosse ao mesmo tempo um tipo de socialismo pedagógico? (E
não deve ser confundido com “educação liberal”). Ou talvez,
para enfatizar o sentido de a educação ou a escola se tornarem o
limite e o instrumento de governar a sociedade. Ou talvez ainda
melhor, em tal forma de governar a escola, deve-se considerar
que ela é o limite de intervenções governamentais, mas nunca
pode se tornar um instrumento, exatamente porque a escola
em si mesma é um lugar/tempo para a renovação. Provavel-
mente soará estranho fazer referência à governamentalidade e à
intervenção governamental para defender a escola, assim como
argumentar a favor de um tipo de comunismo pedagógico.
Mas, a nosso ver, se as considerações econômicas podem ser
mobilizadas para limitar as intervenções governamentais (ou
exatamente para promover intervenções particulares), também
argumentos pedagógicos, e especificamente argumentos peda-
gógicos escolares, deveriam desempenhar um papel. E, como

158
A politização e a popularização como domesticação da escola:
contrapontos latino-americanos

dito anteriormente, não se trata apenas de colocar a questão de


saber como o governar deveria ser limitado ou deveria refletir
por si só as intervenções com vistas a oferecer às escolas tempo
e espaço para existirem (como escolas), mas também a questão
de saber como o governar poderia desempenhar um papel para
apoiar a experimentação com as escolas no futuro. Igualmente,
os governos podem e devem arregaçar as mangas quando o
negócio são as escolas, e, de novo, reconhecendo que não pode
ser uma espécie de duplo vínculo: promover e sustentar as esco-
las, mas ao mesmo tempo mobilizar as escolas para propósitos
governamentais. Nesse sentido, e contrariamente à liberdade
econômica, não há retorno (particular) governamental.
Precisamente por causa do seu papel social/político, a escola
implica uma relativa autonomia quanto à “família” em um senti-
do amplo. Ela deve ser destacada, em certa medida, do que os jo-
vens trazem para a escola (da sua família, vizinhança, comunidade
de origem). É claro que os jovens são muito diferentes no que
diz respeito às suas origens, e essa desigualdade pode pesar sobre
a sua liberdade para modelar o seu próprio futuro. A escola não
está negando essas origens desiguais nem as grandes diferenças,
mas não as toma como um ponto de partida. Certa suspensão ou
destacamento é necessário para que essas diferenças (de origem
ou de “natureza”) não se tornem ou permaneçam determinantes
para o futuro desses jovens. Essas diferenças não devem ser ne-
gadas, mas devem, pelo menos até certo ponto, tornar-se ou ser
irrelevantes, sendo os jovens tratados como estudantes ou alunos.
Apenas se pode ser tratado como aluno ou estudante na medida
em que não se é constantemente censurado no que poderíamos
chamar de termos “genealógicos” em sentido muito amplo (em
relação à origem, passado, etc.). Como dissemos em algumas
de nossas respostas neste livro, ser tratado como estudante ou
aluno significa ser tratado pelo primeiro nome (ser tratado como
um ser singular) e não pelo nome de “família”, “nome de classe
social”, ou como “tipo”, etc. Em outras palavras, as escolas têm

159
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que cuidar para não fechar ou amarrar os alunos ou estudantes


no que não está no poder deles, ou seja, em sua inabilidade. Esta
é a sua responsabilidade pedagógica.
Essa responsabilidade também é, em parte, do professor
através do modo pelo qual ele coloca algo sobre a mesa (não
está representando, mas apresentando algo) e atrai a atenção dos
alunos para esse algo. Essa apresentação é uma apresentação em
uma forma gramaticalizada (no sentido muito amplo, que ten-
tamos indicar anteriormente) de modo que os estudantes sejam
capazes de se relacionar com isso, ou seja, estando ao mesmo
tempo apegados e à distância. Isso implica tirar os estudantes ou
alunos do seu mundo da vida. Mas isso pode ser entendido em
um duplo sentido. Primeiro, no sentido de que eles podem ser
confrontados com algo fora do seu mundo da vida que começa a
interessá-los (e entendemos que este é um dos exemplos aos quais
Inés alude). Mas, em segundo lugar, também no sentido, e talvez
isto seja ainda mais importante, de que o que lhes é apresentado,
e que pode ser perfeitamente fora do mundo da vida deles, lhes
é apresentado de um modo gramaticalizado, o que torna possí-
vel uma distância ou pausa. Tal gramaticalização (por exemplo,
por letras ou imagens, ou frequentemente com combinações) é
sempre artificial, mas nunca também apenas uma representação.
Ademais, uma vez que para nós a escola nunca está apenas
a serviço ou cuidando dos estudantes (e seus interesses, seu fu-
turo), mas consiste no cuidado de alguma(s) coisa(s) no mundo,
consideramos que é a responsabilidade da escola e do professor
apresentar algo que poderia tirar os estudantes do “seu” mundo
(do contrário, o professor permaneceria uma espécie de treinador)
em direção daquilo que se poderia chamar de “mundo comum”.
Mas, precisamente a fim de fazê-lo, e nisso concordamos com
Inés, o professor não pode apenas dirigir-se a esse mundo (co-
mum), mas tem de desenvolver alguma relação (e mesmo apego)
ao mundo da vida dos estudantes.

160
Sobre a escola que defendemos

Walter Omar Kohan, Jan Masschelein, Maarten Simons


Tradução: Fernando Coelho

W. K.: A sua obra sobre a escola é muito tocante, por


muitas razões. Uma delas, acredito, tem a ver com o status do
seu discurso: ele dá uma visão do que a escola é em si mes-
ma e não como uma instituição social, histórica ou política.
Claro, não que vocês não saibam ou não sejam conscientes
dessas abordagens, mas parece ser uma questão de prioridade
ou simplesmente de “suspensão” dessas outras condições a fim
de assumir uma mais específica. Vocês julgam altamente rele-
vante estudar a escola como escola e dar à escola o que vocês
chamam de voz ou abordagem “pedagógica” ou “interna”.
Vocês consideram que filósofos ou teóricos da educação dão
uma “perspectiva externa, funcionalizante ou instrumen-
talizadora”1 da escola. O que está em jogo é dar uma voz
pedagógica à “condição de exposição” que “é habilitada ou
preparada por meio de formas pedagógicas específicas, sem-
pre artificiais” na escola. Para dizê-lo com outras palavras, a

1
Todas as citações foram extraídas do texto “Experiências escolares: uma
tentativa de encontrar uma voz pedagógica”, publicado neste livro (p. 41).

161
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

escola tem uma dimensão pedagógica filosófica, social, cul-


tural, histórica e também algo tácita, desconsiderada ou não
notada, e é sobre esta última que vocês estão falando. Estou
entendendo vocês bem? Se sim, é possível atingir esse obje-
tivo, isto é, dar uma explicação pedagógica e justa da escola?
Não estaria nesta pretensão (impossível) de destacar o que
não poderia (ou não é conveniente) ser destacado pelo menos
parte da causa da “incompreensão” de alguns dos leitores, os
quais tentam encontrar o que vocês não pretendem oferecer,
mas ao mesmo tempo não pode (ou não deveria) ser deixado
de lado completamente? Por outro lado, se é possível chegar
a uma abordagem estritamente pedagógica da escola, qual é
o status epistemológico dessa abordagem? É ciência? É arte?
É literatura? Ou poderia paradoxalmente levar a uma (re)de-
finição da filosofia, de uma forma bem diferente e específica
da maneira em que é costumeiramente praticada?

J. M. e M. S.: Talvez se pudesse dizer que é difícil e


nem sempre útil distinguir (ou manter separados) os pontos
de vista filosóficos, sociais, culturais, históricos e políticos,
pois eles estão sempre relacionados. Por outro lado, também
é difícil ver por que não poderia ser interessante tentar arti-
cular um ponto de vista pedagógico. Usamos palavras como
“pedagogo”, “pedagógico”, “pedagogia”: por que não valeria
a pena tentar indicar o que essas palavras nomeiam, por ex.,
por que seria descabido investigar qual é a diferença entre
“pedagogo” e “professor”? Ou, para colocar o problema de
modo positivo, pensamos que vale a pena tentar enfatizar
o pedagógico, uma vez que permite introduzir aspectos e
elementos que enriquecem a abordagem da educação e torna
possível articular questões que, em nosso entendimento, são
importantes para a consciência do que está em jogo hoje na
educação de modo mais geral, e na escola de modo parti-

162
Sobre a escola que defendemos

cular (precisamente também no nível político, econômico,


social e cultural).
Houve um intenso movimento na Alemanha no século
XX, o Geisteswissenschaftliche Pädagogik, que defendeu a (relati-
va) autonomia da teoria e prática educativas (autores como E.
Spranger, Th. Litt, W. Flitner, H. Nohl, etc.) e que teve uma
grande influência em toda a Europa, fomentando o pensamento
pedagógico (Pädagogik). Mas foi fortemente criticado em razão
da sua defesa da autonomia pela assim chamada pedagogia
emancipatória e crítica, a qual fora inspirada principalmente
pela Escola de Frankfurt (Teoria Crítica). A crítica consistia
em que não se perderiam os processos de poder e as estruturas
sociopolíticas ínsitas que caracterizam a educação e que se
exprimiriam apenas os ideais românticos, apolíticos e falsos de
certa classe social (burguesa) em relação a uma “relação peda-
gógica” pessoal. Parece que as reações críticas à nossa tentativa
de articular um ponto de vista pedagógico implicam que de
algum modo repetiríamos a defesa dessa pedagogia e, portan-
to, estaríamos sujeitos às mesmas e falsas reivindicações. Essas
reações críticas agora parecem invocar também a afirmação de
Paulo Freire de que a educação nunca pode ser neutra, ou seja,
que é um instrumento ou para a libertação ou para a opressão.
Ou eles repetem sempre que tudo tem que ser contextualizado
cultural, social e historicamente.
Bem, nós também trilhamos o caminho da crítica peda-
gógica e denunciamos o esquecimento (apolítico) das contex-
tualizações (históricas, políticas e culturais) e todos os tipos de
processos de poder que são realizados na educação e a afetam
profundamente em todos os seus aspectos. Contudo, foram
especialmente os estudos sobre governabilidade inspirados
na ontologia crítica do presente de Foucault que nos deram
(e ainda dão) uma grande inspiração para um ethos particular
de investigação crítica do presente da educação. Um ethos que

163
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

nos afasta imediatamente de uma análise simplista em termos


de “instrumento” ou “função”, e que nos permite reconside-
rar as questões de poder e contexto. E foi nesse esforço que
percebemos a necessidade do que chamamos, inspirados em
Ian Hacking, de uma ontologia crítica para abordar o pre-
sente da educação e abrir caminho para práticas educacionais
alternativas e para um pensamento educacional “crítico”, que,
como Rabinow e Rose afirmaram em relação ao trabalho de
Foucault, se pergunta se é “possível desenvolver um tipo de
pensamento crítico que não julgaria [...] mas criaria, produziria,
intensificaria as possibilidades dentro da existência” (Rabinow;
Rose, 2004, v. 18).
Talvez, e em certo sentido invertendo a “crítica”, pudés-
semos suspeitar que o gesto crítico da historicização e con-
textualização seja parte de outra história das ciências sociais
e humanidades. Uma história que não é tanto sobre como as
ciências sociais e as humanidades contribuíram para a fabricação
da “escola” disciplinadora, institucionalizante e colonizadora.
Essas estratégias implicaram a demonstração contínua e repetida
de que era impossível sair do contexto, da história e da cultu-
ra. Isto acarretou um gesto crítico que mais explicitamente se
tornou um gesto desconstruidor e explanatório, demonstrando
exatamente que e como somos todos capturados pela língua,
embutidos em culturas e histórias, pegos em discursos e tec-
nologias de poder. É um gesto que, de fato, sempre demonstra
e confirma as nossas apropriações (da língua, cultura, história).
Sugerindo assim que a única opção seria desenvolver uma
posição totalmente destacada. E desse modo promover uma
estratégia que impede precisamente a escola de se tornar um
assunto público.
Ademais, acreditávamos que a revisão que fizemos das
acusações dirigidas à escola e a atenção a todos os tipos de
domesticação da escola certificariam o leitor de que somos

164
Sobre a escola que defendemos

muito conscientes da maior parte das críticas que têm sido


corretamente feitas à escola. Esperamos que isto ajude o leitor,
pelo menos por um momento, a reprimir a forte (extremamente
comum e de fato assaz acrítica) inclinação de reviver imediata-
mente todas aquelas frustrações ligadas à escola. Esperávamos
poder convidar o leitor a nos acompanhar em nosso esforço de
explorar o que faz de uma escola uma escola de um ponto de
vista educacional. Muito da história e das acusações contra a
escola parecem estar repetindo o que todos nós aparentemente
gostamos de ouvir sobre a escola. Talvez essa crítica não seja
nada mais que um tipo de continuação intelectual ou ainda
um cultivo do sentimento de que as pessoas não gostam de
ir à escola. Como se quiséssemos esquecer a escola, e como
se não nos agradasse sermos lembrados do fato de que o que
somos agora pode ter de algum modo dependido da escola.
Certamente, há o típico apreço dos professores, mas ao mesmo
tempo há um desprezo disseminado em relação a quase todo
mundo que está envolvido com a educação. Há muitas versões
para esse tratamento depreciativo da educação, variando desde
a afirmação frequentemente repetida de que o ensino não é um
verdadeiro trabalho, até a de que a pesquisa educacional não é
uma pesquisa verdadeira, ou ainda que a teoria e a filosofia da
educação são marginais. A nosso ver, esse desprezo na verdade
exprime como a sociedade lida com o que é imaturo, com
menores, e que se aceita e se protege um tipo de maturidade
ou que é preciso ser adulto para estar envolvido em assuntos
sérios. Não há sempre um medo profundo que motiva esse
tipo de atitude? O medo de que a geração vindoura de fato se
torne a nova geração, e que esta geração vindoura esteja ques-
tionando direta ou indiretamente o que os adultos valorizam
e assumem como dado.
Em nosso livro, corremos o risco de usar a noção de escola
como a configuração de espaço-tempo sempre artificial que

165
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

torna possível essa experiência educacional radical, ao invés


de usar a noção para o que torna essa experiência impossível.
Na realidade, pensamos que é nosso dever como teóricos da
educação tirar a noção de escola das mãos daqueles que a usam
apenas para expressar frustrações ou expectativas políticas,
econômicas e éticas. Se a escola não satisfaz as expectativas de
alguém, não é também porque os jovens (às vezes) não satis-
fazem expectativas, não cabendo, portanto, ou não querendo
caber na imagem que temos em mente para eles? Se é esse
o caso, tudo isto é acerca do medo da escola, na medida em
que a escola remete ao tempo e espaço que começam a partir
da pressuposição de que seres humanos não têm um desti-
no (natural, social ou cultural, etc.), e portanto devem ter a
oportunidade de encontrar o seu próprio destino. Queremos
reservar a noção de escola para essa simples mas abrangente
pressuposição. E a desescolarização, para nós, tem a ver com a
pressuposição inversa de que a sociedade tem que impor um
destino para os jovens através do desenvolvimento do que se
chama de seus talentos naturais, através da projeção de uma
imagem predefinida da pessoa educada, etc.
Sugeriu-se em algumas críticas que estamos olhando para o
passado de um modo idealizado, com nossas costas voltadas para
o futuro e sem notar os cruciais desenvolvimentos históricos,
os desafios atuais e outras conceitualizações úteis. Não estamos
certos disso. Temos nós outros a experiência de viver no pre-
sente e de tentar nos abrir para o futuro pela intervenção em
conceitualizações atuais da escola, incluindo narrativas históricas
(da crescente normalização, estatização, educacionalização, etc.),
que são parte das nossas conceitualizações. Nesse sentido, nosso
livro talvez seja uma contranarrativa. Ou, para continuar numa
linguagem foucaultiana: o livro não tem em vista uma ontologia
crítica, mas criativa, do presente, e a história não é usada para
“des-familiarizar” – através da advertência de como a educação

166
Sobre a escola que defendemos

escolar é de fato opressiva devido aos poderes políticos, econô-


micos, etc. –, mas para “familiarizar” pela lembrança do que a
escola torna possível.
Certamente não negamos que a educação possa estar e está
de fato constantemente sujeita a tentativas de instrumentalizá-la
(e que então talvez seja melhor ser assim, com uma ideia de
emancipação em mente), assim como tampouco queremos negar
que os contextos sejam importantes. Entretanto, pensamos que
vale a pena tentar articular a educação como uma prática que não
deve ser vista imediatamente como um instrumento para outra
coisa (e portanto sempre como meio para um fim que é definido
fora da educação) ou como uma função ou expressão de outra
coisa (desenvolvimentos, processos históricos, sociais, culturais,
etc.), mas como uma prática que realiza algumas operações em si
(por ex., torna coisas públicas de um certo modo), e que é uma
prática que em si mesma implica decisões, crenças (por ex., não
há destino natural, nossos filhos não são nossos filhos, somos
iguais, etc.) que são altamente políticas (históricas, culturais), no
sentido de que elas claramente afetam a nossa vida em conjunto
(como sociedade, família, etc.), mas que, portanto, não têm de ser
vistas como instrumentos ou funções ou expressões. Assim, para
dar um exemplo, as escolas, a nosso ver, não são instrumentos
para realizar mais igualdade, mas, uma vez que elas começam
pela pressuposição da igualdade, estão de fato afetando uma
ordem social e familiar desigual. Ademais, para nós é precisa-
mente porque a maior parte daqueles que dizem imediatamente
que não podemos dissociar o pedagógico do político, histórico,
etc., muitas vezes não têm nada ou muito pouco a dizer (de
interessante) sobre o pedagógico, mas o reduzem simplesmente
ao campo da aplicação, reduzem a educação a funções de outra
coisa, identificam-na com outra coisa (por ex., ensino) e não
são capazes de compreender o que chamamos de experiências e
práticas educacionais. Eles as esquecem ou as desdenham (talvez

167
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

por ódio ou medo), ou as valorizam apenas se forem instrumen-


tais ou funcionais. Isto nos conduz à questão do status.
Com efeito, quanto ao status epistemológico, não esta-
mos certos até que ponto temos que nos preocupar com isso,
e por que seria tão importante dizer qual é o nosso “status”.
Certamente, poderia ser uma questão tática ou estratégica
em alguns contextos. Talvez pudéssemos dizer que tentamos
desenvolver, em certo sentido, um tipo de pensamento edu-
cacional. E a tal ponto que se poderia chamar “pensamento”
também de “filosofia”, afinal talvez seja de fato filosofia (cf.
o que dissemos anteriormente sobre uma ontologia crítica).
Mas nos parece importante lembrar de saída que aqueles “pen-
sadores” dos quais nos sentimos mais próximos (Foucault,
Arendt, Rancière, Stengers...) se recusaram em um momento
ou outro a serem chamados de filósofos (ou historiadores...).
E talvez o pensamento (quem sabe você queira identificá-lo
com a “filosofia”) na linha de Rancière tenha a ver com dar
conta satisfatoriamente de experiências singulares, coisas sin-
gulares, eventos singulares, usando-se os poderes linguísticos e
visualizadores para “torná-los disponíveis ao pensamento”. Há
diversas razões pelas quais também hesitamos em identificá-lo
com a filosofia (embora o tenhamos feito em várias ocasiões),
as quais têm a ver principalmente com os gestos críticos que
estivemos e ainda estamos realizando em nome da filosofia e
em especial em relação à educação.

W. K.: A sua análise da escola tem raízes na Grécia An-


tiga e na skholé. Ela encontra aí uma forma pedagógica, que
constituiria a forma pedagógica da escola como escola, isto é,
de toda escola digna desse nome. Sem esses elementos, uma
escola não seria uma escola, pelo menos não nesse sentido pe-
dagógico. Não haveria a necessidade de analisar a origem da
escola em outras tradições (como a chinesa, a indo-americana,

168
Sobre a escola que defendemos

a africana) para propor um conceito tão extensivo? Ou, para


fazer a mesma pergunta de um ângulo diferente: a análise não
deveria ser restrita a um contexto menos amplo a fim de não
ser considerada etnocêntrica?

J. M. e M. S.: Entendemos perfeitamente que esta questão


pode ser levantada, e que temos que ser cuidadosos aqui. Estamos
de fato tentando desenvolver o que preferimos chamar de pedra
de toque (ou pelo menos elementos de uma pedra de toque)
para investigar se algo (um ajuntamento) poderia ser chamado
de escola. E pensamos realmente que a “escola” assim como a
“democracia” são palavras que apontam para “invenções” (de
modos de lidar com problematizações, como diria Foucault),
que em certa medida têm relação com a Grécia Antiga, ou
talvez se pudesse dizer com “eventos” que “se cristalizaram”
em certo sentido como formas. Não queremos dizer com isso
que a escola é a única forma válida para a aprendizagem, assim
como não diríamos que a “democracia” é a única forma válida
de congregação política, e que seja uma questão pacífica o que
a escola e a democracia significam, mas defendemos que se
esses conceitos devem ser usados (e defendidos) de um modo
significativo no mundo e na situação de hoje, devemos tentar
articular o que eles poderiam significar, e pensamos que isso
exige um esforço particular. Isso se relaciona à crença de que há
de fato diferenças que devem ser levadas em consideração (nem
todas as formas de lidar com o novo que está chegando podem
ser chamadas de escola). Nossa defesa não é, em certo sentido,
uma defesa histórica (que a escola teve a sua origem na Grécia e
que esta é a sua única origem), mas que o nome “escola” pode
ser esclarecido em um sentido que é particularmente relevante
para o que está acontecendo hoje se o relacionamos ao “mo-
mento” grego. E, novamente, não defendemos que a escola é o
único modo significativo e válido de aprendizagem (de modo

169
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

nenhum!), mas defendemos que a educação escolar é uma for-


ma particular de aprendizagem, e que elucidar aquilo em que
ela consiste ajuda a relacioná-la à invenção da democracia. (Ver
também a resposta a Maximiliano López no próximo capítulo)
Talvez devêssemos ser mais cuidadosos para não avançar demais
a nossa defesa e para afirmar que valorizamos outros modos de
aprendizagem, mas talvez esses modos não precisem da nossa
defesa hoje (ou pelo menos em nosso entendimento), enquanto
a aprendizagem escolar e as questões a ela relacionadas precisam,
a nosso ver, de uma forte defesa.

W. K.: Como na sua escola o social, o político e o cultural


são deixados do lado de fora, quando se fecha a porta, nela não
há raça, gênero, classes. Esse fato não leva a sua análise para
longe demais das escolas reais a fim de pensar sobre elas? Em
certo sentido, essa consequência é coerente com a sua reação de
não instrumentalizar a pedagogia, mas, em outro sentido, a sua
análise não serve como ferramenta para que os pedagogos que
vocês estão formando relacionem a sua realidade e a sua prática?

J. M. e M. S.: Talvez devamos esclarecer que não dize-


mos que o político e o cultural (histórico, social, biológico, etc.)
são deixados do lado de fora, que não há raça, gênero ou classes.
E não dizemos que não são importantes e que não deveríamos
pensar sobre eles quando tratamos da escola. Apenas dizemos
que, quando tentamos descrever o que faz de uma escola uma
escola (e muitas vezes não há escola em absoluto, nem mesmo
na “escola”), na aula a “força” ou “peso” deles podem ser sus-
pensos temporariamente, isto é, na aula algo “pode acontecer”,
a força de todos os tipos de definições e determinações pode ser
anulada, todos os tipos de ordens (por ex., a ordem social que
conecta os corpos às capacidades e posições sociais, a ordem
que explica de antemão por que algo aparece do modo como

170
Sobre a escola que defendemos

aparece, etc.) são descontinuadas. Não por acaso, mas devido


ao modo pelo qual o ajuntamento é organizado e praticado
(ou “feito”), o modo pelo qual é tecnologicamente composto
e eticamente estabelecido, é por isso que é uma escola. “Etica-
mente” aqui se refere ao ethos das figuras que habitam a escola
(por ex., os professores) e contribuem para a sua operação e
acontecimento, e tomamos ethos no sentido foucaultiano do
modo de se relacionar consigo mesmo, com os outros e com
o mundo.
Mas pensamos haver outra questão aqui. Não pensamos
que seja de alguma maneira “natural” olhar para os estudantes
em termos de origem sociocultural ou falar sobre o seu status
socioeconômico. Esse ponto de vista social, ou melhor, socio-
lógico, é montado historicamente, e se relaciona a um modo
específico de organizar a educação e dirigir as escolas. Similar
a como chegamos a entender a aprendizagem ou a ida à escola
como um investimento em nosso capital humano. Não estamos
dizendo que esse discurso econômico seja ficção, nem que seja
um tipo de ideologia. Mas, o discurso sociológico, econômico e
talvez psicológico, em grande parte, oferece o vocabulário para
falar sobre a educação (escolar), para justificar ou criticar alguns
desenvolvimentos, e demandar reformas. É surpreendente notar
como esse vocabulário de certo modo altamente abstrato se
tornou parte de como a mídia fala sobre a educação, e como os
políticos e os responsáveis pelas políticas públicas falam sobre
os desafios colocados pela educação. Mas, a nosso ver, esses
discursos levam a um tipo de des-apego pedagógico, e talvez
para os professores o seu valor explanatório seja primeiramente
confortador (o contexto ou a história social ou cultural mais
amplos ajudam a “relativizar”), mas ao mesmo tempo faz que
eles já não possam incorporar e praticar um posicionamento
pedagógico que “verifica” a pressuposição educacional segundo
a qual “cada um pode aprender tudo”.

171
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

W. K.: Deixe-me tentar entender como vocês pensam


a relação entre a escola e a política. Como vocês sabem, no
Brasil há agora (no segundo semestre de 2016) um movimento
que defende que os professores não devem falar sobre política
e que a política não deveria entrar na escola. Isto não é pre-
cisamente um movimento pedagógico e, bem ao contrário, é
extremamente político, não porque estão tentando dar à nova
geração a oportunidade de transformar o mundo, mas porque
eles querem fazer que as escolas funcionem como instituições
sociais que reproduzem a ordem das coisas. Algumas pessoas
estão dizendo que a sua análise da escola é consistente com
essa abordagem. Por um lado, vocês também separam a polí-
tica e a escola: vocês querem abordar a escola a partir de uma
perspectiva pedagógica e não política. É por isso que a sua
análise do aprendizado não traz nenhum elemento político,
à medida que considera o aprendizado em si mesmo como
aprendizado. Mas, ao mesmo tempo, vocês consideram que
ter uma escola é um ato muito político porque é um ato de
uma sociedade que cria uma instituição que poderia trabalhar
contra si própria, que poderia preparar o novo para desafiar e
mudar a sociedade que a criou. Vocês também consideram o
ato de aprender como político à medida que é precisamente
a ação pela qual a nova geração será exposta ao mundo a fim
de suspender, profanar e eventualmente transformá-la. Estou
entendendo vocês bem? Vocês concordariam então com esta
apresentação da sua ideia, ou seja, que, mesmo que vocês
não apresentem nenhum elemento político na sua análise da
escola, é precisamente porque todo o ato da escolarização é
político no seu impulso transformador pelo qual uma socie-
dade faz escolas?

J. M. e M. S.: Sim, concordamos inteiramente com o


modo pelo qual você coloca a questão. De fato, no livro e em

172
Sobre a escola que defendemos

outras ocasiões, usamos deliberadamente a frase que afirma


que a escola é uma invenção “comunista”, ligando a escola a
um movimento que tem significados e implicações fortemente
políticas (e éticas). Um movimento que é, como tal, muito mais
recente, sob o nome de comunismo, do que a escola, mas que
é mais velho sob o nome de escola – indicando mais uma vez
que não estamos muito interessados em defesas históricas, mas
mais precisamente em defesas que têm a ver com questões pú-
blicas tópicas. Como tal, nada temos a ver com o movimento
brasileiro ao qual você se refere, também porque entendemos
as escolas como caracterizadas precisamente pela interrupção
da socialização (por meio das suas próprias operações). Que
a escola, a nosso ver, não seja simplesmente um equipamento
político, religioso ou ideológico significa que acarreta em sua
operação a possível interrupção ou distorção do estado de coisas
político ou religioso. Poder-se-ia mesmo tentar dar um passo a
mais. Se a escola mesma é de fato uma intervenção política na
sociedade – o arranjo da aprendizagem em termos de liberdade,
igualdade, revelação do mundo –, então poderia ser interessante
explorar as responsabilidades que a existência da escola impõe
para o lado de fora. Permita-nos dar um exemplo. Se a escola é
de fato o lugar e tempo em que se oferecem à geração vindoura
as oportunidades de renovar a sociedade através da descoberta
do mundo, a escola espera que a sociedade, de algum modo,
investigue a si própria em vista de que gramáticas (relacionadas
à língua, tecnologia, economia...) poderiam ser colocadas sobre
a mesa nas escolas, mas também impõe questões sobre as frontei-
ras de uma sociedade, etc. As questões que resultam da própria
existência da escola são radicais e abrangentes: de modo parti-
cular, torna a sociedade consciente de si mesma, autorreflexiva,
e, principalmente, interrompe todos os tipos de identificação
na sociedade. E talvez essa intervenção escolar seja decisiva para
que uma sociedade se torne, em primeiro lugar, uma sociedade,

173
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

significando ao mesmo tempo que ela já não tem em suas mãos


sua identidade, fronteiras, língua, cultura e futuro. Poder-se-ia
argumentar que o efeito da intervenção política da escola é que
ela demanda democracia, entendida aqui como um tipo de in-
vestigação e deliberação públicas sobre os bens comuns.
Ademais, a “escola” não é um lugar real nem imaginário.
Nunca há a garantia de sua realidade ou de qualquer redução a
uma ideia apenas. É um modo material particular para reunir
pessoas e coisas em arranjos de espaço/tempo: é uma “coisa”
no velho sentido do qual Heidegger nos lembra: uma questão
de preocupações. Como um meio artificial que tem a ver com
cuidado, com preocupação, com suspensão, deve ser tratada
de modo heterotópico: um lieu sans lieu [um lugar sem lugar]
(Foucault), um lugar que, de certo modo, escapa da ordem
costumeira dos lugares e espaços, embora seja um lugar ou
localização concreta com a sua própria ordem, suas próprias
tecnologias, rituais, modos de falar, e as suas disciplinas cor-
porais e espirituais; apesar de que isso não seja garantia da sua
realidade, que sempre depende de uma relação de preocupação.
Se seguirmos essa linha de entendimento, poderemos dizer que
o pensamento pedagógico aparece com o surgimento da escola
e lida com as suas formas pedagógicas. É em verdade parte da
“história do pensamento”, nos termos de Foucault; “a história
do modo pelo qual as pessoas começam a tomar cuidado de
algo, do modo pelo qual elas se tornam ansiosas sobre isto ou
aquilo” (Foucault, 2004, p. 23). Neste caso, a questão é o
modo de lidar com a chegada dos novos, que, quando concebi-
do em termos de iniciação ou socialização, poderia mostrar-se
como um “campo de experiência não problematizado, ou um
conjunto de práticas, que seriam aceitas sem questionamento,
que seriam familiares e ‘silenciosas’, fora de discussão”. Mas em
certo ponto se torna “um problema, levanta discussão e debate,
incita novas reações e induz a uma crise no comportamento

174
Sobre a escola que defendemos

silencioso anterior, nos hábitos, práticas e instituições” (p. 23),


e, em nosso caso, leva ao surgimento da “escola/educação” e
ao pensamento educacional.

Referências
FOUCAULT, M. Fearless Speech. In: RABINOW, P; ROSE, N. (Eds.).
The Essential Foucault: Selections from the Essential Works of Foucault, 1954-
1958. New York: New Press, 2004.
RABINOW, P.; ROSE, N. Foucault Today. In: RABINOW, P; ROSE, N.
(Eds.). The Essential Foucault: Selections from the Essential Works of Foucault,
1954-1958. New York: New Press, 2004. v. VII-XXXV.

175
Skholé e igualdade

Maximiliano Valerio López, Jan Masschelein,


Maarten Simons

M. L.: A grande maioria dos aqui presentes acompanhamos


com profundo entusiasmo a publicação de um livro como Em
defesa da escola, e a realização deste seminário é mostra disso. Por
essa razão sinto-me honrado e profundamente agradecido pela
oportunidade de pensar junto a Jan Masschelein e todos os aqui
presentes, nas trilhas abertas por esse instigante livro.
Em defesa da escola propõe uma reflexão sobre a escola
pública contemporânea a partir do que considera ser seu sen-
tido original, realizando assim o que poderíamos denominar
uma análise arquetípica. Lembremos que a palavra grega arché
significa ao mesmo tempo origem e destino, e nesse sentido
um arquétipo pode ser compreendido como uma forma que,
estando na origem, se mantém, no entanto, sempre atuante.
Em outras palavras, um arquétipo é uma forma primordial
que jamais perde sua atualidade. Segundo a tese levantada no
livro, o que está na origem da escola contemporânea, e até hoje
permite reconhecê-la, é uma forma-escola, fundada na Grécia,
em finais do período clássico, na qual é possível encontrar um
vínculo indissolúvel entre skholé (ócio) e igualdade.
Na minha nota à margem, gostaria de levantar a hipótese
de que a escola, e em especial o vínculo entre skholé e igual-
dade que a constitui, não pode ser cabalmente compreendida

177
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

a partir de uma forma-escola arquetípica, mas que, em lugar


disso, se faz necessário empreender uma análise arqueológica,
que busque distinguir, cuidadosamente, os estratos que, ao
longo do tempo, foram se sedimentando até chegar a consti-
tuir a forma atual. Nesse sentido, procurarei esboçar a seguir
uma análise estratigráfica, distinguindo três camadas: a escola
antiga, a escola moderna e a escola contemporânea. Esta análise
procura mostrar que a forma-escola da qual se fala no livro,
entendida como lugar de possibilidade, presença, indetermina-
ção e igualdade, não é uma questão grega, mas contemporânea
e, embora recolha elementos da Antiguidade, de modo algum
poderia ter sido pensada antes da Segunda Guerra Mundial.

A escola antiga
A skholé grega, isto é, o ócio, define o modo de vida
dos homes livres; dos iguais. A escola antiga nasce como um
aprofundamento e uma radicalização desse modo de vida. No
seu artigo “Escola, produção e igualdade” (1988), Rancière o
refere da seguinte maneira:
A skholé grega separa dois usos do tempo: o uso daqueles
a quem a obrigação do serviço e da produção deixa, por
definição, tempo para fazer outras coisas, e o uso daqueles
que têm tempo, isto é, daqueles que estão dispensados das
exigências do trabalho. Entre estes, alguns aumentam
ainda essa disponibilidade sacrificando, tanto quanto seja
possível, os privilégios e deveres de sua condição ao puro
prazer de aprender. Se a skholé define o modo de vida dos
iguais, esses “escolares” da Academia, do Liceu, do Pórtico
ou do Jardim são os iguais por excelência.
No mundo grego, igualdade, liberdade e tempo livre são
conceitos quase equivalentes e juntos definem o modo de vida
do cidadão grego. Mas esse modo de vida necessita e pressupõe

178
Skholé e igualdade

outro, antagônico e complementar: o modo de vida dos escra-


vos. Em outras palavras, os antigos gregos jamais se depararam
com aquilo que nós, contemporâneos, denominamos igualdade,
pois a igualdade grega não era, à diferença da nossa, pensada
em termos de igualdade universal, mas como uma característica
dos bem-nascidos e, como tal, tinha sempre como referência
necessária o mundo dos escravos e dos bárbaros. Essa diferença
entre os livres e os escravos, os gregos e os bárbaros, não era
uma diferença de grau, mas de natureza e, portanto, constituía
uma fronteira infranqueável. Dito de outro modo, a escola
grega jamais foi concebida como um dispositivo civilizatório.
A Antiguidade Clássica não conhecia a sutil tecnologia social
que faz da escola um mecanismo de incorporação do outro.
Um escravo não se podia fazer grego estudando e um grego
não era tal em virtude de sua escolaridade, mas de seu nasci-
mento. A cidade-estado grega, onde os livres se governavam a
si mesmos, por meio de uma deliberação pública, era também
uma sociedade fechada, onde ser livre, igual e gozar de ócio
eram condições herdadas, não adquiridas. Por isso, a igualdade
no mundo clássico é uma condição, um ponto de partida e não
algo que precisa ser alcançado.
Nossas atuais democracias e, com elas, a escola pública
contemporânea, recebem do mundo grego essa dupla heran-
ça, de um lado, a construção de um ambiente escolástico e
a possibilidade de um governo de iguais, de outro, a divisão
estrutural entre os escravos e os livres, entre os bárbaros e os
civilizados, entre aqueles que passam sua vida submetidos ao
império da necessidade produtiva e aqueles, iguais entre si,
liberados da necessidade do trabalho.
Na passagem do mundo clássico ao helenismo, a pólis grega
vai sendo gradualmente substituída pela metrópole imperial,
cuja figura mais emblemática é a cosmopolita Alexandria. Essa
cidade era habitada por gregos de todas as procedências, possuía

179
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

um bairro egípcio e outro judeu. Essa pluralidade de culturas,


convivendo de modo relativamente tolerante, se estendeu de
certo modo no Império Romano, mas não será senão até o
surgimento do cristianismo, tornado religião oficial no século
IV, que aparecerá de modo explícito a ideia de uma igualdade
universal. Jamais coincidiram, num mesmo período histórico,
a democracia direta da pólis grega e a ideia de igualdade univer-
sal. De fato, como relata Ivan Illich (2008, p. 58), somente na
Baixa Antiguidade, com a Igreja e o mecanismo do batismo, o
estrangeiro se tornou alguém que se tinha que acolher porque
se necessitava dele. Essa visão do estrangeiro “a cargo” se tornou
constitutiva da sociedade ocidental, e sem essa visão universa-
lista para o mundo exterior, o que hoje chamamos Ocidente
e, sobretudo, aquilo que denominamos escola pública, jamais
teria existido.

A escola moderna
Um dos episódios mais significativos em relação à uni-
versalização da noção de igualdade encontramos nos inícios
da Modernidade, na chamada “Polêmica dos Naturais”, em
que, num gesto curioso e sem precedentes na história oci-
dental, a Espanha, a primeira potência colonial moderna, se
lançou à tarefa de discutir, publicamente, a legitimidade de
seu projeto colonial.
A Junta de Valladolid foi apenas o momento mais emblemá-
tico de uma discussão desenvolvida desde inícios da conquista, e
produziu grande número de documentos jurídicos e filosóficos,
entre os quais podemos citar as Bulas Alexandrinas (um conjun-
to de leis promulgadas pelo Papa Alexandre VI, da valenciana
família Bórgia, em 1493, que estabelecia o direito da Espanha
sobre as novas terras descobertas), o Tratado de Tordesilhas (assinado
entre a Espanha e Portugal, em 1494, que repartia as zonas de

180
Skholé e igualdade

navegação do Atlântico e de conquista do Novo Mundo), a Junta


de Burgos (protagonizada por um conjunto de teólogos e juristas
que, em 1512, ficaram responsáveis pela produção do primeiro
corpus legal voltado a organizar a conquista), a Bula Sublimis Deus
(promulgada pelo Papa Paulo III, em 1537, que reconheceu a
humanidade dos naturais e seu direito à liberdade e à propriedade,
assim como a conveniência de lhes pregar a fé católica), e a citada
Junta de Valladolid ou Polémica de los Naturales (celebrada no
ano de 1550 e 1551, no Colegio de San Gregorio de Valladolid,
entre o teólogo dominicano Ginés de Sepúlveda e o também
padre dominicano e bispo de Chiapas Bartolomeu de Las Casas,
frente a um corpo de especialistas encarregados de julgar os
méritos dos argumentos expostos). Cabe mencionar também
as obras de eminentes padres dominicanos da Universidad de
Salamanca, como Francisco de Vitoria e Domingo de Soto, que
contribuíram para forjar os princípios políticos e jurídicos do
Estado moderno. Esses debates, se comparados com o processo
de constituição de qualquer outro império, resultam sem dúvida
algo excepcional.
A Polêmica dos Naturais não tinha por objeto determinar
se os indígenas americanos eram dotados de uma alma humana,
dado que isso tinha sido resolvido pela Bula Sublimis Deus, nem
afirmar a legitimidade da conquista, já que a Junta de Burgos
tinha estabelecido as condições jurídicas de uma guerra justa
contra os indígenas americanos. O objetivo declarado do debate
foi estabelecer as bases jurídicas e teológicas que permitissem
orientar os procedimentos de conquista e ocupação das Índias.
A discussão se organizou em torno das categorias de igualdade e
desigualdade que, como o assinala Todorov (2003, p. 211-243),
foram as categorias que orientaram toda a discussão durante a
Conquista da América.
No debate se contrapunham duas doutrinas. A primeira
(baseada em Aristóteles e representada no debate por Ginés de

181
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Sepúlveda), concebia a desigualdade como condição natural da


sociedade humana e defendia a inferioridade dos indígenas; a
segunda (representada por Bartolomeu de Las Casas), apelando
ao universalismo cristão, afirmava ser a igualdade o estado
natural. Como é bem conhecido, o debate se encerra sem
um veredito conclusivo e ambos os contendentes são declara-
dos vencedores. Contudo, no teor das duas argumentações, é
possível entrever o esboço de uma nova tecnologia social que
permitirá tornar aceitável a ideia de igualdade universal num
mundo desigual.
As duas posições doutrinárias acabam por se conciliar numa
imagem do Outro que o apresenta como um ser carente: para
Sepúlveda carecia de cultura, para Las Casas carecia de maldade.
Mas seja na forma do bom ou do mau selvagem, o indígena foi
definido como um ser imaturo que precisava ser tutelado. A
igualdade não é então negada, mas “suspendida” num infinito
“não ser ainda”. Ela é prometida como recompensa ao final de
um longo caminho de aperfeiçoamento cultural. A igualdade
deixa de ser então uma condição dos bem-nascidos e passa a ser
oferecida a todos na forma de uma promessa.
A escola moderna nasce com essa sutil operação que permite
organizar a conquista como uma empresa pedagógica. Num
primeiro momento, na forma de evangelização, e, num segundo
momento, na forma de processo civilizatório. Tal dispositivo
permitiu que a desigualdade se tornasse não só tolerável, mas
também produtiva no esquema colonial moderno.
A escola antiga se organizava em torno da fronteira entre
livres e escravos, gregos e bárbaros, como um dispositivo de
separação do tempo, os espaços e as ocupações. Ao invés disso,
a escola moderna fez dessa fronteira uma passagem intermi-
nável, uma promessa jamais realizada. Portanto, o que define
a forma-escola moderna não é a igualdade, mas a promessa
de igualdade.

182
Skholé e igualdade

A escola contemporânea
A escola moderna é, essencialmente, um lugar de passagem,
uma ponte que leva da barbárie à civilização, da ignorância ao
saber, da inferioridade à igualdade. Essa segunda forma-escola
chegou ao seu fim na primeira metade do século XX, quando
a ideia de um processo civilizatório se tornou insustentável.
As duas guerras mundiais fizeram a Europa mergulhar num
profundo sentimento de derrota, e esse clima espiritual, que
podemos perceber nitidamente em textos como Experiência e
pobreza, de Benjamin, ou na Carta sobre o humanismo, de Hei-
degger, abriu os espíritos de forma a poderem assumir uma
derrota muito mais vasta que, desde o século XIX, vinha
corroendo os pilares da Modernidade. No campo geopolítico,
evidenciava-se a perda da hegemonia mundial europeia frente
a potências emergentes como os Estados Unidos, a Rússia e a
China; no campo econômico, ficavam cada vez mais visíveis
as contradições e inconsistências do sistema capitalista; nas
ciências físico-naturais, se espalhava um forte sentimento de
desconfiança quanto à possibilidades de estas ciências brindarem
um conhecimento certo da realidade; na psicologia, tornava-se
manifesta a tremenda influência que as forças incontroláveis
da mente têm sobre a consciência e a conduta dos indivíduos;
nas artes, existia uma efervescência que não fazia mais do que
confirmar a perda das referências tradicionais em relação aos
modos de produzir e dar valor e sentido às obras artísticas. Esse
cenário acabou por desmontar completamente a ideia de uma
cultura de referência que, outrora, funcionou como horizonte
civilizatório. Por outro lado, no domínio moral, não foram os
bárbaros, mas a culta Alemanha que revelou, no final da Se-
gunda Guerra, uma crueldade inusitada. Diante desse quadro,
a simples ideia de um processo civilizatório se tornou obscena
aos olhos da própria Europa.

183
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Embora a escola contemporânea continue a se apresentar


como um lugar de passagem, a verdade é que essa passagem leva
agora para lugar nenhum. A escola se tornou, irremediavel-
mente, um meio sem finalidade. Isso nos confronta novamente
com o problema da igualdade, mas desta vez de uma forma
inédita. A escola atual não é mais um caminho para atingir
uma igualdade futura, mas um lugar onde estar. É precisamente
esse modo particular de estar na escola o que possui hoje um
valor político.
A escola grega fazia da igualdade uma condição de parti-
da, mas se tratava de uma igualdade restrita, que pressupunha
uma sociedade de castas; a escola moderna assumiu a ideia de
uma igualdade universal, mas postergou indefinidamente essa
igualdade por meio da promessa civilizatória; hoje, abre-se a
possibilidade de pensar a escola como um lugar de igualdade,
desta vez uma igualdade universal, sem promessas dilatórias.
Um lugar onde a igualdade universal seja pensada como uma
condição e não como uma meta.
No entanto, é verdade que, frente ao desmoronamento
do esquema civilizatório da Modernidade, a sociedade con-
temporânea apresenta diferentes reações. Acredito que, em
termos gerais, é possível reconhecer hoje três tipos: a primeira
consiste na tentativa de prolongar o mecanismo civilizatório
a partir de novas promessas; a segunda consiste na renúncia
à igualdade universal e na afirmação da igualdade restrita; a
terceira e última consiste em assumir a igualdade universal
desatrelando-a da ideia de progressão ou desenvolvimento.
Um exemplo do primeiro tipo de reação se encontra na
tentativa de substituir a antiga ideia de “processo civilizatório”
pela de “desenvolvimento” e, assim, salvar o sentido prospectivo
da escola, transferindo a ideia de perfectibilidade para o plano
social e econômico. A antiga promessa civilizatória é traduzida
então como promessa de desenvolvimento, e a antiga distinção

184
Skholé e igualdade

entre civilizados e bárbaros é substituída pela distinção entre


desenvolvidos e subdesenvolvidos. Nessa perspectiva, a educação
deixa de ser uma questão política e se transforma numa ques-
tão social. Isso quer dizer que a escola pública não é concebida
como o lugar de todos (o lugar da res publica), mas como um
lugar onde os desiguais, aqueles que estão excluídos do mundo
do bem-estar e do consumo, poderão encontrar as ferramentas
para, algum dia, conquistar um lugar entre os iguais. A escola se
torna assim um mecanismo de ascensão social, numa sociedade
economicamente hierarquizada. Mas basta tomar um pouco de
distância para perceber que a ideia de uma melhoria social pela
via do acesso ao consumo não passa de uma ilusão enganosa,
porque o que impulsiona o consumo não é outra coisa senão a
pura diferença entre os que podem consumir e os que não podem
fazê-lo. Sem a renovação contínua dessa diferença o consumo
não se produziria. O acesso massivo a qualquer bem de consumo,
incluída a educação, faz diminuir, automaticamente, o valor e a
procura daquele bem. Em outras palavras, o shopping se alimenta
da leve frustração que, constantemente, experimenta aquele
que o frequenta. Dessa maneira, a igualdade fica mais uma vez
suspensa numa promessa infinita, a promessa de um contínuo
progresso pessoal numa ordem social desigual.
O segundo tipo de reação, que consiste em renunciar à
igualdade universal retomando a ideia de uma igualdade res-
trita, encontramos na ideologia meritocrática, tão difundida
em nossas sociedades contemporâneas. Essa atitude consiste
em afirmar, como o fizera Ginés de Sepúlveda em inícios do
século XVI, que o estado natural de uma sociedade humana
é o estado de desigualdade, e, portanto, não faz sentido se
empenhar em encontrar caminhos para a efetivação de uma
igualdade universal, pois tal tarefa seria insensata, o mais ra-
zoável será então desenvolver mecanismos para definir uma
desigualdade justa. Nesse caso, a escola é compreendida como

185
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

uma instituição capaz de fornecer os critérios e mecanismos


que permitem produzir e reconhecer dito mérito, colocando
assim, em primeiro plano, a função classificatória da escola,
de modo tal que o grau de escolaridade sirva como critério de
distribuição dos lugares sociais.
Por último, existe uma terceira atitude frente às novas
condições, que consiste em entender a escola como lugar de
igualdade universal, desvinculando-a da temporalidade pro-
gressiva à qual a submeteu a época moderna. Os modernos
interpretaram a inferioridade como imaturidade e a superio-
ridade como maturidade, e fizeram do problema político da
igualdade um problema de desenvolvimento ou de amadureci-
mento. Mas os indígenas americanos não eram crianças a serem
educadas, eram um povo submetido por outro. O problema
jamais foi educativo, foi sempre político. Os pobres não são
imaturos, simplesmente fazem parte de uma sociedade injusta.
O problema político atual não consiste em fazer com que os
pobres amadureçam, mas em mudar essa ordem social injusta.
Fazer da injustiça um problema evolutivo equivale a se furtar
à discussão política. Para pensar o sentido político da escola
atual é necessário desatrelar a ideia de igualdade da ideia de
desenvolvimento.
A escola pública é o locus privilegiado para o que podería-
mos denominar um prazer estudioso ou um jogo sério, no qual
a vida adulta conserva algo da livre experimentação própria do
mundo infantil. Na base de toda atividade filosófica, científica,
artística ou de modo geral criadora, opera sempre um “como
se”, um “fazer de conta que”, onde as coisas são libertadas de
seu sentido habitual para se abrirem a sentidos possíveis. No
universo escolar as coisas, os procedimentos e as relações são,
de certo modo, libertados de seu caráter de meios úteis e trans-
formados em puros meios sem finalidade. Essa suspensão do
sentido habitual das coisas, esse estranhamento do mundo, está

186
Skholé e igualdade

na base de todo exercício escolar e também de todo ato lúdico,


intelectual ou poético. A escola é um lugar de possibilidade,
não um lugar de futuro. Foi a Modernidade que submeteu a
possibilidade ao futuro, mas o possível não é necessariamente
projetivo. Se a escola é um lugar de possibilidade, não o é por-
que fornece aos estudantes ferramentas para uma vida vindoura,
mas porque, em cada um de seus gestos, interrompe o sentido
habitual do mundo e reapresenta esse mesmo mundo como um
lugar de possibilidade, como algo ao mesmo tempo disponível
e indeterminado. Nesse sentido a escola se apresenta como uma
clareira, um espaço público, separado das urgências do mundo
produtivo, onde a sociedade pode se relacionar consigo mesma,
sem as urgências nem demandas da vida cotidiana. Nisso con-
siste seu valor político, em reaprender o mundo sob o signo da
possibilidade.
O livro de Jan Masschelein e Maarten Simons, que aqui
comentamos, se inscreve, em termos gerais, nessa última pers-
pectiva e fornece importantes elementos para pensar o lugar e
o sentido político da escola pública contemporânea, para além
da promessa civilizatória ou desenvolvimentista.

Referências
MASSCHELEIN J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública.
Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte:Autêntica, 2013. (Coleção
Educação: experiência e sentido.)
RANCIÈRE, J. Ecole, production, égalité. In: L´école de la démocratie.
Edilig: Fondation Diderot, 1988.
TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

J. M. e M. S.: A sugerida arqueologia das formas escolares


abre um campo muito interessante e rico de exploração, e é im-
possível abordar em detalhe possíveis similitudes e diferenças entre

187
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

este tratamento arqueológico e a nossa abordagem arqueológica.


Há um ponto, contudo, que queremos enfatizar. A arqueologia
reconhece que a forma escolar carrega sempre, de algum modo,
a marca da igualdade, mas ela reforça que há diferentes formas
de igualdade e de relação entre igualdade e escola: a igualdade
como uma condição (escola clássica), a igualdade universal como
uma promessa (escola moderna como passagem) e a igualdade
universal como uma condição (a escola contemporânea como
espaço de possibilidades). Assim, a abordagem histórica, arqueoló-
gica, argumenta que não há uma forma escolar única, arquetípica
(datando da Antiguidade grega), mas pelo menos três diferentes
formas escolares, e a que “defendemos” em nosso livro seria na
verdade a forma escolar como um espaço de possibilidades, ou
seja, uma forma escolar moderna que já não está orientada para
a civilização, o progresso social ou o desenvolvimento. Embora
não nos pareça que haja apenas um modo de “formar” a escola
– de fato, a ambição do livro é convidar para a experimentação
com a reinvenção da escola –, o seu principal objetivo é sublinhar
a diferença entre a escola como uma forma muito específica de
aprendizagem, e outros tipos, ou ainda formas, de aprendiza-
gem (como a iniciação, o aprender fazendo, a aprendizagem
pelo exemplo...). A pressuposição básica, que é pedagógica, da
aprendizagem escolar é que é uma questão de prática ou estudo
que não se apoia em um destino (natural ou social) previamente
dado. Esse é um entendimento pedagógico de liberdade, e rela-
cionado a ele há um entendimento pedagógico de igualdade. Não
é uma liberdade política (em relação ao poder ou à autoridade),
nem jurídica (em termos de direitos), nem ainda uma liberdade
econômica (no sentido da liberdade de escolha, por exemplo). O
entendimento pedagógico da liberdade significa simplesmente
que os seres humanos não têm um destino natural ou social
dado, e portanto são capazes de formar-se a si mesmos e de dar
direção ao seu destino. A igualdade em termos pedagógicos não

188
Skholé e igualdade

é o mesmo que a igualdade social (ser igual ou tornar igual em


termos sociais, culturais, econômicos, nacionais...), não é uma
liberdade jurídica (todos são iguais perante a lei, e todos devem
ser tratados de igual forma de acordo com a lei), e não consiste
em igualdade de oportunidades ou resultados (por exemplo,
tratar ou compensar a desigualdade e levar cada um ao mesmo
ponto de partida, ou ajudar cada um a passar uma linha final). A
igualdade pedagógica tem um duplo sentido: admitir que cada
um como estudante é capaz de aprender (e estudar/exercitar-se)
e admitir que há uma matéria e assunto escolar comum – a fim
de ser capaz de renovar o mundo – para cada um dos estudantes.
A escola, então, é a materialização de ambas essas pressuposições
pedagógicas, ou, para reformular essa afirmação: a escola é a ma-
terialização da crença de que “cada um pode aprender qualquer
coisa”, isto é, não é nem “naturalmente” definido o que alguém
pode aprender, nem o que alguém tem que aprender. É, por assim
dizer, uma crença utópica que subjaz à escola. E uma vez que
esta é a crença ou pressuposição subjacente, não faz sentido falar
de uma escola utópica. Ao contrário, a escola é a materialização
dessa crença utópica.
A nosso ver, as três formas escolares introduzidas na ar-
queologia são de algum modo baseadas em um entendimento
social ou político de igualdade (e não de liberdade), ou, pelo
menos, em um entendimento particular, contextualizado, de
igualdade, e não em um entendimento de igualdade em termos
pedagógicos. Como consequência, essas formas escolares já
são “instrumentalizadas” ou “modeladas” com base nas con-
cepções sociais e políticas de igualdade que prevaleceram em
cada período histórico: a escola como modelo da pólis grega (e
aqui excluindo os escravos, etc.), a escola, incluindo também o
Estado, como um instrumento para obter igualdade universal
ou contribuir para o progresso social e para a emancipação so-
cial (e daí o foco nas condições intelectuais, sociais e culturais

189
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

desiguais nas escolas) e a escola como um modelo de um


mundo global (e aqui um espaço para se tornar socializado na
lida com possibilidades abertas). A partir do nosso argumento
morfológico (sem defender que esta é a única abordagem verda-
deira), não falaríamos sobre as três formas escolares, mas sobre
as três principais (e também mais importantes) tendências de
neutralizar ou domesticar a escola. Não três formas escolares,
mas modos de des-formar, ou seja, de des-escolarizar a escola.
E é des-escolarizador porque entendimentos pedagógicos de
liberdade e igualdade são substituídos (e daí a “modelagem”)
ou subordinados (e daí a “instrumentalização”) por entendi-
mentos sociais.
Se as reflexões anteriores fazem algum sentido, pensamos
que é importante determo-nos diante da descrição da forma
escolar contemporânea que é proposta no texto de Maxi-
miliano López e que é argumentada para se parecer com a
escola conforme defendida em nosso pequeno livro: “a escola
se apresenta como uma clareira, um espaço público, separado
das urgências do mundo produtivo, onde a sociedade pode se
relacionar consigo mesma, sem as urgências nem demandas da
vida cotidiana. Nisso consiste seu valor político, em reapren-
der o mundo sob o signo da possibilidade”. De fato, isso se
aproxima do nosso próprio entendimento; contudo, queremos
reformular duas breves reflexões. Em nosso entendimento, a
escola não consiste apenas em “possibilidades”, mas na expe-
riência de ser capaz. Aqui o aspecto da descoberta de mundo
é crucial, significando que a aprendizagem escolar acontece
sempre no confronto com algo de fora e visando a relacionar
com o mundo. Há sempre um assunto envolvido, se não a es-
cola não permite – como Hannah Arendt também enfatiza – à
geração vindoura experimentar a novidade e se tornar a nova
geração. Cuidar apenas do aspecto das possibilidades significaria
que na escola nada é colocado sobre a mesa (e transformaria

190
Skholé e igualdade

a aprendizagem em um tipo de processo criativo) ou tudo é


(ou pode ser) colocado sobre a mesa (como um tipo de recur-
so de aprendizagem, e transformaria a aprendizagem em um
processo produtivo). Nesse sentido, a escola não consiste em
desenvolvimento, mas, por outro lado, pensamos que um tipo
específico de futuro está em jogo. Gostaríamos de reservar o
conceito de “preparação” para esse modo específico de abrir
futuro que é tornado possível pela escola. Em segundo lugar,
pensamos mesmo que esse foco nas possibilidades se aproxima
do modo pelo qual as escolas estão sendo organizadas hoje, mas
para nós isso é sinal mais do des-escolarizar do que do fazer a
escola. Hoje, parece haver a tendência de transformar a escola
em laboratórios criativos, colocar a criatividade (em sentido
artístico e econômico) como papel central, e transformar a es-
cola em uma fábrica para explorar as forças criativas. Torna-se
um lugar para treinar ou ser socializado como – o que Jorge
Larrosa chamaria de – “fazedores”. Já não é a fábrica industrial
nem a domesticação moderna da escola em termos industriais,
mas o modelo do fab-lab, em que aprender, fazer, planejar e o
empreendedorismo se tornam difíceis de distinguir. A liberdade
e a igualdade de criatividade de possibilidade e a liberdade e
igualdade que caracterizam o fab-lab são econômicas e, até certo
ponto, artísticas, e a nosso ver são diferentes de uma concepção
pedagógica de igualdade e liberdade.
Permita-nos concluir retornando à questão de saber se
o nosso conceito de escola é um arquétipo. Para nós, essa
questão é na verdade acerca daquilo em que consiste a teoria
educacional ou a teoria pedagógica. E é, temos que admitir,
em grande medida ainda uma questão aberta. A teoria educa-
cional é uma combinação de história, filosofia, teoria política,
etc., aplicadas? Pelo menos não escrevemos nosso livro a partir
dessa pressuposição. Nossa referência à Antiguidade grega,
por exemplo, não foi para fazer uma defesa histórica ou para

191
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

mobilizar fatos históricos para justificar nosso conceito de escola


(ver também a resposta aos comentários de Walter Kohan no
capítulo “Sobre a escola que defendemos”, neste livro). Nossa
tentativa foi articular a aprendizagem escolar como uma forma
específica, e com vistas nessa tentativa nós des-historicizamos
a história (ou suspendemos o tempo cronológico) e tentamos
fazer coisas diferentes conversarem entre si. É uma tentativa de
abordar a escola como um evento, que segue o que Foucault
quer dizer com “événementialisation”, e portanto permite que
algo apareça na sua singularidade (Foucault, 1978/2001, p.
842). Nesse sentido, a escola como singularidade acontece em
muitas ocasiões, que poderiam ser vistas no mesmo plano.
Aproxima-se do que Michel Serres (1995) sugere: que embora
algumas estrelas no céu estejam mais distantes que outras, do
mesmo modo alguns eventos estão mais distantes na história
do que outros – ainda assim eles são visíveis no mesmo céu e
podem ser vistos como constelações (de eventos), como signos
do zodíaco.
Esperamos que esteja claro que não nos furtamos às
questões de origens, evoluções ou fundamentos históricos,
mas que queremos fazer outras perguntas, exprimir outras
preocupações e voltar nossa atenção para outras coisas. Talvez
a analogia com a democracia seja útil mais uma vez. Para
nós, o que a democracia significa para o poder e a política é
o que a escola significa para a aprendizagem e a educação. A
democracia foi inventada na Antiguidade grega, o arquétipo
da democracia deve ser encontrado lá? É difícil dizer, e com
certeza é sempre arriscado tomar o seu autoentendimento
como real. Mas talvez essa questão como tal não seja mesmo
importante, porque há outros modos de cuidar da democracia
que não consistem em fazer perguntas sobre origens e fun-
damentos. Não precisamos de uma ciência da democracia,
e talvez devêssemos também fazer objeção a uma ciência da

192
Skholé e igualdade

escola. Mas a nosso ver, a democracia, assim como a escola,


precisa de estudo. E talvez o desenvolvimento de uma teoria
pedagógica seja uma tentativa de exprimir esse cuidado e
essa preocupação.

Referências
FOUCAULT, M.Table ronde du 20 mai 1978. In: DEFERT, D.; EWALD,
F; LAGRANGE, J. (Eds.). Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Gallimard,
1978/2001. p. 839-853. (Coleção Quarto.)
ILLICH, I. Obras reunidas. Volume II. México: Fondo de Cultura Eco-
nómica, 2008.
SERRES, M.; LATOUR, B. Conversations on Science, Culture and Time.
Tradução para o inglês de Roxanne Lapidus. Ann Arbor:The University
of Michigan Press, 1995.

193
A escola: formas, gestos e materialidades

Jorge Larrosa e outros,1 Jan Masschelein, Maarten Simons


Tradução: Fernando Coelho

As perguntas formuladas a seguir foram elaboradas co-


letivamente durante um curso intitulado “A escola: formas,
gestos e materialidades”, ministrado por Jorge Larrosa, em
Florianópolis/SC, no qual lemos e conversamos sobre o livro
Em defesa da escola, de Masschelein e Simons. As nossas notas
à margem, portanto, são 10 perguntas.

A primeira pergunta foi formulada por Juliana de Favere.


(Amor, vocação, professor vocacional)
No livro em Em defesa da escola, capítulo 2, “O que é o
escolar?”, subcapítulo XI, “Uma questão de amor”, os senho-
res argumentam sobre o amor do professor pelo assunto, que
faz com que ele possa colocar os estudantes em contato com a
matéria, possibilitando a atenção e a presença na presença. Em
contraponto, há na sociedade atual uma tentativa de banir as
palavras “amor” e “vocação” da escola, por, comumente, serem

1
Juliana de Favere, Carla Loureiro, Heloise Baurich Vidor, Ana Paula Nunes
Chaves, Karen Christine Rechia, Caroline Jaques Cubas, Priscylla Pohling Paiva,
Rodrigo Mafalda, Geovana Mendonça Lunardi Mendes.

195
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

associadas ao cuidado materno e o “dom divino”. Como a es-


cola pode se liberar das ideias habituais de vocação e amor do
tempo presente e as “encarnar” em seu uso público na escola,
conforme estudo do livro?

J. M. e M. S.: Você tem razão em apontar essas asso-


ciações, e certamente é impossível “decidir-se” sobre o modo
pelo qual tais palavras devem ser entendidas. Podemos apenas
tentar dar a elas certo sabor particular. Primeiramente, não
estamos usando a noção de “vocação”. Embora possamos fazer
referência ao “chamado”, e ainda que nos agrade a ideia que
ele contém de que algo está acontecendo sempre a partir de
fora (um movimento pelo qual algo se move para alguém),
como você notou, a sua associação com o dom divino pare-
ce relacioná-lo a algo que não teria nada que ver com o que
aqueles que seriam “chamados” fazem. Contudo, pensamos que
sempre há também uma preparação (assaz mundana) envolvi-
da para “receber” o evento (o “chamado”), e é por isso que
remetemos também à ideia de “modo de vida”. Não se trata
de uma espera pela chegada de um tipo de chamado vindo de
fora, que transformaria alguém, assim como por um raio de
luz, em um verdadeiro professor. Em nossa opinião, trata-se
de trabalhar sobre si mesmo como professor, cuidando de si
mesmo e da matéria. Não se trata apenas de estar atento, mas
tornar-se atento, ficar atento, cuidar e arranjar tempo não
apenas para os outros, mas também para a sua matéria, para
a leitura e a escrita, para o estudo... E cuidar, por exemplo, é
difícil e desafiador, pois requer disciplina, requer a suspensão de
julgamentos rápidos e recursos imediatos. Tudo isso tem a ver,
de certo modo, com a “formação docente”, talvez no sentido
da preparação do professor. Pense-se também no professor que
está se preparando para um curso. Trata-se muito mais de um
plano de curso que deve ser desenvolvido; de fato, trata-se com

196
A escola: formas, gestos e materialidades

frequência de se preparar como professor, obtendo inspiração,


reunindo pensamento e palavras; e se a preparação de um curso
por meio da escrita tem uma função ou significado, talvez se
trate primordialmente de se preparar como professor, ou o
seu “eu docente”, e não apenas ter um plano fixo que seguir.
E, do mesmo modo, pensamos que a escola tem a ver com a
negação de um destino “natural”, e que não há “natural” para
o professor, e tampouco um “chamado” supranatural que lhe
daria tal destino.
Quanto à noção de amor, mantemos a palavra mas quere-
mos distinguir o amor pedagógico de outras formas, tais como
o amor “materno”. Nas “Primeiras palavras” das suas Cartas a
quem ousa ensinar, Paulo Freire também afirma claramente que
o ensino exige que se desenvolva “um querer bem”, um “querer
bem não só aos outros”, um querer bem ao “próprio processo que
ela [a tarefa do ensinante] implica” e uma “paixão de conhecer”.
Há a necessidade de “uma capacidade forjada, inventada, bem
cuidada de amar”. Contudo, ele acrescenta que uma coisa é certa,
que isso não tem nada a ver com “processo de bem-estar, em
particular uma nutrição paternalista que toma a forma de um
desvelo paternal”, ou com “maternidade”. Professores não são os
pais dos alunos. E também concordamos com Freire quando ele
afirma que a redução de professores a pais minaria o seu papel
político. Porém, não o seguimos quando ele entende o papel
político como “a realização de um projeto político”. Para nós,
o papel político tem a ver com o fato de que o professor pode
contribuir para fazer “a escola” acontecer, ou seja, fazer com que
a ordem social que conecta corpos particulares a capacidades e
posições particulares fique suspensa, incluindo também a ordem
da família, e que filhos e filhas se tornem alunos ou estudantes.
Fazer a escola desse modo é em si mesmo um projeto político,
e as escolas e os professores não têm de seguir um objetivo ou
projeto político externo para tornar a escola política. Também

197
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

pensamos que o amor pedagógico é “um querer bem” (como


diz Freire), um amor que gostaríamos de esclarecer mais e que
é sempre complicado, uma vez que ele é pelo menos duplo: pela
nova geração, mas também por algo, como tentamos explicar
nesse livro.

A segunda pergunta foi formulada por Carla Loureiro.


(Matéria da formação dos professores)
No capítulo 4, os senhores afirmam que o “professor” é
alguém que não tem claramente delineada a “tarefa” da mesma
forma como faz um “profissional” (p. 134), e seguem dizendo
que se os professores como mestres-escolas têm uma arte especial,
essa é a arte de disciplinar (no sentido positivo de focar a atenção)
e apresentar (como trazer para o presente do indicativo ou tornar
público). Essa arte não é uma arte que os professores podem
possuir meramente por meio de conhecimento ou habilidades.
É uma arte incorporada e, assim, uma arte que corresponda a uma
maneira de vida – algo ao qual pode-se referir como um “chama-
do”, uma palavra também usada por artistas ou políticos (p. 135).
Essa falta de clareza na “tarefa” do professor junto à im-
possibilidade de acessar a “arte de disciplinar e apresentar” por
meio do conhecimento ou de habilidade, e as críticas feitas à
pedagogização, psicologização e até à politização da escola nos
levaram a questionar sobre o que seria realmente importante
na formação de professores.
Nesse sentido, gostaríamos de saber: qual é a “matéria”
da formação de professores?

J. M. e M. S.: Primeiramente, pensamos que a “identi-


dade profissional” dos professores está relacionada não somente
com o ensino, mas também com a realização da escola, e a
escola está complicando o ato de ensinar – e isso pela ótima
razão da liberdade e igualdade, conforme tentamos esclarecer

198
A escola: formas, gestos e materialidades

no livro. Portanto, a questão da formação de professores deveria


ser tratada no que diz respeito ao que acontece na educação
escolar nos dias de hoje. Além do estudo de uma “matéria”,
que deveria fazer parte de qualquer formação de professores,
gostaríamos de enfatizar dois elementos. O primeiro deles é
uma gama de equipamentos técnicos e didáticos, procedi-
mentos, práticas que podem ajudar a fazer a escola (despertar
atenção, suspender, profanar...), para desenvolver um certo
ethos (incluindo o duplo amor), um certo modo de falar (uma
certa “língua da escola”2). Eles deveriam permanecer também
como um ingrediente essencial da formação de professores, mas
deveriam ser relacionados ao segundo elemento: o estudo da
escola. Com efeito, fundamentalmente, parece que, devido a
todos os tipos de desenvolvimentos sociais e tecnológicos (por
ex., as TICs), as condições para fazer a escola estão mudando
rapidamente e estão afetando a escola e os seus habitantes de
vários modos. Nesse contexto, parece ainda mais ilusório do
que outrora ser capaz de formular as concretas competências de
ensino que poderiam ser usadas como “resultados de ensino”
para a formação, ou melhor, para o treinamento de professores.
De fato, não sabemos no que se está transformando a educação
escolar sob as condições atuais. Ela deve ser em parte estudada,
em parte reinventada. Portanto, parece que hoje a “formação
de professores” que é conduzida por competências predefinidas,
além de ter uma formação assaz estreita, de fato se torna algo
muito difícil. Sugerimos que a formação de professores seja
reconcebida como um tipo de “estudos da escola” em que os
alunos juntamente com os seus professores estudem o que de
fato está acontecendo com a educação escolar e tentem assim
formular respostas (ou habilidades-resposta) por meio de um
estudo coletivo. Os estudos da escola nesse sentido ainda não

2
Ver texto “A língua da escola: alienante ou emancipadora”, neste livro.

199
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

são uma disciplina estabelecida ou um corpus de conhecimen-


to, mas um campo de estudo que deve ser desenvolvido por
alunos e professores (e ainda por outras pessoas envolvidas)
em conjunto, criando e constituindo juntos o seu “material
de estudo”. Tais estudos exigiriam o uso e o desenvolvimento
ulterior de todos os tipos de metodologias que podem ajudar
a compor esse material e permitir que “o que acontece com
a educação escolar” seja estudado a fim de promover a habi-
lidade-resposta. Portanto, talvez não seja suficiente ampliar o
treinamento de professores para a formação de professores, mas
integrar a formação de professores nos estudos da escola. Pelo
menos se a sociedade estiver preparada para oferecer tempo e
espaço para que os professores se tornem professores de escola,
pois sabemos que a formação de professores, em vista da efi-
ciência e do controle, é frequentemente reduzida ao tipo de
aprendizagem que se adquire fazendo, ou a um processo de
formação orientado a um resultado.

A terceira pergunta foi formulada por


Heloise Baurich Vidor.
(Modo de vida)
No capítulo “Domando o professor”, dentro do item “Pro-
fissionalização”, os senhores discutem o fato de que há um “cha-
mado para uma profissionalização organizada do professor”, que
implicaria a domação e até mesmo a eliminação do amateurismo.
Em função disso, na sequência, os senhores constatam que o tempo
para o amateurismo é “exilado para os entardeceres, as noites, os
fins de semana e os feriados” (p. 145). De modo que “a escola
se torna um negócio e o ensino se torna um trabalho, ao invés
de uma forma de vida”. Em relação a essa “forma de vida”, me
lembrei, por exemplo, de um praticante de yoga. Ser praticante de
yoga não se restringe a fazer uma aula de asanas. Um praticante
desenvolve uma disciplina que implica: diariamente acordar muito

200
A escola: formas, gestos e materialidades

cedo, praticar asanas, meditar, optar por uma alimentação sutil


(vegetariana), cantar mantras, frequentar retiros, entre outras ati-
vidades, o que acaba configurando “um jeito de estar no mundo”.
Nesse sentido, qual seria a forma de vida do professor amateur,
que lhe exigiria a disciplina de todos os dias fazer determinadas
coisas (e não outras)? E que “coisas” seriam essas?

J. M. e M. S.: Esta é uma pergunta verdadeiramente di-


fícil, que não deve ser respondida genericamente, mas de modo
bastante concreto, como você está pedindo. Em um nível geral,
queremos dizer que a profissionalização parece demandar um
modo particular de se relacionar com o que se está fazendo: um
modo calculado e baseado em competência que está buscando,
primeiro que tudo, eficiência e efetividade, e que se relaciona
à capacidade de responder por resultados, enquanto o professor
amador está tentando lidar com várias relações (com o mundo,
com os outros, consigo próprio) de modo apropriado. Contu-
do, este é um assunto complicado. Com efeito, vários autores
apontam para o fato de que vivemos em uma era de capitalismo
cognitivo e criativo em que “estar no trabalho” é um “negócio”
de 24 horas por dia, 7 dias por semana, e no qual “uma forma
de trabalho cognitivo-afetivo que está empregando nossa capa-
cidade intelectual, curiosidade e desejo pelo aprendizado nos faz
acreditar que, de fato, podemos descobrir a nossa liberdade e o
nosso verdadeiro sentido de vida por meio do nosso trabalho”
(Paolantonio, 2017). Nesse contexto de capitalismo criativo
em que trabalho e vida, ser produtivo e ser criativo parecem
confundir-se, deveríamos ser cuidadosos em relação ao modo
pelo qual descrevemos o ensino como “um trabalho” ou como
“um modo de vida”. Parece que o modo de vida de um pro-
fessor deveria incluir exercícios ou práticas que lhe permitem
permanecer surdo às interpelações desse capitalismo criativo,
permitindo ao mesmo tempo uma curiosidade particular (ou

201
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

seja, um modo de cuidar e ser atraído e estar engajado) que tal-


vez pudéssemos chamar melhor de uma “estudiosidade” (numa
referência à diferenciação que, por exemplo, Tomás de Aquino
fez entre studiositas e curiositas, a primeira remetendo à atenção
estudiosa alegremente elevada, a segunda implicando frequente-
mente negligência e obsessão). A studiositas ajuda-nos a focalizar
a nossa atenção nas obrigações (respondendo à altura da matéria
e dos alunos) e assim as “priorizar”. Nessa linha, o modo de
vida do professor poderia ser caracterizado como “studium”, no
sentido de uma “aplicação tenaz da mente”, abrangendo também
o exercício de uma ocupação (ser um professor). Isso implicaria
certas disciplinas da mente e do corpo que sustentam a atenção
estudiosa e a preparação. Muitos exercícios disciplinadores pode-
riam ser imaginados (desde caminhar até copiar à mão ou recitar,
rotinas, etc.) e tentados, mas todos eles acarretam a aceitação de
coerções, limitações e repetições. E todos eles também acarretam
um engajamento corporal. E talvez ensinar tenha a ver sobretudo
com a forma de vida, certamente articulando-se em um modo
específico de vida, mas nela a forma-ção parece ser essencial.
O foco em um “modo de vida” tem a ver frequentemente
com um tipo de cultivo (e mesmo moralização ou politização)
de uma vida formada particularmente: a fixação de uma só
forma, e conduzindo para práticas (de guru) de ensino através
do exemplo ou da aprendizagem pela iniciação. Nem todos os
movimentos new age têm a ver com isso, mas frequentemente vão
nessa direção. Apontar para a forma de vida, e para a formação,
ao contrário, significa que o estudar e a studiositas são essenciais,
não se aprendendo pelo exemplo ou pela iniciação. E a matéria
dessas práticas de estudo, com certeza, sempre tem a ver com
“a gramática da escola” (devendo ser entendida em um sentido
positivo); o ethos, as técnicas, o conteúdo... que permitem que
os professores alcancem certo distanciamento para cuidar de e
estabelecer novos apegos.

202
A escola: formas, gestos e materialidades

A quarta pergunta foi formulada por


Ana Paula Nunes Chaves.
(Rituais)
Ao longo do capítulo 2, “O que é o escolar?”, e, principal-
mente, no tópico IX, “Uma questão de tecnologia (ou praticar,
estudar, disciplina)”, vocês apresentam o que entendem por
tecnologia escolar, métodos de ensino e regras escolares. Muitos
desses elementos estão presentes no escolar desde a Antiguidade
grega e se repetem ao longo dos anos, chegando a sacralizar
ações que desenham uma determinada forma da escola. Nesse
sentido, como alguns elementos são ritualizados e, por vezes,
ressignificados na escola? O abandono e/ou esvaziamento de
determinados rituais impõe uma nova forma para a escola?

J. M. e M. S.: Com efeito, com a questão da tecnologia


fazemos referência a todos os tipos de práticas e métodos usados
para “fazer a escola”, e alguns deles parecem ter estado presentes
na escola desde o começo. De certo modo, poder-se-ia dizer que
essas tecnologias são sempre “vazias” em alguma medida, uma
vez que não foram feitas para alcançar um objetivo muito defi-
nido, mas permitem estudar (cuidar de) e exercer muitas coisas.
Muitas delas, na realidade, poderiam ser chamadas de rituais;
contudo, se são rituais escolares, deveriam ser vistos como um
tipo de rituais profanados (rituais como puro meio sem finalida-
de, para usar as palavras de Agamben). Mas, como você sugere,
alguns deles poderiam ter-se tornado totalmente vazios, per-
dendo também o seu caráter de “meio”. Outro risco é que essas
técnicas e práticas se tornem institucionalizadas. Provavelmente,
a prova ou teste é um bom exemplo, e especialmente quando se
considera como se tornou um instrumento de qualificação ou
normalização. Em vez de questionar radicalmente a prova – e
Foucault, ou pelo menos algumas leituras de Foucault vão nes-
se sentido –, talvez seja mais frutífero olhar para ela como um

203
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

instrumento para a “pressão pedagógica”. Não há aprendizagem


como formação – no sentido da transgressão das fronteiras do
seu mundo da vida – sem um tipo de pressão. Portanto, em vez
de abolir a prova porque ela passou a carregar as marcas insti-
tucionais das normas sociais e das exigências de qualificação, o
que poderia ser mais relevante é a profanação da instituição da
prova, e transformá-la de novo em uma técnica pedagógica. E,
de fato, quando no fim do livro sugerimos reinventar a escola,
estava implícito que, à luz dos desafios hodiernos (por ex., o
digital), deveríamos pensar também sobre as novas tecnologias,
os novos “rituais” com os quais fazer a escola acontecer.

A quinta pergunta foi formulada por


Karen Christine Rechia.
(Caráter público da escola pública)
No livro, vocês dizem “que as necessidades individuais
não ocupam o centro do palco” (p. 82), ou que “o foco é co-
locado em todos e não em uma pessoa em particular” (p. 83),
ou melhor dizendo, que “é típico do escolar que ele envolva
mais de um aluno” (p. 85). Nesse caminho, vocês afirmam
que a aprendizagem, a educação individual, não é uma forma
de educação escolar e enunciam que o professor “é obrigado
a falar e agir publicamente” (p. 85).
Ou seja, a sala de aula é como um lugar público.
Vocês também deixam claro que, ao insistir em falar dos
objetivos e funções da escola, estamos nos referindo ao que
está fora dela, como que a nos dizer que a escola não é uma
extensão da família, da comunidade, do mercado de trabalho,
da sociedade, mas deixando claro que há uma responsabilidade
social no que é ensinado.
Ou seja, a escola como uma instituição pública.
Por fim vocês dizem que o futuro da escola é uma “questão
pública”, que inclusive é o subtítulo do livro. Ou que vocês que-

204
A escola: formas, gestos e materialidades

rem torná-la uma questão pública. Então minha questão é: como


vocês entendem o significado do “público” na escola pública?

J. M. e M. S.: Com efeito, a noção de público talvez precise


de algum esclarecimento. Usamo-la com diferentes significados.
Além do uso da noção de público como sendo idêntico a “Estado”,
que se emprega frequentemente com referência a escolas organi-
zadas e/ou financiadas pelo Estado, a escola é chamada algumas
vezes de pública porque é vista como a arquitetura criada para
capacitar as pessoas a viverem no mundo considerado como a
esfera pública (que está além e fora da escola em si mesma). Aqui,
o mundo é um espaço público, e, para viver nele ou para habitar
essa esfera, as pessoas devem aprender ou apropriar-se de coisas
específicas (por ex., uma língua particular, competências bási-
cas...). Daí que a escola, nessa linha de pensamento, seja concebida
como a “intro-dução” ou o “caminho para dentro” do mundo
como espaço público (e para fora da família como espaço priva-
do). Em outras palavras, a escola aqui tem um papel público no
sentido de dar acesso à esfera pública. Contudo, usamos a noção
de “público” de modos que diferem desses apenas mencionados.
O que é mais importante: usamo-la com um segundo sen-
tido no qual consideramos que a escola seja por si mesma um
espaço (e tempo) público em que as coisas são colocadas em uma
(livre) disposição como “coisas comuns”. Essa entrega do mundo
significa que o mundo, e coisas do mundo, são libertadas, des-
apropriadas (da sua utilidade efetiva, “regular” ou “adulta” no
interior do mundo). Ser livre (para o uso) significa exatamente
que as coisas são feitas públicas, ou seja, elas são comuns. Público
pode ser oposto aqui a privado, pelo menos quando fazer pri-
vado for entendido como abrangendo atividades de apropriação
e proteção que definem antecipadamente posse, uso próprio,
valor ou significado. Essa abordagem particular acarreta, assim,
uma mudança da perspectiva estrutural e institucional acerca

205
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

do que o público é (ou deveria ser) para práticas concretas que


efetivamente fazem algo público. Aqui nos inspiramos em Bruno
Latour – que ecoa a abordagem única de John Dewey sobre o
assunto –, argumentando que o foco é na arte de fazer coisas
públicas e reunir pessoas como um público em torno de algo.
O termo “público” não está se referindo às características de um
espaço ou local (vazio), tampouco à qualidade de um coletivo ou
um bem, mas exprime as (inter)ações entre pessoas concretas e
uma certa questão. Um público é chamado à existência quando
um “nós” é reunido ou associado em torno de uma matéria de
preocupação. Portanto, faz pouco sentido falar sobre “público”
na ausência de uma questão particular e sem que haja uma reu-
nião. Assim, contrário a formas de reunião doméstica, a reunião
pública implica um ato de des-apropriação e envolve práticas que
atuam, encenam e configuram um público em torno de uma
questão concreta. Isso se liga à ideia de conceber o público como
um verbo, como um termo de ação. As escolas não devem ser
concebidas como instituições que já são públicas. E público em
referência a escola não aponta para questões de propriedade,
regulamento ou financiamento. Público, ao contrário, refere-se
ao poder performativo de ações pedagógicas que incluem o mo-
vimento para fazer algo público. Ou, mais precisamente, é em
fazer algo público e reunir uma audiência que alguém se torna
professor diante de um grupo de alunos.
Ademais, quando dizemos que a escola é uma questão
pública queremos dizer que há sempre mais coisas em jogo do
que pode ser levado em conta pela soma dos interesses privados
(incluindo os interesses de comunidades particulares definidas)
ou pela perspectiva da liberdade individual, por um lado, e pela
perspectiva do interesse de um coletivo predefinido, por outro.
Parece que “o público”, se é ainda discutido ou mencionado
de algum modo hoje, refere-se ao que capacita preferências
individuais, ou seja, o domínio público é um tipo de infraes-

206
A escola: formas, gestos e materialidades

trutura formal que permite trajetórias individuais e escolhas


privadas individuais. Ou o público é usado para se referir a
um tipo de interesse coletivo que é – frequentemente através
do currículo – imposto às escolas. Mas, nessas perspectivas, a
escola em si mesma é raramente uma questão em si mesma. É
primordialmente uma ferramenta ou instrumento para servir
esses interesses privados ou públicos. Se queremos transformar
a escola em uma questão pública – ou pelo menos nosso livro é
um pequeno gesto com tal ambição –, trata-se de transformar
a escola em uma questão de preocupação, algo para se prestar
atenção, algo para cuidar. Público, portanto, no sentido de se
referir a algo que transcende preferências e escolhas individuais
e coletivas. Para nós, contudo, ser a escola uma questão públi-
ca significa reconhecer que sempre poderia haver algo (mais
importante) que não pode ser levado em conta a partir de uma
perspectiva individual ou da perspectiva de uma “comunidade”
ou “Estado”, algo a que estamos ligados e em torno de que
vale a pena reunir um público. Portanto, certamente, a noção
de público é essencial para descrever aquilo em que consiste a
escola e para exprimir nossa crença em um futuro da escola.
E com relação a essa crença, provavelmente exprimimos nossa
voz como “pedagogos”, não como professores. É uma voz que
articula nosso amor ou preocupação em relação à escola.

A sexta pergunta foi formulada por


Caroline Jaques Cubas.
(Diferenças culturais, demandas identitárias)
A defesa de vocês da escola como uma questão pública é
bastante respaldada pela noção de igualdade. No item “Uma
questão de igualdade”, essa noção é apresentada através de uma
anedota sobre um professor que conhece seus alunos e se nega
a percebê-los como números. Porém, de forma aparentemente
paradoxal, esse mesmo professor, ainda que reconhecendo as
particularidades e desigualdades que acometem cada um des-

207
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

ses alunos, nega-se em abrir espaço para elas quando em sala


de aula, na medida em que, para ele, a aula deve ser sobre a
matéria e não sobre os alunos.
Na p. 69, vocês afirmam que “os espaços escolares surgem
como o espaço par excellence em que a igualdade para todos é
averiguada”. Afirmam também, a partir de Rancière, que a
igualdade de cada aluno é um ponto de partida prático, que
considera que “todo mundo é capaz de”. Pois bem, pensan-
do a respeito das questões relativas às diferenças culturais e
reconhecimento de demandas identitárias, bastante presentes
nos debates acerca da educação no Brasil (especialmente em
função de reivindicações provenientes dos movimentos sociais),
pergunto: Qual o lugar da diversidade em uma escola que tem
como ponto de partida a igualdade?

J. M. e M. S.: A diversidade poderia desempenhar um


papel em diferentes níveis, mas é importante notar que o ponto
de partida sempre é sobre o que ela significa ou poderia significar
em relação ao “fazer a escola”. Ela pode obviamente significar
a diversidade de matérias, a diversidade de perspectivas quando
se “estuda” uma matéria, a diversidade de tecnologias. Mas
você quer relacioná-la à questão das diferenças e identidades
culturais. Aqui é importante tentar pensar partindo-se do que
chamamos de ponto de vista interno (ou um ponto de vista edu-
cacional), que é o ponto de vista da escola. De costume, o ponto
de partida parece ser a afirmação da diversidade e das diferenças
culturais em termos de identidade, e a questão é, então, como
pode a escola reconhecer essa diversidade e essas diferenças e
desempenhar um papel na luta pela (e pelo reconhecimento da)
identidade ou identidades. Não questionamos a realidade e a im-
portância das diferenças culturais e das identidades relacionadas,
mas temos dúvidas se essas são categorias pertinentes quando se
trata de assuntos escolares. E isto é semelhante à democracia. A

208
A escola: formas, gestos e materialidades

democracia não ignora identidades ou diferenças culturais, mas


na verdadeira ação democrática, quando se trata de liberdade e
igualdade, essas categorias são de algum modo insignificantes
(ou poderiam até minar a democracia quando priorizam a ética,
a justiça socialmente definida e as identidades quase naturalizadas
acima da igualdade e da liberdade).
Queremos lembrar que consideramos que uma das mais
importantes operações da escola é precisamente considerar
cada um como “estudante” ou “aluno”, isto é, suspendendo,
não destruindo, os laços de família e Estado ou de qualquer
comunidade “fechada” ou definida. A escola, se funciona como
escola, oferece a experiência de ser um estudante ou aluno, não
um filho ou filha. Esse não é um tipo de imaginário escolar,
mas uma intervenção material. Essa operação escolar é a marca
visível do nosso reconhecimento de que “nossas” crianças não são
“nossas” crianças. Mui frequentemente abordamos a escola do
ponto de vista da família (por ex., no sentido privado ou no
sentido nacional), como um lugar no qual a busca pela iden-
tidade, o complexo identitário ou a luta entre “pai/Estado” e
“mãe/família” se dão. A escola, então, deixa de ser a escola, e
é transformada em um campo de batalha, uma arena política
ou um espaço protoético de reconhecimento e entendimento
mútuo. Contudo, a escola, em que cada um se torna um/a aluno
como qualquer outro, interrompe essa lógica/luta identitária
dentro de qualquer família (privada ou do Estado). A escola
é uma performatividade plural e corporificada, uma assembleia
de corpos muito concreta 3 que diz: não somos uma família e
não vamos nos tornar uma, somos “singulares” (no plural).
Eles “dizem” sem dizer, como uma encenação corporal: “não

3
Como Butler e Esposito nos lembram: formas corporificadas de reunião
ou assembleia têm um significado que não é discursivo ou é pré-
discursivo – elas têm significado (“dizem” algo) que não deve apenas ser
expresso em palavras.

209
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

somos disponíveis, mas demandamos atenção e olhar”. O que


significa que a iniciação ou a socialização (formas preferidas de
aprendizagem para as [re]uniões familiares) são, de fato, inter-
rompidas ou complicadas, não facilitadas, pela educação que
se dá ao levar as crianças para a escola. Portanto, também em
vez de falar de diversidade, preferimos a noção de pluralidade,
uma pluralidade de singularidades. Ou, se você preferir, é um
comunismo avant la lettre – antes da ordem do discurso, antes
que entre a lógica da identidade e da diferença.
O que propomos é começar a olhar a partir da perspectiva
da escola para a família e para a sociedade (ou o Estado), e não ao
contrário, ou seja, do ponto de vista da família ou da sociedade
para a escola. E quando se inverte essa perspectiva, as reivin-
dicações de identidade e diferença (natural, cultural, social...)
se tornam problemáticas. Claramente, essas reivindicações são
reais, e precisamente por essa razão esforços pedagógicos são
necessários para suspendê-las, pô-las entre parênteses, inter-
rompê-las. A pluralidade da escola não é um estado de coisas
natural, é o resultado de se dirigir a cada um como “apenas um”
(não como representativo), mas não tem a ver com reconhecer
cada “pessoa” como tendo as suas próprias “propriedades” ou
“propriedade”, seus “próprios” talentos, “necessidades” ou
“identidades”. Trata-se de recusar qualquer conexão natural ou
predefinida entre corpos e as suas características “próprias” ou
as capacidades associadas ou atribuídas a eles. A pragmática da
escola é exatamente acerca disto: ela oferece a experiência de
ser sem destino, mas de ser capaz de encontrar o seu próprio
destino. Na escola somos Julie, Maximiliano, Walter, Inés,
Jorge, Clara, Martha... Somos chamados pelo nosso nome, que
de algum modo marca um movimento não genealógico, e não
pelos nossos sobrenomes. Com efeito, pelo menos é assim na
Bélgica, ser chamados pelos nossos sobrenomes na escola sig-
nifica amiúde exatamente reinstalar um tipo de reivindicação

210
A escola: formas, gestos e materialidades

genealógica, reconectar alguém à sua família, e remover os


estudantes da classe ou escola.
Talvez pudéssemos acrescentar uma proposta concreta rela-
cionada a essa questão. De fato, se a escola capacitar a experiência
de serem singulares conjuntamente, de ser um estudante como
qualquer outro, então parece menos importante que as escolas
visem a ter uma população “diversa”; nem todos pertencendo ao
mesmo background, vizinhança, etc., social ou cultural, e assim
evitando criar a ideia de uma “família”, de estar “chez soi” (estar
“em casa”). Esta é uma proposta pedagógica no sentido de que
poderia ajudar a fazer a escola realmente funcionar como uma
escola. Essa criação proposital da “diversidade” não cria a plura-
lidade, e não é concebida para criar um ambiente de socialização
para aprender a viver com as diferenças, mas ajudaria a prevenir
que a escola se transformasse em uma família privada ou nacional.

A sétima pergunta foi formulada por


Priscylla Pohling Paiva.
(Formação, educação, socialização, aprendizagem...)
No seu livro, vocês dizem que a escola não está separada
da sociedade, é onde o mundo é aberto e exposto. “Algo” é
escolhido para se estudar, e esse “algo” começa a fazer parte
do nosso mundo e a nos “formar” (no sentido holandês de
vorming) (p. 47). Essa formação se refere à transformação do
“eu” suspenso em confronto com o mundo para um “novo eu
em relação àquele mundo que vai tomar forma e ser fabricado”
(p. 48). Portanto, “a formação envolve, assim, sair, constante-
mente de si mesmo ou transcender a si mesmo – ir além do seu
próprio mundo da vida por meio da prática e do estudo” (p.
49). Vocês dizem que o “eu” está no processo de ser formado.
Assim, para de fato estarmos nos formando, ao contrário de
aprendendo, é necessário se abrir para o mundo e suspender
nossas subjetividades e nossa história. A nossa pergunta é se a

211
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

formação tem como objetivo a construção do eu. Além disso,


qual seria a formação ideal de um professor?

J. M. e M. S.: Acerca da última pergunta, remetemos a


algumas das respostas previamente dadas às suas perguntas. Em
relação à primeira, a saber, se a formação tem como objetivo
a construção do “eu”, tendemos a responder “não”. Se o “eu”
(I) é entendido como a relação do “eu próprio” (self ) com o
“eu próprio” (self ) em termos de identidade ou identificação,
em nossa opinião a escola certamente não tem a ver com isso.
E por uma simples razão: a escola não está oferecendo algo
com que se identificar ou apresentando algo em relação a que
o aluno é capaz de dizer “eu” (I). Na escola, e se ela funcio-
na como escola, os alunos são expostos ao mundo. Ou, mais
precisamente, alguém é transformado em aluno na relação
com essa revelação do mundo. Essa relação tem a ver com
conhecimento e conhecer, certamente, mas antes de tudo é
uma relação de cuidado e preocupação. Pense na matemática
ou na biologia, ou no mundo dos números e no mundo da
natureza. Na escola não se trata apenas de transmitir conhe-
cimento sobre esses mundos, mas de oferecer à nova geração a
possibilidade de se relacionar ou se apegar a esses mundos, isto
é, envolver-se. Para reformular com outras palavras: trata-se
de o aluno se fazer interessado, criar um inter-esse. Alguém
que se torne interessado por matemática está se apegando ao
mundo dos números, para ele ou ela o mundo da matemática
se torna um assunto de preocupação. E isso é o contrário da
construção da identidade. Na construção da identidade está
envolvida frequentemente a redução do número de apegos, o
sonho de se tornar completamente destacado, dito de alguém
que interiorizou o mundo pelo conhecimento (ou habilidades)
a tal ponto que o mundo já não tem nada de (interessante)
para dizer. É uma matéria que se tornou seu próprio objeto. A

212
A escola: formas, gestos e materialidades

formação escolar, a nosso ver, consiste em tornar-se preocupa-


do e interessado, e portanto em estar cada vez mais apegado.
Em um certo sentido, consiste em tornar-se um cidadão do
mundo, ou mais precisamente, tornar-se “mundial”. Isso não
nega que a escola também envolva a relação do “eu próprio”
(self ) com o “eu próprio” (self ). Mas essa relação não é uma
relação de identificação ou saber, e sim a relação de cuidado
e studiositas. E essa relação de cuidado do “eu próprio” (self )
com o “eu próprio” (self ) é sempre mediada pela relação com
o outro e o mundo. Para resumir: não é preciso ir à escola para
desenvolver conhecimento ou habilidades sobre o mundo, mas
o mundo precisa da escola para “encontrar” alguém que preste
atenção nele, isto é, se torne interessado através do estudo e
do exercício.

A oitava pergunta foi formulada por Rodrigo Mafalda.


(As coisas se tornam reais, realidade e ficção)
A pergunta: Qual é o “real” que a escola apresenta como
matéria?
Pensando a relação ou não entre realidade, ficção, maté-
ria e suspensão, o contexto da pergunta implicou 4 (quatro)
passagens do livro:
a) De forma negativa ao conceito de “ficção”: “Ousamos afir-
mar que essas entidades (sociedade, cultura, mercado de
trabalho), são, acima de tudo, ficcionais” (p. 45).
b) De forma positiva ao conceito “real”: “Ela foi atraída para
dentro do reino animal, tudo se tornou real” (p. 44).
c) De maneira positiva ao conceito de “ficção”: “eu dei à luz
a mim mesmo: um eu, que era um matemático, um eu
que era um historiador, um eu que era um filósofo, um
eu que [...] esquecia um pouco a mim mesmo” (Pennac,
2010, texto da p. 48).

213
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

d) De forma positiva ao conceito de ficção: “Eles eram artistas


em transmitir suas matérias. [...] ‘Como se’ Gi estivesse
ressuscitando a história, o Sr. Bal redescobrindo a mate-
mática e Sócrates falando através do Sr. S” (p. 51 e 52).

Obs.: Enfim, se não estamos falando simplesmente de


materialidades como “simulações”, não seria importante rela-
cionar a “ficção” como central ao conceito de suspensão (con-
ceito central da defesa da escola)? Retirando então a conotação
negativa de “ficção” estabelecida no item (a)? Já que o “real”
aparece de forma positiva no item (b). Na defesa da escola, outra
sugestão: suspender talvez qualquer noção binária, bipolar ou
ordinária do que é real (verdade) e ficção. Pessoalmente, e como
tese, amplio esta problemática a partir de estudos da filosofia
da ficção e da filosofia da educação, com questões em torno da
relação entre metáforas e conceitos na filosofia de Nietzsche.

J. M. e M. S.: Não temos certeza, mas a pergunta


parece interrogar a nossa teoria sobre a ficção, e então sobre
a verdade e o real. A resposta pode desapontar (e soar até
mesmo arrogante), mas não temos tal teoria, pelo menos não
quando escrevemos o livro. Podemos apenas responder com
referência a uma crítica particular da educação escolar que
pretendemos – ou talvez melhor: tentamos – questionar: que
a escola não tem a ver com a vida real e que o aprendizado
escolar é artificial, etc. Nossa posição é: de fato, a escola não
tem a ver com a vida real e o aprendizado escolar é de fato
artificial. Não há nada naturalístico no aprendizado escolar, e
isto é similar à democracia: a democracia não é o estado na-
tural da política que surgiria se você removesse todos os jogos
de poder artificiais. Aprender fazendo ou por imitação talvez
seja o mais próximo que possa assumir uma aprendizagem
natural, e provavelmente esta seja o que está mais longe da

214
A escola: formas, gestos e materialidades

aprendizagem escolar. A aprendizagem escolar, a nosso ver,


consiste em um arranjo que permite tomar distância de algo
para ser capaz de se relacionar com ele, ou apegar-se. E para
que isso aconteça, alguns tipos de visualizações e/ou textu-
alizações – Latour se referiria a elas como “inscrições” – são
necessárias: o alfabeto, os números, a gramática, as fórmulas,
os esquemas... Essas inscrições não devem ser entendidas como
representações de um mundo exterior (seguindo a lógica da
ficção/simulação e realidade), mas como apresentações através
das quais o mundo se torna algo sobre que falar, algo com
que se relacionar, algo que estudar. Não temos que ensinar
aos alunos que a visualização e a textualização do mundo dos
pássaros marinhos em um cartaz escolar não são reais. Nesse
sentido, os alunos sabem muito bem a diferença entre texto/
imagem e o que se chama de realidade. Essas inscrições, con-
tudo, permitem que alguém se relacione com o mundo dos
pássaros marinhos, e é através dessas inscrições que o mundo
dos pássaros marinhos é gramaticalizado e poderia se tornar
interessante. Essas inscrições fazem que se veja e ouça e fazem
que se faça algo, e esta talvez seja a força pedagógica dessas
inscrições: o duplo movimento de tornar atento e revelar o
mundo. Somos todos conscientes de que esse duplo movi-
mento é frequentemente articulado na filosofia (por Kant, por
exemplo, mas claramente por Heidegger) em termos episte-
mológicos, ontológicos ou até mesmo naturalistas. Para nós,
esse duplo movimento é de fato um movimento pedagógico,
ou relacionado a um arranjo particular do tempo, do espaço
e da matéria. E se há algo a ser lido nas entrelinhas do livro
que não esteja articulado e elaborado, é isto: nossa tentativa
de repreender o pensamento e a teoria pedagógica e a filo-
sofia crítica por ignorar o que está em jogo na educação e na
escola, ou por neutralizar as práticas pedagógicas por meio
da epistemologia, da ética e da ontologia.

215
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

A nona pergunta foi formulada por


Geovana Mendonça Lunardi Mendes.
(A escola no mundo pós-alfabético)
Em alguns momentos do livro, temos reflexões sobre as
Tecnologias da Informação e Comunicação como técnicas
escolares que são aquelas “que permitem a atenção por meio
da profanação de algo (suspensão do uso comum desta coisa)
e a apresentação de algo de tal forma que ele possa ser com-
partilhado” (p. 164-165).
Há um destaque também para a compreensão de que ainda
que as TICs permitam tornar os conhecimentos e habilidades
disponíveis de um modo sem precedentes, não necessariamente
temos com isso experiências de compartilhamento voltadas a
“um bem comum”. Como encontramos na p. 165, “nesse sen-
tido, tornar informações, conhecimento e experiência dispo-
níveis não é o mesmo que tornar algo público”. Contribuindo
com essa perspectiva, na conferência tivemos sua afirmação de
que “abrir os códigos do Google” é uma das formas de com-
partilhar o “bem comum” da internet. Nessa direção vocês
perguntam: “Hackear não é uma espécie de encontro frontal
do mundo (pré-)programado e seu desbloqueio? As formas
escolares de hackear são possíveis?”. Assim perguntamos: que
escola é possível num mundo pós-alfabético?

J. M. e M. S.: De certo modo, esta é precisamente


a questão que se coloca diante de nós, e com nosso livro
estamos tentando abrir caminho para pensar sobre ela, para
lidar com ela. Em outras palavras: essa é exatamente a nossa
preocupação como pensadores da educação, uma questão
com a qual devemos nos relacionar. Talvez possamos dizer
algumas coisas, as quais não seriam uma resposta direta à sua
pergunta, mas que parecem importantes em razão dos mo-
dos e direções pelos quais poderíamos buscar respostas. De

216
A escola: formas, gestos e materialidades

fato, se perguntarmos “que escola é possível em um mundo


pós-alfabético?”, parece importante esclarecer, primeira-
mente, o que queremos dizer com “escola” e, em segundo
lugar, quão precisamente a escola é relacionada ao “alfabeto”.
Com nosso livro, tivemos a intenção de contribuir princi-
palmente para a primeira questão e oferecer esclarecimento
do que entendemos pela palavra “escola”. Consideramo-lo
uma tentativa de definir um tipo de “pedra de toque” para a
escola. Uma pedra de toque não é um benchmark que define
os resultados (por ex., competências) que a escola deveria
produzir (isto é, indicador de performance), mas tenta for-
mular características que poderiam avaliar e verificar se algo
é de fato uma escola ou não. Portanto, tentamos identificar
o que poderia ser chamado de operações básicas da escola
(suspensão, etc.), o que também implicou a possibilidade de
fazer uma outra pergunta: “nós” (os adultos) ainda queremos
escolas (paralelamente à pergunta: queremos democracia)? Essa
pergunta é de fato central para nós e a razão também pela
qual o subtítulo do livro afirma que defender a escola é uma
questão pública.
A segunda questão relativa ao alfabeto tem a ver, clara-
mente, com o que torna a escola uma escola. Nossa reposta
preliminar (limitada) seria que o alfabeto permitiu uma pro-
fanação e uma gramaticalização (que é uma externalização
e uma materialização) do discurso, que se tornou disponível
para o estudo e, assim, permitiu tomar certa distância a fim
de se relacionar com ele. Isso transformou o discurso público
de modo específico (como escrito), mas também abriu um
mundo e novas relações possíveis com o mundo. De modo
muito breve e experimentalmente, poderíamos agora dizer
que o ambiente digital (a Internet) parece permitir igualmente
uma profanação e uma gramaticalização que é ainda mais
radical e abrangente (incluindo não somente o nosso dizer,

217
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

mas também o nosso ver e ouvir), do que o oferecido pelo


alfabeto. Contudo, o modo pelo qual o alfabeto efetuou a
emancipação possível também teve a ver com todos os tipos
de práticas (isto é, precisamente as práticas escolares tais como
a repetição, a cópia, a escrita, a leitura em voz alta, etc.) que
criaram a possibilidade de um tratamento atento e coletivo
da língua (como meio, arquivo, memória...), possibilitando
colocar a língua sobre a mesa (não somente usar, fazer ou
transmiti-la, por assim dizer). É muito mais a questão de saber
como poderíamos pensar (um experimento com) práticas que
permitiram fazer a escola com relação ao digital. Na medida
em que o mundo digital é um mundo programado que fun-
ciona por algoritmos, e que a tela e o olhar estão substituindo
o livro e a leitura, as práticas escolares têm que lidar com essas
transformações. Talvez a noção de “alfabetização digital”
seja relevante aqui, apesar de sua óbvia estrutura linguística.
Ademais, a noção de “alfabetização visual” é relevante, pelo
menos por esclarecer que quando a tela se torna um meio
dominante, vivemos em um mundo de imagens. Até mesmo
o texto em uma tela é na realidade uma imagem, e “ler” tex-
tos em websites consiste muitas vezes em olhar, em “captar a
imagem” através da rolagem da página. Para se relacionar com
ou estudar tal texto, não é suficiente passar por seu vocabu-
lário, gramática e questões de intertextualidade e contexto.
Assim, a questão é como é possível certa emancipação em um
mundo visual e programado, ou o que permite um grau ou
tipo de des-programação e des-visualização nos dias de hoje.
É apenas uma hipótese, mas talvez novas formas escolares de
textualização e alfabetização sejam relevantes aqui. Devemos
ter presente que em um mundo textual(izado), muitas práti-
cas escolares contam com técnicas de visualização – ou pelo
menos diagramas para fazer com que texto e imagem, ou o
visual e o dizível/legível, interajam – para estudar o mundo

218
A escola: formas, gestos e materialidades

textual. Estudar um livro, por exemplo, frequentemente


envolvia tomar notas, fazer esquemas, transformar o texto
em imagem, etc., para tomar distância a fim de estabelecer
novas relações. Mesmo o alfabeto, ou a gramática, poder-se-ia
dizer, é uma imagem de uma língua (falada ou escrita). Para
estudar o mundo visual(izado), talvez novas técnicas esco-
lares de textualização sejam necessárias. E se esse é o caso,
as noções de alfabetização visual e digital poderiam ser úteis
em seu sentido estrito.

A décima pergunta foi formulada por Jorge Larrosa.


(Suspensão da definição, e portanto das
regras, da matéria)
Uma das categorias fundamentais do livro é a categoria
de suspensão. Em relação à matéria de estudo, é essencial a
suspensão da sua função (seja econômica, social, política ou de
qualquer outro tipo). E é essa suspensão que libera a matéria,
que permite que ela seja profanada e entregue para o livre uso
das novas gerações.
A nossa pergunta é se o professor, ao entregar a matéria
para o livre jogo dos estudantes, não tem que suspender tam-
bém a definição da matéria, isto é, as regras que determinam os
seus limites, o que ela é... e, portanto, as regras que definem os
modos em que essa matéria pode ser praticada, exercitada, etc.
Um exemplo poderia ser o teatro. Pensemos num professor
que entrega o teatro como matéria de estudo, que libera o teatro
como matéria de prática e exercício. A pergunta então seria se
esse professor não deveria necessariamente suspender qualquer
definição de teatro, qualquer ideia do que o teatro é, qualquer
definição do que pertence e não pertence ao teatro.

J. M. e M. S.: De certo modo concordamos com a sugestão


de que o professor, como professor de escola, suspende a definição

219
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

de teatro, mas deveríamos ser mais precisos acerca do que significa


suspender. Primeiramente, não é tanto o professor que suspende,
mas a suspensão “acontece” por meio de um arranjo particular
no qual o professor toma parte do curso, não sendo ele ou ela,
sozinho, que suspende intencionalmente os contextos efetivos
nos quais o teatro tem um “uso” ou função mais ou menos cla-
ros. Com efeito, trazer o teatro para a sala de aula, apresentá-lo
como um objeto de estudo, é o momento em que ele de fato se
torna algo interessante em si mesmo na sua “suspensão”. Parece
difícil torná-lo um objeto de estudo sem apresentá-lo, o que
provavelmente implica algum tipo de indicação (por exemplo,
aqui você tem um teatro, olhe, isto é um teatro...).
Mas talvez essa questão toque outra, a nosso ver, muito
importante, mas sobre as diferenças entre a escola e a universi-
dade, entre o estudo escolar e o estudo universitário. As escolas
e as universidades são substancialmente diferentes? São elas duas
formas pedagógicas distintas, incluindo diferentes arranjos e
operações? Ou é a universidade um tipo particular e específico
de escola? É meramente uma hipótese a ser mais elaborada e
discutida, mas talvez a escola e a universidade sejam duas for-
mas pedagógicas diferentes, incluindo diferentes operações que
envolvem precisamente algo que é sugerido na questão acima.
O professor de escola coloca algo sobre a mesa, em um duplo
movimento que articula um duplo amor: pelo mundo (por ex.,
o teatro) e pela próxima geração (por ex., para se interessar pelo
teatro). Como tal, poder-se-ia argumentar que na escola o amor
pelo mundo (ou seja, pelo teatro) não é suspenso, porque esse
amor motiva colocar algo sobre a mesa. A consequência é tam-
bém que o professor escolar não é um estudante, pelo menos
no momento em que algo está sendo colocado sobre a mesa. As
operações que definem a universidade não são diferentes? Na
universidade, o amor pelo mundo (pelo teatro, por exemplo) não
é também colocado sobre a mesa, ou seja, aberto para discussão,

220
A escola: formas, gestos e materialidades

para redefinição ou mesmo para um questionamento radical (isto


é, questionar a existência mesma de algo, sendo portanto um
questionamento existencial). O professor em uma universidade
também está provavelmente envolvido no estudo do seu próprio
amor, e assim ele se torna um (eterno) estudante entre todos os
estudantes. A universidade, como forma pedagógica, não consiste
nesse caso tanto em oferecer à próxima geração a chance de se
tornar de fato a nova geração. A universidade não é uma forma
pedagógica intergeracional. Suas operações têm a ver talvez com
a criação ou composição de um (novo) mundo comum. E com
vistas nisso, também o amor pelo mundo (pelo teatro) deveria
ser colocado sobre a mesa, significando também que o professor
vem sentar em redor da mesa de modo similar ao dos (outros)
estudantes. Em outras palavras: a (sala de) aula se torna um(a sala
de) seminário, ou o ensino (chamando a atenção e revelando o
mundo) se torna professar (discurso público que pode ser estu-
dado, contradito e desafiado...). Esta hipótese não se relaciona à
argumentação pela hierarquia entre as escolas e a universidade,
mas à distinção entre dois conjuntos diferente de operações: pre-
parar a próxima geração para o mundo e compor coletivamente
um mundo comum. Em outras palavras: estudar baseando-se em
definições e estudar com vistas a definições comuns.

Referências
FREIRE, P. Teachers as Cultural Workers: Letters to Those Who Dare Teach.
Ed. ampl. Cambridge: West View Press, 2005. (Edição brasileira: FREI-
RE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’Água, 2002.)
PAOLANTONIO, Mario Di. The Malaise of the Soul at Work: The
Drive for Creativity, Self-Actualization and Curiosity in Education.
CONFERENCE OF PHILOSOPHY OF EDUCATION SOCIETY
OF GREAT BRITAIN, 2017, Oxford. Anais... Oxford, 2017.

221
Terceira parte
EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO
SOBRE A ESCOLA
Filmar a escola: teoria da escola

Maximiliano Valerio López

O filme que aqui apresentamos é, simultaneamente, o


meio e o resultado de um exercício filosófico em torno da
escola. Nele se apresentam pequenos lampejos de uma escola
pública municipal, da cidade de Juiz de Fora, no estado brasi-
leiro de Minas Gerais. Talvez o elemento mais chamativo do
filme seja o fato de que essas pequenas porções de vida cotidiana
apareçam nele sem a companhia de qualquer tipo de palavra.
Nenhum depoimento dos pais ou dos estudantes, nenhuma
entrevista com os professores ou diretores, nenhum narrador
que acompanhe e auxilie na interpretação das imagens. Ne-
nhuma música. Apenas o estar das coisas e das pessoas. Apenas
gestos, vozes, objetos, lugares, brilhos, texturas, barulhos e
silêncios cotidianos.
Talvez, essa singular característica do filme se deva a que,
em alguns momentos, nos invade a sensação de que há um ex-
cesso de palavras em torno da escola; dela falam os gestores do
poder público, os jornalistas, os empresários, as ONGs, o cidadão
comum e os especialistas de todo tipo, fala-se dela nas ruas, na
TV, nas rodas de amigos e nos foros internacionais, mas essa
superabundância de palavras, longe de nos ajudar a entender a
natureza da escola, parece tornar cada vez mais difícil enxergá-
la. Sabemos muito sobre a escola, mas saber não é entender, e

225
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

nas sociedades contemporâneas, tão apressadas e vertiginosas,


sabemos cada vez mais e entendemos cada vez menos. Por isso
escolhemos suspender momentaneamente as palavras e nos dar o
tempo de permanecer um pouco na escola, olhando. “Entender”,
no sentido de in-tendere, quer dizer tender para o interior de algo,
e “atender”, no sentido de a-tendere, significa ficar em presença de
algo, na sua proximidade, cuidando-o, mantendo-o em mente,
como quando se atende um doente ou um jardim. Quisemos
então olhar a escola vagarosamente, em silêncio e, por que não
dizê-lo, com certa gentileza. Jamais pensamos em selecionar as
imagens de modo a apresentar uma imagem favorável da escola.
Jamais tentamos usar as imagens como palavras, para construir
um novo discurso acerca dela, não se trata disso. A gentileza à
qual me refiro está no próprio olhar, está no cuidado com o
qual se olha. Pois só se dá tempo e atenção àquilo que se ama
de algum modo.
Poder-se-ia dizer que se trata de um filme realista. Não
porque pretenda constituir-se num retrato fiel da escola, mas
porque se debruça sobre ela de modo paciente e minucioso.
Trata-se de um realismo meticuloso, produto de um olhar, ao
mesmo tempo íntimo e estrangeiro, que se demora nos gestos
cotidianos da vida escolar, sem pretensões explicativas. Não
almejamos a objetividade, mas desejamos, muito mais, abrir um
caminho para o real e tornar possível uma certa presença. Mas,
por que dar a um filme como este o título de Teoria da escola?
A ideia de associar a palavra teoria a um filme desse tipo
não é totalmente arbitrária, pois, na sua origem, a palavra
“teoria” não designa um discurso produzido acerca da reali-
dade, mas um tipo de olhar atento e cuidadoso que permite
que o mundo se revele diante de nós. De fato, a palavra theoría
pertence a uma extensa família de palavras gregas compostas
do prefixo theá (visão), integrada pelo verbo theáomai (que em
grego antigo significa ver, olhar, contemplar; mas cabe assinalar

226
Filmar a escola: teoria da escola

que esse verbo não designa um olhar comum, mas um olhar


cuidadoso e deliberado, capaz de produzir uma experiência
intensa, envolvente, meditativa). Também pertence a essa fa-
mília a palavra theorós (espectador, testemunha, emissário), e a
mesma raiz forma também théatron, da qual deriva nossa palavra
“teatro” e, de fato, segundo numerosas fontes o termo theoreîn
(voz ativa do verbo theáomai) era utilizado frequentemente para
designar a atividade daquele que assiste a uma peça teatral.
De tal modo que, se nos remetermos ao sentido originário da
palavra, o exercício proposto por esse filme pode, legitimamen-
te, ser considerado como um exercício teorético. Mas, claro,
trata-se de uma forma de teoria não representativa, uma teoria
que não se apresenta como um discurso adequado acerca do
mundo, mas que, ao invés disso, busca criar as condições para
que o mundo se deixe ver, se apresente.
A fenomenologia tem nos ensinado que o elemento básico
numa relação de conhecimento não é o sujeito, nem o objeto,
senão o próprio “estar no mundo” e ser afetado por este. Essa
primeira afecção não é ainda o encontro de um sujeito e um
objeto, senão algo anterior, onde as palavras “objetividade” e
“subjetividade” ainda não têm cabimento. Poderíamos dizer
que se trata da experiência de algo que ainda não é um objeto,
mas apenas “algo”. Quando esse algo nos atinge, num primeiro
momento, não temos uma ideia clara daquilo que nos afetou,
nem podemos nomear com exatidão o que sua afecção produz em
nós. É como se nos encontrássemos na antecâmara do sentimento
e do pensamento. O realismo cinematográfico tem explorado
um tipo de imagem, ao mesmo tempo extremamente concreta
e ambígua, que recria no espectador esse sentimento indeter-
minado de “estar aí”, lançado ao mundo, sem poder dizer com
exatidão o que se vê e o que se sente. O olhar cinematográfico
do realismo trabalha como uma espécie de artifício capaz de
dissolver a ideia das coisas para nos confrontar com a coisa num

227
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

estado bruto. Quando uma panela é enquadrada sob certa luz,


durante um determinado tempo, perde sua condição de objeto,
deixa de ser o utensílio que, no dia a dia, quase não vemos, para
passar a ser uma coisa em si mesma. É aí que sua natureza se
revela com especial intensidade; é aí que podemos começar a
enxergar o metal do qual é feita e nos seus amassados e arranhões
podemos entrever sua vida anterior. Libertada de seu caráter de
objeto utilitário, a panela se torna mais concreta, mais material,
mais real, mais presente e, ao mesmo tempo, parece ir além de si
própria e atingir uma condição monumental. É como se, através
da lente, a panela fosse mais propriamente o que é, e, ao mesmo
tempo, conseguisse revelar algo do mundo que cotidianamente
passa despercebido. Eis que o mundo jamais é o que dizemos do
mundo, ele sempre é muito mais, ele sempre é mais diverso e
indeterminado que nosso discurso, ele tem um excesso de reali-
dade, um resto que não conseguimos exaurir. Mas esse mundo
sutil e misterioso que emerge na câmera não é “outro mundo”,
pelo contrário, ele é mais propriamente “este mundo”. Ele é mais
real que o mundo que vivemos habitualmente, e esse excesso de
realidade o percebemos também como potência.
Se o mundo fosse apenas o que nós dizemos do mundo,
ele deixaria de ser a fonte de renovação de nossa existência,
perderia a capacidade de irromper em nossa representação
para lhe dar uma nova vida, uma vida insuspeitada. O real é
sempre passível de ser retomado sob outro olhar. O mundo é
sempre potência de mundo, mundo possível. É precisamente
nesse sentido que o filme pode ser considerado realista, porque
é fiel ao mundo como mistério, como possibilidade.
No discurso habitual acerca da escola, o possível aparece
sempre na forma de projeto, isto é, aparece submetido ao futuro
e, por isso mesmo, transformado numa ilusão que só se tornará
realidade mais tarde. Nesse sentido, dizer que a escola é um lugar
de possibilidade significa dizer que a escola é o meio para criar

228
Filmar a escola: teoria da escola

outra realidade, uma realidade vindoura. Mas o possível não é


necessariamente futurista. A realidade é sempre possibilidade,
porque é em si mesma inesgotável. Por misterioso que pareça, o
real é, ao mesmo tempo, o mais próximo e o mais inatingível. O
mundo está aí, existe de fato, e nós existimos nele, como parte
dele, embora o que nós possamos reter do mundo e de nós mes-
mos seja sempre parcial. O mundo é, exatamente, aquilo que nos
impede de nos fecharmos sobre nós mesmos e nos possuirmos
absolutamente. A realidade é uma ferida que nos lembra, uma e
outra vez, que não somos tudo o que existe, que somos diferentes
do que acreditamos ser, que existir (ex-sistere) significa sustentar-se
em relação a uma exterioridade, significa estar sempre ex-posto
ao que não podemos possuir, inclusive em nós mesmos.
Em grego, realidade se dizia alétheia, e a mesma palavra era
também utilizada para dizer “verdade”. Literalmente, a palavra
alétheia significa o que não está oculto ou esquecido, aquilo
que se faz evidente. Essa ideia de verdade é muito diferente da
ideia de verdade como correspondência entre os enunciados e o
mundo, ou da ideia de verdade lógica, isto é, da verdade como
coerência entre enunciados. Estas últimas noções de verdade
correspondem a uma compreensão representativa do mundo à
qual também pertence a ideia de teoria como discurso adequado
acerca do mundo. A verdade na Grécia Antiga, assim como a
noção de teoria, tem mais a ver com o que o mundo revela,
do que com a correspondência entre as palavras e as coisas.
Morfologicamente, a palavra alétheia apresenta um prefixo
negativo “a-” seguido do substantivo léthe (“esquecimento”,
conexo ao verbo lantháno), que é também o que dá origem ao
substantivo “latência”. Aquilo que está latente é aquilo que está
em espera, como a vida na semente, e que, num determinado
momento, sob as condições adequadas, se tornará manifesto.
A alétheia é esse momento no qual uma coisa acorda, aparece,
se torna visível. Por isso pode-se dizer que é a partir de uma

229
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

forma de olhar (uma theoría) que nós existimos e algo existe


para nós. Nisso consiste a verdadeira possibilidade, não em
fazer existir no futuro aquilo que imaginamos no presente, mas
numa forma de presença que faz com que as dimensões latentes
do mundo se manifestem. Para isso precisamos de tempo, de
cuidado e de certa gentileza.
A partir dos estudos de André Bazin sobre a história do
cinema, é possível dizer que, após um período de profunda
experimentação, que vai desde a criação do cinematógrafo,
em 1895, até o fim da Segunda Guerra Mundial, aparecem
duas vertentes cinematográficas relativamente claras: o cinema
clássico e o cinema realista. Essa distinção não se refere ao que
comumente se denomina cinema de ficção e cinema documen-
tário, mas a uma diferença mais sutil que diz respeito à maneira
em que a realidade é concebida (e produzida) no interior do
filme. No cinema clássico, existe sempre um antagonismo entre
o herói e o mundo, que pode descrever-se do seguinte modo: o
herói tem um curso de vida que é interrompido por um evento
fatídico e, a partir de aí, toda a inteligência e a vontade do
herói se dirige a recompor a situação. Trata-se sempre da luta
entre o herói e a adversidade que o mundo lhe apresenta e que
só se resolve quando o herói consegue vencer a adversidade.
O cinema clássico é filho da Modernidade e de seu culto ao
homem ativo, explorador, inventor, conquistador. O cinema
clássico é sempre, no fundo, um cinema de ação ou, melhor
ainda, de reação. Sempre há um enigma a ser resolvido, um
rival a ser derrotado, uma dificuldade a ser superada, sempre
se tem algo a fazer e esta tarefa é o que dá sentido ao drama.
Com sua maneira de produzir e montar os planos, o cinema
clássico coloca o espectador no ponto de vista do herói, pro-
duzindo assim uma identificação psicológica entre ambos. O
espectador participa, então, do sentimento do herói e de seu
desejo de superar as dificuldades que o mundo lhe apresenta.

230
Filmar a escola: teoria da escola

No realismo, pelo contrário, o espectador não encontra um


ponto de vista, nem um desejo claro, no qual ancorar seu olhar.
Na sua estrutura narrativa, os heróis são difusos e a realidade
dispersa, misteriosa, indeterminada. Por isso o herói jamais está
à altura dos acontecimentos, jamais pode responder de forma
adequada. Os planos amplos e vagarosos, com poucos cortes,
dão ao espectador a possibilidade de demorar-se nos detalhes da
cena e ver muitas coisas, sem saber ao certo o que é realmente
significativo. Existe sempre uma indeterminação nas imagens,
sua beleza nunca está desprovida de certa feiura, a alegria não
deixa de carregar certa tristeza. Poder-se-ia dizer que, enquanto
o cinema clássico mostra, o cinema realista deixa ver, ou que,
enquanto o cinema clássico faz sentir este ou aquele sentimento,
o realismo coloca o espectador numa relação aberta com suas
próprias ideias e sentimentos. Poder-se-ia dizer também que,
no cinema clássico, e em virtude de sua narrativa, as coisas
não se veem com clareza porque o desejo do herói as recobre
completamente; tudo é visto e julgado em função do que o
herói deve fazer para superar as dificuldades. Pelo contrário, no
cinema realista, não existe uma trama que direcione a vontade
e a inteligência do herói nem do espectador; assim, o desejo
fica entregue à sua própria indeterminação, e nessa condição os
objetos aparecem descolados de sua funcionalidade na trama,
podendo se apresentar de modo mais concreto e real. O cinema
realista confronta o espectador com a materialidade do mundo
e com a pura possibilidade de que algo faça sentido ou não,
enquanto no cinema clássico o sentido é conduzido pela trama.
Trata-se de um cinema contemplativo ou pensativo.
Existe um tom espiritual compartilhado pelo cinema re-
alista e a filosofia fenomenológico-existencial. Ambos os mo-
vimentos são filhos da desilusão e do cansaço do pós-guerra.
Ambos compartilham essa melancólica lucidez daqueles que
viveram na própria carne as consequências do culto ao homem

231
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

ativo e sua cruel obstinação. Quiçá a escola, por ser também


filha da Modernidade e estar igualmente construída sobre o
culto ao homem ativo, tenha sido tão propensa a pensar-se a si
mesma a partir de uma narrativa clássica, na qual a realidade se
apresenta sempre como um rival e o sentido como uma tarefa.
Na escola, há sempre algo a fazer para vencer as dificuldades.
Nela pensamos a nós mesmos como pequenos heróis que lutam
contra a adversidade. A pergunta é sempre o que devemos fazer
para solucionar determinado problema, e a resposta se traduz
em planos, programas, projetos, metas, avaliações, etc. Assim, a
escola permanece sempre ligada à ideia do possível como projeto.
No entanto, essa é apenas uma maneira de conceber a realidade.
Quiçá, outro olhar, um olhar mais contemplativo, possa ajudar a
escola a se libertar das amarras da narrativa clássica e entender a
realidade de modo mais aberto e sutil. Se isso for assim, também
poderão mudar as suas perguntas. Talvez, em vez de se perguntar
o que é preciso fazer para vencer a realidade, possa se perguntar
de que maneira se está na realidade ou que realidade constrói
nosso modo de estar. Que tipo de relações se estabelecem aí
com as coisas e as pessoas. Do que se cuida nela. Porque fazer
da escola um autêntico lugar de possibilidade talvez não tenha
tanto a ver com a criação de um futuro, e sim com a produção
de uma forma de presença.
Ao longo de muitos meses fomos para a escola, em di-
ferentes dias e horários. Ficamos lá sem acusar, sem defender,
sem excessivas pretensões. Cientes de sermos estrangeiros, de
nossas limitações, de nossa incompreensão. Coletamos centenas
de imagens e sons. Reunimo-nos semanalmente para ler Hus-
serl, Heidegger, Agamben, Sloterdijk, Flusser e outros autores
que nos ajudaram a interrogar acerca de nossa relação com o
mundo: com o tempo, com os objetos, os espaços, os gestos.
Conversamos longamente sobre esses e outros assuntos. Com
Bazin, Bergala e Zavattini, refletimos sobre o cinema realista.

232
Filmar a escola: teoria da escola

Analisamos filmes de cineastas realistas clássicos, como Ros-


sellini, De Sica, Visconti, e de outros contemporâneos, como
Kiarostami, Erice, Costa. Debruçamo-nos também sobre a obra
de alguns cineastas brasileiros contemporâneos, como Marcos
Pimentel e Cao Guimarães. Hoje oferecemos este filme com
entusiasmo e esperamos que sirva para continuar a pensar e a
conversar sobre a escola pública e nossa maneira de estar nela.

Rio de Janeiro, 1º de fevereiro de 2017

Filme: Teoria da Escola


Duração: 00:33:15
Direção e Montagem: Maximiliano Valerio López
Ideia original: Jorge Larrosa e Maximiliano Valerio López
Finalização: Eduardo Malvacini
Assistência de produção: Damianne Sampaio
Concepção sonora: Carol Caniato
Cinegrafia: Carol Caniato, Damianne Sampaio, Daniele Al-
ves, Eduardo Malvacini, Gabriela Machado, Maximiliano
Valerio López, Mayara Alvim.

Núcleo de Estudos em Filosofia, Educação e Poética


(FEP)
Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais

233
Curar uma exposição sobre a escola:
um exercício de pensamento

Daina Leyton

Ao propor uma exposição de educação num museu de ar-


te, nos estava claro desde o início que o que faria sentido para
1

nós não seria realizar uma mostra demonstrativa ou documental


sobre nossa história e sobre o que compreendemos por educação,
mas criar um espaço comum e fecundo que possibilitasse ao
público vivenciar experiências significativas, e que, para tanto,
deveria trazer características da escola no seu conceito mais
radical: de sua etimologia grega skholé: tempo livre.
Tanto as obras já existentes escolhidas para a mostra, quan-
to as produzidas especificamente para a ocasião, têm como sua
matéria-prima a educação. Não são somente obras, como é
comum nos museus, com as quais se pode realizar um trabalho
educativo com o público: o que a exposição apresenta, mostra e
faz presente é a educação como matéria. A materialidade em si
da educação. A ideia não foi trazer obras que apresentassem de
forma explanativa o trabalho educativo do museu, e sim obras
que convidassem os frequentadores a exercícios, práticas e expe-
riências com o intuito não apenas de compartilhar nossa história

1
A exposição Educação como matéria-prima teve curadoria conjunta de Felipe
Chaimovich, curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM)
e Daina Leyton, coordenadora do setor educativo e da acessibilidade, e
aconteceu em 2016, no MAM.

235
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

e nosso projeto educativo, mas também poder transformar nossas


próprias compreensões e ações, com o público e pelo público.
Para construir esse espaço-tempo-museu-mundo, buscan-
do um tempo que não pode exigir que se produza qualquer
coisa fora de si mesmo, ou seja, um tempo que vale por si só,
nos inspiraram o conceito do Museu de outra percepção, de Ev-
gen Bavcar, e a obra O museu é uma escola, de Luis Camnitzer,
ambos artistas presentes na mostra.

O museu de outra percepção


Na reflexão sobre o Museu de outra percepção (Leyton et al.,
2015a, p. 43), o fotógrafo e filósofo cego Evgen Bavcar imagina e
idealiza um museu que traga abordagens diferentes das habituais,
ocupando-se de outras percepções, além daquela que é considera-
da “normal”. Um espaço que transcenda a lógica “oculocêntrica”
vigente nos museus, nos quais as obras são quase sempre expostas
para a visão frontal, enquanto várias outras formas de percepção
são possíveis, mas pouco exploradas. Bavcar atenta para o fato
de que, até mesmo os dispositivos de acessibilidade atualmente
existentes em museus e centros culturais, são na maioria das
vezes pensados na lógica das pessoas que não têm deficiência.
E argumenta que esse contexto acaba por submeter as pessoas
com deficiência ao que ele considera uma privação de liberdade.
No exercício de pensar e criar o Museu de outra percepção,
nos perguntamos então como seria possível sair dessa tirania do
visual, e da norma vigente, e assim desnormativizar a percepção do
mundo. O primeiro passo foi montar a exposição visando a um
espaço de fato comum e acessível a todos: sem obstáculos físi-
cos, comunicacionais ou atitudinais. As obras da Educação como
matéria-prima expostas na parede foram trazidas para uma altura
mais baixa do que o padrão. Outras obras habitavam o chão e o
teto, permitindo que o público as movesse, permanecesse sobre

236
Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento

elas, ou deitasse no chão para as observar. As pinturas e fotogra-


fias contavam com impressões em três dimensões, podendo ser
fruídas pelo toque. No centro da exposição, o Café educativo,2 de
Jorge Menna Barreto, propunha um espaço de permanência e
decantação, onde se podia tomar um chá ou café – normalmente
proibidos em salas expositivas – e suspender a pressa e o automa-
tismo para vivenciar uma experiência de tempo em que se pode perder
tempo. Uma mesa ficava à disposição de quem quisesse ali realizar
os Exercícios,3 de Luis Camnitzer, que faziam da exposição um
contínuo vir-a-ser, uma vez que ela se reconfigurava cada vez que
um visitante realizasse um exercício proposto e o pendurasse
na parede. A obra Expediente,4 do artista pernambucano Paulo
Bruscky, na qual um funcionário trabalha na exposição com
todo seu escritório montado, possibilitou que os educadores do
museu se deslocassem para o espaço expositivo e permanecessem
em contato contínuo com os visitantes, experimentando junto
com o público esse período de exposição.
O argumento de Bavcar sobre a situação de privação de
liberdade nos inspira ainda outras indagações: se as pessoas teori-
camente sem deficiência, ou seja, com todos os sentidos preser-
vados, não se encontram também, em alguma instância, com
a liberdade cerceada. Qual será a real acessibilidade que nós todos
2
Jorge Menna Barreto (Araçatuba, SP, 1970). Café educativo (2007-2011), obra
do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que fez parte da mostra
Educação como matéria-prima.
3
Luis Camnitzer (Uruguai, 1937). Exercícios (2010-2015), obra também
exposta na mostra Educação como matéria-prima, na qual exercícios eram
propostos aos visitantes, que podiam produzir sua resposta e colocar na
parede junto com as outras obras da exposição.
4
Paulo Bruscky (Recife, PE, 1949). Expediente: primeira proposta para o XXXI
Salão Oficial de Arte do Museu do Estado de Pernambuco (1978-2014), obra do
acervo do MAM, em que um funcionário se desloca com seus instrumentos
de trabalho para o espaço expositivo e aí permanece durante toda a mostra.
Para a ocasião da Educação como matéria-prima, todos os educadores do museu
se deslocaram para a exposição.

237
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

usufruímos? Ao nosso corpo? Aos nossos sentidos? Aos outros? A escrever


nossa história com nossas próprias palavras? (Leyton et al., 2015b,
p. 15). As obras e proposições da Educação como matéria-prima
convidavam os participantes a refletirem sobre essas questões.
Questões essas que nos remetem ao que foi discutido no semi-
nário Elogio da escola: que a escola deve dar a oportunidade ao
aluno de encontrar o seu próprio destino.

Sobre nossa privação de liberdade

“O entretenimento popular é basicamente propaganda


para o status quo”. A citação de Richard Serra abre um jogo de
videogame que permeia o universo das escolas, corporações,
presídios, manicômios e condomínios. O jogo integra a insta-
lação 3 Planets – 3000 Panoptic Wave5: projeto concebido pelo
artista Stephan Doitschinoff em parceria com o MAM Educa-
tivo, que propõe aos participantes refletirem sobre algumas das
várias codificações a que estamos submetidos cotidianamente.
A obra é uma instalação multissensorial que se encontra
num espaço escuro e isolado das demais obras da exposição.
O jogo de videogame e outros vídeos e animações estão num
suporte que tem formato de um altar de igreja, mas com uma
iluminação semelhante à de anúncios publicitários. Em um dos
vídeos, um educador surdo performa na língua brasileira de
sinais (Libras) o hino Três Planetas.6 O vídeo não tem legendas

5
Stephan Doitschinoff (São Paulo, SP, 1977). 3 Planets – 3000 Panoptic Wave
(2016), obra concebida especialmente para a mostra Educação como matéria-prima.
6
O hino integra um culto idealizado pelo artista nomeado Cvlto do Fvtvrv.
O projeto tem como intenção a criação e desenvolvimento de uma “seita-
igreja”, bem como todos os desdobramentos relevantes na constituição
dessa estrutura, real e virtual: cerimônias, templos, procissões, ícones
representativos de divindades antropomórficas, manifesto, hinos,
publicações, fardas, medalhas, cartões de identificação e fidelização,
programas de engajamento, rede social e website (<http://fvtvrv.org>).

238
Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento

e só quem tem conhecimento de Libras pode acessar a letra.


A situação de falta de acesso, frequentemente vivenciada pelos
surdos, é então vivenciada pelo público geral.
Para jogar, o participante se ajoelha num genuflexório em
que está o controle remoto, de maneira que seu corpo possa
adorar e reverenciar esse contexto religioso-publicitário-panóptico. A
primeira fase do jogo são as escolas: essas, que não são escolas em
sua forma, mas escolas cooptadas e atravessadas por uma lógica
temporal de fora. As escolas “desescolarizadas”7 que sucumbiram
ao sequestro de seu caráter verdadeiramente escolar. Como cita
Masschelein, as escolas daqueles “que procuram perpetuar o
velho mundo ou para aqueles que têm uma clara ideia de como
um mundo novo ou futuro pode parecer. [...] Tais pessoas não
deixam nada ao acaso: a escola, o corpo docente, o currículo e,
através deles, a geração mais jovem deve ser domada para atender
às suas finalidades” (Masschelein; Simons, 2013, p. 11).
Passando a primeira fase, os jogadores seguem então rumo
às corporações, presídios, manicômios e condomínios. Devi-
damente entretidos, podem seguir jogando, e contribuir assim
para a manutenção das coisas como elas estão. Porém, nesse jogo
não há vencedor. A máxima aquisição possível nessa jornada
são mensagens, que anunciam o esvaziamento em si da própria
lógica que o jogo traz: “O homem blindado não está aberto à
visitação dos afetos ou da palavra. Já não há espaço para a visitação
do afeto ou para o jorro da língua, mas apenas para vivências
autofabricadas e autoafetadas” (Pessanha, 2002, p. 24).8

7
“Na verdade, podemos ler a longa história da escola como uma história
de esforços continuamente renovados para roubar da escola o seu caráter
escolar, isto é, como tentativas de ‘desescolarizar’ a escola – que vão muito
mais longe do que os autoproclamados ‘desescolarizadores’ da década de
1970 podiam perceber” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013).
8
Esta citação do filósofo Juliano Pessanha aparece no jogo 3 Planets – 3000
Panoptic Wave, quando os jogadores abrem um ícone da fase “Condomínio”.

239
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Ler o mundo
Um pedaço de cana-de-açúcar, um pacote de café, uma
lata de guaraná Jesus, uma placa de cobre, uma folha de ouro,
um pedaço de mineral contendo nióbio, uma camiseta do
time de futebol Guarani, uma semente de pau-brasil, entre
outros objetos pendurados por roldanas e linhas de varal no
teto da sala expositiva, trazem narrativas da história colonial
da América Latina, na obra Constelações,9 de Amilcar Packer.
A obra constitui um certo mundo: o do colonialismo cultural,
dos sistemas produtivos, econômicos e de poder. Os visitantes
podem escolher objetos da obra e baixá-los pelas cordas, com-
pondo diferentes narrativas. Cada objeto tem na outra ponta
de sua linha um texto com informações sobre sua origem e
suas terminologias, que convidam o público a refletir sobre as
possíveis implicações e ideologias que se formam a partir delas.
A escola faz do mundo material de estudo. Na obra Cons-
telações, esse mundo é também apresentado e tornado público
para a leitura, e ao mesmo tempo subverte a forma clássica em
que as coisas são habitualmente lidas.

“Desler” o mundo
Muitas vezes as palavras nos faltam. Percebemos a frequência
com que elas são ditas, ouvidas e lidas com significados fechados,
querendo dizer uma só coisa: “palavras gastas pelo uso, obtusas,
sem fio; [...] sem encarnação singular, nem no corpo, nem na
alma; palavras mortas, solidificadas e opacas, não mais capazes de
captar, ou de expressar vida; palavras comuns e homogêneas, que
já não podem incorporar um sentido plural” (Larrosa; Kohan,
2003, p. 181, citando Julio Cortázar).

9
Amilcar Packer (Santiago, Chile, 1974), Constelações (2016).

240
Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento

Assim como o ensino de palavras de maneira esvaziada é


característico nas escolas (essas que não são escolas em sua forma),
os museus também correm esse risco. Ainda é comum prevalecer
a noção de que os museus fornecerão, por exemplo, “visitas guia-
das”, nas quais o público receberá leituras fechadas em relação às
obras, não havendo espaço para a construção de sentido.
Na Educação como matéria-prima, a obra Desleituras, de Jorge
Menna Barreto, apresentava palavras-desviantes impressas em
capachos coloridos que habitavam toda a exposição: palavras que
buscam multiplicar as leituras e interpretações. Entre algumas
já existentes, e outras novas que foram criadas especificamente
para a mostra, o ponto de partida para a escolha das palavras
foram nossas reflexões sobre educação e arte, e sobre o museu e
a relação com o seu público. Essas referências, no entanto, não
eram reveladas aos visitantes, pois o intuito não era rastrear uma
suposta origem das palavras, ou buscar um significado certo ou
único. Segundo o artista: “Ao estancar a relação com o original
de cada tradução, procurava abrir um espaço de interpretação
mais amplo, que possibilitasse associações inventivas mais do
que especulativas” (Moderno Mam Extra, 2016, p. 6). Se
num primeiro momento as palavras-desviantes eram estranhas
e não familiares ao público, logo cada pessoa passava a tecer
seus diferentes sentidos enquanto as lia e as deslia:
Transbalho:: Ausenciamento:: Ancoração:: Medicachão::
Imencidade:: Preconceitual:: Arrependizagem:: Resistual:: Delei-
tura:: Diztância:: Escrítica:: Segueira:: Ativisão:: Deusejo:: Séu::
Dencantação:: Houvido:: Fracaço:: Desobedessência:: Liverdade.

Exercícios
Sobre arte e educação, o artista e pedagogo uruguaio
Luis Camnitzer considera a separação desses dois campos um
tanto quando artificial, trazendo a reflexão de que a educação

241
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

que não é criativa seria uma má educação, e a criação que não


é educativa seria uma má criação. Nesse sentido, a materiali-
dade da escola está frequentemente presente em sua produção
artística. Um exemplo são os cadernos produzidos por ele para
diferentes exposições, destinados a professores e educadores, que
têm o mesmo formato dos cadernos mais triviais e corriqueiros
utilizados pelos alunos das escolas dos diferentes países em que
expõe. Camnitzer acredita que a arte é o campo em que se
pode imaginar o possível e o impossível, no qual se colocam
e se dão forma a problemas, um campo que, portanto, deveria
ser apropriado por todos, não sendo um monopólio das pessoas
denominadas artistas. Considerando a capacidade que todos
temos de análise crítica em nossa construção de sentido, ele su-
gere dois passos nos exercícios educativos propostos: o primeiro
é aprender a ver a obra de arte como possível resposta (ou o
simples ato de dar forma) a um problema; o segundo é obser-
var a si mesmo enquanto trata de entender o que está vendo.
Na Educação como matéria-prima, os Exercícios de Camnit-
zer permaneciam expostos na parede, convidando os visitantes
a procurar suas soluções e produzi-las com o material que
ficava à disposição do público. Essas produções podiam ser
penduradas na parede da exposição e lá permanecer.

EXERCÍCIO #1
a) Faça um mapa não muito detalhado do infinito.
b) Decida em que ponto você se encontra e explique suas
razões para se encontrar nele.

EXERCÍCIO #2
a) Usando como referência a zona que aparece emoldura-
da na parede: confirme e explique a existência ou a não
existência de Deus.
b) Desenhe um símbolo que sirva para identificar um
edifício dedicado ao culto correspondente.

242
Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento

EXERCÍCIO #3
a) Eleja uma palavra qualquer e agregue-lhe o sufixo “ismo”.
b) Em não mais de uma página, escreva um manifesto
que pontue os propósitos e metas de um movimento
filosófico-estético que tenha esse nome.
c) Desenhe um folheto para o texto e assegure uma difusão
apropriada do manifesto com o propósito de conseguir a
maior quantidade possível de adeptos, tanto entre criadores
como entre consumidores.

EXERCÍCIO #4
Se a geografia se organizasse de acordo com critérios prag-
máticos, como você armaria o mapa da América Latina?
a) Desenhe um novo mapa.

Ocupar-se do mundo
Discutimos no seminário Elogio da escola que talvez a
essência da escola apareça justamente na sua crise. Em 2015,
diante de uma proposta do Governo do Estado de São Paulo
de reorganização das escolas estaduais públicas, que previa o
fechamento de 93 escolas e afetaria mais de 311 mil alunos,
os estudantes secundaristas ocuparam mais de 190 escolas, em
resistência a essa proposta. Nas ocupações, os alunos se orga-
nizaram para cuidar da alimentação coletiva, da limpeza da
escola e do cronograma de aulas e atividades, que contou tanto
com parte dos professores das próprias escolas, que apoiaram as
ocupações, quanto com outros educadores da sociedade civil,
que ministraram aulas voluntariamente. Uma Virada Ocupação
foi realizada em apoio à causa dos estudantes e contou com
816 artistas e bandas participantes. Por conta dessa grande mo-
bilização dos secundaristas, a reorganização foi revogada pela
Secretaria de Educação do Governo do Estado de São Paulo.

243
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Para que essa mobilização em defesa da escola estivesse contem-


plada na Educação como matéria-prima, conversamos com a artista
Graziela Kunsch, que havia proposto trazer para exposição sua
obra nomeada Projeto mutirão: um arquivo de gravações, em plano
único, que documentam lutas coletivas que buscam transformar
o espaço e a sociedade, como assentamentos rurais, aldeias in-
dígenas, ocupações diversas em edifícios e universidades, entre
outros. Kunsch atenta para o fato de que as pessoas que lutam
por uma causa ​raramente c​ onseguem​viver o resultado de sua
conquista e, por isso, a alimentação do arquivo do Projeto mutirão
é um processo contínuo. Ela recolheu então para a Educação como
matéria-prima imagens da internet, nas páginas do Facebook, das
autodenominadas “Escolas de Luta” ou “Ocupações” – E. E. Ana
Rosa, Dica (E. E. Emiliano Cavalcanti), E. E. Fernão Dias Paes, E.
E. João Kopke, Mazé (E. E. Maria José) e E. E. Salvador Allende
– e também na página do coletivo O Mal-Educado. Iniciamos
então a exposição ​com a projeção dessas imagens na parede. A
proposição não se encerraria em contemplar tais imagens e dia-
logar sobre elas, mas refletir com os secundaristas e professores
das ocupações sobre quais são as possíveis contribuições do museu
com o cuidado da escola e com o mundo comum.
O movimento das ocupações nos anunciava um processo
de tomada de consciência dos secundaristas em relação à escola.
Realizamos então encontros abertos ao público, a que demos o
nome de “Estórias Ocupadas”, nos quais estudantes e professores
compartilharam suas experiências nas ocupações, além de se
mobilizarem na criação de redes entre professores de diferentes
escolas para pensar e debater sobre a defesa da escola como tempo
livre. Grupos de teatro e performance, nascidos nas ocupações,
utilizaram o espaço da Educação como matéria-prima para ensaiar e
se apresentar. Secundaristas se matricularam e passaram a partici-
par de cursos do museu. Documentários sobre as ocupações das
escolas estaduais paulistanas foram exibidos no MAM, seguidos

244
Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento

de debates com alunos e professores que participaram das ocu-


pações, além de pesquisadores das áreas de educação e políticas
públicas. Mesmo após o término da exposição, uma programação
relacionada a esse tema deu continuidade à nossa reflexão sobre a
relação do museu com a escola, suas especificidades e conexões.
Afinal, além dos alunos e professores que se envolveram na pro-
gramação mencionada, os demais estudantes e professores das
escolas estaduais fazem parte de um público cativo do MAM (e
de outros museus e centros culturais), que visita regularmente
esses espaços, por meio de programas promovidos pela mesma
Secretaria de Educação do Governo do Estado responsável por
essas escolas. Parte desses estudantes das escolas da rede pública
estadual são também os jovens que frequentam aos domingos
o Parque Ibirapuera e participam das atividades do museu. A
programação do museu que traz o debate sobre as questões das
escolas públicas paulistanas diz respeito, portanto, à realidade de
uma grande parcela do público regular dos museus. Dessa forma,
o ato de ocupar, tornar público e anunciar o espaço-tempo que
a escola deve ser nos leva a nos indagarmos ainda mais sobre o
espaço-tempo que o museu deve ser.

O museu é uma escola


Na obra que leva esse título, a seguinte frase é adesivada
na fachada do museu que a expõe: O museu é uma escola: o artista
aprende a se comunicar; o público a fazer conexões.
Luis Camnitzer concebeu esse trabalho incialmente como
uma resposta a um diretor de um museu que, ao entrar em
contato com os materiais educativos que o artista e pedagogo
produz para as exposições, alegou que “ali era um museu, e não
uma escola”. Segundo Camnitzer, a obra, que começou como
uma brincadeira e resposta ao diretor, é atualmente compre-
endida como um acordo que o museu deve estabelecer com

245
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

seu público: se ele é uma escola, assim deve ser, e o público


tem o direito de reivindicar, caso não esteja agindo como tal.
Considerando que um museu – anunciado nessa obra como
uma escola – deve cultivar o espaço comum e a democratização
do tempo livre, faz muito sentido para nós afirmar que o museu
é uma escola. Destrinchando um pouco mais a frase, ela afirma
que o artista aprende a se comunicar, pois uma vez que sua obra
é tornada pública, ela coloca os espectadores e participantes numa
atitude de atenção em relação a ela. Constatamos no cotidiano
do MAM que o potencial de impacto de uma obra, assim como
o processo criativo de cada artista, se amplia à medida que ele
tem acesso às leituras e reações do público em relação à sua obra,
processo que ocorreu com os artistas durante toda a exposição
Educação como matéria-prima. A terceira afirmação, de que o público
aprende a fazer conexões, diz respeito às questões que podem ser
colocadas na mesa em visitas a um museu, e as possibilidades que se
abrem em torno delas. E diz sobre como essas questões ressoam
em cada visitante: não é sobre o que já se sabe, mas sobre o que,
de alguma maneira, atravessa cada um, e o contato com a arte
permite dar forma, produzir sentido, fazer conexões.
Como mencionado no início deste texto, a obra de Luis
Camnitzer é uma de nossas referências para a realização da ex-
posição Educação como matéria-prima, pelo fato de, em nossas ações
educativas, buscarmos constantemente as características essenciais
da escola. No entanto, após uma atividade para professores e
educadores, conduzida por Jorge Larrosa,10 na programação da
Educação como matéria-prima, compreendemos também que, apesar
de a frase ser uma crítica aos museus e um elogio à escola, ela pode
gerar certo desgosto, se lida a partir do olhar da defesa da escola
– pelo perigo de corroborar a ideia, que tampouco queremos

10
“A arte e a educação, o museu e a escola: especificidades e conexões”,
atividade proposta por Jorge Larrosa no MAM, em março de 2016, dentro
do programa Contatos com a arte, dirigido a professores e educadores.

246
Curar uma exposição sobre a escola: um exercício de pensamento

endossar, de que a escola já não é o único lugar para a educação


e que portanto qualquer lugar pode ser considerado uma escola.
O exercício de pensar a escola nos leva assim ao exercício
de pensar o museu. Sendo polos de encontro de muitas pessoas
de diversas origens, os museus podem atuar em dois diferentes
caminhos: o de contribuir na disseminação de uma lógica vigente
e dominante que se queira reproduzir, ou o de trabalhar com seu
público acontecimentos e questões do mundo, libertadas de seu
entendimento dominante, permitindo a ressignificação de forma
a investigar e criar possibilidades. Sendo esse segundo caminho
o que norteia as ações do MAM Educativo, uma suspensão de
tempo e espaço do que já é conhecido faz-se necessária para que
o museu, assim como a escola em sua origem, seja uma fonte de
conhecimento e experiência disponibilizada como um “bem comum”
(Masschelein; Simons, 2013, p. 9). Enquanto o estudo da histó-
ria da arte permite ter contato com testemunhos e expressões de
diferentes épocas, contribuindo para o desenvolvimento de um
olhar sensível e uma reflexão crítica sobre os diversos contextos
mundanos passados e atuais, o exercício de experimentação
criativa permite imaginar e instituir possibilidades.
As questões desencadeadas pela frase de Luis Camnitzer
foram então “colocadas na mesa” no seminário Elogio da escola.
O museu é ou não é uma escola? Seria o museu um tipo de
escola, mas não todos? Seguramente, na atualidade muitos
museus estão longe de ser uma escola. Assim como muitas es-
colas estão longe de ser escolas. Mas para propor o exercício de
pensar o museu e a escola não seria necessário fazer uma escola?
Muitas das escolas com que temos contato estão totalmente
atravessadas pelo tempo externo, com currículos e cronogramas
a serem cumpridos, e seguem a equivocada noção de que a
escola deve cumprir uma função. Apesar disso, também pode
ocorrer em museus, que por sua vez se veem frequentemente
formatados na lógica de trânsito e de consumo de informações,

247
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

sendo utilizados inclusive para “ilustrar” conteúdos trabalhados


nas escolas. Contudo, ainda há em alguns mais possibilidade
para oferecerem e cultivarem o tempo livre.
Realizar a exposição Educação como matéria-prima e a progra-
mação pública que a acompanhou, e a participar do seminário
Elogio da escola, foram duas experiências que me fazem atualmente
pensar que talvez uma das missões essenciais dos museus seja
a de lutar pela escola, pela escola em sua forma. A existência do
museu deve contribuir para que a escola recupere ou mantenha
suas características radicais e essenciais, anunciadas no livro Em
defesa da escola e discutidas no seminário Elogio da escola: oferecer
tempo livre e transformar habilidades em “bens comuns”, e que
“portanto tem o potencial para dar a todos independente de
antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo-espaço para
sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar (e,
portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo” (Massche-
lein; Simons, 2013, p. 10).

Referências
LARROSA; J.; KOHAN, W. O. Igualdade e liberdade em educação: a
propósito de O mestre ignorante. Educ. Soc., Campinas, v. 24, n. 82, p. 181-
183, abr. 2003. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/es/v24n82/
a08v24n82.pdf >. Acesso em: 02 set. 2017.
LEYTON, D. et al. Programa Igual Diferente. São Paulo: Museu de Arte
Moderna de São Paulo, 2015a.
LEYTON, D. et al. Obras mediadas. São Paulo: Museu de Arte Moderna
de São Paulo, 2015b.
MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública.
Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
(Coleção Educação: experiência e sentido.)
MODERNO MAM EXTRA. São Paulo, n. 5, abr./maio/jun. 2016. 40p.
Disponível em: <http://mam.org.br/wp-content/uploads/2016/05/
modernoExtra-portugues.pdf>. Acesso em: 02 set. 2017.
PESSANHA, J. Certeza do agora. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

248
Desenhar a escola: um exercício
coletivo de pensamento

Jorge Larrosa, Eduardo Malvacini, Karen Christine Rechia,


Luiz Guilherme Augsburger, Juliana de Favere, Caroline Jaques Cubas

Convocatória
Atualmente, estamos assistindo a certa dissolução da forma
tradicional da escola. A escola, diz-se, já não é o único lugar da
educação, e talvez não seja o mais adequado. A escola, diz-se,
se transformou em um lugar anacrônico, obsoleto, desagradável
e ineficaz. A aprendizagem, diz-se, ultrapassa as fronteiras da
escola e se dá em todos os lugares e a qualquer momento. A
crítica da escola se tornou um lugar comum, e a educação, di-
z-se, se des-localizou, ficou sem um lugar próprio. A educação
já não está protegida pelos muros da escola, porque, diz-se, há
muito tempo pulou esses muros (sem contar o fato de que a
própria escola se quer aberta e sem muros). A educação, diz-se,
se confunde com a vida e, portanto, nada pode resistir à pe-
dagogização geral da existência. A escola, diz-se, se confunde
com o mundo, com a cidade, ou com a rede, e portanto já não
há escola, ou a escola se torna prescindível.
E é agora, neste momento de dissolução da forma da
escola, que queremos repensá-la amorosamente para reencon-
trar a sua especificidade e a sua autêntica natureza. Para tanto

249
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

propusemo-nos fazer um exercício de pensamento orientado


a desenhar a escola. O exercício quer convocar educadores,
artistas e outras pessoas interessadas na forma da escola para
constituir um grupo de pensamento e de experimentação, no
qual se farão coisas como: caminhar, observar, mapear, ler,
conversar, propor, definir, escrever ou desenhar.

Carta de boas-vindas
Quero agradecer pelo tempo que vão dedicar à atividade.
Sei que o horário é apertado e que o compromisso exigido é
incomum, mas acredito que este regime intensivo de trabalho
é necessário para manter a atenção e a intensidade. Além disso,
estou seguro de que vocês estão entregando o seu tempo de uma
maneira generosa, sem ter clareza do que vão receber em troca,
e estou seguro também de que porão sua sensibilidade e sua inte-
ligência, o melhor de cada um de vocês, no exercício. De fato, o
êxito ou o fracasso do que fizermos dependerá de todos nós. Eu
acredito que nos sairemos bem, mas se fracassarmos, tampouco será
uma catástrofe. Tanto para vocês, como para mim, não será nem
o primeiro nem o último fracasso, nem a primeira nem a última
vez que terminamos algo com a sensação de haver perdido tempo
(ainda que com os fracassos e com as perdas de tempo também
se aprenda). Isso é o que passa, às vezes, quando embarcamos em
coisas que não sabemos muito bem para onde nos conduzem,
quando levamos a sério isso de que não sabemos o que não sa-
bemos, quando entramos em processos dos quais não podemos
antecipar os resultados nem os efeitos, quando predomina uma
atitude experimental. Todos nós sabemos que quando se encontra
o que se busca, quando se põe em jogo o que cada um já sabe, a
coisa é agradável, mas não tem demasiada importância. O que de
verdade nos faz aprender é quando somos capazes de ver, de sentir
ou de pensar o que não sabíamos, o que não esperávamos. Por isso,

250
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

agradeço de verdade pela confiança: que tenham decidido en-


tregar-se a um exercício estranho e exigente, sem saber muito
bem do que se trata, e sem ter calculado o que vão obter ao final.
Simplesmente sem uma razão especial, ou porque o pouco que
sabem sobre mim, ou sobre o que vamos fazer, ou sobre as pessoas
que lhes fizeram o convite, despertou em vocês a curiosidade, a
vontade e, quiçá, o espírito aventureiro.

Ideia de desenho
A Filosofia do Design, de Flusser, traz o seguinte subtítulo:
a forma das coisas. Desenhar é, portanto, dar forma. Desenhar
a escola seria, então, elaborar (ou idear, modelar) uma forma
imaterial (uma ideia, um modelo) que poderia ser realizada so-
bre uma matéria ou, como diz Flusser, que pode ser recheada
com uma matéria ou uma série de matérias. Desenhar a escola
seria, então, elaborar uma forma que pudesse ser materializada.
Segundo Flusser, “o design é um dos métodos para dar forma
à matéria e para fazer que esta apareça como aparece, e não de
outro modo [...]. Ou seja, que a matéria no design, como em
qualquer outro aspecto da cultura, é o modo como as formas
aparecem”. E, algumas páginas adiante, “a forma é aquilo que
faz aparecer o material, aquilo que o transforma em fenômeno.
A aparência do material é a forma” (Flusser, 2002, p. 33-36).
Desenhar a escola, então, tem a ver com fazer com que a escola
apareça, se torne fenomênica, se torne sensível. Desenhar a escola
é des-velar ou re-velar a escola. Mas a forma da escola não está
oculta, e sim na própria escola, e a única coisa que precisamos
fazer é olhar para ela com atenção. Por isso, desenhar a escola
seria re-velar ou des-velar o que já está aí ou, nas palavras de Jan
Masschelein, fazer visível o visível. Desenhar a escola seria estarmos
atentos à escola para mostrar o que a escola é. Ou, dito de outro
modo, também nos termos de Masschelein, desenhar a escola

251
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

seria mostrar o que é o escolar, ou seja, o que faz que uma escola
seja uma escola.
Segundo esse ponto de vista, desenhar a escola é um traba-
lho sobre a aparência (é fazer que a escola apareça), mas, ao mes-
mo tempo, é uma tarefa de eliminação de aparências. Segundo
Boris Groys (2014), “O design de vanguarda buscou eliminar e
purificar tudo o que se tinha acumulado na superfície das coisas
[...] para assim expor a verdadeira natureza das coisas” (p. 22).
Groys se vale de um célebre ensaio de Adolf Loos, Ornamento e
crime, no qual o arquiteto vienense das fachadas austeras inicia
um combate contra a decoração, a ornamentação, o adorno,
contra tudo o que oculta a verdadeira natureza das coisas. O
design de vanguarda seria, portanto, uma espécie de antidesign,
e Loos representaria para o design o que foi Schönberg para a
música, ou Wittgenstein para a filosofia, ou ainda Karl Kraus
para a literatura, os quais fustigaram o impuro e o supérfluo:
“[...] para Loos, o verdadeiro design consiste na luta contra o
design, contra o desejo deleitoso de encobrir a essência ética das
coisas sob sua superfície estética” (Groys, 2014, p. 26). Nessa
lógica, desenhar a escola seria atender somente ao essencial
da forma da escola, ao que faz com que uma escola seja uma
escola, e eliminar o que sobra, o que é mera decoração, mero
ornamento, ou seja, tudo o que foi sendo acrescentado à escola e
que, de alguma maneira, oculta a sua verdadeira natureza. Para
desenhar a escola, portanto, necessitamos de uma ideia do que
a escola é. E essa ideia não está no mundo das ideias platônicas,
nem em nossa própria imaginação como designers, mas está na
própria escola. Por isso, desenhar a escola é olhar para a escola,
escutar a escola, sentir a escola, prestar atenção na escola, sem
se deixar seduzir ou distrair pelos ornamentos, pelo que a escola
não é. E isso não para petrificar a escola, ou para dar uma ideia
fixa, rígida, dogmática, do que a escola é, mas para manter viva
a pergunta “o que é a escola?”.

252
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

Na nobre tradição platônica, para saber se algo é realmente


o que diz ser, é preciso compará-lo com a sua ideia. O que vamos
fazer aqui, com mais ou menos êxito, é formular uma ideia de
escola, um modelo de escola, um design de escola. O que ocorre
é que, diferentemente de Platão e dos platônicos, não acredita-
mos que as ideias estejam em algum lugar, no mundo das ideias,
e que seja preciso visitar esse mundo para saber o que as coisas
realmente são. Sabemos que as ideias são construções humanas e,
sobretudo, construções humanas disputadas. Por isso, nós, seres
humanos, discutimos sobre ideias e polemizamos uns com os
outros quando discutimos sobre o que as coisas realmente são ou
sobre o que as coisas deveriam ser para que possamos chamá-las,
sem mentir, sem enganar e sem nos enganarmos, pelo nome que
lhes corresponde. Algo que seguramente Platão, que não era de
todo platônico, também sabia, pelo menos quando, triste, cansado
e derrotado, escreveu uma carta aos amigos de Dion e lhes disse:
“Quando a custo de mil esforços são esfregados, uns com os ou-
tros, os diferentes elementos, nomes e definições, percepções da
vista e dos demais sentidos, quando são submetidos a benévolas
discussões, nas quais a má intenção não dita nem as perguntas
nem as respostas, somente então brota a luz da inteligência e
da sabedoria até o máximo do que pode alcançar a capacidade
humana” (Platão, 1970, p. 92). Desenhar a escola, do melhor
modo possível, elaborar uma ideia, ou um modelo de escola,
talvez seja isto: esfregar repetidas vezes, trabalhosamente, com a
máxima atenção possível, o que se vê e o que se diz, as percepções
dos sentidos e os nomes e as definições, as coisas e as palavras, o
mundo e os livros. E fazê-lo com outros que também tenham
vontade de se esforçar, em discussões benevolentes, sem rivalida-
de, sem inveja, sem pretender chegar a um acordo, sem tratar de
ter razão, conversando. E confiar que essa esfregação produzirá
calor, energia, porque somente com o calor pode brotar a luz,
esse indecidível que Platão chamava de inteligência e sabedoria,

253
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

e que nós outros, aqui, estamos chamando de pensamento. Desse


ponto de vista, desenhar a escola exige esfregar entre si (para fazer
surgir o pensamento) exercícios de sensibilidade (trabalhar com
as percepções da vista e dos demais sentidos), exercícios de leitura
(trabalhar com os nomes e as definições, trabalhar com as pala-
vras) e exercícios de conversa (trabalhar em discussões benévolas).

As categorias

Para individuar as categorias do exercício ou, dito de outro


modo, os aspectos a serem desenhados, isto a que deveríamos dar
forma, começamos com a seguinte citação de Jacques Rancière
(1988, s.p.) sobre as formas da escola:
É aqui que intervém a forma-escola. A escola não é um
lugar ou uma função definidos por uma finalidade social
externa. É antes de tudo uma forma simbólica, uma norma
de separação dos espaços, dos tempos e das ocupações sociais.
Escola não quer dizer aprendizagem, mas ócio. A skholé
grega separa dois usos do tempo: o uso daqueles a quem a
obrigação do serviço e da produção deixa, por definição,
tempo para fazer outra coisa; o uso daqueles que têm tempo,
ou seja, dos que estão dispensados das exigências do trabalho.
Entre estes, alguns aumentam inclusive esta disponibilidade
sacrificando tanto quanto seja possível os privilégios e os
deveres de sua condição ao puro prazer de aprender. Se a
skholé define o modo de vida dos iguais, esses “escolares”
da Academia ou do Liceu, do Pórtico ou do Jardim são os
iguais por excelência. Mas que relação existe entre esses
jovens atenienses bem-nascidos e a multidão confusa e obs-
tinada de nossos colégios suburbanos? Nada mais que uma
forma, admitamo-lo: a forma-escola, tal como a definem
três relações simbólicas fundamentais: a escola não é antes
de tudo o lugar da transmissão dos saberes que preparam as

254
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

crianças para a sua atividade de adultos. É o lugar situado


fora das necessidades do trabalho, o lugar em que se aprende
por aprender, o lugar da igualdade por excelência.

A partir dessa citação, temos a escola como um dispositivo


(no sentido de um modo particular de dispor, compor, impor,
opor e expor coisas heterogêneas) para a separação de:

Tempos: a escola dá tempo livre, separando o tempo


escolar do tempo do trabalho.
Espaços: a escola como a espacialização do tempo livre
em um lugar público ou, conforme diz Masschelein, como o
lugar onde o tempo livre encontra um lugar público.
Matérias: a escola como o tempo (livre) e o espaço (pú-
blico) em que as coisas do mundo se transformam em matéria
de estudo.
Atividades: a escola como o tempo e o espaço que, por
estar separado da produção, permite o exercício e o estudo.
E sujeitos: a escola como o tempo e o espaço em que
alguns adultos se separam do mundo do trabalho e se trans-
formam em professores, e a escola como o tempo e o espaço
em que as crianças e os jovens abandonam também o mundo
da produção – e do consumo – e se transformam em alunos
e em estudantes.

Ademais, na elaboração dessas categorias básicas, apare-


ceram outras categorias complementares, como, por exemplo:

a) O caráter público da escola pública.


b) O vocabulário com o qual nomear e pensar a escola.

O exercício (ideia geral)


Para começar, tínhamos:
Uma cidade com várias escolas.

255
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Um grupo com várias ideias de escola.


Um mapa que nos levaria de uma escola a outra.
Um livro que nos levaria de uma escola a outra.
Algum tempo.

O exercício
Sair de uma escola qualquer
(no mapa, na cidade, no texto, nas ideias);
Buscando uma outra escola
(no mapa, na cidade, no texto, nas ideias).

Os mapas
Os mapas são os mapas que guiam o percurso.
Os mapas são os textos que guiam o percurso.
Aqui são só mapas.

O percurso
Percorrer um mapa que outra pessoa fez, dar atenção;
Percorrer um texto que outra pessoa fez, dar atenção;
Estar presente para esse percurso, dar atenção;
Caminhar como quem estuda, dar atenção;
Andar desarmado (por um momento) da crítica e do
medo, dar atenção;
Ficar cansado e silenciar (por um momento) as vozes da
mente, dar atenção;
Para deixar que o percurso imponha sobre nós sua força
de mundo.

O percurso (2)
Andar por um lugar, ouvir um texto e ver o que sempre
esteve visível. Visível para quem passou com atenção e tempo.
Caminhar e ouvir, sentir, pensar. Sobretudo caminhar. Como
um exercício, uma disciplina, se deter, ir devagar, perder tempo.
Não é um caminhar perdido – em nossos próprios pensamentos.

256
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

Caminhar guiado – pelas ruas e pelos mapas e pelos textos (que


não fomos nós que fizemos). O mapa e as ruas e os textos estão
ali e impõem autoridade, pedem atenção.

As derivas (caderno azul)


Um espaço, IDCH. Um tempo, 30 de agosto a 30 de setem-
bro de 2016. Um professor e um grupo de pessoas interessadas.
Formamos grupos de três pessoas, com várias escolas de-
finidas e rotas arbitrárias que deveriam chegar até o Colégio
Estadual Lauro Müller.
Havia leitores, sensores e mapeadores. Anotações em
cadernos.
Cadernos azuis para as caminhadas e para o portão do
Lauro Müller.
Cadernos amarelos com as notas das aulas, as conversas
sobre os textos e depois o próprio desenho de escola.
Cadernos verdes para os exercícios, as notas para a expo-
sição e para os desenhos.
Foram produzidos mapas de espaços vazios, espaços pú-
blicos e mapas de instituições públicas e privadas que se de-
nominassem educativas.
Tanto o livro-texto quanto o mapa eram umbrais: havia
que passá-los para ter percurso, para prestar atenção no percurso.

Num primeiro momento o professor definiu as categorias


e protocolos, estabelecendo os conceitos básicos do exercício.
Foram distribuídos os traçados urbanos a serem percorridos
por cada grupo nas derivas e se fixaram as tarefas a realizar:
protocolos de atenção e procedimentos para as leituras e as
cartografias da cidade e da escola. Cada função – leitor, sensor,
mapeador – foi exercida por cada um em cada um dos lugares
delimitados para o exercício.
Nas escolas, leram-se trechos do livro Em defesa da escola:
uma questão pública, de Jan Masschelein e Maarten Simons.

257
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Ali copiaram-se frases do livro, fizeram-se notas de leitura,


listaram-se palavras. Mapearam-se as saídas escolares, dese-
nharam-se planos da escola e fizeram-se poucas fotos, somente
em seu exterior. Ali ficamos atentos às coisas vistas, ouvidas e
senti-pensadas no portão, no pátio, nos corredores.
Cada pessoa de cada grupo traçou um caminho, saindo
da escola escolhida até o Colégio Estadual Lauro Müller. Cada
trajeto foi demarcado em um mapa que continha espaços va-
zios, espaços públicos e instituições públicas e privadas que
contivessem algo de “educativo”. Cada espaço serviria aos
exercícios, à observação, à leitura em grupo.
Em cada espaço vazio outro mapa, o desenho de uma
quadrícula, uma descrição, uma transcrição e uma leitura – uma
cópia de trechos, umas notas, uma lista de palavras. Também
num espaço público, outro mapa, o desenho de uma quadrícula,
uma descrição, uma transcrição e uma leitura – uma cópia de
trechos, umas notas, uma lista de palavras.
No portão da escola Lauro Müller, mais um exercício,
individual e de memória da escola: A escola é..., Eu me lembro...,
Eu gosto/Eu não gosto... Cada atividade tinha vários protocolos
de tempo, como estar na escola 3 ou 4 horas, caminhar de 4 a 6
horas, ficar no portão de 2 a 3 horas, e várias noções espaciais,
como as quadrículas de 200 metros, um caminho de, no mínimo,
5 quilômetros, além de certas listas das coisas vistas, ouvidas e
senti-pensadas, de palavras utilizadas e de palavras descartadas.
Então, das derivas saíram mapas, linhas de tempo, ca-
dernos de observação e outros materiais de trabalho. E, em
todos os dias em que estas aconteceram, era aberto um tempo
de conversa, durante o qual todos os participantes mostravam
seus materiais e trocavam suas impressões e experiências. As
primeiras conversações ainda eram marcadas por um certo
delírio de ideias, como fazer o quarto mapa de barco, lançar-se
no trajeto de cadeira de rodas, observar os grafites, o banheiro

258
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

da escola, mas sem ter ido lá, observar o comércio por uma
intuição inicial. Eram marcadas também por um certo senso
opinativo – tão evidenciado em nossos tempos – maior que o
cumprimento das tarefas propostas.
Coube ao mestre imprimir ritmo à classe com seus próprios
registros e reprimendas: que a leitura do livro era mais mecânica,
que as coisas vistas na escola deveriam ser registradas no caderno
de anotações, que mais do que especularmos sobre o caminho,
deveríamos fazê-lo. Do que estávamos falando ali? Da atenção ao
caminho, daquilo em que Masschelein e Simons (2014a) insistem,
a partir de Walter Benjamin, de que caminhar e copiar é melhor que
ler e sobrevoar. As derivas são uma espécie de força do caminho,
que se impõe ao olhar e ao pensamento.
Assim, o momento das conversações pode se tornar o lugar
de compartilharmos os problemas, as sensações, as anotações, as
ideias advindas do exercício, daquele exercício. Ao cotejarmos
os mapas sobre a grande mesa formada pelas carteiras escolares,
nós, professores, técnicos, estudantes de graduação, doutores,
artistas, nos tornamos, de certa forma, iguais em nossas dife-
renças individuais, de hierarquia, de procedência, porque nos
tornamos estudantes. Também como estudantes devíamos estar
atentos aos modos de fazer e não à finalidade das coisas: hay que
hacerlas y hacerlas bien, dizia o professor.
Um dos principais objetivos de um exercício é nos tornar-
mos atentos. Nesse sentido, as derivas, como uma proposição
que nos impunha um caminho, não só nos mantinham atentos,
como também em experimentação. Para imprimir intensidade
e importância à ideia do caminhar, fazemos aqui um pequeno
jogo de palavras com um texto de Masschelein e Simons (2014):
Caminhar... experimentar a autoridade do caminho.
Caminhar... deslocar o olhar.
Caminhar... ver além de qualquer perspectiva.
Caminhar... é ex-posição, um estar fora da posição.

259
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Caminhar... é um modo e-ducativo de relacionar-se com


o presente.
Caminhar... entregar seu corpo.
Caminhar... seguir uma linha arbitrária.
Caminhar... permitir que o caminho submeta a alma.
Caminhar... aumentar a atenção.
Para desenhar a escola, este dispositivo educativo, tivemos
que, entre outras coisas, derivar, ou, como já nos sugeriu Mass-
chelein (2014), andar sobre linhas. Andar sobre linhas é se per-
guntar o que tem ali para ser visto e ouvido. E o que fazer com isso?
E como responder a isso? Remete à constituição de um problema
educativo em nossos tempos, que é o de como tornar o mundo
presente. E, no fundo, desenhar a escola, como um exercício
coletivo de pensamento, nos tornou presentes.

A produção de textos (caderno verde)


Acontecimento. Afecção. Suspensão. Encontros. Exercí-
cios. As derivas foram uma experiência. Foi cuidado diante
de uma questão pública: a escola. Nos encontros, o tempo era
“livre”, suspenso, materializando-se em exercícios que exigiam
atenção e estar presente no presente. Foi possibilitada uma
reunião de pessoas interessadas em algo em comum.
Os exercícios, alguns deles expostos no Museu da Escola
Catarinense entre outubro e novembro de 2016, tentaram
representar os estudos e as práticas que nos aconteceram, nos
tocaram e nos aproximaram de algo comum: a matéria, o
pensar a escola. Em materialidades expusemos as atividades.
A exposição deu forma às ideias, aos pensamentos, ao desenho
da escola.
Um desenho do qual interessa o percurso, o traçado
que se desenha e desconhece a produção final, distante do
decalque, como um caminho “[...] sem um programa, sem

260
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

um objetivo, mas sim, com uma carga, uma responsabilidade:


o que há para ver, ouvir, pensar?” (Masschelein; Simons,
2014b, p. 51).
Exercício I: estudo e textos. Nos debruçamos sobre os mapas
elaborados a partir de trajetos percorridos. Para sua composição,
os textos, o estudo, as conversações, os sublinhados criaram
uma forma, um desenho. Um exercício de pensamento, que
provocou, chamou a atenção e nos suspendeu para questionar
e pensar e desenhar a escola.
Um ponto inicial e final em comum. Um percurso sin-
gular. Um exercício de atenção às instituições educativas, aos
espaços vazios, aos espaços públicos e aos nossos interesses do
“olhar”. A partir dos percursos, outros exercícios foram sur-
gindo e materializando-se.
As memórias escolares, um excerto dos exercícios:
Eu me lembro de quando me apaixonei pelo estagiário de Edu-
cação Física na quarta série.
Eu me lembro do uniforme escolar bem-engomado: um vestido
azul petróleo e uma camisa branca.
Eu me lembro que o nosso esconderijo na escola se chamava
caverna. Lá era onde guardavam os pneus de brincar.
Eu me lembro do avental xadrez, branco e azul, com meu nome
bordado, dos tempos do jardim…
Eu me lembro das polainas coloridas, sob as canelas, por cima
do uniforme escolar, em dias extremamente frios.
Eu me lembro das cadeiras do teatro da escola que não paravam
de fechar com nosso pouco peso.
Exercício II: uma prática, o desenho da escola. Com tantos
pensamentos e opiniões singulares, o esforço era estar atento
aos detalhes, ao comum, à escola. Detalhadamente desenhada,
expomos a escola com o intuito de possibilitar um segundo
exercício do pensamento. Qual seu espaço? Tempo? Matérias?
Tecnologias? Sujeitos? Missão?

261
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Num exercício nada fácil, porém atento, desenhamos,


com alguns contornos, a escola... Como faísca... Teve sentido
no momento de sua produção, do encontro e das pessoas en-
volvidas... Mas ao acender e formar o fogo, resultado de um
processo termoquímico, torna-se apenas representação... Com
sentido apenas para os envolvidos, para o grupo, e possibilitou
um exercício de pensamento, “algo como um território de
passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que
acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve
algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (Larro-
sa, 2002, p. 24). Estar num território de passagem – este foi o
exercício –, diferente de ir de um lugar a outro, mas percorrer
e perceber o caminho.
Sintam-se convidados e provocados ao exercício de pen-
samento! Que os textos os toquem. Este é o convite!

O desenho (caderno amarelo)


Instigados por um professor, pusemo-nos a caminhar.
Exercitamos, lemos, pensamos e desenhamos. Desenhamos:
um exercício do pensamento, um exercício de dar forma. Um
exercício sério, mas também algo como um jogo, já que não
pretendíamos que valesse mais do que o exercício – não tinha
de dar em nada, não precisava ser útil.
Traçamos caminhos pelos mapas. Caminhamos. Traçamos
caminhos pelos exercícios. Demos atenção. E, assim, a fazer
exercícios e caminhadas, fomos desenhando, dando forma, a
uma escola – outra escola.

Outra escola com seu espaço


Espaço que separasse. Que separasse para proteger, para
guardar e dispor. Guardar aquilo que era raro: tempo. As-
sim, uma escola cuja espacialidade desse tempo. Diante da

262
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

velocidade acelerada do além-muro, do frenesi produtivo-


consumista do mundo contemporâneo e dos desejos da cida-
de-shopping, espaço para ter tempo: uma escola que lentificasse,
que permitisse errar, repetir, refazer, fazer com diligência
e paciência, fazer uma e outras vezes sem que se estivesse
lançado ao utilitarismo capitalista.
Espaço que suspendesse. Que suspendesse para recomeçar,
para diferenciar, para criar. Suspender tudo aquilo que se colasse
ao estudante, mas suspender também aquilo que se colasse ao
espaço. Escolher um lugar de alto valor simbólico e monetário,1
desapropriá-lo para ali plantar uma heterotopia, suspender a
mais-valia para que se produzisse uma menos-valia do espaço.
Um escola constituída espacialmente de alguns elementos:
um umbral, que marcasse a entrada (ou a saída), que delimitasse
e separasse; um acesso, que conduzisse do fora (o mundo) ao
dentro (a escola), acesso à suspensão, à separação; um pátio, que
permitisse estar ao ar livre, com algo que destoasse do urbano,
que permitisse o descanso, a contemplação, a brincadeira e o
encontro; uma biblioteca, que salvaguardasse livros onde o raro
e o inútil ficam, que oferecesse espaço ao estudo e à leitura;
uma sala de aula, da qual se pudesse “fechar a porta”, gesto para
suspender o tempo e o espaço do mundo para o exercício da
atenção e da aprendizagem; esconderijos (a serem encontrados
ou criados).

Outra escola com suas matérias


Ao desenhar esta escola, pensamos em algumas matérias
“fundamentais”, a saber, ler e escrever, conversar, modelar e olhar.
O que implicava a constituição de uma escola de alfabetização,

1
A área escolhida para a construção imaginária dessa escola foi o 14º Pelotão
de Polícia do Exército, localizado na rua Bocaíuva, n. 60, no Centro de
Florianópolis (SC).

263
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

mas também uma escola em que se aprendesse de ouvido, uma


escola que desse forma e fizesse formar, uma escola que educasse o
olhar. Matérias escolares que teriam a ver com o corpo, o corpo
como materialidade – corpo como artefato que age sobre algo,
mas também corpo sobre o qual se age. Assim, neste desenho,
as matérias, no que agiriam sobre e com o corpo, também des-
tacariam dele elementos, partes nas quais se deteriam de modo
mais específico. Quando da conversa haveria uma educação da
voz, através da voz, mas também dos ouvidos; o modelar, por sua
vez, compreenderia uma educação da mão, um fazer manual; ao
se educar o olhar haveria, obviamente, um fazer sobre o olho; já
ler e escrever abarcariam tanto a mão que escreve quanto o olho
e/ou a voz que leem. Esse corpo, enquanto materialidade escolar,
não estaria presente apenas em partes, mas como um todo – ainda
que, por vezes, se agisse para “minimizar” a atuação de algumas
partes para aprimorar a educação de outras.

Outra escola com suas atividades


As atividades, aí, possuiriam um modo de operar que tor-
nariam qualquer prática (não escolar) uma atividade escolar. A
esse modus operandi demos o nome de exercício. O exercício teria
por princípio o “fim em si mesmo” ou a ausência de finalidade,
uma atividade sem olhar para uma meta, uma competência, um
conteúdo ou outra coisa que não o próprio fazer da atividade.
Exercício como ginástica do corpo e da alma.
Em relação à prática do exercício, temos de grifar alguns
elementos que a comporiam enquanto elementos peculiares:
atenção, a concentração na atividade de modo a produzir-se uma
desvinculação do que é exterior ao exercício, tornando-o real;
disciplina, a postura de fazer(-se), ainda que por meio certa artificia-
lidade, (re)entrar na atividade, mantendo-se nela com paciência e
esforço; diligência, o cuidado e a minúcia na execução da atividade

264
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

de modo a evitar a negligência (que impele a sair do exercício),


potencializando os aspectos ginásticos da prática.

Outra escola com suas tecnologias


No percurso, também fomos desenhando as tecnologias
desta escola. O conjunto quadro-giz-apagador implicaria um mo-
vimento de escrever/apagar/reescrever e “escrever” diria mais
do inscrever algo no quadro, de modo a tornar o inscrito matéria
de estudo e atenção, do que apenas representar nele algo por
meio da escrita. O quadro seria suporte da materialidade (re)
inscrita na relação giz-apagador. Este tríplice-dispositivo estaria
disponível àquele que ocupa a função-professor para a escrita e
àqueles que ocupam a função-aluno para a leitura.
Ao dispositivo caderno-lápis-borracha, por sua vez, demos
uma lógica mais ou menos inversa, pois cada qual, na função-es-
tudante, o possuiria de forma “individualizada” para a escrita,
mas o conteúdo deste não estaria acessível, a priori, a todos para
a leitura, senão àquele na função-professor. O dispositivo cader-
no-lápis-borracha ainda possuiria uma dimensão escolar muito
importante, a saber, o “passar a limpo”. Esse gesto, enquanto
expressão da atenção, da disciplina e da diligência, produziria
um efeito de educação no corpo – depois de ter podido errar,
experimentar e rasurar o exercício, o estudante haveria de (re)
fazê-lo em sua forma mais “exercitada”, ou seja, mais aperfei-
çoada. O caderno, ainda enquanto tecnologia escolar, possui
duas formas: o caderno de notas e o caderno de exercícios. Enquanto
aquele se prestaria a acompanhar a aula e permitir gravar em si
os elementos considerados relevantes e necessários (dignos de
nota) para uma rememoração (em outras atividades escolares),
este seria suporte do exercício propriamente dito.
Outra tecnologia que pensamos importante para esse dese-
nho da escola é a argila. Argila enquanto matéria que permitiria a

265
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

modelagem, a implicar uma prática cuidadosa e paciente, atenta,


mas também inventiva. A argila seria a imagem da escola, esse
lugar de modelagem do corpo e da alma.
Seriam ainda partes deste rol de dispositivos escolares outras
duas tecnologias: a carteira – esse aparato que não é tanto o for-
mato clássico que faria apenas sentar-se, mas um dispor o corpo
e a mente de maneira apropriada ao modo de operar da escola
(do exercício, da atenção, etc.). O livro-texto, não tanto como
livro didático (em sua forma atual), e sim o modo de utilização
de um texto “qualquer” que o suspenderia de seu status normal
e o disporia ao processo escolar de educação.
Assim, exercitando nossos corpos e almas, arriscamos
riscar alguns traços de uma escola, desenhamos (ou tentamos
desenhar) outra escola. Escola da skholé (tempo/espaço livres),
que guardaria os estudantes da norma, do shopping e do utili-
tarismo, dando-lhes tempo e espaço para experimentar algo
raro, diferente – uma heterotopia.

A versão de uma aluna.


As derivas: um gesto de interrupção
Falo aqui de um exercício coletivo. Creio que se trata,
posso agora dizer, de uma experiência, e, como tal, é subjetiva e
pessoal. Trago, portanto, palavras pessoais (mas não minhas, pois
são reverberações de coisas ditas e ouvidas) para falar algo sobre
atividades que não se direcionavam a ninguém em particular (e
dessa maneira a todos, da mesma forma).
A atividade foi pensada, os protocolos foram criados e
apresentados, a exigência, explicitada. Aos presentes, cabia uma
escolha: participar ou não. A escolha implicava comprometi-
mento e, consequentemente, decisões. A opção por participar,
neste caso, foi motivada pela expectativa e pelo encantamento.
A expectativa foi racional. Conhecia, por meio de textos, o

266
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

ministrante das atividades. Confiava, portanto, na qualidade


do que encontraria. O encantamento foi acidental. Aconteceu
desde o primeiro dia, quando foi anunciado que as expectativas
deveriam ser anuladas, pois não haveriam objetivos finais. O
ministrante não falaria sobre ele, seus livros ou conceitos, mas
trataria apenas das ideias de um autor cujo nome eu, até então,
desconhecia. Além disso, encaminharia atividades como copiar,
listar, mapear e caminhar. Formato absolutamente intrigante
para uma atividade que, até então, imaginava ser puramente
“acadêmica”. Confiante e arrebatada, insisti.
Criamos um ambiente escolar para falar da escola. O
ministrante, até então entidade etérea, tornava-se o professor.
Nós, consequentemente, os alunos. A escola era a matéria.
Havia a sala, havia o quadro, havia a porta. Havia textos para
ler, sublinhados a declarar, mapas a percorrer. Havia exercícios.
Nós, os alunos, deveríamos fazer os exercícios. Nós, os alunos,
éramos professores em diferentes instituições, de diferentes
campos, com diferentes titulações. Ali, naquela sala, porém,
éramos alunas e alunos. Continuávamos todos tendo com-
promissos, obrigações e responsabilidades. Mas ali, naqueles
instantes, tudo o que nos diferenciava deveria ser indiferente.
Deveria ser colocado em suspensão. Não havia um objetivo
a atingir, não havia uma função a cumprir. Apenas fazer os
exercícios, seguir os protocolos e estudar a escola a partir dos
textos e ideias colocados à nossa disposição.
Não foi tarefa fácil, esta de seguir os protocolos e lidar
apenas com o que estava à disposição. Não foi tarefa fácil despir
vaidades e abdicar da expectativa. Não foi tarefa fácil perceber
que tudo o que nos era exigido era tempo e atenção. Logo tempo
e atenção, tão raros e escassos. Não foi tarefa fácil, essa de ser
uma aluna como outra qualquer. Mas foi libertador.
O exercício, estranho e repetitivo, de apenas ler subli-
nhados de um texto proposto, exigia, a princípio, pouco: ter

267
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

realizado a leitura e ter sublinhado algo. Tão pouco, mas tão


potente. Exigia-se, em sala, algo que todos eram capazes de
fazer, desde que dispusessem de tempo e atenção.
Realizar os percursos exigiu tempo e atenção. E compro-
metimento e, em certos casos, exaustão.
Se a experiência, como algo que nos toca, requer um
gesto de interrupção, conforme afirma nosso professor, penso
que as derivas foram uma inesperada possibilidade. Quando
me lembro do exercício, por mais que as leituras, ideias e
discussões tenham sido instigantes, inovadoras e, algumas
vezes, revolucionárias (como, pessoalmente, a questão da
igualdade como ponto de partida), creio que aquilo que
aprendemos situa-se em outro local. Em uma outra ordem de
saber. E talvez por isso seja tão difícil falar sobre. Talvez por
isso faltem as palavras. Talvez por isso a incômoda sensação
de que, terminado o exercício, se esvai, junto dele, nosso ar.
As derivas, para todos os que se expuseram a elas, tiveram
muito de Masschelein e Simons, e muito de Larrosa.
Vivemos em suspensão. Colocamos o que éramos en-
tre parênteses. Nossas demandas pessoais, nossas motivações
primeiras, nossas segundas intenções eram indiferentes. O
exercício não resultaria em algo “academicamente produtivo”.
Não havia pontos ou promessas. Apenas o tempo feito livre
para pensar a escola.
Profanamos. Transformamos a escola em matéria de estudo.
Apregoamos que nossa escrita e nossos pensamentos, tão íntimos,
seriam ali públicos. Caminhamos, não para chegar a algum lugar,
mas para, tão somente, realizar o percurso. E, quem sabe, ver,
ouvir e sentir algo neste entre-tempo e entre-lugar.
Atentos e abertos, fomos inquiridos a pensar coisas que
estavam fora de nós mesmos. O tempo suspenso, aquele em
que estávamos na sala, começou a escapar pelas frestas e captu-
rar outros instantes. Já não era possível pensar a escola apenas

268
Desenhar a escola: um execício coletivo de pensamento

durante as atividades. Algumas atividades impregnavam nosso


cotidiano, nossas formas de ser e fazer, independentemente de
onde estávamos. Algumas atividades nos (re)formaram.
Praticamos e estudamos. Muito. Copiamos e listamos.
Tentamos, erramos e repetimos. Lemos e relemos. Caminha-
mos. Exercitamos. Desenhamos.
Fomos iguais. Juntos, começamos algo. Todos fomos
capazes de ler, sublinhar, falar, caminhar e pensar. Mais ou
menos, dependendo do tempo e da atenção. Tínhamos um
ambiente escolar que, como tal, era ambiente de potência.
A escola era trazida para o nosso presente. Era repensada e, a
partir de nossas leituras, sublinhados e caminhadas, seria talvez
redesenhada. Dependia de nosso tempo e atenção. De nosso
interesse e nossa vontade. Era potência.
Houve o amor. Houve o respeito, a atenção, a dedicação
e a paixão. Tínhamos, diante de nós, o professor inspirado e
inspirador. O professor que estava presente, que determinava
a lição. Que personificava a matéria ao falar sobre a escola
através de trejeitos absolutamente escolares. Que cultivava
um silêncio ritual antes da primeira palavra proferida, a cada
tarde. Que fechava a porta. Que disciplinava horários, fazia
registros e escrevia no quadro. Que falava a todos. Tínhamos
um professor.
Tudo o que pensamos e exercitamos, como disse anterior-
mente, nos (re)formou. Aprendemos, e é exercício contínuo,
a olhar mais devagar, a pensar mais devagar, a sentir mais de-
vagar. Aprendemos a suspender o juízo e a opinião, a cultivar
a atenção e a delicadeza. A escutar. A dar-se tempo e espaço
(Larrosa, 2016, p. 25). O que importa, creio, é o que fomos,
enquanto éramos. O que fizemos, enquanto estávamos fazendo.
Algo nos aconteceu. Algo nos passou. Algo bonito. Findo o
exercício, o sentir provocado pela experiência das derivas, de
alguma maneira, permanece.

269
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

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RANCIÈRE, J. Ecole, production, égalité. In: _____. L’école de la démocratie.
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270
Quarta parte
MIRAR A ESCOLA:
UMA MOSTRA DE CINEMA
Celebração da revolta:
a poesia selvagem de Jean Vigo1

David Oubiña

Deslocar ao plano da criação a fervorosa


voluptuosidade com que, durante nossa infância,
rompemos a pedradas todos os faróis da
vizinhança.
Oliverio Girondo

I
Barthes afirmava que os textos de Proust o emocionavam
profundamente e que, portanto, nada podia dizer sobre eles.
Outro qualquer também deveria se calar diante dos filmes
de Jean Vigo; porque raras vezes o cinema foi capaz de sus-
citar uma emoção em aparência tão pura, tão primitiva e tão
incondicional como nestes filmes. Entretanto, é preciso dar
conta dessa emoção. Não se trata de um afã cirúrgico – porque
não existe nisso nenhuma pretensão de cientificidade – senão

1
Este texto está originalmente no livro A infância vai ao cinema (Autêntica,
2007), organizado por Inês Assunção de Castro Teixeira, Jorge Larrosa e
José de Sousa Miguel Lopes.

273
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

de comunicar a própria emoção enquanto espectador. Não


eliminar a subjetividade, senão fazer entrar a arbitrariedade da
experiência privada no circuito dos discursos. É indubitável
que pode haver tanta intensidade em um pensamento como
em um gozo. E se negar a racionalizar as próprias emoções de
espectador é se privar de exercer as paixões da interpretação.
Sobretudo em um filme em que se propõe um conceito
absolutamente ideológico (quer dizer, não ingênuo) das emo-
ções. “Pequenos diabos no colégio”, diz uma das legendas de
Zero de conduta. Não se trata aqui de nomear uma travessura; e
sim de consignar seu valor político. Jean Vigo põe em questão as
noções aceitas sobre o caráter inofensivo das crianças. Não que
estes meninos percam a candura, senão que a candidez deixa
de ser uma espécie de deficiência. “Conspiração de crianças”,
diz outra legenda. Este é um dos poucos filmes na história
do cinema que possui um olhar subversivo sobre a infância,
que a pensa como lugar da rebelião. Quero dizer: a meninice
e a madurez não são aqui idades do desenvolvimento, senão,
sobretudo, categorias políticas enfrentadas.

II
O célebre Henri Langlois – fundador da Cinemateca
Francesa – disse de uma vez por todas: “se o cinema é uma
arte onírica, só há um homem que possui a chave dos sonhos:
Jean Vigo” (Langlois, 1986, p. 257). A obra de Vigo é tão
breve como luminosa. Morto prematuramente aos 29 anos,
só conseguiu completar quatro filmes: os curtas-metragens
À propos de Nice (1930) e A natação por Jean Taris (Taris, ou la
natation, 1931), o média-metragem Zero de conduta (Zéro de
conduite, 1933) e o longa-metragem O Atalante (L’Atalante,
1934). Não obstante, esses poucos filmes testemunham com
clareza a passagem do cinema francês entre as vanguardas dos

274
Celebração da revolta: a poesia selvagem de Jean Vigo

anos 1920 e o realismo poético dos anos 1930. Vigo é um


ponto de condensação privilegiado, um momento de síntese
na história do cinematógrafo. Ou, como afirmou François
Truffaut, nele convergem as duas grandes tendências do
cinema: realismo e esteticismo. Com efeito, não há beleza
mais celestial nem lucidez mais terrena que as imagens dos
filmes de Vigo.
Zero de conduta é um ensaio poético sobre o tema da li-
berdade versus a autoridade. Em um colégio interno, o cineasta
confronta professores tirânicos com crianças revoltosas. Mas,
sem dúvida, isso não diz muito sobre o filme. Proibido logo
após sua estreia (foi acusado de “espírito antifrancês” e esteve
proibido até 1945), Zero de conduta é um filme imprevisível.
Uma celebração da revolta. Um poema surrealista em código
anarquista, próximo – neste sentido – a Um cão andaluz. Vigo
concebe seu filme com o mesmo afã destrutivo com que seu
admirado Luis Buñuel definia o seu: como “um desespera-
do, um apaixonado chamamento ao crime”.2 Subversão é a
palavra-chave em Jean Vigo. A subversão não é sistemática,
é inconstante, impossível de ser recuperada pela instituição.
E as crianças sabem – talvez de forma confusa – que não há
maneira de entrar em acordo com as autoridades do colégio.
Eles dizem: “Tudo se comparte em um complô”, mas não se
trata de cooperar em uma causa comum que logo derivaria
em um decente bem comum; trata-se de uma solidariedade
sem estatuto e, portanto, de uma comunidade mais espontânea
e mais intensa. Fugir à decência: em Zero de conduta há um
motim de crianças, talvez uma horda infantil, mas nunca um
espírito de corpo e, muito menos, uma corporação. Nada que
chegue a se fixar.

2
Luis Buñuel, ao apresentar o roteiro do filme quando foi publicado por La
Révolution Surréaliste. Reproduzido em Talens (1986, p. 101).

275
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Anárquica em seus postulados, surrealista em sua narração,


a estrutura mesma de Zero de conduta atua como seus vandálicos
protagonistas: desordenadamente e sem justificação. Muitas
vezes destacou-se que a estrutura explosiva do filme é vaga,
confusa e inclusive torpe. Mas, tal qual explicou Maximilian
Le Cain, o filme deveria formar parte de uma série de mé-
dias-metragens de baixo orçamento, e como Vigo se excedeu
na duração acordada, isso o obrigou a cortar:
Frente a esta tarefa dolorosa, tinha duas opções. Uma era
respeitar a claridade narrativa e a outra era privilegiar os
momentos mais poéticos. Haver escolhido este último
caminho ajudou a dar a Zero de conduta essa forma que
faz com que hoje seja tão excitante. Cada imagem e cada
cena são uma surpresa, como se aparecessem para formar
seu momento mais expressivo, dando a impressão de um
filme escutado por acaso ou, inclusive, espiado mais do
que exibido diretamente diante dos espectadores. Isto cria
um tipo de alerta pouco comum no observador, uma leve
sensação de desconcerto, como se você estivesse vagando
no sonho de outro. No contexto de uma história sobre um
bando de crianças conspiradoras, isso evoca a experiência
vivida e inquietante de estar acedendo a um mundo que é
secreto e exclusivo delas. Este universo infantil obedece a
uma lógica própria que não podemos aspirar a entender,
mas temos o privilégio de observá-la com o profundo
respeito que Vigo lhe confere (Le Cain, 2002, [s.p.]).

Há um certo caos narrativo, com efeito, porque o cineasta


rompe com a estrutura de montagem causal de Griffith em que
cada um é componente diferenciado (ou seja, hierarquizado)
de um todo. Zero de conduta pratica a atomização, um tipo de
balcanização estética. Nenhuma convergência de sentidos; ou
melhor, constitui-se a subversão do discurso lírico: Jean Vigo
é o poeta da sedição.

276
Celebração da revolta: a poesia selvagem de Jean Vigo

III
O diretor do colégio não é outra coisa senão um meni-
no de terno e barba. Em que se diferencia dos demais? Em
todo caso, quer se apresentar como um modelo de conduta.
Pretenderá nos fazer crer que ele é a imagem daqueles em
que as crianças se converterão como homens de bem. Por isso
sua retórica insistirá sobre as “responsabilidades morais” que
o colégio tem para com os estudantes sob sua tutela. Mas é
precisamente essa atitude paternal que o delata: este adulto
prematuro é um menino cristalizado. “Vergonha para os que
mataram na puberdade o que haveriam podido ser” – escreve
Vigo – “e buscam ao longo do bosque e da praia, onde o mar
arroja nossas lembranças e nossas nostalgias, até a dessecação
do que são quando chega a primavera” (Vigo, 1989, p. 137).
Sabemos, como sabem as crianças, que a aparência amigável
do diretor é uma farsa ou uma emboscada. Não há nenhuma
semelhança entre este indivíduo e as crianças; sua textura
física similar não faz mais que acentuar a distância que os
separa. Inversamente, o bedel Huguet é um adulto infantil
que se diverte imitando Chaplin. Nas palavras do diretor:
“O bedel Huguet sucumbe ao encanto das crianças. É como
se fosse uma delas”. Um preceptor que não postula nenhum
preceito de conduta senão que se deixa arrastar pela torren-
te de desordem. E mais, a promove. O bedel Huguet pode
converter uma chata excursão de boyscouts em uma festa, só
para perseguir uma dama: a multidão de crianças correndo
desordenadamente atrás do apaixonado preceptor, alterando
a calma dessas ruas da província, constitui a mais gozada
assunção do caos desde aquela insólita invasão bovina que
liderou Buster Keaton em O vaqueiro.
“É necessário vigiá-las”, diz o diretor. Vigiá-las e castigá-
las. Discipliná-las. Ou melhor, ordená-las e distribuí-las: cada

277
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

indivíduo em seu lugar e em cada lugar um indivíduo. Foucault


escreve: “Tática de antideserção, de antivagabundagem, de an-
tiaglomeração. A disciplina fabrica assim corpos submetidos e
exercitados, corpos dóceis” (Foucault, 1987, p. 147). O que tem
em comum a escola, a cadeia e a fábrica é que são instituições
disciplinares. A disciplina tem como função organizar os corpos.
Regula os comportamentos de acordo com padrões estabelecidos.
A escola (como a fábrica, como a cadeia) é um dispositivo de
autorreprodução, de autorrepetição e de autopreservação. Mas
todo esse esquema se derruba fazendo-se perguntas adequadas,
como as que formula Jean-Luc Godard em France/Tour/Détour/
Deux enfants. Por exemplo: se alguém faz a tarefa, por que está
em dívida com a escola? Por que a escola não deveria pagar para
que alguém aprenda? Se as famílias visitam os presos na cadeia,
por que então os pais não visitam seus filhos no colégio? Uma
vez que as crianças gritam de alegria quando saem ao recreio, por
acaso deveria ser entendido que não estavam gostando da aula?
São perguntas muito simples, perguntas muito elementares, mas
que têm o mérito de colocar em questão aquilo que não costuma
ser questionado.
Godard é, sem dúvida, uma transformação contemporânea
de Vigo. E também o é Deleuze, em certo sentido: “Às crian-
ças se ministra a sintaxe do mesmo modo que se ministra aos
operários instrumentos, para produzir enunciados conforme as
significações dominantes. É preciso que compreendamos em
sentido literal esta fórmula de Godard: as crianças são prisioneiras
políticas. A linguagem é um sistema de ordens, não um meio
de informação” (Deleuze, 1995, p. 67). Como em Godard, o
axioma que subjaz ao filme de Vigo indica que toda instituição
educativa (disciplinária) é, antes de tudo, uma instância de con-
trole. O que é que se domestica na educação? A criança educada
é uma criança sob controle? Encaminhar é “colocar no rumo”
e, portanto, define uma eficácia e uma utilidade. Em Zero de

278
Celebração da revolta: a poesia selvagem de Jean Vigo

conduta, já foi dito, só há uma pulsão de desordem totalmente


descontrolada. Ou melhor, comicamente descontrolada.
Na primeira cena do filme, veem-se duas crianças em um
vagão de trem, regressando ao colégio ao final das férias. Como
se quisessem celebrar o reencontro, como se quisessem se colo-
car em dia, mostram o que aprenderam durante o verão. Nada
muito edificante, seguramente. São esses tipos de habilidades,
entre ingênuas e descaradas, que não se aprendem na escola
mas que fazem os saberes próprios da infância: soprar uma
corneta com o nariz, fazer um truque de arrancar um dedo,
simular dois seios com balões, colar penas por todo o corpo
para imitar um galo. Cada um, em sua vez, dobra a aposta do
outro. Como no capote de Harpo Marx, tudo cabe dentro
dos sacos das crianças e elas não deixam de extrair objetos em
uma competição interminável. Finalmente, sacam dois cigarros
enormes que parecem transportá-los a outra dimensão e que
enchem de fumaça o compartimento até imbuí-lo de um tom
quase alucinógeno.
“A fantasia é a única coisa interessante da vida”, disse o
cineasta. “Gostaria de levá-la até a pura loucura” (citado em
Gomes, 1999, p. 176). Como se quisesse desmentir o lamento
de André Breton, Vigo afirma que o escândalo ainda existe.

IV
Em À propos de Nice, a descrição do documentário denun-
ciava, através do ridículo, os costumes frívolos da burguesia
opulenta e ociosa. De maneira similar, em Zero de conduta os
questionamentos nunca perdem seu caráter lúdico. Como
sustenta Paulo Emílio Sales Gomes:

A divisão entre crianças e adultos no interior da escola


corresponde à divisão em classes da sociedade: uma mi-

279
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

noria forte que impõe sua vontade a uma maioria débil. A


associação entre as crianças e seu cúmplice, Huguet, por
um lado, e as pessoas do povo, a cozinheira e o moço do
café, por outro, não a estabelece a ação – pois seria algo
artificial – senão o próprio estilo realista da apresentação
de um e outros, em oposição à estilização acentuada dos
adultos que representam a autoridade (Gomes, 1999, p. 168).

Não há aqui nenhum panfleto. “Abaixo os vigilantes”,


“Abaixo os castigos”, “Viva a rebelião”, anunciam os peque-
nos conspirados hasteando um estandarte com a caveira e as
tíbias em cruz. Mas em seguida, fica claro que só querem se
divertir. Crianças apaixonadas enfrentando adultos hipócritas
e autoritários. A infância não é aqui um estado de pureza
passageiro. Estes meninos rebeldes não respeitam nada: são a
pele de Judas. Enfrentam o diretor, arruínam a celebração do
colégio e batem no intendente. Se não há nenhuma reivindi-
cação, nenhuma alegoria sobre o poder, é porque a natureza
combativa do filme não reside na confrontação dos bandos,
senão na fúria libertadora do enfrentamento.
No prólogo de seu romance La seducción, o escritor Wi-
told Gombrowicz escreve: “O homem, todos sabemos, tende
ao absoluto. À plenitude. À verdade, a Deus, à inteira matu-
ridade... Abarcar tudo, realizar-se integralmente – este é seu
imperativo. Mas em La seducción manifesta-se, como creio,
outro objetivo do homem, mais secreto sem dúvida, ilícito de
certo modo: sua necessidade do inacabado... do imperfeito...
do baixo... da juventude” (Gombrowicz, 1982, p. 9).3 Isso é

3
Essa inferioridade também define uma forma de ser estrangeiro: “Sou um
forasteiro totalmente desconhecido” – escreve Gombrowicz – “careço
de autoridade e meu espanhol é um menino de poucos anos que apenas
sabe falar. Não posso fazer frases potentes nem ágeis, nem distintas, nem
finas, mas alguém sabe se esta dieta obrigatória não acabará sendo boa
para a saúde? Às vezes gostaria de mandar todos os escritores do mundo

280
Celebração da revolta: a poesia selvagem de Jean Vigo

o que Gombrowicz chama o princípio de imaturidade. Sempre


há, na arte, um resto caprichoso ou não assimilável que resiste
ao significado pleno e que, nesse ato de resistência, põe em
questão a suposta verdade dos sentidos comuns. Vigo é, então,
o cineasta da imaturidade. Poder-se-ia dizer que Truffaut tam-
bém; mas seu olhar é mais compreensivo e, inclusive, caso se
queira, cúmplice. Para Vigo, diferentemente, a infância não é
um tema, senão uma perspectiva crítica. Um teatro de opera-
ções. E, neste sentido, seu herdeiro direto é Jacques Tati: em
um e em outro, o que o cinema permite recuperar é a liberdade
amoral da infância. Ou seja, a infância considerada em toda
sua potência subversiva ou contestatória, como um momento
pré-social, completamente alheio aos códigos e às convenções.
O cinema e a arte da infância. O que não significa que é
uma arte infantil. Vigo nunca se confunde: “Com o pretexto de
que o cinema acaba de nascer, estamos brincando como crianças
pequenas, como esse pai que “balbucia” para que seu anjinho
possa entendê-lo melhor” (Vigo, 1989, p. 134). Trata-se de outra
coisa. Se o cinema é o meio analógico mais bem capacitado para
produzir a ilusão de uma reprodução fiel do mundo, também é o
que de maneira mais clara permite desmontar esse automatismo
perceptivo. Os filmes se organizam como resultado de uma bata-
lha entre duas forças opostas: uma delas tende para a unidade da
obra e, portanto, torna possível perceber as relações dos compo-
nentes dentro de uma estrutura narrativa; a outra se coloca por
fora dessas forças homogeneizadoras e consiste, basicamente, no
excedente material da imagem que nunca pode ser dominada por
completo por essas estruturas narrativas. Esta textura visual que
tende ao disperso, ao heterogêneo, ao descontínuo, e que resiste

ao estrangeiro, fora de seu próprio idioma e fora de todos os ornamentos


e filigranas verbais, para comprovar o que é que resultará deles então”
(GOMBROWICZ, 1986, p. 9).

281
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

a se apresentar diante do sistema ordenado da representação, é


um excedente que o cinema dominante necessita reprimir, mas
que não deixa de observar desde as margens.4
Nos filmes de Vigo, esse excesso poético adquire um
protagonismo insolente, libertando-se das compelidas ataduras
impostas pela tirania de uma história. O resultado é uma das
obras mais radicais, mais inassimiláveis e mais belas na história
do cinema.

V
“Tem-se o mundo que se merece”, escrevia Vigo (1989,
p. 137). Aonde vão estas crianças que escapam pelos telhados
depois de semear o caos? Não têm nenhum lugar aonde ir.
Mas a ausência de teleologia não parece uma carência e sim
uma emancipação. Livraram-se da ditadura que impõe uma
direção: já não as ameaça a obrigação de ter que ir para alguma
parte. Orgulho pela margem. Como Rimbaud, Vigo aposta
em um razoável desarranjo de todos os sentidos. Ou em suas
próprias palavras: trata-se de “ver com outros olhos que não
os habituais”.
Buñuel é terrível, disse o cineasta, e há que se tomar isso
como um elogio. É que Jean Vigo também acaba sendo terrível.
É essa mesma poesia selvagem que o anima.

Referências
DELEUZE, G. Tres preguntas sobre Seis por Dos (Godard). In: ____.
Conversaciones.Valencia: Pre-Textos, 1995.
FOUCAULT, M. Vigilar y castigar. México: Siglo XXI, 1987.
GOMBROWICZ, W. Prólogo. In: _____. La seducción. Barcelona: Seix
Barral, 1982.

4
Sobre a noção de excesso, ver Heath (1981) e Thompson (1986).

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Celebração da revolta: a poesia selvagem de Jean Vigo

GOMBROWICZ, W. Contra los poetas. In: RUSSO, E. Poesía y vida.


Santa Fe: Universidad Nacional del Litoral, 1986.
GOMES, P. E. S. Jean Vigo. Barcelona: Circe, 1999.
HEATH, S. Film, System, Narrative. In: _____. Questions of Cinema. In-
dianapolis: Indiana University Press, 1981.
LANGLOIS, H. Trois cents ans du cinéma. Paris: Cahiers du cinéma; Ciné-
mathèque Française, 1986.
LE CAIN, M. Jean Vigo. Senses of Cinema, n. 21, jul. 2002. Disponível
em: <http://sensesofcinema.com/2002/great-directors/vigo/>. Acesso
em: 03 set. 2017.
TALENS, J. El ojo tachado. Madri: Cátedra, 1986.
THOMPSON, K. The Concept of Cinematic Excess. In: ROSSEN,
P. (Ed.). Narrative, Apparatus, Ideology. Nova York: Columbia University
Press, 1986.
VIGO, J. El punto de vista documental: À propos de Nice. In: ROMA-
GUERA I RAMIÓ, J.;THEVENET, H. A. (Eds.). Textos y manifiestos del
cine. Madri: Cátedra, 1989.

Filmes citados
À propos de Nice (Jean Vigo, 1930)
A natação por Jean Taris (Taris, ou la natation, Jean Vigo, 1931)
Zero de conduta (Zéro de conduite, Jean Vigo, 1933)
O Atalante (L’Atalante, Jean Vigo, 1934)
Um cão andaluz (Un chien andalou, Luis Buñuel, 1929)
O vaqueiro (Go West, Buster Keaton, 1925)
France/Tour/Détour/Deux enfants (Jean-Luc Godard e Anne-Marie Mi-
éville, 1977)

283
Elogi de l’escola e Escolta:
o ordinário da escola em imagens

Karen Christine Rechia, Caroline Jaques Cubas

Dois filmes. Duas escolas. Escolas públicas. Educação


primária. Catalão. Língua de sinais. Alunos, professores,
cenas, espaços, linguagens. Estes e tantos outros elementos
podem ser facilmente observados em Elogi de l’escola e Escolta.
Ambos os filmes suscitam profícuas reflexões a respeito das
instigantes possibilidades de se pensar as relações entre cinema
e educação. Deambularemos, porém, por vias distintas. Nosso
interesse, nas linhas que seguem, direciona-se à possibilidade
de se pensar a escola, na escola, sobre a escola. O cinema
torna-se, então, elemento constitutivo deste pensar.
Sobre os filmes e suas particularidades, há muito o que
se ressaltar. No entanto, Elogi de l’escola arrebata-nos através da
seguinte sentença proferida por um aluno, quando descrevia
o que gostava em sua escola: “Para mim, escrever é sentir o
que quero dizer”. Frase esta complementada por outro aluno
que anuncia: “pensar e escrever, centrarmos no que estamos
fazendo”. Tal arrebatamento leva-nos ao exercício de pensar
estes dois filmes a partir de elementos presentes neles mesmos:
escrever, sentir, pensar. O que apresentamos aqui, então, é
a trajetória de um pensamento, na qual tais elementos têm
seus sentidos ampliados e servem de pretexto para pensar os

285
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

elementos que fazem da Escola de Bordils e da Escola Tres Pins


escolas de fato. Antes das escolas, porém, os filmes.

Elogi de l’escola (2010)


Entre os anos de 2009 e 2010, os estudantes da Escola
de Bordils1 dedicaram-se a olhá-la com atenção peculiar. Por
ocasião do 75º aniversário da escola, o espaço outrora conhecido
e familiar foi redescoberto. Ao invés de palco onde as apren-
dizagens e relações aconteciam, a escola, naquele ano singular,
transmutou-se naquilo que deveria acontecer.
Para as comemorações, os alunos e alunas foram envolvidos
em um projeto que consistia em documentar a escola e tudo
aquilo que a ela parecia significativo, tanto no que dizia respeito
ao passado, quanto ao presente e futuro. Para tanto, dedicaram-se,
efetivamente, à escola. Pesquisaram, entrevistaram, filmaram,
fotografaram, mediram, desenharam, escreveram, recordaram
e pensaram. Todo o material produzido pelas diferentes turmas
somou pouco mais de 5 horas de gravações, nas quais a escola foi
meticulosamente explorada em seus espaços, tempos e sujeitos.
Tais atividades confluíram na produção de um documen-
tário, o Elogi de l’escola, produzido e protagonizado pelos estu-
dantes. Para a elaboração e execução do projeto, contaram com
o auxílio/participação dos professores e da associação A Bao
A Qu na assessoria e no desenvolvimento do projeto Cinema
en Curs. Este último faz-se presente desde 2005 na Escola de
Bordils e tem entre seus objetivos desenvolver os potenciais
pedagógicos da criação cinematográfica no contexto educati-
vo.2 Para tanto, realizam oficinas nas quais o trabalho sempre

1
Localizada no município de Bordils, província de Girona, na região da
Catalunha, Espanha.
2
Para informações mais detalhadas sobre o projeto Cinema en Curs, acessar:
<http://www.cinemaencurs.org/ca>.

286
Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens

é compartilhado por alguém do grupo e por um docente,


através de práticas e programas comuns a todos os alunos, de
todas as idades. É um trabalho com cinema na escola que não
passa pela palavra nem pela interpretação de atores, mas pelos
meios de expressão cinematográficos: personagens, planos,
alunos-cineastas e a busca de uma forma.
O filme Elogi de l’escola constitui uma linguagem. Apre-
senta uma forma particular de falar do que a escola foi, do
que a escola é e do que dela se deseja. Este falar não é, porém,
despropositado. É um falar comprometido, fruto de exercício
e de pensamento. É um falar da escola, na escola. É exercício.
É um falar subsidiado por todos os elementos que constituem
aquilo que chamamos “o escolar”.

Escolta (2014)
Escolta, em catalão, significa “escuta”, e é um documen-
tário bilíngue: na língua de sinais e em catalão. Foi filmado na
Escola Municipal de Tres Pins, em Barcelona – antigo Instituto
Municipal de Fonoaudiologia –, com crianças de 3 a 12 anos,
mostrando o dia a dia em uma escola na qual as crianças ou-
vintes e as crianças surdas compartilham as aulas e uns e outros
aprendem, entre outras coisas, a língua de sinais e a língua oral.
O diretor Pablo García Pérez de Lara também é vincu-
lado ao Cinema em Curs, no entanto, esta é uma obra autoral,
que surge a partir de um curta-metragem de ficção intitulado
Oblidant a Nonot (2011). Esse curta é a história de Diana, uma
menina surda que perde uma gata chamada Nonot e espalha
desenhos dela no bairro.3 Dele já participam alunos da Escola
Tres Pins, bem como a professora Pepita Cedillo, que tem
importante contribuição nas duas películas, segundo o autor.

3
Esta história se passou com a filha de uma colega de trabalho do diretor.

287
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

A pedido da associação A Bao A Qu, para acompanhar a


projeção do curta nas escolas, Pérez de Lara escreve o artigo “Ser
surdo não significa ser mudo” (Pérez De Lara, 2012). Neste,
o que nos interessa precisamente é que, ao falar do processo de
criação de Oblidant a Nonot, nos ajuda a compreender Escolta.
O que ele não pretendia em Oblidant? Falar sobre o mundo
das pessoas surdas, ou a relação entre surdas e ouvintes. O que o
impulsionava? Uma necessidade artística, concreta, de investigar
com aquilo que sabe fazer, ou seja, buscar novas formas de se
expressar com o cinema. A aproximação com os surdos se dá
então pela possibilidade de comunicação, entre outras formas,
com as mãos: “uma comunicação visual tão infinita e extensa
quanto complexa e maravilhosa” (Pérez De Lara, 2012, [s.p.]).
Além de ser uma forma de linguagem potente para quem usa,
também se apresentou como potência em sua busca criativa.
Há certas escolhas em Oblidant que dizem da sua maneira
própria de filmar, a qual pode ser observada em Escolta. Na
película, a maioria das pessoas é surda, mas há sons muito altos,
mais altos que o habitual: o espremedor de frutas, a panela de
pressão, os carros, as motos, os ônibus, o vento. No entanto, os
sons e as imagens tocam a ouvintes e surdos: ônibus rápidos em
primeiro plano, a panela e o espremedor filmados em zoom,
as árvores com detalhes, os cabelos ao vento (tanto a presença,
quanto a ausência de sons são reforçadas). Compõem também
com estes elementos não só as legendas da língua escrita, mas
as legendas coloridas em ambos os filmes, que indicam os sons.
Nas palavras do diretor,

em última análise, uma das coisas que queria transmitir


é que todos temos sentimentos e todos sentimos prazer
e sofremos, sejamos ouvintes ou surdos, sejamos baixos
ou altos, e, por isso, somos todos parecidos, por mais que
sejamos muito diferentes (Pérez De Lara, 2012, [s.p.]).

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Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens

É essa espécie de igualdade como princípio que obser-


vamos também em Escolta. Por fim, para ele importa que as
histórias não sejam encerradas, que o espectador tenha a pos-
sibilidade de imaginar muito mais coisas, porque aquele que
explica as coisas tem que crer na capacidade de imaginação do
espectador, “porque tú también tienes una capacidad inmensa
de imaginación por si no lo sabías” ([s.p.]).

Escrever
Tanto Escolta quanto o Elogi de l’escola instigam a pensar a
escola. O ato da escrita como exercício está presente em ambos.
Possibilitam-nos, portanto, a percepção da escola como um lugar
de exercícios e de dedicação a tarefas determinadas.
No livro Em defesa da escola, no capítulo “O que é o escolar?”,
mais especificamente no item “Uma questão de tecnologia (ou
praticar, estudar, disciplinar)”, Masschelein e Simons explicitam
as particularidades do exercício como elemento inerente ao que
é escolar. Ao falar sobre o ditado enunciam:
[...] o lugar do professor como mediador que conecta o alu-
no ao mundo. Esse encontro permite ao aluno deixar seu
imediato mundo da vida e entrar no mundo do tempo livre.
Neste sentido, um método de ensino deve, constantemente,
ser conectado ao mundo da vida dos jovens, porém, exatamente, para
removê-los de seu mundo de experiência (Masschelein; Simons,
2013, p. 57, grifo nosso).

Eis a primeira impressão sobre Elogi de l’escola. Desde as


primeiras cenas, o filme traz crianças fazendo coisas: pintando,
calculando, lendo, conversando, filmando (e aqui chama a aten-
ção o fato de que filmar é colocado como parte das atividades
cotidianas). Em poucos segundos, sugere-se que aquilo que estão
fazendo, em diferentes momentos, dizia respeito a um tema

289
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

comum: a escola. As primeiras cenas seguem com a descrição de


como as coisas estão todas em seu lugar, desde objetos e artefatos
materiais ao raio de sol que invade a sala e faz sombra com a
janela. E permanecem desta forma até que chegam as crianças.
Alunos entram e ali (talvez apenas ali) tornam-se iguais. Colo-
ca-se uma questão (e não um problema) em comum: a escola.
A escola que frequentam, que conhecem, onde vivem. A escola
de seus pais, de seus avós. A escola que, apesar de absolutamente
familiar, é transformada em outra. O professor levanta questões,
incita o interesse, profana a escola ao transformá-la de espaço
de estudo a objeto a ser estudado: “Como descobrir coisas so-
bre a escola?”, “O que gostariam de saber?”, “O que havia?”,
“Quem construiu?”, “O que estudavam?”, “Como aprendiam?”,
“Havia celebrações?”, “E castigos?”, “O que não mudou?”. As
cenas das perguntas sintetizam, talvez, uma ideia de “escolar”:
cadernos abertos sobre a mesa, dedos em riste pedindo a vez,
o professor autorizando a fala. Vários alunos diferentes (cores,
tamanhos, cabelos – talvez valores), sendo a diferença metafori-
zada em algumas camisas de times de futebol, fazendo as vezes
de uniforme. Naquele momento, porém, a diferença dá lugar
ao que é comum: o interesse, a atenção, aquilo que está sobre
a mesa: a escola.
A escola é apresentada aos 9 minutos naquilo em que é
diferente: a fachada, o pátio, os arcos. Elementos que já existiam
em 1935, quando da sua inauguração. O primeiro elemento de
singularização da escola é, justamente, aquilo que permanece.
Tal percepção leva, então, a uma atividade: a elaboração dos
planos da escola. O espaço da escola, vivido cotidianamente
como espaço de estudo ou de brincadeira, é, definitivamente,
transformado em matéria. É objeto de exercício. É percorrido,
observado, medido, esquadrinhado, desenhado. Aos alunos
cabe reconstruir a escola a partir das marcas de passado que
se fazem visíveis no presente. Para tanto, é preciso olhar. É

290
Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens

preciso atenção. A este respeito, Masschelein e Simons (2013)


trazem o seguinte:

A escola é o tempo e o lugar onde temos um cuidado


especial e interesse nas coisas, ou, em outras palavras, a
escola focaliza a nossa atenção em algo. A escola (com
seu professor, disciplina escolar e arquitetura) infunde na
nova geração uma atenção para com o mundo: as coisas
começam a falar (conosco) (p. 51).

Ao transformar a escola em matéria de estudo, os alunos


profanam (carinhosamente) até mesmo sua colega Laya, trans-
formando-a em escala de medida. Buscam sinais do passado
nas paredes, pisos e tetos. A história está presente. Pensam os
planos, os espaços, a localização da escola. A geografia está
presente. Medem, calculam, adicionam, subtraem. A ma-
temática está presente. Preocupam-se demoradamente com
o fato de que meninos e meninas estudavam em ambientes
separados. Novamente a história, aliada à sociologia, toma
lugar. Observam as grandes árvores do pátio e pensam o que
elas teriam a dizer. As ciências da natureza e um pouco de
filosofia, em conjunção. Das folhas caídas, fazem cartazes.
Novamente as ciências, organizadas esteticamente por prin-
cípios, talvez, aprendidos em artes. E, é claro, escrevem. Re-
gistram. Atribuem sentido. Estão, definitivamente, presentes
no que fazem. Ao estudar a escola, estão na escola.
Em Escolta, os exercícios possuem também centralidade.
Não tratam de um objeto comum, mas partem de um princí-
pio comum: a igualdade. A evidente particularidade da escola
institucionaliza, em certa medida, o princípio de Jacotot, tão
bem descrito por Rancière (2015). As aulas e atividades, mi-
nistradas através dos sons e das mãos, simultaneamente, bus-
cam suspender o que seria uma diferença notória: a presença

291
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

de alunos surdos (oralizados ou não) e ouvintes. Não que a


diferença deixe de existir, mas na medida em que a atenção
aos exercícios, às atividades, ao que se deve fazer é igualmente
exigida para todos, tal diferença dá lugar ao que todos têm em
comum: são, ali, estudantes.
Além dos exercícios, esta questão da igualdade é retratada
de forma delicada em ambos os filmes, quando apresentam
formas de identificação. Em uma rápida cena de Escolta, ob-
servamos, em umas das paredes da sala de aula, um painel
com as marcas das mãos dos alunos em tintas coloridas. Como
legenda, apenas os nomes. Os alunos são, assim, apresenta-
dos no que têm em comum: um nome e suas mãos, através
das quais, surdos ou não, podem falar uns com os outros.
A identificação aparece também de forma curiosa em Elogi
de l’escola. Ao fim do filme, nos minutos que antecedem os
créditos, todos que contribuíram aparecem no mesmo local e
dizem apenas seus nomes. A igualdade aqui não diz respeito
aos exercícios escolares cotidianos, mas ao exercício de fazer
um filme. Cada professor e aluno expõem seus rostos, seus
nomes e suas vozes. Expõem aquilo que têm de singular. E
nisso, são iguais.

Sentir
Assim como fizemos com o escrever, o sentir aqui tam-
bém tem seu sentido ampliado. Na medida em que pensamos
a escola como um lugar de sentir, potencializamos a possibili-
dade de experiência daquilo que pode ser sentido. As escolas
retratadas, pensadas como espaços em suspensão, permitem
sentir curiosidade e interesse. Trazem à tona lembranças e
sensações. Segundo um aluno, entre tantos, “todo mundo
está em silêncio: concentração, pensamento, lembranças,
sensações. Para mim, escrever é sentir o que quero dizer”.

292
Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens

A curiosidade e o interesse estão presentes em ambos os


filmes. Uma cena que parece se repetir (o que efetivamente
acontece, no cotidiano escolar) é aquela em que o professor
expõe a matéria e faz perguntas. Os alunos, afoitos por arriscar
uma resposta, erguem os dedos e entregam, ao professor, sua
atenção, seu interesse, seu erro ou certeza, sua possibilidade
de tentar. A ansiedade em esperar pela vez, o receio em ser
chamado (quando não se quer). O pesar do erro, o orgulho
do acerto. Sente-se muito nessa fração de segundos em que se
tenta adivinhar, quase sempre em vão, para onde apontará o
olhar do professor. Em Escolta, tais cenas têm a peculiaridade
de fazer com que as respostas sejam proferidas pela voz ou pelas
mãos. Em muitos casos, pelos dois.
É igualmente envolvente a sequência, em Elogi de l’escola,
em que os alunos falam sobre a escola. Falam de coisas e lugares
que gostam. Justificam o gostar. A escola é lugar de gostar.
Através do que gostam, reelaboram a escola. O pátio, o poço,
a porta. O túnel. O curioso túnel que ganha atenção. Onde é
“sempre úmido e sempre noite”. O túnel, esconderijo à vista
de todos, torna-se, para alguns, o lugar mais extraordinário da
escola. De fato, está na escola, mas foge de uma determinada
ordem escolar. Gostam também de artes, de teatro, da escrita
e da leitura. Gostam, ao que parece, daquilo que se percebem
capazes de fazer.
A escola é também lugar de lembrar. Ao construir o
elogio da Escola de Bordils, entrevistas com antigos mestres
e alunos da instituição abrem espaço para memórias. Em
pequenas rodas, assentadas em espaços que “traziam boas
lembranças”, homens e mulheres punham-se a falar de um
outro tempo. Suspendiam os imperativos do presente ao de-
morarem-se em um passado, mais ou menos distante, mais
ou menos feliz. Da revolução das batas à Espanha de Franco,
estabelecia-se uma conversação. Aquele tempo rememora-

293
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

do fazia-se possível apenas na medida em que, na escola, o


tempo ganhava novo sentido. Era tempo desobrigado, tempo
sem função. Tempo de ouvir, de sentir e de aprender algo.
Tempo sobre a escola. O sentir e o aprender, porém, depen-
dem absolutamente de uma abertura e ex-posição a isso. Não
aprender da experiência do outro, mas abrir-se ao que ele tem
a dizer, ao que se pode viver. Se, conforme Larrosa (2016), a
experiência requer um gesto de interrupção, esses momentos,
talvez, possam ser encarados como espaços de possibilidade.
Nessas rodas de conversa, faziam-se perguntas, mas não se
buscava informação. Em relação ao que era dito, não se pro-
feria opinião. Dava-se, literalmente, tempo ao tempo.

Pensar
Em Escolta, as características que compõem uma escola
se destacam. Como exemplo, o tempo. Há um tempo que
corre lento no interior de cada cena, e a simultaneidade é
mostrada pelo som/escrita de uma atividade que aparece em
outra cena. Ao mesmo tempo, o som e a escrita remetem a
um objeto concreto, o qual já foi mostrado. Portanto, não há
aí somente um tempo livre, como um tempo lento. A escola
faz do tempo livre uma realidade e, do tempo lento, uma
possibilidade. E o cinema imprime esse tempo na forma de
um evento concreto, uma pessoa ou um objeto que se move,
de manifestações reais. Tarkovski, ao falar da imagem cine-
matográfica, diz que “nenhum objeto ‘morto’ – uma mesa,
uma cadeira, um copo – enquadrado separadamente de todo
o resto pode ser apresentado como se estivesse fora do fluxo
temporal, como se fosse visto sob o ponto de vista de uma
ausência do tempo” (Tarkovski, 1998, p. 78). Assim como
na escola, o tempo está vivo em seu interior. E o que pode-
ria ser uma simultaneidade de telas (para mostrar diferentes

294
Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens

atividades em diferentes espaços ao mesmo tempo), numa


dispersão, é apresentado pelo diretor numa simultaneidade
de som e escrita, atravessando os espaços.
E como se apreende isso? Através da observação. A ima-
gem no cinema é a observação dos eventos da vida dentro do
tempo, organizados/editados como a vida. Assim, nenhum
dos objetos está fora do fluxo temporal, porque pela imagem
o tempo presente deles não pode ser removido. E no interior
das imagens observadas, os objetos escolares tomam vida, na
forma de fotogramas entre ou por entre as cenas. E “quanto
mais precisa a observação – a apresentação da observação – mais
ela tende a ser única, mais próxima de uma verdadeira ima-
gem” (Tarkovski, 1998, p. 128). Imagens verdadeiras porque
se aproximam de uma função, como as cenas capturadas no
filme de Pablo García, por vezes tão simples e exatas como
um haicai.4
Na escolha dos enquadramentos, não há nenhuma es-
pontaneidade, tampouco há simbolismos vazios. Então é
possível encontrar nos dois filmes um princípio tarkoviskiano,
o de que a imagem só pode ser “concretizada através das
formas naturais e reais da vida”, percebida pelos sentidos,
e nos dois filmes também pela visão/audição. Nos dois não
há excessos, não há imagens oníricas, não há efeitos evo-
cativos. A mise en scène – a disposição e o movimento dos
objetos em relação ao enquadramento – nos dois filmes,
principalmente no Elogi de l’escola, no qual a própria escola
é a matéria de estudo, nos fala da escola como um lugar de
lembrar, sobretudo como um lugar de estar. E, por sua vez,
o cinema pode transformar em singular o “ordinário” da
escola. Uma cozinha, uma biblioteca, um laboratório, uma
4
Tarkovski faz essa comparação ao dizer que o que o fascina na imagem é
a recusa de um significado final para ela, não significam nada além de si
mesmas, mas ao mesmo tempo podem comportar uma espécie de enigma a
ser desvendado, como um haicai.

295
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

sala de professores, uma sala de artes plásticas. Os lugares e


as coisas dentro deles são enumerados, e nos damos conta
do que compõe uma escola, das coisas que fazem da escola
uma escola. No caso do Elogi, ao mesmo tempo em que os
estudantes os descrevem, trabalham neles.
Inventariam os objetos e as atividades e, no interior delas,
o que mais gostam. Mas nos chama a atenção que o gostar na/
da escola não se refere a nada fora dela nem a algum sentimento
indizível: “eu gosto da fachada que toca o pátio grande, porque
é de onde se vê todas as classes”, “a porta é importante para
mim, porque é onde eu aprendo”, “para mim é importante,
porque é um lugar onde trabalho e aprendo”. Escola é lugar de
lembrar e de estar e, acrescentamos, lugar de dizer e de fazer.
Na alternância entre planos gerais e primeiríssimos
planos, identificamos os gestos desses imperativos e fazeres
escolares. E aqui o que se quer dizer com gesto é o que nos
diz Flusser (1994): “o gesto é um movimento do corpo, ou
de um instrumento unido a ele, para o qual não se dá ne-
nhuma explicação causal satisfatória” (p. 8). Ou seja, algo
que prescinde de uma discussão posterior, mas que aí está,
a nos dizer o que é e o que não é próprio daquele dispo-
sitivo. Mesmo em Escolta, numa escola bilíngue, estamos
a observar os mesmos gestos que compõem, talvez, uma
linguagem escolar.
Ao falar em gestos, há que se falar no professor. Em Escolta,
apesar de os planos serem quase sempre médios ou fechados nos
alunos, o professor é uma figura que se destaca. Para Massche-
lein, ele “representa o mundo, a tarefa ou o assunto”, torna-os
presentes. Tem uma arte especial, a de “disciplinar (no sentido
positivo de focar a atenção) e apresentar (como em trazer para
o presente do indicativo ou tornar público)” (Masschelein;
Simons, 2013, p. 135). E o que é esse apresentar? Fazer algo

296
Elogi de l’escola e Escolta: o ordinário da escola em imagens

existir, dar autoridade a um pensamento, um número, uma


letra, um gesto, um movimento ou uma ação, assim, apresentar
é trazer algo para a vida.
Voltando aos espaços, duas coisas que ainda gostaríamos
de destacar. Constitutivo da escola, mas às vezes não nomeado,
é o corredor. Em ambos os filmes ele aparece como um lugar
filmado por câmera fixa, em observação. Em Elogi há uma fala
assim: “o corredor das crianças me traz memórias: quanto eu
era pequena, gostava de brincar de casinha, de me fantasiar,
de boneca e de carrinhos, porque me fazia sentir muito bem”.
Um espaço evocado e evocativo por excelência. Interessante
que está quase sempre vazio, em ambas as películas, como que
a apontar que as coisas estão acontecendo em outros lugares
– e muitas vezes, como acima, em outros tempos. É como se
o corredor vazio mostrasse que há movimento na escola. Há
tendências na educação escolar que reivindicam a ocupação, a
“humanização”, o preenchimento dos corredores. Acreditamos
que eles poderiam continuar assim, como passagens, como
espaços vazios em que algo aconteça. Ou não.
Por fim, há cenas de portas, de portões, de fachadas, objetos
associados aos lugares de entrar e sair. Nas Derivas,5 discutimos
muito sobre a importância de fechar a porta da sala de aula para
que algo aconteça. Nos dois filmes, isso aparece claramente
tanto no cotidiano escolar, quanto nas escolhas e desenhos das
crianças. As portas têm sentido, as fachadas são anunciadas, os
portões cessam um movimento para começar outro. Poderosos
lugares de passagem, talvez nos ajudem a pensar a escola não
como um lugar de prisão, mas de proteção.

5
Derivas: um exercício de pensamento foi uma das atividades do evento
Elogio da escola (2016), promovido pelo Observatório de Práticas Escolares
(OPE), Geografias de Experiências/Lepegeo da UDESC, Laboratório
do Ensino de História (LEH) e o CA do Colégio de Aplicação (UFSC).
Disponível em: <http://www.elogiodaescolaudesc.com/2016>.

297
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

O que ainda per-dura? O tempo. Tanto a temporalidade


de um dia em Escolta, quanto a temporalidade de um projeto
que atravessa estações como o de Elogi de l’escola, marcam um
tempo escolar. Por meio tanto das imagens dos dias de neve
caindo quanto dos dias de outono e suas folhas secas que abri-
gam os pequenos leitores, corre um tempo implacável, que
ao mesmo tempo ameaça a lentidão desses momentos. Mas
são precisamente esses dias que anunciam que tudo sempre
começa de novo.

Referências
FLUSSER, V. Los gestos: fenomenología y comunicación. Barcelona: Herder,
1994.
LARROSA, J. Tremores. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública.
Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte:Autêntica, 2013. (Coleção
Educação: experiência e sentido.)
PÉREZ DE LARA, Pablo García. “Oblidant a Nonot” (Ser sordo no sig-
nifica ser mudo), publicado em 13 nov. 2012. Disponível em: <https://
pauperezdelara.wordpress.com/2012/11/13/oblidant-a-nonot-ser-sor-
do-no-significa-ser-mudo/>. Acesso em: 03 set. 2017.
RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Cosac Naify, 1998.

Filmografia
Elogi de l’escola. Direção: Cinema en Curs. Espanha, 2010. 53 min.
Escolta. Direção: Pablo García Pérez de Lara. Espanha, 2014. 29 min.

298
Ser e ter: a produção de sentidos –
por uma topologia das infâncias e
suas relações com a escola

Patrícia de Moraes Lima

... e se dissesse mamãe ao invés de papai?


– pergunta o professor
Seria “a colega” – disse o menino
Não “amiga” – disse outra menina
Ainda não aprendemos “colega”
– disse o professor
(Ser e ter, 2002)

O texto proposto resulta de uma participação no semi-


nário Elogio da escola realizado pela Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC), no qual, em outubro de 2016,
foi exibido o filme Ser e ter, e na ocasião encontrava-me como
pessoa convidada a falar, provocar e mobilizar o debate acerca
do documentário com a plateia. Portanto, tomo a liberdade
de uma escrita coloquial, na intenção de fazer fluir o clima do
encontro no evento. O filme exibido é uma direção de Ni-
colas Philibert, documentarista que pesquisou muitas escolas
na França até se decidir por um grupo de crianças em uma

299
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

pequena cidade interiorana, em que foram recolhidas mais de


600 horas de registros audiovisuais.1
O documentário Ser e ter apresenta uma narrativa sobre
um contexto institucional/escolar em uma pequena cidade
rural no centro da França, cujo protagonista é um professor
chamado Georges Lopes. Georges trabalha nessa escola com
crianças em diferentes idades, e esse detalhe é um traço que já
de início eu gostaria de destacar: as diferenças provenientes das
idades que coabitam o espaço escolar e que nos apresentam a
possibilidade de pensar a escola como um habitat marcado por
relações intergeracionais e também intrageracionais, no caso
quando nesse espaço identificamos relações das crianças com
adultos, das crianças com outras crianças e dos adultos com
outros adultos. Esse modo de organização escolar é bastante
comum no interior da França, onde crianças de várias idades
dividem a mesma sala de aula, idades essas, que neste docu-
mentário variam entre 4 e 11 anos. Mais adiante veremos o
que nos dá a pensar uma escola caracterizada por esses vetores:
intergeracional e intrageracional, e também como podemos
pensar a escola por uma topologia das infâncias e, com isso,
inverter a lógica que prescreve o lugar das infâncias na escola,
ou ainda os sentidos da escola para as infâncias. Desalinhar a

1
A película possui as seguintes premiações:
• Premiação César, França, 2003: Melhor Montagem
• Premiação do Cinema Europeu, 2002: Melhor Documentário
• Sindicado dos Críticos de Cinema da França, 2003: Melhor Filme
• Festival de Cinema Documental Full Frame, 2003: Prêmio do Júri –
Nicolas Philibert
• Associação Nacional de Críticos de Cinema, EUA, 2004: Melhor Filme
Não Ficcional
• Prêmio Louis Delluc, 2002: Prêmio Louis Delluc – Nicolas Philibert
• Festival Internacional de Cinema de Valladolid, 2002: Melhor
Documentário
• Étoiles d’Or, 2003: Melhor Filme

300
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia das infâncias
e suas relações com a escola

o olhar e perspectivar, talvez, uma infância para escola, uma


topologia das infâncias para a escola é o que proponho pensar.
Voltemos ao protagonista do filme, Georges, um professor
que tinha a real intenção de que as crianças não apenas apren-
dessem os conteúdos, mas, principalmente, valores, modos de
conduta, formas de convívio. A narrativa endereçada na película
passa a ideia da importância do ser em detrimento do ter, eis aí
o nome do documentário, que provoca pensar que esses valo-
res necessitam sobremaneira ser permanentemente construídos
por Georges (professor) em suas recorrentes intervenções com
as crianças. Esse caráter impresso no modo de ser professor,
através de uma atenção permanente àquilo que acompanha,
no caso, as crianças, é marca gritante na película. Georges em
diversas cenas entra nesse conteúdo: na construção de valores e
de aprendizados com as crianças, ensinando-as que isso se faz
pelo convívio coletivo. Isso nos dá a pensar que a educação tem
sim muito a ver com esse ensinar a conviver, porém, o ensinar
não necessariamente se ocupa do estar-junto (Skliar, 2009). A
convivência no espaço educativo da escola pode pautar-se num
anacrônico dualismo, entre aquilo que ali está (os modos de
existência) e aquilo que se deve ensinar. Percebo que, obviamen-
te, ao tratarmos do lugar da escola, estamos tratando do que se
ensina, de como se ensina, porém, há que se perguntar sobre os
sujeitos, a quem se ensina? Ou ainda, quem ensina? Eis aí por
onde poderá circular uma topologia das infâncias.

O que a película nos dá a pensar?


As relações, as infâncias, a vida na escola
Eu poderia percorrer as linhas neste texto enfatizando
o lugar de Georges como professor dedicado às crianças,
sensível aos aspectos que contornam a docência com crianças
tão pequenas em uma cidade rural na França. Poderia, ainda,

301
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

vetorizar o lugar da escola na vida das crianças, os ensina-


mentos ali construídos e por aí vai. Não faço essa escolha,
não por desmerecer essa relevância, mas por desejar inverter o
olhar, o ângulo pelo qual olhamos a escola. Aqui, neste caso,
vetoriza-se a infância e as suas topologias. O que as infân-
cias provocam? O que nos dão a pensar? Como as infâncias
alterizam a escola? Esfolam a sua interioridade, despindo-a
da sua roupagem, suas malhas, suas arquiteturas (corpo), seus
excessos, seus blocos.
Partindo desse desejo, retomo algo essencial para pensar
a escola como esse corpo a ser despido e retorno aqui a algo
que já tratei em outro tempo, quando afirmei que no interior
da escola há um cotidiano intenso onde diferentes práticas
sociais desterritorializam permanentemente a sua organização
(Lima, 2008). Retomando a leitura de Deleuze (1996), pode-
mos pensar que uma organização é sempre tecida “por uma
operação, um sistema que acumula, sedimenta, impõe formas,
funções, ligações hierarquizadas, a fim de extrair trabalho útil”
(p. 21). Segundo o autor, não paramos de ser estratificados,
somos superfícies de estratificação, somos todos feitos dessa
tessitura, desse sistema que disciplina, organiza, hierarquiza,
limita. Ocorre que no interior da escola, persistem outros es-
paços, outras temporalidades, entre-lugares, não-lugares que se
fazem ocultos pelas lentes dos olhares possíveis que insistimos
voltar à escola. Normalmente, falamos dos tempos e espaços
escolares, das disciplinas, conteúdos, ensinamentos e aprendi-
zagens e tocamos pouco nos modos de existência dos sujeitos
que habitam a escola.
No documentário dirigido por Nicolas Philibert, encon-
tramos nas crianças modos de existência que alterizam perma-
nentemente a escola, cenas em que meninos e meninas insistem
em dizer, por meio dos seus corpos, das suas marcas, dos seus
registros, a existência de modos irregulares de estarmos-juntos

302
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia das infâncias
e suas relações com a escola

e que esses modos (relacionais) incidem diretamente sobre


como habitamos a escola, a sua organização, a sua arquitetura.
O tempo aparece como um componente importante para
decifrarmos essa equação. No documentário, o tempo aparece
marcado pelas estações (a neve, o frio, o vento, o sol) e também
na pergunta da criança: ficaremos aqui até quando? Há temporali-
dades que coabitam a escola por suas bordas: o tempo de cada
um, o tempo das estações, o tempo dos exercícios, o tempo
para escrever, para observar, olhar, sentir, ouvir um ao outro,
esperar a vez... Sucumbir a isso seria como se matássemos a
escola! É essa extensiva e excessiva medida do tempo que as
infâncias, na escola, nos apresentam. Mesmo quando habitam
a medida-do-tempo, estão sempre perguntando a nós, adultos:
ficaremos aqui até quando? Por outro lado, Georges, o professor
(adulto), vive na escola a mesma medida-do-tempo, sabendo
que irá partir, que todos partirão, que ele não estará mais
ali, e por isso agoniza, sente, percebe o tempo em toda a sua
voracidade. Inevitavelmente, vivemos entretempos, porém só
sentimos quando nos percebemos nessas nuances, nesses inter-
valos, nessas brechas. Percebe-se nesse encontro das crianças e
do adulto-professor uma linha temporal, um outro-tempo, que
é muito necessário ser igualmente reconhecido. Trata-se da
linha que nos une e separa, ou melhor, uma linha que alinha
uma contínua interdependência entre crianças e adultos. Uma
linha, uma temporalidade que não se prende em nenhum lugar,
e que talvez possamos chamá-la de infância. A infância como
um traçado (trans)geracional.
Nos Estudos da Infância, podemos destacar o modo
como a Sociologia da Infância propõe considerar a categoria
geracional, no caso, como uma categoria estrutural importante
para compreendermos as relações sociais (Qvortrup, 2000;
Mayall, 2003). A categoria geração é assumida como uma
variável independente, ligada prioritariamente aos aspectos

303
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

demográficos, econômicos da sociedade. A infância, pela


Sociologia da Infância, é afirmada como independente das
crianças. As crianças são os atores sociais que integram a
categoria geracional, através das suas diferentes idades, e
estão continuamente preenchendo e esvaziando essa cate-
goria: geração.
Assim como as crianças preenchem e esvaziam essa cate-
goria geracional, os adultos também o fazem. Alanen (2001),
numa apurada crítica à visão estrutural da Sociologia da In-
fância, procura resgatar a conceitualização da categoria gera-
cional, sublinhando a potencialidade heurística do conceito, e
chama-nos a atenção para os processos de construção simbólica
e das interações que marcam as crianças como um grupo etário.
Sem abandonar por completo as dimensões estruturais, Alanen
(2001) retoma a necessidade de uma abordagem relacional,
aponta-nos o “complexo dispositivo dos processos sociais” por
meio dos quais as crianças são construídas na sua identidade
social e diferenciadas dos adultos, o que envolve a ação social
(“agency”) das crianças, sendo um processo que se estabelece
na “prática social”. Desse modo, a autora nos é útil para que
possamos tematizar a geração simultaneamente como variável
dependente de aspectos estruturais mais vastos e igualmente
como uma variável independente, pelos efeitos estruturantes da
ação das crianças como atores sociais, e como tópico de análise
externa da infância, pela abordagem das relações intrageracio-
nais com a geração adulta, e tópico de análise interna sobre as
relações intrageracionais em que a infância (também) se (auto)
constitui (Alanen, 2001, p. 20-21).
A partir desse argumento, podemos pensar que na escola,
inevitavelmente, as relações intergeracionais ganham contornos
de uma imprevisível afecção, são habitadas permanentemente
por sujeitos crianças e adultos que se deixam “tocar” por essa
medida-de-tempo. Se, então, estamos nesse habitat, podemos

304
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia das infâncias
e suas relações com a escola

afirmar, talvez, que o tempo é um componente importante


para a escola e para os sujeitos que lá estão em relação. A in-
tenção aqui é perguntar-se sobre a escola como um espaço
onde sujeitos se invadem, se põem a sentir, ver e pensar, em
pura interdependência, ainda que cada qual habite seu lugar.

Educar tem a ver com a produção de sentidos:


por uma topologia das infâncias na escola
No percurso por uma defesa da escola (Masschelein;
Simons, 2013), ponho aqui em cena a topologia como um
conceito útil para embarcarmos nessa “tarefa”. A topologia é o
estudo do lugar e requer com isso pensar sempre no espaço em relação.
No espaço de viventes e não viventes, de saberes e não saberes. Pensar
num espaço topológico é pensar sempre nas relações entre sujeitos e
objetos (materialidades).2
Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado
a todos os outros lugares do mundo e, na verdade, está
em outro lugar que não o mundo. Pois é em torno dele
que as coisas estão dispostas, é em relação a ele [...] que
há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um
diante, um atrás, um próximo, um longínquo. O corpo é
o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se
cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração
do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual
eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu
lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias
que imagino (Foucault, 2013, p. 14, grifo meu).

Esse conceito – topologia – permite-nos estender o modo


como pensamos o espaço, assim como o tempo na relação com

2
Registro meu realizado no seminário Topologia da Diferença, com o prof.
Wladimir Garcia em 2015.

305
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

as crianças. No caso, entendemos o tempo e o espaço escolar


muito mais por aquilo que é constitutivo das suas percepções,
formulações e até mesmo aprendizagens, do que o tempo e es-
paço como tangencialidades, como topologias. Podemos, nessa
extensão, pensar o espaço como topologia das relações, como
rede, como contraespaços, como utopias localizadas (Foucault, 2013).
É no fundo do jardim, com certeza, é com certeza o ce-
leiro, ou é então – na quinta-feira à tarde – a grande cama
dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano
pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa
grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre
as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a
noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis; é,
enfim, o prazer, pois no retorno dos pais se será punido
(Foucault, 2013, p. 20).

As crianças habitam os espaços e ali expressam seus modos


de ser, de se entenderem no tempo, de ser tempo, ter tempo:
Ficaremos aqui até quando? Esse é o espaço topológico das in-
fâncias na escola.
Uma topologia que nos faz olhar pelo traço do tempo
dentro do tempo – espaço utópico –, como podemos também
perceber na cena em que Georges se pergunta, mediante a
topologia das infâncias ali circulantes, sobre quanto tempo ele
aplica ditados. A cena do exercício aplicado – o ditado – nos
perspectiva muitas angulações, e uma delas é a pergunta sobre
o tempo que é arremessada sobre Georges – quanto tempo aplica
ditados? Poderíamos ainda perguntar a Georges sobre a produção
de sentidos na busca por essa possível resposta que escava sua
própria história como professor, como sujeito: Quanto tempo
aplicas ditados, Georges?
Existe um modo de comunicação que ecoa ruídos inter-
mináveis em nós mesmos, e isso tem a ver com a pergunta:

306
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia das infâncias
e suas relações com a escola

por que temos a necessidade de civilizar a própria natureza?


(Schérer, 2009). Para onde pensamos a educação das crianças?
Para seu acabamento? A natureza aqui aparece como uma zona
perigosa e quase indecifrável, associada com as paixões e os
prazeres, e disso sabe muito bem a escola.
Schérer (2009) chama-nos a atenção para as virtualida-
des, para o inacabamento, e é implacável quando nos fala de
um processo civilizatório que está em curso para todo estado
de natureza – a civilidade. Quanto tempo aplicas o ditado, Ge-
orges? Talvez, o tempo dedicado aos ditados esteja fracionado
e friccionado no exercício contínuo de domínio das paixões
(infâncias), banindo assim toda e qualquer incivilidade. Eis aí
a necessidade que temos do outro, do humano perseguido (Rou-
dinesco, 2008).
Continuando a olhar com Schérer (2009), podemos in-
serir a pergunta desafiante: Como retomar os desejos e as paixões
para o campo das utilidades? Onde começa o humano e até onde ele
pode “evoluir”? O processo de humanização é civilizatório, diz
respeito a essa passagem – de um estado das paixões para uma
convivência mais serial. Vamos com isso dominando nossas
paixões, atribuindo nossa civilidade como projeto-de-mundo.
E a pergunta insiste em nós: do que pode se ocupar Georges?
De quais (in)civilidades?
No domínio de suas próprias paixões – onde insiste ecoar
a pergunta: quanto tempo aplicas ditados? –, reside um domínio
em devir: do que nos ocupamos na escola? Ocupar-se, conver-
ter a si mesmo o domínio (r)estrito das suas paixões, pode ser
um exercício. Eis o que pode Georges diante da topologia das
infâncias. Foi só por essa presença – Georges na relação com
as crianças – que a pergunta chegou a agudizar, sonorizar e
arremessar-se para o espaço topológico, para os contraespaços,
o das utopias localizadas (Foucault, 2013).

307
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Das infâncias, a virtualidade das abelhas e o mel do


inacabamento: por uma infância nas escolas, por suas
utopias localizadas, por suas topologias...

– A abelha que estava lá fora está no corredor ( Jojo – menino)


– Está no corredor? (Georges – professor)
– Ela foi até a porta e voltou ( Jojo – menino)
– Pra ver o que você estava aprontando (Georges – professor)
– Ela veio e voltou... ( Jojo – menino)
– Ela pensava: Será que Jojo lavou as mãos... ou ainda: estão
sujas de tinta? Será que ela pensou isso? (Georges – professor)
– Ela olhou para mim quando eu lavei
a minha testa ( Jojo – menino sorrindo)
– Verdade? (Georges – professor)
– Talvez ela quisesse te ver de perto (Georges – professor)
– Ou então me picar! ( Jojo – menino)
(Ser e ter, 2002)

As crianças experenciam-se na linguagem pelo pouco


tempo em que nela estão (tempo das medidas – anos), e por
essa pouca experiência na conformação da linguagem, residem
com muito mais liberdade no mundo! As crianças são capa-
zes de inverter a lógica, criar palavras, pensar sempre com a
curiosidade do não saber.
Gosto de insistir nessas linhas de que as crianças nos
oferecem a possibilidade de um declínio necessário para ha-
bitarmos o mundo da linguagem não se adaptando tão ce-
gamente, tão civilizadamente a esse mundo. Oferecem-nos
imagens para que possamos ainda existir ou ainda (re)sistir
através das paixões.
Elas, as crianças, não sabem de saber, elas sabem de sabor.
Saber saboreando a partir do lugar do desejo. Cultura oral,
saber mastigado, gostosura. Isso acontece com elas porque a
criança não é alguém que habite de pleno direito a casa da

308
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia das infâncias
e suas relações com a escola

linguagem, pois a criança não fala por inteiro, mas só pela


metade e incorretamente ( Jódar; Gómez, 2002, p. 37).

Há tempos, busquei em alguns textos meus traduzir essa


relação do conceito de infância e experiência para provocar
essa pergunta necessária que insisto em repetir: quem educa
a quem? E agora invisto nessa possibilidade de pensarmos
que educar tem a ver com a produção de sentidos, e, portan-
to, inevitavelmente essa produção, na escola, é marcada pelo
encontro entre gerações. A interdependência entre crianças e
adultos, numa contínua busca de produção de sentidos, faz da
escola um lugar a ser habitado e até defendido. Atribuir real
importância às infâncias na escola, inverter o olhar, tornar
“oblíquo o olhar” (Barros, 2006, p. XII), leva-nos a pensar
que seja possível habitar o mundo por outros contornos, por
outras linhas, por outras ruas.
Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima
não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões
não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e
assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos
irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades,
nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a
dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une,
nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento
imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria
vida, resiste às idades e às épocas (Rio, 2008, p. 1).
O virtual (Deleuze, 1996) está para ser atualizado, e
talvez seja essa uma boa imagem para a escola. Retomando a
cena da abelha para Jojo e Georges, a narrativa infantil dança
entre essas imagens de um continuum de composições, fragmen-
tações permeadas por aquilo que abraçam Georges e Jojo: a
imaginação. Essa dança entre o virtual e o atual é arrematada
com a hipótese – ou então me picar – nada assertiva de Jojo, pois

309
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

a hipótese é uma possibilidade, uma virtualidade que ao ser


atualizada não necessita fincar seus pés numa Verdade. Esse
continuum está a todo momento habitando as relações na escola,
e podemos aprender a mirá-lo. As crianças estão no mundo
como cartografias, repartindo seus afetos, por entre intensida-
des, decomposições, tangencialidades, não ocupam o espaço
somente sem medir e contar, mas sustentam seus trajetos e se
conectam com isso, ao acaso, ao distante e ao indeterminado.
A ocupação do espaço da criança é um estar no mundo sem
medida. As imagens que reúnem as crianças em tempos sem
medidas subvertem o acabamento dos corpos-adultos e das
suas identidades e lançam imagens fluidas que tracejam fluxos
de um devir.
O devir instaura outra temporalidade que não é a da história;
experimenta e explora a alteridade da existência. O devir não
é um estado já codificado e identificado, tampouco perspectiva
em seus estratos, um estado predefinido, identificado. Devir é
fluxo, é trajeto, é zona de vizinhança e indiscernibilidade. Deleuze
e Guattari (1996) distinguem dois modos de temporalidade: de
um lado temos o devir, e do outro a história. A história não é
experiência, mas o conjunto sucessivo dos efeitos de uma ex-
periência ou dos acontecimentos (chrónos). De um lado estão os
efeitos dessas experiências, e do outro a própria experiência, o
acontecimento. De um lado encontra-se o contínuo (chrónos), e
do outro o devir, as linhas de fuga, as minorias. O devir é sempre
minoritário, pois não possui modelo, está sempre em proces-
so, alcança velocidades, densidades, intensidades e desmedidos
movimentos absolutos.
Por fim, cabe dizer que o documentário revela o processo
de transitividade das crianças, a passagem entre o espaço da vida
privada para o espaço da vida pública, e isso nos remete a um
sentido importante para escola, que diz respeito a tudo o que
nossos corpos carregam, nossas memórias, afetos, hábitos, gostos,

310
Ser e ter: a produção de sentidos – por uma topologia das infâncias
e suas relações com a escola

sentimentos, objetos, etc. A chegada ao espaço institucionalizado


da escola, no seu ordenamento estrutural, arquitetônico, con-
juntural, não pode desconsiderar hábitos, ritos, tempos que são
alheios e anteriores, que correm por fora e habitam os corpos dos
sujeitos que ali estão. O ordenamento institucional é edificante,
não há como escapar, porém, ao considerar a escola e pressupor
a sua voraz edificação, precisamos pensar nas topologias das
infâncias como contraespaços, virtualidades, o continuum voo das
abelhas, e com isso escalar, escavar o corpo edificado e edificante
por suas porosidades, suas entranhas. Tal como nas paixões, per-
mitir-se a topologia das infâncias na escola é virtualmente crer
no atual, na curiosidade de ver e na intenção de picar da abelha.

Referências
ALANEN, L. Estudos feministas/estudos da infância: paralelos, ligações
e perspectivas. In: CASTRO, L. R. (Org.). Crianças e jovens na construção
da cultura. Rio de Janeiro: Nau, 2001. p. 69-92.
BARROS, M. de. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Pla-
neta, 2006.
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Márcia
Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie. L’Anti-Oedi-
pe. Tradução livre de Daniel Felix de Campos. Paris: Minuit, 1972. t. 1.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
Paulo: Ed. 34, 1996. v. 3.
DELEUZE, G. O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa,1995.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Dialogues. Paris: Flammarion, 1996.
FOUCAULT, M. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições,
2013.
JODAR, D. M.; GÓMEZ, L.A dobra: psicologia e subjetivação. In: SILVA,
T. T. (Org.). Nunca fomos humanos: nos rastros dos sujeitos. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
LIMA, P. de M. Cartografias, tempos e espaços da escola: linhas e fluxos de
um (outro) desejo. In: LIMA, P. de M.; MIGUEL, D. S. (Orgs.). Violências

311
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

em (com)textos. Florianópolis: Ed. UDESC, 2010. 250 p.


MASSCHELEIN, J; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão púbica.
Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte:Autêntica, 2013. (Coleção
Educação: experiência e sentido.)
MAYALL, B. Towards a Sociology for Childhood: Thinking from Children’s
Lives. Maidenhead: Open University Press, 2003.
QVORTRUP, J. Generations: An Important Category in Sociological
Research. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DOS MUNDOS
SOCIAIS E CULTURAIS DA INFÂNCIA, Braga, 2000. Anais... Braga,
2000. v. 2, p. 102-113.
QVORTRUP, J. O trabalho escolar infantil tem valor? A colonização das
crianças pelo trabalho escolar. In: CASTRO, L. R. (Org.). Crianças e jovens
na construção da cultura. Rio de Janeiro: Nau. 2001. p. 129-152.
ROUDINESCO, E. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia da
Letras, 2008.
SCHÉRER, R. Os infantis: Charles Fourier e a infância para além das crian-
ças. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.
SER e ter. Direção de Nicolas Philibert. Produção de Gilles Sandoz.
Realização de Nicolas Philibert. Intérpretes: Georges Lopez. Música:
Philippe Hersant. França, 2002. (104 min.), son., color.
SKLIAR, C. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí?
Rio de Janeiro: DP&A., 2003.
SKLIAR, C. Del estar-juntos en educación. Revista Sul-americana de Fi-
losofia e Educação – RESAFE, n. 12, maio/out. 2009.

312
Sobre os autores

Ana Maria Preve


BIóloga, com mestrado em Educação pela Universidade Fe-
deral de Santa Catarina (UFSC) e doutorado em Educação pela
UNICAMP/SP. É professora no Departamento de Geografia e
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC). É integrante do Laboratório
de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia (LEPEGEO/
UDESC), coordena o Grupo Geografias de Experiência e também
integra a Rede Internacional de Pesquisas Imagens, Geografias e
Educação. Participante na UDESC do Grupo de Pesquisa Ensino
de Geografia, Formação Docente e Diferentes Linguagens (CNPq).

Caroline Jacques Cubas


Professora no Departamento de História da Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), na área de Formação de Pro-
fessores, é. Atuou nas redes pública e privada de Educação Básica e
dedicou-se, no mestrado e doutorado, aos meandros da formação
religiosa feminina e à atuação de religiosas em movimentos de
resistência à ditadura militar no Brasil. O resultado de sua tese de
doutoramento foi congratulado em 2015 com o prêmio de pesquisa
Memórias Reveladas, promovido pelo Arquivo Nacional.

Daina Leyton
Educadora e psicóloga, é professora convidada da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no curso de

313
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Especialização em Acessibilidade Cultural. Atualmente co-


ordena o setor educativo do Museu de Arte Moderna de São
Paulo (MAM). Desde 1999 idealiza e desenvolve projetos que
conectam diversas linguagens artísticas e possibilitam a integra-
ção dos mais variados perfis de participantes em seu potencial
expressivo e criativo. Em 2010 idealizou e instituiu a área de
Acessibilidade no MAM, que cuida para que o museu seja um
espaço sem barreiras físicas, sensoriais, intelectuais ou simbólicas.

David Oubiña
Doutor em Letras pela Universidade de Buenos Aires (UBA),
é pesquisador independente no Conselho Nacional de Investigações
Científicas e Técnicas (CONICET) e professor titular de Literatura
e Cinema na Faculdade Filosofia e Letras da UBA. Foi professor
visitante nas Universidades de Londres, Bergens, Nova York e
Berkeley. Integra o conselho administrativo da revista Las ranas
(artes, ensayo y traducción) e da Revista de cine. É membro do conselho
editorial da Caimán Cuadernos de Cine e da Imagofagia y Ñawi:
Arte, diseño y comunicación. Seus últimos livros são Estudio crítico
sobre La ciénaga, de Lucrecia Martel (2007), Una juguetería filosófica.
Cine, cronofotografía y arte digital (2009) y El silencio y sus bordes. Modos
de lo extremo en la literatura y el cine (2011).

Geovana Mendonça Lunardi Mendes


Professora no curso de Pedagogia e nos cursos de mestrado
e doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Realizou
Pós-Doutorado na Argentina (Universidad de San Andres, Buenos
Aires) e nos Estados Unidos (Ashland University, em Ohio), na
área de Currículo e Tecnologias Digitais. Suas pesquisas têm sido
voltadas para área de Currículo e práticas escolares, em especial
questões relativas às mudanças nas tecnologias digitais e inovações
curriculares no espaço escolar, assim como as práticas curricula-
res voltadas à inclusão de sujeitos com deficiência. Atualmente é
vice-presidente da ANPEd Nacional, representando a região Sul.

314
Sobre os autores

Inés Dussel
Pesquisadora do Departamento de Investigaciones Educativas
(DIE/CINVESTAV), no México, é doutora pela Universidade de
Wisconsin-Madison. Foi diretora da Departamento de Educação
da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) da
Argentina entre 2001 e 2008. Publicou amplamente sobre teoria
e história da educação. Sua pesquisa centra-se nos vínculos entre
a escola e as mídias digitais e, particularmente, sobre as mudanças
nas hierarquias dos saberes, relações de autoridade e o tempo e
o espaço da escola.

Jan Masschelein
É professor de Filosofia da Educação e diretor do Laboratório
de Educação e Sociedade na Universidade de Leuven (Bélgica).
Seus principais interesses são nas áreas de Teoria da Educação e
Filosofia Social, assim como o mapeamento e o caminhar como
práticas de pesquisa indispensáveis e novos regimes mundiais
e europeus de gestão educacional. Sua pesquisa se concentra
explicitamente em (re)pensar o papel público das escolas e das
universidades e a particularidade de uma perspectiva pedagógi-
ca. Em português publicou, com Maarten Simons: Em defesa da
escola: uma questão pública (2013) e A pedagogia, a democracia, a escola
(2014), ambos pela Autêntica.

Juliana de Favere
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado de
Santa Catarina (PPGE/UDESC) e bolsista CAPES na Linha de
Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologia. Integrante do
Grupo de Pesquisa Observatório de Práticas Escolares (OPE-
UDESC) e Políticas de Educação na Contemporaneidade (PEC-
FURB). Em 2017, realiza Doutorado-Sanduíche (CAPES) no
Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto
Politécnico Nacional (Cinvestav), no México. Trabalha com
Assessoria Pedagógica e Formação Docente, com foco na proble-
matização e na utilização das tecnologias digitais na escolarização.

315
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Karen Christine Rechia


É licenciada e mestre em História pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), e doutora em Educação pela
UNICAMP. Tem produção e interesse na área de cinema e suas
interfaces com a educação e a formação de professores. Atualmente
é membro do grupo de pesquisa Geografias de Experiência da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), que compõe
a Rede Internacional de Pesquisa: Imagens, Geografias e Edu-
cação, do Observatório de Práticas Escolares (OPE), ambos na
FAED/UDESC, e Laboratório de Ensino de História do Colégio
de Aplicação, do Centro de Ciências da Educação (LEHCA/
UFSC). É professora do Colégio de Aplicação e do Mestrado
Profissional de História da UFSC.

Luiz Guilherme Augsburger


Graduado em História pela Fundação Universidade Regional
de Blumenau (FURB) e mestre em Educação pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC), ele pesquisa a amizade,
com a dissertação Que pode a amizade? Movimentos cartográficos e
educação em terras de clausura. É membro dos Grupos de Pesquisa
Políticas de Educação na Contemporaneidade (FURB) e Geo-
grafias de experiências (UDESC).

Maarten Simons
Professor de Política e Teoria Educacional no Laboratório
de Educação e Sociedade da Universidade de Leuven (Bélgica).
Os seus principais interesses são a política educacional, os novos
mecanismos de poder e os novos regimes mundiais e europeus
de gestão educacional e a aprendizagem ao longo da vida. Sua
pesquisa se concentra explicitamente nos desafios colocados à
educação com um grande interesse em (re)pensar, educacional
e pedagogicamente, o papel público das escolas e universida-
des. Em português publicou, com Jan Masschelein: Em defesa
da escola: uma questão pública (2013) e A pedagogia, a democracia, a
escola (2014), ambos pela Autêntica.

316
Sobre os autores

Marta Venceslao
Doutora em Antropologia pela Universidade de Barcelona
(UB) e pela Universidade Autônoma Metropolitana do México
(UAM), atualmente é professora na Faculdade de Educação da
UB e coordenadora do mestrado em Estudos Avançados sobre
Exclusão Social. Além disso, foi professora nos mestrados em
Criminologia do Instituto de Ciências Penais do México e em
Estudios Avançados de Antropología.

Maximiliano Valerio López


Possui Doutorado em Educação, com ênfase em Filosofia da
Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);
mestrado em Educação pela mesma universidade; especialização
em Ensino de Filosofia pela Universidade de Brasília (UNB); e
graduação em Ciencias da Educação pela Universidad Nacional de
Cuyo (Argentina). Professor do departamento de Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF), é coordenador do Núcleo de Estudos de
Filosofia, Poética e Educação da UFJF. Pela Autêntica, publicou
Acontecimento e experiência no trabalho filosófico com crianças (2008).

Pablo García Pérez de Lara


Premiado cineasta de Barcelona, trabalhou em mais de 20
produções, quase sempre como diretor de fotografia. Há mais
de 10 anos colabora no projeto “Cinema en Curs”, da A Bao a
Qu, associação que recebeu o prêmio Ciutat de Barcelona de
las Artes Visuales de 2015. O projeto trabalha com crianças e
adolescentes através das múltiplas ferramentas pedagógicas que
o cinema oferece. Ele também realizou cursos e documentários
com a AFARADEM, uma associação valenciana que trabalha
com pessoas com problemas de saúde mental e seus familiares.

Patricia de Moraes Lima


Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) na área Educação e Infância. Pós-doutora

317
Coleção “Educação: Experiência e Sentido”

Universidade do Porto (Portugal) e doutora em Educação pela Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é pesquisadora
do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Violências (Centro de
Educação da UFSC). Atua no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFSC, e seus estudos relacionam-se, especialmente,
aos temas: infâncias, experiência, cuidado e violências.

Walter Omar Kohan


É professor titular da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e pesquisador do (CNPq) e do Prociência (UERJ/
FAPERJ). Cientista de Nosso Estado (FAPERJ), no ano 2017/8 atua
como pesquisador visitante na British Columbia University (PDE,
CNPq). Coordena desde 2007 o Projeto de Extensão em Escola
Pública “Em Caixas a Filosofia en-caixa?” (UERJ/FAPERJ). É
orientador de mestrado, doutorado e pós-doutorado nas áreas de
Ensino de Filosofia, Infância e Filosofia da Educação. É autor e
coautor de mais de 30 livros em castelhano, italiano, inglês, por-
tuguês e francês; entre eles: Infância: entre educação e filosofia (2003);
Filosofía y educación: la infancia y la política como pretextos (2011).

A Bao A Qu (www.abaoaqu.org)
Associação cultural sem fins lucrativos, dedicada ao desen-
volvimento de projetos que liguem cultura, criação artística e
educação. Fundada em 2004, introduz a criação artística em esco-
las primárias e secundárias, com o envolvimento de profissionais
do cinema, fotógrafos e artistas, que trabalham com professores.
Desenvolve programas estruturais e treinamentos para professores,
além de elaborar atividades específicas relacionadas a exposições,
festivais e instituições culturais.

318
Este livro foi composto com tipografia Bembo Std e impresso
em papel Off-White 80 g/m² na Paulinelli.

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