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Humanitas #183 - Fev25

O documento aborda a importância da educação para mulheres, destacando a luta histórica de Ana de Castro pelo acesso à instrução no Brasil do século 19. Também menciona a complexidade do setor de saúde, especialmente em relação ao envelhecimento populacional, e reflete sobre a relevância contínua da rádio na sociedade atual. Além disso, traz uma análise sobre a economia brasileira e a desigualdade social em comparação com países como a Dinamarca.

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Monica Leitora
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Humanitas #183 - Fev25

O documento aborda a importância da educação para mulheres, destacando a luta histórica de Ana de Castro pelo acesso à instrução no Brasil do século 19. Também menciona a complexidade do setor de saúde, especialmente em relação ao envelhecimento populacional, e reflete sobre a relevância contínua da rádio na sociedade atual. Além disso, traz uma análise sobre a economia brasileira e a desigualdade social em comparação com países como a Dinamarca.

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183
COMPLEXIDADE DA SAÚDE
FATORES SIGNIFICATIVOS
NESSE SERVIÇO
ESSENCIAL QUE AGORA
DEVE INCLUIR CUSTOS DE
UMA POPULAÇÃO IDOSA

EDUCAÇÃO
PARA
(E PELAS)

MULHERES
ESTRATÉGIAS DE ANA DE CASTRO, PROFESSORA QUE
DEFENDEU O DIREITO À INTELIGÊNCIA, EXCLUSIVIDADE
MASCULINA NO BRASIL DO SÉCULO 19

DIAS NA BIRMÂNIA: O OLHAR DE GEORGE ORWELL SOBRE OS MEANDROS DO IMPERIALISMO BRITÂNICO


FEVEREIRO

Roxo Laranja
Combate à leucemia e
Conscientização do
incentivo a doação de
Lúpus, Fibromialgia
sangue ou medula
e Mal de Alzheimer
óssea

Para participar do
nosso grupo no
TELEGRAM, clique
no ícone ao lado
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André Gide desafia


tabus em ‘Corydon’,
uma obra que questiona
normas sociais sobre
homossexualidade,
propondo reflexão
profunda sobre
liberdade e identidade.

NAS LIVRARIAS
Ou acesse www.escala.com.br
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EDITORIAL

A educação
das mulheres
O
rganizações voltadas à proteção dos direitos humanos decla-
ram que 122 milhões de meninas ainda estão fora da escola,
reforçando a importância de as mulheres terem acesso à edu-
cação, o que não se limita a frequentar uma escola: espera-se que elas
possam completar todos os graus.
Apesar dos esforços para mudar tal quadro, mulheres continuam sen-
do consideradas vulneráveis, além de serem marginalizadas em nossa

© GRIVINA / ADOBE STOCK


sociedade. Por consequência, sofrem os efeitos dessa lacuna: mais po-
breza e violência, entre outros danos.
Assim, é curioso observar que, no Brasil, a vontade de mudar essa rea-
lidade já se esboçava no início do século 20 por meio de uma escritora e
professora brasileira, Ana de Castro, que ousou dar início a uma jorna-
da para colocar meninas em um lugar no qual elas pudessem exercitar
completa e efetivamente o direito à inteligência.
O texto que ilustra a capa desta edição, de autoria da jornalista e histo-
riadora Aline Dias Anile Chella, mestranda do PPG-UFPR, revela que, se
eram poucas – e corajosas – as mulheres que se aventuravam nos ban-
cos das academias, “corajosas também foram as vozes que se levan-
taram no esforço por uma educação de qualidade para as mulheres...”.
Mulheres com mais educação tendem a ser mais letradas sobre nutri-
ção, saúde… E costumam ter menos filhos, casam mais tarde, e seus
filhos, geralmente, são mais saudáveis. De quebra, elas ainda podem
participar do mercado de trabalho ganhando salários mais adequados.
Será que ainda precisamos de argumentos melhores do que esses?

Boa leitura!
Cristina Almeida - Editora

humanitas • 3
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SUMÁRIO
183
18_ CAPA
© IMAGEM DE CAPA: AI GENERATED / MIDJOURNEY

PELO DIREITO
183 À EDUCAÇÃO
O resgate da memória
COMPLEXIDADE DA SAÚDE
FATORES SIGNIFICATIVOS
NESSE SERVIÇO
de Ana de Castro,
ESSENCIAL QUE AGORA
DEVE INCLUIR CUSTOS DE
UMA POPULAÇÃO IDOSA
fundadora de um
colégio de instrução
primária e de
humanidades para
meninas no século 19,
EDUCAÇÃO
PARA revela sua luta pelo
(E PELAS) acesso das mulheres
48 _ SER ANALISTA
MULHERES à instrução, um
EDIÇÃO 183 - PREÇO R$ 25,00

Como alguém se torna


ESTRATÉGIAS DE ANA DE CASTRO, PROFESSORA QUE
DEFENDEU O DIREITO À INTELIGÊNCIA, EXCLUSIVIDADE
atributo dos homens. psicanalista? Uma reflexão
MASCULINA NO BRASIL DO SÉCULO 19
sobre os movimentos internos
DIAS NA BIRMÂNIA: O OLHAR DE GEORGE ORWELL SOBRE OS MEANDROS DO IMPERIALISMO BRITÂNICO que levam à escolha dessa
profissão, que pode nascer da
empatia diante do sofrimento
do outro ser humano.
SEÇÕES E COLUNAS
3 EDITORIAL 54 _ DIREITO
10 _ O FAZER IMPERIAL 5 ÁTRIO ROMANO
O imperialismo britânico, a 8 AFORISMOS As Institutas, do imperador
saber, um sistema baseado na 9 ANÁLISES Justiniano, foram idealizadas
mentira desvendado por meio 17 IDEIAS&EVENTOS para ser um manual de
da literatura de George Orwell: 27 TECNAMENTE Direito. Além da importância
a obra Dias na Birmânia é muito 32 SOCIOLOGIA COLUNA histórica, seus princípios
mais que um drama psicológico 37 CINEMA CRÍTICO ainda regem a vida de muitas
com detalhes autobiográficos.
44 INTERSECÇÕES nações romano-germânicas.
47 OBSERVATÓRIO SOCIAL
28 _ SAÚDE E SUA 53 PSICOLAB 62 _ LUTAS VÃS
COMPLEXIDADE 57 PRINCÍPIOS A dança do nascimento, da
Um raio X do setor da saúde 65 PAIDEIA morte e do renascimento das
mostra o tamanho dos desafios 71 NEGÓCIOS palavras continua. E, por mais
desse serviço essencial que 72 PENSE! que os apreciadores da nossa
envolve variados atores, tem 76 HAPPY HOUR língua rejeitem as mudanças,
garantias constitucionais e 80 CODEX ela é o que é. Lutar contra as
agora enfrenta as demandas do 81 COMUNIDADE H transformações de nada vale.
envelhecimento populacional. 82 ESCOLA DA VIDA
68 _ VIDA POSSÍVEL
34_ HOMENAGEM NAS REDES
A PEDRO NAVA 38 _ LEITORES MIRINS É chegada a hora de
Nascido em Juiz de Fora, ele Em meio às mudanças nos revermos o que podemos
migrou para Belo Horizonte com hábitos de leitura na infância fazer por nosso país e não
o intuito de cursar medicina e e até a idade adulta, rever a ficarmos esperando que
passou a integrar, positiva e história dos livros infantojuvenis façam por nós. Uma educação
intensamente, a avant-garde faz entender como eles tornaram- consciente começa em casa,
mineira dos anos de 1920. Um -se um dos principais negócios do pode ser uma boa alternativa
viva à memória desse intelectual. mercado editorial brasileiro. e deve incluir o uso da IA.
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Átrio DA REDAÇÃO

MALCOLM X: COMPLEXO,
MAS INFLUENTE
Há 60 anos, em 21 de fevereiro, o líder foi assassinado durante uma palestra, fato
que colocou fim à trajetória de um dos maiores nomes da luta afro-americana pelos
direitos civis. Neste ano de 2025, caso estivesse vivo, Malcolm completaria 100 anos
© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG

O
ativista Malcolm Little, que ficaria conheci- reconhecido por ser uma figura inspiradora, já que se
do como Malcolm X, nasceu no estado de Ne- tornou um símbolo do orgulho negro, da resistência e
braska (EUA), foi um dos mais conhecidos líde- da autodeterminação. Os seus discursos e, sobretudo,
res da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e sua biografia, seguem inspirando iniciativas voltadas
continua sendo um ícone do movimento Black Power para a luta por justiça. As suas ideias e o seu empenho
até os dias de hoje. No princípio de sua jornada, Lit- na defesa dos direitos tiveram uma dimensão global,
tle foi um apoiador e se tornou uma liderança entre visto que continuam influenciando ativistas em todo o
muçulmanos negros que compunham a Nação do Islã. mundo – especialmente os que se voltam ao combate
Posteriormente acabou se destacando desse grupo ao racismo sistêmico, à violência policial e à desi-
por suas crenças separatistas e militância. Hoje ele é gualdade econômica.

humanitas • 5
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ÁT RIO

52%
É A REPRESENTAÇÃO
DO ELEITORADO
FEMININO BRASILEIRO.
© CHERRYANDBEES / ADOBE STOCK

O DIREITO AO VOTO SÓ
ACONTECEU EM 1932;
PORTANTO, HÁ 93 ANOS.

Fonte: TSE.

DIA MUNDIAL DO RÁDIO

UMA MÍDIA (AINDA)


Fonte: Kantar Ibope Media.

RELEVANTE
Apesar da concorrência acirrada dos podcasts e streamings de áudio, as
rádios continuam sendo companheiras de todas as horas e demonstram não
ter perdido o alcance e o apelo junto ao público brasileiro. Confira os dados
da pesquisa Inside Audio 2024:

Cerca de 4 horas A vantagem

© KRAKENIMAGES / ADOBE STOCK


é o tempo de de as rádios
escuta diária. divulgarem
informações
importantes
rapidamente
A credibilidade das
é reconhecida
rádios mantém 58% da
por 77% das
audiência informada.
pessoas.

O interesse dos
ouvintes é local, ou Majoritariamente a escuta
seja, eles desejam se dá por meio da AM e
saber o que acontece FM, depois vêm YouTube
na sua região. e streamings de áudio.

6 • humanitas
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“Foi alguma coisa inesquecível


© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG

que sacudiu os meios artísticos


de todo o País… era impossível
tolerar-se o academicismo, a
inércia, o mau gosto da época.
Algo tinha de ser feito.”
Anita Malfatti, sobre a
Semana de Arte Moderna de 1922.

Na Rede
© KATE / ADOBE STOCK

© DIVULGAÇÃO

COMPORTAMENTO HUMANO

PETS: MAIS SAÚDE


E FELICIDADE? NAVEGAR É PRECISO
Pesquisa recente avaliou os prós e os Antropocast: navegando pela antropo-
contras de ter um pet. A experiência é logia é um projeto idealizado por Fred
multifacetada e não se limita à relação Lucio, antropólogo e professor universi-
de custo-benefício. Além disso, tutores tário, voltado para a popularização da ci-
podem valorizar suas performances por ência e da educação. A ideia é promover
medo de serem julgados maus tutores. uma aventura antropológica como uma
Para reduzir a lacuna entre realidade viagem marítima por esse
campo do conhecimento.
e expectativa, a publicidade sobre a
Tem até material didático
relação com pets deve ressaltar os
disponível! Confira aqui:
benefícios, mas também os desafios.

Fonte: Departmento de Etnologia da Eötvös Loránd University (ELTE)/Scientific Reports.

humanitas • 7
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ÁT RIO AFORISMOS POR MARCO LUCCHESI

Neurociência
e Filosofia
A mente não é o cérebro, não possui lugar definido,
nem vínculo orgânico, frontal ou parietal.

O não lugar ignora geografia.

A neurociência não é filosofia: nem superou, como


pretende, a metafísica.

Toda uma rede neural biológica, ou um conjunto de


anéis epistêmicos, não reclama a morte da filosofia.

Sobre os neurônios de Deus. Distância irredutível


© ARQUIVO PESSOAL

que separa a neurologia da teologia. Não existe re-


lação causal direta.


MARCO LUCCHESI é poeta,
escritor, tradutor, professor e
Onde está Deus? Numa determinada zona cerebral. atual presidente da Biblioteca
Ou além do tempo-espaço no Empíreo. Nacional. Mestre e doutor
em Ciência da Literatura
(UFRJ). Pós-doutoramento
em Filosofia da Renascença
 (Universidade de Colônia/
Alemanha). Foi presidente da
Academia Brasileira de Letras
(ABL) de 2018 a 2021 onde
O avanço da neurociência. E seu devido approach ocupa a cadeira de nº15.
filosófico: analogia, paralelos, interfaces. @marcolucbr
www.marcolucchesi.org

8 • humanitas
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ANÁLISES

DESOBSTRUIR O CAMINHO
DO EMPREENDEDOR
POR JOSÉ PIO MARTINS há 61 países com PIB maior que o da Dinamarca antes de
chegar ao PIB do Brasil. Esse dado poderia dar a impressão

C
om o fim da pandemia em 2022, o inventário dos de que a Dinamarca é mais pobre que o Brasil, e essa con-
estragos econômicos foi assombroso. A vida preci- clusão não faz o menor sentido, pois a Dinamarca tem 5,7
sava voltar ao normal rapidamente para enfrentar milhões de habitantes e a renda por pessoa lá é equivalente
o cenário econômico e social de terra arrasada. Desempre- a quatro vezes a brasileira.
go, miséria, fome, empresas combalidas, finanças pessoais A Dinamarca não tem miséria, não tem pobreza, o padrão mé-
fragilizadas, dívidas não pagas, inadimplência elevada no dio de bem-estar social está muito acima do padrão brasileiro.
sistema financeiro e, principalmente, perda total ou parcial Se o Brasil dobrasse seu produto por habitante, chegaríamos
da renda de grande parte da população. apenas à metade do PIB por habitante di-
O segundo semestre de 2022 foi a porta namarquês. Isto posto, como medida do
de abertura para a recuperação, cujas
“O DISCURSO DE grau de pobreza e de padrão de vida, o
exigências mais prementes eram a reto- tamanho absoluto do PIB não esclarece
QUE A ECONOMIA
mada da operação pelas empresas para- muita coisa. Se o número de bocas para
lisadas durante a pandemia e o aumento
BRASILEIRA É A serem alimentadas continua crescendo e
do nível de emprego. NONA DO MUNDO o PIB não cresce, a situação piora.
De início surgiu a necessidade de ajustes NÃO FAZ SENTIDO, O cenário aqui descrito nos leva à seguin-
empresariais, reorganização das finan- POIS ESSE DADO te conclusão: o sistema estatal, as leis, os
ças familiares, recomposição das finan- REFERE-SE APENAS governos, os poderes e os burocratas de-
ças públicas e preparação para obter AO TOTAL DO veriam dar prioridade máxima à desobs-
alguma taxa de crescimento sustentável PRODUTO INTERNO trução dos canais que impulsionam a pro-
nos anos seguintes. Essas providências dução e o crescimento. A palavra-chave
BRUTO (PIB) SEM
impuseram-se como indispensáveis para deveria ser: desobstruir… desobstruir o
amenizar o atraso e a pobreza que ha-
CONSIDERAR O caminho dos empreendedores pela retira-
viam sido aprofundados durante a crise. TAMANHO DA da dos entraves para quem quiser empre-
No caso do Brasil, o quadro social exigia POPULAÇÃO” ender, investir, arriscar, trabalhar, produ-
recuperação rápida como condição ne- zir, gerar emprego e pagar impostos.
cessária para tentar concluir a terceira Neste momento, é melhor errar por ex-
década deste século em situação econômica e social melhor cesso de liberdade do que manter a nação sufocada por
do que terminou a primeira e a segunda década. Medido regulamentos e montanhas de leis e normas restritivas
pela renda por habitante, o Brasil continua sendo um país da liberdade de iniciativa. Não crescer é um luxo ao qual o
pobre. O discurso de que a economia brasileira é a nona Brasil não pode se permitir, pois a pobreza e a miséria são
do mundo não faz sentido, pois esse dado refere-se apenas grandes demais.
ao total do Produto Interno Bruto (PIB) sem considerar o
tamanho da população.
A produção total nacional não diz muita coisa se não for
© ARQUIVO PESSOAL

relacionada com o número de habitantes a quem o PIB deve JOSÉ PIO MARTINS
atender. A Dinamarca, por exemplo, está na 70ª posição em é economista, professor,
palestrante e consultor.
tamanho do PIB, ou seja, 61 posições atrás do Brasil. Isto é, ✉ pio.economista@gmail.com

humanitas • 9
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ENSAIO

POR HOMERO SANTIAGO

A TRÍADE DO

IMPERIA Mais que mero drama psicológico de tintura


autobiográfica, Dias na Birmânia, de George
Orwell, funciona como uma espécie de
estudo do que seja o imperialismo britânico,
a saber, um sistema baseado na mentira

10 • humanitas
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ALISMO
G
eorges Orwell nasce na Birmânia e
ainda pequeno vai para a Inglaterra;
forma-se numa das mais conceituadas
escolas do país, graças a uma bolsa de estudos.
Diplomado, em vez de seguir o caminho natu-
ral da universidade, decide retornar às Índias
e presta o concurso para o oficialato da polícia
imperial. Ele fica na Birmânia por cinco anos,
até que em 1927, de licença na Inglaterra, re-
solve exonerar-se do posto e tornar-se escritor.
A experiência no Oriente fornece a matéria-
-prima de seu primeiro romance, Dias na Bir-
mânia,1 terminado em 1933 e publicado no ano
seguinte, bem como de outros textos do jovem
Orwell, que passou assim a ocupar um capítulo
relevante nesse ramo das letras britânicas que
© ARCO TORESIN

é a literatura anglo-indiana. 2 O enredo é razoa-


velmente simples e não custa pincelá-lo aqui.

humanitas • 11
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ENSAIO

A DOMINAÇÃO É TANTO MAIS


EFICAZ QUANTO MAIS SUAVE
E ADOCICADA, POR OBRA
Num pequeno vilarejo birmanês, a vida gira DA MENTIRA QUE AGRADA,
em torno do clube inglês. Flory, empregado ENTORPECE E EMBRIAGA…
numa madeireira, sofre a amargura de uma COMO UM, VÁRIOS DRINQUES...
vida dissoluta e solitária, corrompida pela men-
A FIGURAÇÃO DESSE ELEMENTO
tira; ele odeia os seus pares europeus, abomina
o imperialismo, mas precisa calar as próprias QUE DOMINA E MANTÉM O
opiniões; tem como único amigo o médico local DOMÍNIO... É O ÁLCOOL...
nativo, cuja destruição é desejada por um juiz
corrupto também nativo. Flory conhece Eliza-
beth e sonha em casar-se com ela, superando Numa madrugada difícil, em que nem o uís-
a solidão; os gênios são incompatíveis, porém: que ajuda, o protagonista do romance tem um
ao passo que ele realmente admira a Birmânia vislumbre de suas esperanças frustradas, clara
e os birmaneses, Elizabeth horripila-se com a intuição de sua vida estragada. A colônia “é um
simples ideia de convivência com os locais. O mundo sem ar, estupidificante”, no qual “cada
protagonista torna-se vítima do plano que visa homem branco é mais um dente da engrena-
a destruir a reputação de seu amigo médico e, gem do despotismo”. “Ao final de algum tempo,
finalmente, vê seu plano de casamento evapo- o esforço para manter sua revolta em silêncio
rar; desesperado pela perspectiva de continuar acaba por envenená-lo como uma doença se-
a mesma vida modorrenta, suicida-se. creta. Toda a sua vida se transforma numa
vida de mentiras. Ano após ano você frequenta
Mentira que agrada os pequenos Clubes assombrados por Kipling,
Mais que mero drama psicológico de tin- copo de uísque à direita, o último número do
tura autobiográfica, Dias na Birmânia funcio- Financial Times à sua esquerda (p. 86)”.
na como uma espécie de estudo do que seja
o imperialismo britânico, a saber, um sistema A presença dos clubes
baseado na mentira. Esta é o seu elemento uni- O enredo do livro gira em torno do Clube Eu-
versal (presente em todos os seus meandros) e ropeu e isso não é nem um pouco casual. Nas
único capaz de manter em bom funcionamento Índias britânicas, cada vilarejo tem o seu clube;
a máquina imperial, impondo-se sobre coloni- no conjunto, formam uma das instituições cen-
zadores e colonizados, a colônia e a metrópo- trais da vida dos anglo-indianos, um dos pou-
le, e dispensando inclusive o recurso à força cos lugares onde podem realmente sentir-se em
bruta – o exército está lá como mera caução, o casa, ingleses entre ingleses, como sugerem, ler
ideal é jamais usá-lo. as últimas notícias e debater os grandes temas
A dominação é tanto mais eficaz quanto da metrópole. “Fortaleza inexpugnável”, “cida-
mais suave e adocicada, 3 por obra da mentira dela espiritual”, para usar palavras de Orwell,
que agrada, entorpece e embriaga… como um, o clube é uma instituição política única, pois
vários drinques. No plano literário, a figuração faz as vezes de esfera pública nas colônias, o
desse elemento que domina e mantém o domí- único espaço de convivência que não era nem
nio, constituindo a essência do imperialismo, é criado nem administrado pelo Serviço Imperial
o álcool, o integrante fundamental do que po- ou pelo exército.4
demos denominar a tríade do imperialismo, que
nos é apresentada num trecho muito preciso.

12 • humanitas
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especialmente as anglo-indianas,8 e conhecia


um prestígio sem igual entre os militares bri-
tânicos nas colônias;9 cultor declarado das tra-
Esses clubes, frequentados por anos a fio, dições e da ordem social, da hierarquia entre
pelo menos assim nos é contado, são assombra- as raças e as classes sociais – meus “vícios
dos pela figura de Rudyard Kipling, o mais fa- imperialistas”, que adoram criticar a cada pu-
moso autor inglês da virada do século 19 ao 20, blicação minha, como jocosamente assumiu;10
vencedor do Nobel de literatura de 1907; maior esse campeão do status quo foi o “profeta” do
expoente da “literatura colonial”, “o profeta do expansionismo britânico pela boa razão de ter
imperialismo britânico em sua fase expansio- oferecido à empresa colonial aquilo sem o que,
nista”, na definição que Orwell lhe dá alhures.5 irremediavelmente, ela não passaria de roubo
Como nenhum outro, o excepcional criador puro e simples.
dos Livros da selva e de Mowgli soube forjar Numa palavra, Kipling deu ao imperialismo
com sua obra um ideário para o imperialismo, uma ideia.11 Uma noção, uma compreensão que
representando-o à guisa de empreendimento evite as dúvidas, compense os sacrifícios e guie
civilizatório em que os esforços filantrópicos com firmeza as ações, justificando-as, inclusive
dos “brancos” são testados nos limites da ben- as mais brutais, pelos seus fins mais nobres,
fazeja abnegação. a saber, elevar à civilização as grandes faixas
do planeta em que grassa a selvageria e a gen-
Tomai o fardo do Homem Branco – te “metade demônio, metade criança” que vive,
Envia teus melhores filhos ou antes, sobrevive à margem do progresso.
Vão, condenem seus filhos ao exílio Kipling é o genial elaborador do imperialismo-
Para servirem aos seus cativos; -ideia, que de uma forma ou de outra precisa es-
Para esperar, com arreios tar inculcado na cabeça de cada anglo-indiano
Com agitadores e selváticos e de cada nativo para que o sistema colonial
Seus cativos, servos obstinados funcione bem, com a devida suavidade e sem
Metade demônio, metade criança.6 carecer de armas. É mais do que justo, pois, seu
lugar de honra em cada clube inglês no Oriente,
Kipling tal como descrito por Orwell.
Lidos por olhos hodiernos, esses versos da
primeira estrofe do mais famoso poema de Ki- Comércio e filantropia
pling já nem soam horripilantes, apenas exa- O segundo constituinte da tríade do imperia-
lam a mais ridícula desfaçatez. Acontece que o lismo é o lucro, os negócios inequivocamente
nosso atual desprezo não muda em nada o sig- simbolizados pelo Financial Times, o “mensa-
nificado e a força de uma peça que, graças ao geiro” da City londrina, fundado em 1888, no
talento de seu autor (que o lobinho imperialista auge do Império Britânico. Constatado isso,
Mowgli ainda nos entretenha é índice seguro porém, uma questão é imediata: como conciliar
desse talento), desempenhou ao seu tempo pa- o altruísmo, a ideia, e a pilhagem, o roubo, o lu-
pel fundamental na difusão de certa visão do cro, os negócios coloniais, em suma? O proble-
imperialismo, conquistando para a causa uma ma não é pequeno nem pode ser deixado para
legião de corações bem-intencionados. lá. A associação entre lucro e esforço filantrópi-
Kipling era cultuado nos altares dos clu- co é uma exigência maior presente já no docu-
bes ingleses na Índia, ele que se confessava mento que se considera a certidão de nascença
grande tributário dessas instituições,7 pela
mesma razão que fazia as vezes de “deus lar
(household god)” em cada casa de classe média,

humanitas • 13
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ENSAIO

“ENQUANTO OS EMPRESÁRIOS empreendimento humanitário; trata-se de uma


lógica virtuosa cujos fundamentos são explica-
INGLESES DESENVOLVEM OS RECURSOS dos candidamente pelo Dr. Veraswami, indiano,
DO NOSSO PAÍS, OS FUNCIONÁRIOS a Flory, seu amigo inglês: “Enquanto os em-
DO GOVERNO BRITÂNICO NOS presários ingleses desenvolvem os recursos do
nosso país, os funcionários do governo britâni-
CIVILIZAM, NOS ELEVAM AO NÍVEL
co nos civilizam, nos elevam ao nível deles, por
DELES, POR PURO ESPÍRITO PÚBLICO. puro espírito público. É uma história magnífica
É UMA HISTÓRIA MAGNÍFICA DE de autossacrifício” (p. 52).
AUTOSSACRIFÍCIO” (P. 52)
No inferno do capital
O ideal encontra no material as suas condi-
ções de realização, ao passo que os negócios
revestem-se da nobreza do altruísmo. É um
do imperialismo moderno: a ata da Conferência de perfeito ganha-ganha. Cada madeireiro na Alta
Berlim de 1885, que reúne 14 países (além de eu- Birmânia que põe abaixo uma árvore pode estar
ropeus, EUA e Império Otomano) para negociar e certo de que o faz por excelentes razões; não fos-
oficializar a partilha da África subsaariana; sem se assim, as florestas restariam intocadas, sem
os esforços conciliatórios, corria-se o risco de re- proporcionar à população nativa os auspiciosos
petir, em pleno século 19, o barbarismo criminoso ganhos civilizatórios que só o interesse comer-
dos romanos, aos quais justamente faltava a ideia, cial possibilita – estradas, ferrovias, hospitais,
o ideal que crava a diferença entre a mera pilha- cadeias, “a lei e a ordem”, “a inabalável Justiça
gem e o altruísmo civilizatório.12 Britânica, a Pax Britannica”, completa o Dr. Ve-
Na capital alemã, o principal ponto em discus- raswami (p. 53). Em suma, o imperialismo-ideia
são é o Congo, que acaba cedido à Bélgica em tro- definitivamente redime o que podemos denomi-
ca da liberdade de navegação pelos rios e lagos nar o imperialismo-lucro.
da região, facilitando assim imensamente os ne- Se aquele leitor a que há pouco pedimos con-
gócios. Poderia, contudo, ser essa a justificativa ter o riso retrucar que tudo não passa de estó-
única para o esforço colonial? De modo algum. ria para boi dormir, só uma enfiada de mentiras,
Os signatários da referida ata afirmam se terem não o refutaremos; tendemos a concordar com o
reunido “em nome de Deus todo-poderoso” no in- diagnóstico, até porque é o próprio protagonista
tuito de estabelecer “as condições mais favoráveis de Dias da Birmânia que esbraveja várias vezes
ao desenvolvimento do comércio e da civilização contra “a mentira de que só estamos aqui para
em certas regiões da África”, pois sinceramente melhorar a vida dos nossos pobres irmãozinhos
“preocupados ao mesmo tempo com os meios de negros, e não para roubar o que eles possuem”
crescimentos do bem-estar moral e material das (p. 51).14 Sem embargo, melhor é desapressar o
populações aborígines”.13 andor que porta julgamentos fáceis.
Caso o leitor se sinta impelido ao riso, é bom Convenhamos que a união virtuosa entre
conter-se. Apesar do que canta Tim Maia (“quan- o bem-estar humano e o comércio não é mais
do a gente ama/ não pensa em dinheiro”), está aberrante que Mowgli, e pelo sim pelo não ainda
longe de ser impossível a conciliação amorosa é moeda corrente: não se vê privatização ou con-
entre o livre-comércio e a filantropia no seu senti- cessão de patrimônio público, até de um bem
do etimológico mais alto de amor à humanidade.
Os negócios existem e os ganhos são desejáveis,
talvez inevitáveis, pois são eles que financiam o

14 • humanitas
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comum como a água, que não se alegue vir em


“benefício” das populações; no inferno do capital O álcool ocupa esse lugar de destaque porque
– e o imperialismo é um estágio do capitalismo, remete ao problema central da crença na mentira
ensinou Lênin – nada se faz sem a vênia das boas que sustenta o sistema. Como modelo compreen-
intenções. Quem desconsiderar a ideia, sentir-se- sivo, vale por seus efeitos: a percepção alterada,
-á pecando por venalidade; quem menosprezar o a mente turbada, o entorpecimento que fomenta
lucro, recairá no limbo do idealismo bobo. a credulidade. Daí a sua máxima importância,
merecendo ser dito o “cimento” do Império. O im-
Imperialismo uísque perialismo-uísque tem prioridade sobre os demais
Atenção! Os problemas só surgem quando porque, sem este, aqueles são inócuos. O que
esquecemos uma das pontas. Pelo contrário, as seria uma mentira que não fosse acreditada por
coisas precisam andar juntas, absolutamente ninguém? Um artifício espúrio que não funciona,
combinadas, para que o sistema funcione com senão à base da coerção.
perfeição, na medida em que se possa nele acre-
ditar. Ora, a reponsabilidade por não nos deixar Crenças e percepções
incorrer nesse erro toca ao último elemento da Ora, o álcool docemente insufla a crença sin-
tríade: o uísque, o genuíno azeite da máquina im- cera no que é, literalmente, incrível; assenta-se
perial. Somente o imperialismo-uísque (certo que desse modo a base de uma mentira sistêmica
se bebe também cerveja, gim, conhaque; ape- e anônima que, contas feitas, prescinde até de
nas tomamos pro toto a pars mais significativa) mentirosos ou pessoas deliberadamente men-
é capaz de cimentar a união, misteriosamente tirosas. O bêbado não mente quando conta as
identificando o lucro e a ideia, a pilhagem e a ci- suas lorotas nem falha nos gestos mais simples,
vilização. “Trata-se de uma necessidade política. pois ele acredita no que fala, acredita francamen-
Claro que é o álcool que mantém essa máquina te no que vê, e quem acredita numa ilusão acre-
em funcionamento. Não fosse por ele, todos en- dita verdadeiramente; logo, está longe de ser um
louqueceríamos e sairíamos matando uns aos mentiroso ou um ilusionista; ainda que a ilusão,
outros em uma semana. Eis aí um bom tema a percepção deturpada, a mentira, se se quiser,
para os seus elevados ensaístas, doutor. O álcool realmente existam. Em Dias da Birmânia o impe-
como o cimento do Império” (p. 50).
Efetivamente, para dar conta dessa obriga-
ção política, em Dias na Birmânia bebe-se muito
e a toda hora, antes do café da manhã, após o
almoço, ao fim da jornada comercial, durante o
jantar, antes de dormir; bebe-se para suportar o “O ÁLCOOL OCUPA ESSE LUGAR
calor e a vida no exílio indiano, bebe-se sobretu- DE DESTAQUE PORQUE REMETE
do para acreditar. É revelador que o copo de uís- AO PROBLEMA CENTRAL DA
que, no quadro que nos dá a tríade do sistema,
CRENÇA NA MENTIRA QUE
ocupe o nobre lado direito, simbolizando, muito
cristãmente, a misteriosa extensão do poder de SUSTENTA O SISTEMA. COMO
Deus-pai, num caso de quase substituição. “Que MODELO COMPREENSIVO, VALE
civilização a nossa, uma civilização sem Deus, POR SEUS EFEITOS: A PERCEPÇÃO
baseada no uísque!” (p. 42).
ALTERADA, A MENTE TURBADA,
O ENTORPECIMENTO QUE
FOMENTA A CREDULIDADE”

humanitas • 15
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ENSAIO N O TA S ideia com o sentido presente nesta


1 Georges Orwell, Dias na Birmânia, passagem de Coração das trevas
São Paulo, Companhia das Letras, de Joseph Conrad: “A conquista
2018. Ao longo do texto, todas as da terra, que antes de mais nada
referências de página sem outra significa tomá-la dos que têm a pele
indicação remeterão a esse volume. de outra cor ou o nariz um pouco
mais chato que o nosso, nunca é uma
2 Convém esclarecer que o termo
coisa bonita quando a examinamos
rialismo-uísque nos dá a figuração literá- “anglo-indiano” refere-se aos
bem de perto. Só o que redime a
ingleses (e britânicos em geral) que
ria do modo de compreender um sistema conquista é a ideia. Uma ideia por
faziam a vida nas Índias britânicas,
trás de tudo; não uma impostura
da mentira peculiar, pois que aparente- no Serviço Imperial ou em negócios
sentimental, mas uma ideia; e uma
privados. A fórmula, pois, nada tem a
mente não carece de mentirosos, podendo ver com mestiçagem; pelo contrário
crença altruísta na ideia – uma coisa
ser ampla e sinceramente acreditado, tanto que possamos pôr no alto, frente à
remete a uma cultura orgulhosa
de servir à metrópole nas mais qual possamos nos curvar e oferecer
por colonizados quanto por colonizadores. sacrifícios…” (São Paulo, Companhia
inóspitas condições, preservando a
Um exemplo é suficiente para demons- sua pureza de sangue e de caráter; das Letras, 2008, p. 15).
trar esse aspecto. Em certa passagem, Ellis o lema anglo-indiano por excelência, 12 Ainda Conrad (op. cit., p. 14-15):
como nos ensina Orwell pela boca de os romanos “não eram colonos
– um inglês troglodita que despreza e odeia seu protagonista, tudo diz: “Na Índia, […] Eles se apoderavam de tudo o
visceralmente os nativos – é ou sente-se pro- como os ingleses” (p. 181). que podiam, sempre que tinham a
3 “Os nativos chamam o sistema oportunidade. Era simples roubo,
vocado por alguns estudantes birmaneses;
britânico de Sakar ki Churi, a faca assalto à mão armada, latrocínio
ato contínuo, agride-os, e com um golpe de de açúcar. Isto é, não há opressão, numa escala grandiosa, e esses
bengala cega um dos meninos; em revide, é tudo suave e doce, mas é uma homens o praticavam cegamente –
faca, ainda assim.” Essas palavras como convém a quem investe contra
os jovens o atacam em bloco, até que ele é as trevas.”
de Dadabhai Naoroji (1825-1917), o
salvo por seus empregados. Não é claro no “grande ancião da Índia”, são citadas 13 A ata do encontro berlinense está
texto do romance em que medida a hostili- por Sandra Guardini Vasconcelos disponível em: https://mamapress.
em seu prefácio ao livro de E. M. files.wordpress.com/2013/12/conf_
dade partiu dos estudantes ou Ellis é que Forster Uma passagem para a Índia, berlim.pdf.
assim imaginou, afinal era o que esperava, São Paulo, Globo, 2005, p. 9. Uma 14 Novamente, vale a pena uma
o que desejava para externar o seu ódio. dominação que age, parece-nos, contextualização lexical: chamar
mediante o que o artista filipino um indiano de “negro” é um insulto
O fato é que, em seguida, na delegacia, Kidlat Tahimik chamou de “spams”,
descomunal, pois significa igualá-lo
a versão do inglês (ter sido gratuitamente em sua formidável instalação na
a um subsaariano; tanto que, por boa
Bienal de Arte de São Paulo de 2023:
atacado) será sustentada pelos criados que política, o Serviço Imperial proíbe o
Killing us softly… with their SPAMS…
uso da expressão. Como explica o Sr.
isentam o patrão e culpam os estudantes. (Songs, Prayers, Alphabets, Movies,
Macgregor, personagem que exprime
Superheroes…).
Nisso vem o cirúrgico comentário do narra- a posição oficial do Império, “os
4 Em geral, cf. M. Sinha, “Britishness birmaneses são mongóis, os indianos
dor: “É provável que Ellis, justiça seja feita, clubbability, and the colonial public são arianos ou dravidianos, e todos
acreditasse que essa era a versão verdadei- sphere”, Journal of British Studies, eles são muitíssimo diferentes
ra dos fatos” (p. 298). Eis o ponto: se Dias 40/4, 2001. dos…” (p. 39). A palavra proibida fica
5 “Rudyard Kipling”, em My country suspensa no ar.
na Birmânia é mais que um mero dossiê de
right of left, 1940-1943, Nova York, 15 Esse aspecto de crença “sincera”
maldades imperialistas, é porque Orwell Harcourt, 1968, p. 168. na mentira, Orwell também o
conseguiu compreender e figurar literaria- 6 Kipling, O fardo do homem branco. identifica ao tratar das falsificações
mente que ali interessavam bem menos os Disponível em: https://www. que, na União Soviética stalinista,
fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/ armaram-se contra Trótski. Quando
fatos nus que as coisas conforme percebi- KIPLING%20O%20Fardo%20do%20 levamos em conta a sofisticação
das e acreditadas por pessoas como Ellis; Homem%20Branco.pdf. desses expedientes, argumenta: “Não
7 Cf. Kipling, “Quelques mots dá para achar que os responsáveis
rigorosamente, ele não está mentindo, pois estavam apenas mentindo. O mais
sur moi”, em Œuvres, IV, Paris,
acredita de verdade na mentira, e isso basta Gallimard, 2001, p. 995, 1.055. provável é estarem convictos de que
para justificar os seus atos, todos eles.15 a versão deles efetivamente ocorreu
8 Orwell, “[On Kipling’s death]”, em
aos olhos de Deus, justificando o
A perfeita mentira plasmada pela tríade An age like this, 1920-1940, Nova
rearranjo dos documentos nesse
York, Harcourt, 1968, p. 159.
imperialista – não será este o segredo da sentido” (Sobre a verdade, São Paulo,
9 Cf. Kipling, “Quelques mots sur Companhia das Letras, 2020, p. 127).
“verdadeira natureza do imperialismo”, moi”, op. cit., p. 1.059.
16 Orwell, “O abate de um elefante”,
“dos verdadeiros motivos pelos quais go- 10 Idem, p. 1.099. em Dentro da Baleia, São Paulo,
vernos despóticos agem”,16 ou seja, da- 11 Empregamos aqui o termo Companhia das Letras, p. 26 e 61.
quilo mesmo que George Orwell certa vez
afirmou ter descoberto na Birmânia? Acho HOMERO SANTIAGO é professor associado do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
que sim. Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). ✉ homero@usp.br

16 • humanitas
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IDEIAS&EVENTOS

O QUE ESPERAR EM
POR DANIEL MEDEIROS

Q
uando você estiver lendo estas linhas, o ano já esta-
rá em curso e você já saberá, com relativa precisão,
se as promessas que fez em dezembro vão ser cum-
pridas ou não. Afinal, janeiro é o mês de Janus, o deus com
um olhar voltado para frente e outro para trás, secando os uma sociedade melhor, um espaço de paridade social
olhos das angústias ainda vívidas e sorrindo das perspec- no qual ninguém possa ser discriminado por ser quem
tivas por vir. O fato é que a esperança é a doença crônica é e que nenhuma relação possa ser considerada justa
mais comum do ser humano. O mais pessimista, se ainda se não garantir o mínimo de dignidade. Uma esperança
respira, é porque acredita que tudo ainda pode melhorar. com quatro passos atrás para tentar ensaiar um passo
O problema de hoje é que o horizonte do possível para frente, só pra variar.
tornou-se algo raro de perscrutar. Antes, a miragem O ano não parece promissor para os jovens, para os
confundia-se com o horizonte. Hoje, o horizonte é a mi- pobres, para as mulheres, para os negros, para os que
ragem. Olhamos, olhamos, mas só há uma névoa densa têm consciência ambiental, para as pessoas que preci-
e inconstante, alterando-se a todo momento. Até nosso sam do apoio do governo e de suas agências. O ano não
otimismo crônico sofre com esse novo desafio. Afinal, parece promissor porque está na moda afirmar que
acreditar em quê? No ano passado, acreditamos que os todo mundo é vítima e que quem quiser sair dessa con-
americanos não iriam votar em um candidato que pôs dição tem de fazer por si, sem ajuda de ninguém, tem
em risco o que parecia ser o mais sagrado princípio da de ter mentalidade vencedora e tudo o mais que é repe-
sociedade daquele país: suas instituições. tido pelo melhor coach da semana de todos os tempos.
Diante disso, como apresentarmos aos nossos filhos, No entanto, por outro lado, o ano é promissor para
nossos alunos, um programa ético básico para servir de quem sabe que tudo isso é apenas a expressão do ho-
balizamento para o futuro? “Não minta, não calunie, não mem natural, do homem infantilizado e incapaz de per-
ameace, não ignore, não seja preconceituoso, não seja ceber que vive em meio aos outros, que não abre mão
insensível, dinheiro não é tudo, o importante é o Bem Co- de uma suposta liberdade que julga ter por origem e
mum”. Como podemos dizer isso com a firmeza de quem cujo exercício nega qualquer limite ou condicionamen-
sabe que o mundo não vai desmenti-lo? Pobre Aristóte- to. Como lembrava Hobbes – o primeiro a teorizar so-
les, como poderia imaginar que viveríamos esse proces- bre esse tipo de gente –, uma vida cercada de homens
so de fratura social, essa revolta das elites, com o aplau- naturais é pobre, infrutífera, sem esperanças.
so entusiasmado de seus súditos, os empreendedores
E, para quem sabe disso, o ano é promissor porque não
esperançosos de, um dia, alçarem-se a essa posição de
total niilismo social e indiferença com os losers. Pois é, há nada mais estimulante do que arregaçar as mangas
será isso que o ano promete? e mudar o mundo, mais uma vez, e tantas vezes quanto
Ou não. Pois nada impede que refaçamos nossos laços, for necessário para que a esperança não pereça defini-
aprendamos a dar outros tipos de nós, produzamos no- tivamente.
vas texturas e inventemos novos matizes, misturando
expectativas diferentes das que murcharam, perderam
© DENY / ADOBESTOCK.COM

o viço. Nancy Fraser, importante pensadora norte-ame-


© DANIEL DEREVECKI

ricana, fala muito da integração entre políticas de redis- DANIEL MEDEIROS é doutor em Educação
tribuição e de reconhecimento e da invenção de um es- Histórica e professor no Curso Positivo.
✉ danielmedeiros.articulista@gmail.com
paço comum para reagendar nossos esforços de luta por Redes sociais: @profdanielmedeiros

humanitas • 17
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CAPA

EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO

FEMININ A O resgate da
memória de Ana de
Castro, escritora e
fundadora de um
colégio de instrução
primária e de
humanidades para
meninas no século
19, e as estratégias
por ela usadas
para a defesa do
direito feminino à
inteligência
© AI GENERATED / MIDJOURNEY

18 • humanitas
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POR ALINE DIAS ANILE CHELLA

A
mante das

A
letras, entusiasta
da educação
feminina,
preceptora,
escritora. Em seu necrológio
publicado na Revista Mensal da
Sociedade Ensaios Literários,
assinado por Jerônimo Simões,
Ana Luísa de Azevedo Castro
é descrita como uma mulher
distinta e afável, de esmerada
educação e excelente coração,
uma talentosa professora,
uma senhora benquista pela
sociedade. Contudo, como
muitas escritoras do período, que
foram silenciadas ou esquecidas,
pouco sabemos sobre a vida
de Ana de Castro (doravante
D. ANNA CASTRO ERA
vou chamá-la dessa maneira
UMA SENHORA DOTADA
abreviada). Mesmo considerada
DE BASTANTE ESPÍRITO E a primeira romancista de
INTELIGÊNCIA, ESTUDIOSA, Santa Catarina, há mais
E DE CONHECIMENTOS especulações e perguntas sem
LITERÁRIOS; ERA ANIMADA respostas do que fatos sobre
DE NOBRES E ELEVADOS sua biografia. “Lástima para a
INTUITOS EM FAVOR DA literatura feminina brasileira que
EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO esqueceu, por tanto tempo, uma
DE SEU SEXO […]1 boa pioneira”2.

humanitas • 19
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CAPA

Não se tem informação precisa a respeito de


seu nascimento, que pode ter ocorrido entre 1823
e 1827, em São Francisco do Sul, na província de
Santa Catarina. Ainda jovem, Ana de Castro mudou-
-se para o Rio de Janeiro com a família, quando se
casou3 e fundou um colégio de instrução primária e
humanidades para meninas, atuando como profes-
sora e diretora da instituição até seu falecimento.
Sobre sua família, notícias dos jornais cariocas
do período dão acesso a algumas informações.
D. Maria Jacintha de Carvalho Bueno, sua mãe,
faleceu em 18514. A escritora teve duas irmãs, D.
Josefa Francisca de Azevedo e D. Claudina Amalia
de Azevedo Costa. Ana de Castro perdeu dois filhos
em tenra idade – Clementina, em 1854, por pneumo-
nia5, e Alfredo, em 1855, por disenteria6. Em 1860,
faleceu seu sobrinho Luciano José da Costa7, filho
de sua irmã D. Claudina Amalia da Costa, que tam-
bém viria a perder outra filha, D. Carolina Candida
da Costa Andrade, em 18658.

Prestígio
Em 1858, entre 13 de abril e 6 de julho, Ana de
Castro publicou no periódico A Marmota, sob o
pseudônimo Indígena do Ipiranga, o seu único ro-
mance, D. Narcisa de Villar. Em 1859, a obra sai no
formato de livro pela Tipografia de F. de Paula Brito.
Somente após mais de 100 anos o romance foi re-
editado, graças ao trabalho de resgate de textos de
autoria feminina do século 19 desenvolvido pela
pesquisadora Zahidé Lupinacci Muzart. Com o selo
da Editora Semprelo, sai em 1990 uma tiragem de
200 exemplares de D. Narcisa do Villar (com venda
antecipada, a edição foi um sucesso). Em 1997 e em
2000, a Editora Mulheres, de Santa Catarina, impri-
me a 4ª e a 5ª edição da obra. Da produção de Ana
de Castro, ainda temos acesso ao poema O pranto
do poeta, de 1860, e um discurso realizado em 1866
na Sociedade Ensaios Literários.
Apesar da escassez e inexatidão de informações,
é possível pressupor que Ana de Castro teve uma
educação qualificada e foi uma leitora ativa – tanto
pelo fato de ter se tornado professora quanto pelas

20 • humanitas
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“Dos mais de 9 milhões de habitantes do País, 81,43% eram


analfabetos. Dentre os 4.806.604 de mulheres que compunham
a sociedade brasileira, apenas 11,5% eram alfabetizadas. Porém,
como parte do processo de construção da nova nação brasileira,
buscou-se contemplar a educação feminina instituindo a
obrigatoriedade do ensino primário gratuito também para elas”

referências que podemos encontrar em seus tex- Porém, como parte do processo de construção da
tos, como Montesquieu, Madame Staël e Madame nova nação brasileira, em que a educação tornava-
Cottin. Em 16 de abril de 1866, a escritora foi eleita -se essencial para o desenvolvimento do Brasil, bus-
sócia honorária da Sociedade Ensaios Literários, cou-se contemplar a educação feminina instituindo
instituição da qual poucas mulheres faziam parte a obrigatoriedade do ensino primário gratuito tam-
– o que demonstra o prestígio da escritora, que, bém para elas – em classes separadas dos meninos
além de participar das reuniões, contribuía para a e com professores do mesmo sexo. Afinal, como
revista da Sociedade. escreveu um jurista da época, para que a pátria
Faltam registros sobre a recepção de D. Narcisa cumprisse seus altos destinos, “o desenvolvimento
de Villar, mas os diversos anúncios do romance nos das faculdades intelectuais não é menos necessário
jornais da época e o fato de Ana de Castro ser sido do que o das qualidades morais, para que a mulher
considerada uma escritora por seus contemporâne- possa preencher neste mundo a sua missão santa
os dizem muito do lugar da autora. Já sua atuação de esposa e mãe”11.
como preceptora era muito afamada e elogiada nos O projeto não teve muito êxito. O número de es-
periódicos da época. Seu colégio, conhecido como colas era pequeno e a procura era baixa, já que as
Colégio de D. Anna de Castro, foi dirigido por ela até famílias de classes menos abastadas não viam sen-
sua morte, em 1869. A instituição, que ensinava fran- tido em enviar suas filhas para a escola, enquanto
cês, italiano, cosmografia, geografia, aritmética, his- nas famílias de elite, o ensino ficava a cargo de pre-
tória natural, desenho, canto, piano, harpa e dança, ceptoras particulares. Faltavam também professoras
contava com 80 alunas matriculadas em 1865 – 60 qualificadas para ensinar as meninas – e foi então
na instrução primária e 20 na secundária9. que, em meados do século 19, foram criadas as
Escolas Normais, a fim de prepará-las para exercer
Educação feminina o magistério. De qualquer maneira, a educação es-
O Censo Geral do Império de 187210, o primei- colar para meninas não foi vista com bons olhos no
ro censo demográfico realizado no Brasil, revela período, e os ensinamentos dirigidos a elas foram
dados importantes sobre o grau de instrução da restritos às prendas domésticas e a questões muito
população nacional. Dos mais de 9 milhões de ha- básicas de leitura, escrita e matemática.
bitantes do País, 81,43% eram analfabetos. Dentre As instituições particulares de ensino secundá-
os 4.806.604 de mulheres que compunham a socie- rio para meninas começaram a surgir a partir de
dade brasileira, apenas 11,5% eram alfabetizadas. 1850. No entanto, como as mulheres não tinham

humanitas • 21
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CAPA

possibilidade de ascensão ao ensino superior,


seu currículo se mantinha restrito ao que era ne-
cessário para que elas se tornassem boas moças
de família. De acordo com Washington Dener dos
Santos Cunha e Rosemaria J. Vieira Silva12, essas
instituições assemelhavam-se mais a espaços de
sociabilidade do que a escolas propriamente ditas,
já que o foco estava na promoção de reuniões so-
ciais em vez do ensino e da aprendizagem. É claro A favor da instrução feminina
que, dentre elas, havia raras exceções, ou seja, ins- Por muito tempo, a instrução feminina permane-
tituições preocupadas com a formação intelectual ceu entrelaçada intimamente à questão da mater-
de suas alunas, mas a maioria tinha como propósi- nidade e do progresso da pátria – a mulher como
to “preparar a mulher para educar os seus filhos, de responsável pelo desenvolvimento moral de seus
acordo com as regras da boa sociedade, exercendo filhos e pela formação de bons cidadãos. Somente a
assim o seu papel de esposa e mãe, guardiã da fa- partir da década de 1870 ganha corpo a questão da
mília e dos bons costumes”13. profissionalização, com o debate sobre o ingresso de

22 • humanitas
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mulheres nas faculdades de Medicina, a exemplo da A razão pode estar no receio dessas mulheres de
Europa e dos Estados Unidos. não serem respeitadas, no medo de serem repudia-
Ainda havia um longo caminho pela frente. Foram das ou até mesmo ignoradas. Por isso, elas antecipa-
poucas – e corajosas – as mulheres que enfrentaram damente já estariam, de certa forma, desculpando-se
preconceitos e hostilidades a fim de se aventurar por expressar suas ideias e seus pensamentos. Sobre
nos bancos das academias. Corajosas também fo- a questão das metáforas, a pesquisadora explica que
ram as vozes que se levantaram no esforço por uma “se os homens, na vida cotidiana, só as valorizariam
educação de qualidade para as mulheres; dentre pelos seus encantos físicos como beleza e juventude,
elas, Ana de Castro. Essa foi uma reinvindicação é igualmente nesses atributos que incide a ênfase
constante das escritoras oitocentistas – difícil en- valorativa dos prefácios”16.
contrar um nome que não tenha escrito ao menos No caso de Ana de Castro, o uso desses artifícios,
uma linha sobre o assunto. Em um discurso pro- além de outros elementos próprios que caracteriza-
ferido no dia 20 de janeiro de 1866, na sessão em vam a feminilidade, fez-se de forma premeditada. Ao
comemoração ao sexto aniversário da Sociedade utilizar palavras que remetiam à docilidade, à graça,
Ensaios Literários, que posteriormente foi publica- à amabilidade e à sensibilidade da mulher, a autora
do na oitava edição da Revista Mensal da Sociedade buscou “amansar” seu público, parecendo aceitar o
Ensaios Literários, Ana de Castro aproveita o espa- papel que lhe é atribuído pela sociedade para, em
ço para advogar a favor da instrução feminina. seguida, fazer críticas a ele. A exaltação e os elogios
Ao se dirigir aos senhores membros da institui- em profusão para a Sociedade Ensaios Literários e
ção, a escritora faz uso de uma linguagem formal, seus membros também pareceram servir para “pre-
requintada, com referências ao filósofo, escritor e parar” o público para melhor receber suas ideias.
intelectual francês Montesquieu e à mitologia gre- Interessante também como ela faz uso das ideias do
ga. Sabe-se que, por ter se tornado sócia honorá- discurso dominante para validar seus argumentos.
ria da Sociedade, a autora teria certo prestígio no Um exemplo é a própria citação de Montesquieu,
meio intelectual. Porém, essas escolhas em seu que funciona como uma “alfinetada” – se, afinal, os
discurso, vocabulário e citações apontam para o homens querem desenvolver e elevar a nação, eles
cuidado que teve a fim de ser levada a sério, para precisam proporcionar educação para as mulheres.
ter sua fala aceita e legitimada pelos demais in-
tegrantes do grupo, e até mesmo uma preocupa- Vidas limitadas
ção em se mostrar adequada, como mulher, aos O discurso também traz a consciência da escrito-
padrões patriarcais dominantes. ra em relação aos preconceitos e às opressões desti-
nadas às mulheres, como se a inteligência fosse um
Posição de humildade atributo apenas dos homens. Ana de Castro aponta
Além disso, a escritora coloca-se, a todo momen- que as mulheres também podem encontrar seu lu-
to, em um lugar de humildade, apresentando-se gar no “banquete das inteligências”17, mas já deixa
como uma modesta mãe de família e preceptora: claro que, para tal, elas precisam ter “forças para
“No banquete das inteligências não há sexo. […] penetrar os seus pórticos”18. Afinal, as dificuldades
protegida com esta verdade, afrontando a timidez e resistências seriam muitas.
do meu sexo, os usos da minha pátria, venho aqui Durante sua exposição, a escritora defende a
misturar convosco a minha débil voz no sublime educação feminina e ainda elabora uma crítica con-
festim de que sois convivas”14. Analisando os pre- tra o casamento, que seria um impeditivo para que
fácios e as dedicatórias de escritoras do século 19, a mulher desenvolvesse seu intelecto. Segundo a
Zahidé Lupinacci Muzart percebeu o uso constante autora, toda instrução recebida na escola, conquis-
dessa posição de humildade, juntamente com o que tada após muitos sacrifícios e privações, seria des-
ela chama de metáforas “florais”15 (também utiliza- cartada e inutilizada tão logo a moça se casasse
das por Ana de Castro em seu discurso). – e mais: o casamento, por fim, silenciaria sua voz

humanitas • 23
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CAPA

“A razão pode estar no como uma leitura menor, fútil e perigosa, mesmo
tendo sido ela autora de um texto do gênero. Para
receio dessas mulheres concluir seu discurso, volta a utilizar ideias legiti-

de não serem respeitadas, madas pelos homens, como a importância da mãe


na formação e educação de seus filhos e a ideia
no medo de serem da mulher como responsável pela harmonia do lar,
para reivindicar a instrução feminina.
repudiadas ou até mesmo “E estais certos que, tendo mães ilustradas,
ignoradas. Por isso, elas tereis a mocidade preparada para todos os altos
acontecimentos da vida, possuindo no vosso lar,
antecipadamente já não pedantes citando-vos a todos os momentos
estariam, de certa forma, nomes pomposos de autores, porém companhei-
ra ilustrada que leva a consolação e a coragem ao
desculpando-se por esposo aflito e impressionado pelos desgostos.

expressar suas ideias e Desenvolvei a minha ideia – a vós, eu a entrego.”21


A luta de Ana de Castro em prol da educação
seus pensamentos” feminina não ficou apenas no papel. Além de atuar
como escritora, ela fundou um colégio de instrução
primária e humanidades para meninas, e seu traba-
lho como preceptora foi bastante estimado – seu co-
légio chegou a ser um dos mais conhecidos do Rio
e esvaziaria sua alma. Muitos talentos e inteligên- de Janeiro. Por conta disso, recebeu muitos elogios
cias estariam perdidos. O casamento e a vida em nos periódicos da época.
família limitariam as experiências das mulheres. Por ocasião de uma apresentação das alunas
“A menina que recebeu no colégio noções de do colégio, o Jornal do Commercio publicou, em
grande instrução é condenada a queimar todo o seu 27 de dezembro de 1863, um texto batizado de
trabalho – sacrifício inaudito da infância, forçada a “Educação de meninas”, assinado por “um pai
dar aos livros a atenção que sua boneca exige – ao de família” enaltecendo Ana de Castro “dotada de
fogo lento do indiferentismo que lavra no novo cír- elevada inteligência, imaginação viva e vontade
culo que vai entrar. […] É o altar que se levanta no imperiosa, cada vez capricha mais para solidificar
deserto do seu coração, onde o seu espírito está só e aquele princípio [o espírito da civilização], arrai-
quase vazio, no qual a alma vai oferecer seus místi- gando-o no espírito daqueles que têm a felicidade
cos cantos. Todavia, ainda esse mesmo tem um dia de ouvi-la. […] O coração expande-se jubiloso no
de ser aniquilado na voraz fogueira, onde foram re- peito quando vê tão bem compreendida por uma
duzidos às cinzas do esquecimento os pincéis e os senhora a alta missão que lhe foi confiada na
livros. É quando a moça torna-se esposa e mãe.”19 terra!”22
Na mesma edição, consta ainda um poema em
“Vozes do meu sexo” homenagem à mestra, assinado por uma estu-
Ao final, Ana de Castro defende o desenvolvi- dante do colégio, Augusta Catellões. No texto, a
mento do hábito de leitura entre as mulheres e a moça expressa seu amor e gratidão por Ana de
produção de autoria feminina. “Criai um Clube para Castro, considerada por ela mais do que uma
nós outras, onde cada qual leve uma produção de professora, mas também uma amiga, responsável
seu talento, onde a leitura da história, da filosofia pelo seu saber e por incentivar seu conhecimen-
e da moral seja ouvida por vozes do meu sexo”20. to. “Para dar-nos a instrução,/ Sois rica em co-
Note-se, aqui, que a escritora demanda por leitu- nhecimentos;/ Para guiar-nos à virtude,/ Tendes
ras consideradas edificantes, colocando o romance nobres sentimentos.”23

24 • humanitas
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Ao gosto do establishment da época determinava. O exercício do magistério seria


Já no Correio Mercantil do dia 24 de dezembro de próprio da natureza feminina, a vocação da mulher,
1867, um discurso proferido por outra aluna, Julia função estendida da maternidade. Uma das alunas
Felippone, foi publicado. Nele, a jovem, utilizando as chega a registrar que a professora “continua também
metáforas “florais”, expõe toda a admiração que sente os exemplos que em casa nos dão nossas mães!”25.
por sua mestra, pelos ensinamentos e pela dedicação Contudo, Ana de Castrou soube usar – e driblar –
que ela oferece. “Pelicano de amor, esta mulher rasga- a estrutura patriarcal para defender e propagar suas
ria seu seio para com seu próprio sangue regar suas ideias. Atuando dentro dos limites do que a socie-
queridas flores, se o orvalho vivificante lhe faltasse.”24 dade normatizava para as mulheres, ela conseguiu
Em todas essas homenagens, é possível perceber inserir-se em espaços majoritariamente masculinos
que a professora é descrita – mais do que por seu e provocar reflexões sobre a condição feminina, prin-
conhecimento e intelecto – por suas características ti- cipalmente no que diz respeito à educação, para que
picamente femininas: ela é doce, bondosa, amável, de- assim, quem sabe, todas as mulheres encontrassem
dicada, o que vai ao encontro do que o establishment seu lugar no banquete das inteligências.

FONTES ano XII, n. 132, p. 1, segunda coluna. Disponível Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
A Marmota. Rio de Janeiro, 13/04/1858, n. 942, em: http://memoria.bn.br/docreader/ 24/03/1865, ano XLIII, n. 83, p. 3,
p. 1, 1ª coluna. Disponível em: http://memoria. DocReader.aspx?bib=217280&pagfis=10382. quarta coluna. Disponível em: http://
bn.br/pdf/706914/per706914_1858_00942. Acesso em: 10 out. 2024. memoria.bn.br/docreader/DocReader.
pdf. Acesso em: 29 set. 2024. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, aspx?bib=364568_05&pagfis=8381. Acesso
24/12/1867, ano XXIV, n. 353, p. 3, em: 7 set. 2024.
Auroras – Estudos Críticos. Rio de Janeiro,
Tipografia e Litografia de F. A. de Souza, segunda coluna. Disponível em: http:// Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
1869, n. 03, p. 65. Disponível em: http:// memoria.bn.br/docreader/DocReader. 27/12/1863, ano XXXVIII, n. 357, p. 3,
memoria.bn.br/docreader/DocReader. aspx?bib=217280&pagfis=28534. Acesso em: quarta coluna. Disponível em: http://
aspx?bib=717460&pagfis=357. Acesso em: 13 10 set. 2024. memoria.bn.br/docreader/DocReader.
set. 2024. Diário do Rio de Janeiro, 14/05/1855, ano aspx?bib=364568_05&pagfis=6226. Acesso
XXXIV, n. 132, p.2, segunda coluna. Disponível em: 12 set. 2024.
CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. D. Narcisa de
Villar. 4. ed. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2000. em: http://memoria.bn.br/docreader/ Mapa das matrículas de instrução primária e
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publica no Brazil. Rio de Janeiro: Tipografia
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Acesso em: 2 out. 2024.
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Janeiro, Imprensa Nacional, 1900. Disponível
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em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/
quarta coluna. Disponível em: http:// detalhes#:~:text=Resumo%3A%20O%20
id/221681. Acesso em: 10 out. 2024.
memoria.bn.br/docreader/DocReader. Censo%20Geral%20do, Reinado. Acesso em:
CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. D. Narcisa de aspx?bib=364568_04&pagfis=6400. Acesso 28 set. 2024.
Villar. 4. ed. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2000. em: 6 set. 2024. SIMÕES, Jerônimo. Necrologia.
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 14/12/1860, Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, Revista Mensal da Sociedade Ensaios
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em: http://memoria.bn.br/docreader/ quarta coluna. Disponível em: http:// de 1872, n. 7. Disponível em: http://
DocReader.aspx?bib=217280&pagfis=18437. memoria.bn.br/docreader/DocReader. memoria.bn.br/docreader/DocReader.
Acesso em: 10 out. 2024. aspx?bib=364568_05&pagfis=436. Acesso em: aspx?bib=338966&pagfis=1667. Acesso em: 6
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 14/05/1855, 7 set. 2024. out. 2024.

humanitas • 25
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CAPA

REFERÊNCIAS do magistériono século XIX. Revista em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/


COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2), travessia/article/view/17202. Acesso em: 3
Enciclopédia de literatura brasileira. Rio de 2011. Disponível em: http://educa. out. de 2024.
Janeiro, RJ: OLAC: FAE, 1990. v. 1. fcc.org.br/scielo.php?script=sci_
MUZART, Zahidé L. Escritoras Brasileiras do
arttext&pid=S0104-026x2011000200010.
CUNHA, Helena Parente. Cânone: dúvidas século XIX. Antologia: volume II. Santa Cruz
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e ambiguidades. Scripta, Belo Horizonte, do Sul, RS: Ed. Mulheres/EDUNISC, 2004.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de; ARAÚJO,
v. 10, n. 19, 2006. p. 24-249. Disponível MUZART, Zahidé L. Narrativa feminina em
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em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/ Santa Catarina (do século XIX até meados do
de Janeiro, Rocco, 1993.
articulo?codigo=8088092. Acesso em: 6 out. século XX). Organon, Porto Alegre, v. 16, n.
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SILVA, Rosemaria J. Vieira. A educação Acesso em: 13 ago. 2024.
BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de
feminina do século XIX: entre a escola e a gênero. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no
literatura. Revista Gênero, Rio de Janeiro, Tempos, 1992. território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa
v. 11, n. 1, 2010. Disponível em: https:// Buarque de. Tendências e Impasses: o
MUZART, Zahidé L. Ana Luísa de Azevedo
periodicos.uff.br/revistagenero/article/ feminismo como crítica da cultura. Rio de
Castro. In: Escritoras Brasileiras do século
view/30936. Acesso em: 6 out. 2024. Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57.
XIX. Antologia: volume II. Santa Cruz do
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de Sul, RS: Ed. Mulheres/EDUNISC, 2004. p. TELLES, Norma. Paisagens de letras
aula. In: DEL PRIORE, Mary (org). História 250-263. e palavras. Anuário de Literatura,
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/ MUZART, Zahidé L. Artimanhas nas Florianópolis, v. 18, 2013. Disponível
Ed. UNESP, 2001. p. 443-481. entrelinhas: leitura do paratexto de em: https://doi.org/10.5007/2175-
HAHNER, June E. Escolas mistas, escolas escritoras do século XIX. V Encontro 7917.2013v18nesp1p49. Acesso em: 22 set.
normais: a coeducação e a feminização Nacional da ANPOLL. Recife, 1990. Disponível 2024.

N O TA S 10 Disponível no portal do Instituto 21 CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. Op. cit.


1 SIMÕES, Jerônimo. Necrologia. Revista Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). p. 18-19.
Mensal da Sociedade Ensaios Literários. Rio 11 BARROSO, José Liberto. A instrucção 22 Educação de Meninas. Jornal do
de Janeiro, 31 de outubro de 1872, n. 7, p. publica no Brazil. Rio de Janeiro: Tipografia
Commercio, Rio de Janeiro, 27/12/1863, ano
676. Nacional, 1867. p. XXIX.
38, n. 357, p. 3, 4ª coluna.
2 MUZART, Zahidé L. Narrativa feminina em 12 CUNHA, Washington Dener dos Santos;
Santa Catarina (do século XIX até meados SILVA, Rosemaria J. Vieira. Op. cit. p. 100. 23 A Exma. Sra. D. Anna de Castro. Jornal
do século XX). Porto Alegre, Organon, v. 16, do Commercio, Rio de Janeiro, 27/12/1863,
13 CUNHA, Washington Dener dos Santos;
n. 16, 2013. SILVA, Rosemaria J. Vieira. Op. cit. p. 100-101. ano 38, n. 357, p. 3, 6ª coluna.
3 Não existem documentos ou registros que nos 14 CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. 24 Discurso. Correio Mercantil. Rio de
ajudem a elucidar a identidade de seu marido. Discurso. Revista Mensal da Sociedade Janeiro, 24/12/1867, ano 24, n. 353, p. 3, 2ª
4 Correio Mercantil. Rio de Janeiro, Ensaios Literários, edição 8, 1866, p. 17. coluna.
14/12/1860, ano 17, n. 345, p. 4, 4ª coluna. 15 MUZART, Zahidé L. Artimanhas nas 25 Discurso. Correio Mercantil. Rio de Janeiro,
5 Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, entrelinhas: leitura do paratexto de
24/12/1867, ano 24, n. 353, p. 3, 2ª coluna.
11/01/1854, ano 29, n. 11, p. 1, 4ª coluna. escritoras do século XIX. V Encontro
Nacional da ANPOLL. Recife, 1990. p. 65.
6 Correio Mercantil. Rio de Janeiro,
14/05/1855, ano 12, n. 132, p. 1, 2ª coluna. E 16 MUZART, Zahidé L. Op. cit. p. 66.
ALINE DIAS ANILE CHELLA é jornalista,
em Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 17 CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. historiadora e mestranda do Programa
14/05/1855, ano 34, n. 132, p. 2, 2ª coluna. Discurso. Revista Mensal da Sociedade de Pós-Graduação em História da
7 Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, Ensaios Literários, edição 8, 1866, p. 17. Universidade Federal do Paraná (UFPR)
19/04/1860, ano 35, n. 108, p. 3, 4ª coluna. 18 CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. Op. na linha de pesquisa Intersubjetividade
cit. p. 18. e Pluralidade: Reflexão e Sentimentos na
8 Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
História. Desenvolve pesquisa nas áreas
24/03/1865, ano 43, n. 83, p. 3, 4ª coluna. 19 CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. Op.
de história das mulheres; escrita de
9 Mapa das matrículas de instrução cit. p. 18. mulheres; gênero. Lattes: http://lattes.
primária e secundária nos estabelecimentos 20 CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. Op. cnpq.br/4118916932779685
particulares para o sexo feminino. 1865. cit. p. 18. ✉ alineanilec@gmail.com

26 • humanitas
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TECNAMENTE

PLANETA
INABITÁVEL
POR JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA

R
ecentemente estive num simpósio sobre eventos
climáticos extremos. Logo na abertura, veio uma
advertência: já estamos enfrentando uma emer-
gência climática. Independentemente da emissão de CO2, o
planeta lentamente se aquece em direção a uma nova era
geológica. Esse pequeno aquecimento tem um efeito im-
portante sobre o solo, que, mais quente, produz mais eva- Os oceanos estão inteiramente poluídos. Quando comemos
poração e chuvas torrenciais. Não sabemos precisamente peixe, engolimos micropartículas de plástico que afetam
onde e quando elas ocorrerão, pois a aleatoriedade faz par- nossa saúde. Na água dos grandes rios há resíduos de anti-
te do novo cenário climático que chegou. Por conta desse depressivos e antibióticos. Até resíduos de cocaína já foram
aquecimento, os oceanos sobem um milímetro por ano. Pa- encontrados. Recentemente, os habitantes que vivem pró-
rece pouco, mas, em dez anos, isso representa um metro. ximo ao Everest encontraram mais de 300 ossadas huma-
A inclinação da Terra está se modificando e, com isso, no- nas nas suas encostas. Encontraram, também, 5 toneladas
vas eras geológicas vão ocorrendo. Há 12 mil anos, por de fezes humanas. Quando chove, elas escorrem montanha
exemplo, vivíamos na Era do Gelo. Agora, possivelmente, abaixo, inundando aldeias.
estamos caminhando para uma era tórrida. Nada podemos Sabemos que não é mais possível prover água potável e
fazer em relação a esse fenômeno astronômico. alimentação sadia para 8 bilhões de pessoas. Nossa água
A contribuição humana para esse desastre é conhecida por e nossa comida estão perigosamente envenenadas. No en-
todos. O CO2 impede que os raios solares sejam refletidos, tanto, a população planetária continua a crescer, impulsio-
o que faz com que a atmosfera esquente ainda mais. É o nada, sobretudo, pelo dogmatismo estúpido das religiões.
famoso “efeito estufa”, produzido principalmente pelo uso Somos um planeta insustentável.
de combustíveis fósseis. Terminei de escrever esta matéria nas vésperas do início da
Os países do hemisfério norte são os maiores produtores COP29, que, este ano, foi em Baiku, no Azerbaijão. Mais uma
do efeito estufa. Ele não é apenas o resultado do uso de ve- conferência sobre o clima. Enquanto isso, os grandes polui-
ículos com motores a combustão. Isso representa apenas dores se refestelam. A China emite 30% do CO2; os Estados
1% das emissões. Os aviões emitem apenas 3%. A grande Unidos, 25%. Eles querem que o hemisfério sul se exploda.
emissão ocorre pelo aquecimento doméstico no inverno e Para isso usam a pior poluição do mundo: a burocracia.
pela indústria pesada, principalmente as usinas de cimen- Os brasileiros não precisam se preocupar: emitimos entre
to. Para os tolos de consciência pesada foram inventados 2,5% e 5% de CO2.
os carros elétricos.
E há outros problemas que estão tornando nosso planeta JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA estudou
© AI GENERATED / MIDJOURNEY

na França, na Inglaterra e nos Estados


inabitável. A falta de água num futuro próximo é um deles. Unidos. Lecionou na UNESP, na UFSCar e
© ARQUIVO PESSOAL

Enquanto nos esforçamos para economizar água, grandes na PUC-SP. Estuda filosofia da mente e da
tecnologia. ✉ jteixe@terra.com.br
corporações assinam contratos no valor de 500 bilhões de
dólares para explorar petróleo no Ártico.

humanitas • 27
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ECONOMIA

IMPERFEIÇÃO
COMO DESAFIO A ANÁLISE, SOB AS
LENTES DA ECONOMIA,
DA COMPLEXIDADE DE
QUESTÕES ENVOLVIDAS NO
MERCADO DA SAÚDE NO
BRASIL – QUE ABRANGEM
SEU CONCEITO E GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS, ALÉM
DA PERSPECTIVA DE
ENVELHECIMENTO RÁPIDO
DA POPULAÇÃO

28 • humanitas
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POR JOSÉ PIO MARTINS

A
Organização Mundial de Saúde (OMS) consumo opcional, e essa característica torna
afirma que saúde é o estado de completo a formação dos preços complexa. Um exemplo
bem-estar físico, mental e social, e não são os planos de saúde, casos em que, além do
a simples ausência de doença ou enfermidade. prestador do serviço (médico ou outro profissio-
A Constituição Federal brasileira estabelece, em nal), do paciente, do tipo de serviço e do preço,
seu artigo 196, que a “saúde é direito de todos há um quinto ator: o pagador, que não é o clien-
e dever do Estado, garantido mediante políticas te (paciente), mas a operadora. Esse quinto ator
sociais e econômicas que visem à redução do no mercado (a operadora) dispensa a tratativa
risco de doença e de outros agravos e ao acesso financeira entre o cliente e o fornecedor, permite
universal e igualitário às ações e serviços para abusos e desperdícios, e obriga as operadoras a
sua promoção, proteção e recuperação”. terem equipes de auditoria e fiscalização.
Já os economistas afirmam que a economia Nos mercados de bens e serviços, há pelo
da saúde é constituída de um mercado com- menos quatro atores: o produtor, o consumidor,
posto dos bens materiais (hospitais, unidades o produto e o preço. No caso da assistência à
de saúde, máquinas, equipamentos, aparelhos, saúde, o mercado é organizado no mais das ve-
medicamentos etc.) e dos serviços prestados zes com a atuação do quinto ator: o pagador,
por médicos e demais profissionais da área da que pode ser o governo (como é o SUS) ou a
saúde. Os dois modelos de assistência à saúde operadora do seguro-saúde (como são as opera-
predominantes no Brasil são o previdencialis- doras de planos de saúde).
mo (esquema de seguro-saúde em que pessoas
participam de um grupo e fazem contribuição
rotineira previamente fixada, como é o caso dos
planos de saúde privados) e o universalismo,
nosso conhecido Sistema Único de Saúde (SUS).
O mercado da saúde é imperfeito por defini-
ção, sobretudo em razão das falhas estruturais “OS SERVIÇOS DE SAÚDE SÃO
de mercado, notadamente as seguintes: a ne-
cessidade é não mercantil, os produtos não são
COMPRADOS E VENDIDOS EM UM
comparáveis, há reduzida autonomia do con- MERCADO NÃO COMPETITIVO,
sumidor, o consumo do serviço é simultâneo à
produção, e a formação de preços é deficiente. DIFERENTE DOS MOLDES DOS BENS
E SERVIÇOS DE CONSUMO OPCIONAL,
© EONEREN / GETTY IMAGES

Os meandros desse mercado


Assim, os serviços de saúde são compra- E ESSA CARACTERÍSTICA TORNA A
dos e vendidos em um mercado não competiti-
vo, diferente dos moldes dos bens e serviços de FORMAÇÃO DOS PREÇOS COMPLEXA”

humanitas • 29
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ECONOMIA

“A NECESSIDADE OBRIGATÓRIA
DE TER O SERVIÇO E A
EXISTÊNCIA DE UM PAGADOR QUE A MÃO DE OBRA
NÃO É O USUÁRIO SÃO ASPECTOS DO CUIDADO
QUE LEVAM À APROVAÇÃO O IBGE revela outra informação importante: o
número de familiares trabalhando nos cuidados
DE LEIS E REGRAS DE a pessoas com mais de 60 anos era de 3,7 milhões
FUNCIONAMENTO DO MERCADO em 2016 e subiu para 5,1 milhões em 2019. Para
compreender o tamanho do mercado em potencial,
DE SAÚDE, PRINCIPALMENTE é importante olhar para o cuidado não remunerado
feito no País hoje. São pessoas – na maioria, mulhe-
NO CASO DOS PLANOS DE res – que trabalham muitas vezes na invisibilidade,
SAÚDE, INCLUINDO REGRAS sem remuneração, fazendo grandes sacrifícios
pessoais (por exemplo, abandonando suas
DE FORMAÇÃO DE PREÇOS E profissões, colocando em risco sua saúde e
sua própria sobrevivência financeira na
PROCEDIMENTOS DE CONTROLE” velhice), segundo especialistas.

Como o mercado de saúde não funciona em re-


gime de concorrência perfeita, daí surge a necessi-
dade de mediação e fixação de regras para que as
imperfeições naturais desse tipo de mercado sejam
amenizadas, principalmente pelo fato de que o de- vados dos serviços (os esquemas de seguro-saúde).
mandante (o paciente) em geral não tem a liberdade Aqui valem alguns comentários sobre a questão
de decidir entre comprar ou não comprar o serviço: demográfica. No ano 2000, as pessoas com mais
diante da doença, no mais das vezes ele tem que de 60 anos no Brasil eram 8,7% da população. Em
comprar o serviço. 2023, já eram 15,6%. A taxa de fecundidade no ano
2000 estava em 2,32 filhos por mulher e, em 2023,
Regulações necessárias caiu para 1,57 filho por mulher. A população do
A necessidade obrigatória de ter o serviço e a País vai parar de crescer em 2041, segundo proje-
existência de um pagador que não é o usuário são ção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
aspectos que levam à aprovação de leis e regras de ca (IBGE), e a mesma instituição diz que, em 2070,
funcionamento do mercado de saúde, principalmen- os brasileiros idosos serão 37,8% da população;
te no caso dos planos de saúde, incluindo regras de portanto, mais de um terço. É nesse cenário que os
formação de preços e procedimentos de controle. E cuidados serão em grande parte feitos pelo cuida-
é nesse quadro peculiar do mercado de saúde que dor de idosos, que hoje é um trabalhador invisível
entra em ação o governo como regulador, fiscaliza- em uma atividade não regulamentada.
dor e autorizador de procedimentos e preços, tanto Está em andamento a regulamentação da pro-
no caso do SUS como no caso dos prestadores pri- fissão. A Câmara dos Deputados aprovou, em no-

30 • humanitas
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vembro de 2024, um projeto de lei que institui a des, unidades de pronto atendimento, hospitais pú-
Política Nacional de Cuidado. O projeto foi aprova- blicos), clínicas e hospitais privados que atendem
do em dezembro do mesmo ano também pelo Sena- pelo SUS, clínicas e hospitais privados que atendem
do e, após toda a tramitação, seguirá para sanção planos de saúde, e clínicas e hospitais privados que
da presidência da República. A ideia é que, sendo o atendem exclusivamente os particulares. É claro que
Brasil um país pobre, no futuro o SUS acabe entran- os serviços de assistência à saúde demandados e as
do na prestação dos serviços de cuidados ao ido- estruturas de oferta são mais complexos do que o
so. O IBGE informa que, entre 2019 e 2023, houve resumo citado, mas é essa estrutura que dá o tom
aumento no número de cuidadores remunerados e de como se formam os preços no mercado de saúde,
que eles já seriam 840 mil profissionais trabalhando em especial os preços fora do sistema SUS, como
nesses serviços. os vinculados aos planos de saúde. Trata-se de um
mercado complexo, com imperfeita formação de pre-
Visão econômica ços e sistemas rígidos de controle em razão de o usu-
Olhando o mercado de saúde sob a ótica do siste- ário não ser o pagador direto.
ma econômico, de um lado está a demanda feita por Vale destacar o caso das cooperativas médicas
toda a população com suas características etárias e outros serviços de saúde, a exemplo da Unimed,
(crianças, adultos, idosos) e suas características de que operam como intermediárias entre o usuário in-
renda (pobres dependentes exclusivamente do SUS, dividual e o prestador de serviços. Nesses casos,
classes de renda média que usam SUS mais planos o equilíbrio financeiro entre as receitas (recebidas
privados de saúde, e um grupo pequeno que usa a dos usuários) e as despesas (pagas aos prestadores
assistência particular custeada pelo usuário). de serviços) é um equilíbrio difícil, que tem no con-
De outro lado, estão os prestadores de serviços trole dos atendimentos demandados pelos usuários
compostos das estruturas estatais (postos de saú- e na prestação dos serviços pelos médicos, clínicas
e hospitais, uma relação eivada de conflitos.

Complexidade
Há quem estima que, nos próximos anos, deve

MÉDICO AUDITOR, haver revisão da legislação a fim de aperfeiçoar os


contratos dos planos de saúde e os mecanismos de
EFEITO DA IMPERFEIÇÃO operação dos serviços, de forma a melhorar a com-
preensão e os conflitos judiciais, sobretudo porque
A complexidade de um setor imperfeito resultou tem havido crescimento expressivo do número de
na criação de uma figura como peça fundamental no processos tramitando na Justiça.
funcionamento do sistema: o médico auditor. Dada Outra situação que precisa ser melhorada diz res-
a separação entre o produtor do serviço, o usuário peito à coparticipação do usuário, que é a fração do
e o pagador – que torna imperfeita a negociação, as custo que o demandante do serviço pagará. O pro-
quantidades de serviços ao usuário e a negociação blema desse mercado não termina nessas observa-
dos preços –, o médico auditor como parte nos pla- ções aqui registradas, mas os pontos que abordo
nos de saúde é um profissional necessário para
acima devem estar presentes em qualquer análise
conter abusos, demandas indevidas, imperfei-
sobre o setor e nas definições de normas e métodos
ções e definição de preços.
de gestão.

JOSÉ PIO MARTINS é economista, professor, palestrante


e consultor. ✉ pio.economista@gmail.com

humanitas • 31
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SOCIOLOGIA

POR HENRIQUE OLIVO F. GALDINO LUCAS

O FENÔMENO DA
FINANCEIRIZAÇÃO
E
ntre os diagnósticos que não escapam ao handbook em língua portuguesa a tratar de forma
tempo presente, um parece claro: hoje em dia, tão abrangente o fenômeno da financeirização.
não há como pensar a sociedade contempo- No livro, esse conceito é abordado sob múltiplas
rânea sem considerar o papel das finanças. Por isso, perspectivas, contemplando temas que vão da
nada mais bem-vindo do que uma obra abrangente macroeconomia aos direitos sociais, da saúde ao
sobre o tema como o livro Financeirização - Crise, urbanismo, e do meio ambiente à educação. Essa
Estagnação e Desigualdade, organizado por Lena pluralidade reflete a vasta extensão com que a fi-
Lavinas, Norberto Montani Martins, Guilherme nanceirização permeia a contemporaneidade, tor-
Leite Gonçalves e Elisa Van Waeyenberge. Lançado nando difícil identificar um campo da vida humana
em abril de 2024 pela editora Contracorrente, o livro que tenha permanecido imune à lógica das finan-
conta com o apoio de instituições renomadas, como ças. Sob esse regime de acumulação, são as finan-
o Instituto de Economia da Universidade Federal do ças que ditam a direção da economia, alterando as
Rio de Janeiro (UFRJ), o Centro Celso Furtado, a dinâmicas das diversas áreas da sociedade.
Faculdade de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) Embora os estudos sobre financeirização não se-
da Universidade de Londres, o Friedrich Ebert jam uma novidade – já no final do século 20, obras
Stiftung Brasil e a Fundação de Amparo à Pesquisa importantes começaram a tratar do tema –, o deba-
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). te ganhou relevância a partir da crise financeira de
Composto por 35 capítulos e um total de 66 2008, quando as consequências desse regime de
artigos, a obra pode ser considerada o primeiro acumulação tornaram-se mais evidentes. Após a

32 • humanitas
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“O LIVRO TAMBÉM EXPLORA O IMPACTO


DESSE PROCESSO EM ÁREAS FUNDAMENTAIS
COMO A SAÚDE PÚBLICA, EXEMPLIFICADA
PELA CRIAÇÃO E PELO DESENVOLVIMENTO FINANCEIRIZAÇÃO - CRISE,
ESTAGNAÇÃO E DESIGUALDADE
DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS), CUJA Orgs.: Lena Lavinas, Norberto M.
Martins, Guilherme L. Gonçalves
SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA TEM SIDO e Elisa Van Waeyenberge
Págs.: 1.344
Editora: Contracorrente
ALVO CONSTANTE DE PRESSÃO”
URNEY
© AI GENERATED / MIDJO

crise do subprime, interpretar e entender o fenôme- da pela criação e pelo desenvolvimento do Sistema
no da financeirização entrou para a ordem do dia, Único de Saúde (SUS), cuja sustentabilidade finan-
com esse assunto ocupando lugar de destaque tan- ceira tem sido alvo constante de pressão.
to nos debates acadêmicos quanto nas discussões A obra destaca-se ainda pela diversidade de au-
políticas, dada a sua urgência e seu impacto global. tores que contribuíram para o volume. Entre os co-
O livro explora de maneira profunda e crítica essas laboradores estão nomes consagrados, como Leda
questões, propondo uma reflexão sobre os efeitos Paulani, Luiz Fernando de Paula, Raquel Rolnik e
da financeirização na dinâmica social e econômica, Ricardo Antunes, além de uma nova geração de
especialmente em momentos de crise. pesquisadores que trazem perspectivas inovadoras
Ao longo dos capítulos, uma ideia central é de- sobre o tema. Essa pluralidade de vozes enriquece
senvolvida: a financeirização não deve ser enca- o debate e confere à obra um caráter interdisciplinar
rada como uma mera expansão quantitativa das e abrangente, tornando-a um ponto de referência
finanças, mas também como uma transformação obrigatório para quem busca entender as comple-
qualitativa da economia e da sociedade. Os autores xidades da financeirização no Brasil e no mundo.
demonstram que esse regime de acumulação guia- Em síntese, Financeirização - Crise, Estagnação
do pelas finanças tem gerado impactos profundos e Desigualdade é uma obra fundamental para quem
na divisão social do trabalho, nas políticas públicas deseja compreender o impacto do domínio finan-
e na forma como os direitos sociais são implemen- ceiro na sociedade. Ao reunir análises de diferen-
tados (ou negligenciados). A lógica financeira, que tes campos do conhecimento e ao tratar tanto das
outrora ocupava um espaço restrito, hoje redefine particularidades brasileiras quanto das tendências
as prioridades de governos, empresas e indivíduos, globais, o livro oferece uma visão crítica e abran-
frequentemente em detrimento do bem-estar social. gente sobre um dos fenômenos mais relevantes
Outro grande mérito da obra é o fato de que ela da atualidade: a financeirização. A leitura, densa e
não se restringe a analisar o fenômeno da finan- multifacetada, é recompensadora pela riqueza de
ceirização nos países centrais do capitalismo, mas informações e pela qualidade das reflexões apre-
também traz à tona as particularidades dos países sentadas.
periféricos, com destaque para o Brasil. Em muitos
dos artigos, os autores abordam como as caracte-
rísticas locais, por exemplo, as assimetrias históri- HENRIQUE OLIVO F. GALDINO
LUCAS é advogado e mestrando
cas e as taxas de juros exorbitantes, influenciam a em Teoria e Filosofia do Direito
financeirização no contexto brasileiro. O livro tam- no PPGD-UERJ (Programa de
Pós-graduação da Universidade
bém explora o impacto desse processo em áreas do Estado do Rio de Janeiro).
fundamentais como a saúde pública, exemplifica- ✉ henrique.ofgl@gmail.com

humanitas • 33
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MEMÓRIA

O SILÊNCIO SEM
PEDRO NAVA
O ano de 2024 marca quatro décadas da morte
deste que foi prodígio, do início ao fim da vida.
Nascido em Juiz de Fora, migrou para Belo
Horizonte com o objetivo de cursar medicina e
passou a integrar, positiva e intensamente, a
avant-garde mineira dos anos de 1920
POR DANIEL AFONSO DA SILVA

E
strondo: barulho, barulho alto, ruído for-
te, rumor prolongado. Furacão, ventania,
tempestade. Estampido. Rompendo har-
monias. Estocando convenções. Sacudindo
estruturas. Secas e molhadas. Tragédia e
novação. Transtorno e convulsão. Quase
nunca em salvação. Quase sempre em mu-
tação. Anunciando tempo feio. Sem alvora-
da nem dias bons.
Foi isso que se viu, sentiu, agiu no Brasil
naquele distante 1972. Ano triste. Que, em
definitivo, não foi bom. Ano-símbolo do mila-
gre econômico. Quando o País cresceu muito
e cresceu bem. Porém – em adendo –, matou
muita gente também. Era o momento mais
cruento do regime. Linha dura e braço forte. Era
o apogeu da presidência do general Médici. Muito
aquém do Brasil Potência e muito além do Pra frente
Brasil. A referência era o pau de arara. Sentando a
pua. Sem moderação nem escrúpulos. Aliás, dizia-
-se “às favas os escrúpulos de consciência”.

34 • humanitas
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A transição do período Castello Branco, do AI-1 e


“QUEM COM MAIS CULTURA
da promessa de retornos civis em 1965 – agora, em
1972 – não passava de quimera fugidia. O empilha- VIAJOU POR ELA, ARREPIOU-
mento de Atos Institucionais havia deformado qual- -SE, OLHOU PARA TRÁS E FICOU
quer possibilidade de volver a los 17. O frescor da boa
bossa anterior desmanchava-se – Ato após Ato – no
PERPLEXO. O MELHOR DA
ar. “Brigas nunca mais” virava saudades. Saudades MAIS ALTA MEMORIALÍSTICA
mil. Inauguradas na incontinência do adeus.
BRASILEIRA DE TODOS OS
Livro fundador TEMPOS – NABUCO, GRACILIANO,
Adeus, sorrisos dos tempos de JK. Adeus, ilusões GILBERTO AMADO – TRANSPIRAVA
das vésperas de 1964. Adeus, desafinados com al-
gum coração. Pois, doravante, nos peitos dos desa- EM TODAS AS PARTES”
finados os corações deixavam de bater. Os filhos da
pátria foram tornados filhos da outra. E, por determi-
nação, eram obrigados a calar-se. “Cale-se”. Era as-
sim, foi assim. Um momento tíbio. Triste. Confuso. Ossos era a chave necessária para se abstrair e ig-
1972. Com o pior – sem o melhor – de todos os car- norar instantaneamente a existência da presidência
navais. Cheio de enredos e sinais. Agonias, anomias. Médici, aquela gestão horrenda, aquele Brasil sem
Reinações de 1937-1945, 1946, 1954, 1961, 1964 e, destino e aquele povo sem razão. Eis o caráter per-
claro, 1968. Estado Novo e depois. Anos de chumbo. turbador da obra, fornida em camadas.
Nervos de aço. Corações arpoados, diminuídos em Quem com mais cultura viajou por ela, arrepiou-
ternura e sem Celly Campelo para consolar. -se, olhou para trás e ficou perplexo. O melhor da
Gilberto Gil estava Back in Bahia. Havia retor- mais alta memorialística brasileira de todos os
nado em Expresso. Banhado de calor, cor, sal, sol. tempos – Nabuco, Graciliano, Gilberto Amado –
Mas era pouco. Muito pouco. Tudo era pouco. Até transpirava em todas as partes. A começar por
que “a terra parou”. E parou não por um dia nem por Minha formação (1900), Memórias de Cárcere (1953)
uma só semana. A terra parou por gerações inteiras, e História de Minha Infância (1954), que pareciam
pela eternidade, por momentos atemporais. Tudo almas gêmeas de Baú de Ossos. O melhor da inter-
por conta de um livro: Baú de Ossos. Uma intenção: pretação do Brasil – Paulo Prado, Mário de Andrade,
Memórias. E um autor: Pedro Nava. Todos sabem e o Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre – tam-
© AR

mundo viu: foi tempestade. bém. Assim como o melhor de todas as Artes. Das
QUIVO

Otto Lara Resende acentuou tratar-se de “livro artes plásticas ao urbanismo, à música. Achegando-
NACION AL

fundador, no sentido de que é um livro que sozinho -se, com firmeza, à poesia e à prosa.
dá notícia da cultura. Mais importante para a litera- Quem, assim, fechava os olhos lendo Baú de
tura brasileira que Marcel Proust para a cultura fran- Ossos poderia, em algum momento, abri-los lendo
cesa. Simplesmente genial”. O poeta maior, cidadão Alguma Poesia. Quem adentrava a trote largo a obra,
de Itabira, restringiu-se a dizer tudo dizendo apenas em alguma curva, perceber-se-ia em Sagarana ou
“baú de surpresas”. O historiador Francisco Iglésias, Corpo de Baile. E, não dificilmente, atolado perdido
também em síntese, tudo diria com “acontecimento”. em esquinas de Grande Sertão: Veredas.
Baú de Ossos foi isto: algo espetacular, pertur-
Início de memórias bador, desconcertante. E era apenas o início das
Era isso e era assim. Efeméride. Surpresas li- Memórias de Pedro Nava que foram concluídas em
nha a linha, página a página. Soco no estômago. seis volumes: Baú de Ossos (1972), Balão Cativo
Aturdimento integral. Quem com algum cultivo do (1973), Chão de Ferro (1976), Beira-Mar (1978), Galo-
espírito entendeu logo do que se tratava. Baú de das-trevas (1981) e O Circo Perfeito (1983).

humanitas • 35
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MEMÓRIA

E, mais, Baú de Ossos inaugurou o transe que “PERTO DOS 70 ANOS ELE
conduziu a sociedade brasileira letrada a profundas
meditações. Que, em sério, até hoje permanecem
COMEÇOU A TORNAR PÚBLICA A
relevantes e aduzem dilemas essenciais contidos SUA OBRA MAIOR. OBRA DE VIDA,
em questões como: o momentum 1972 teria alguma
INICIADA COM BAÚ DE OSSOS. UM
equivalência com o momentum 1956 ou com o mo-
mentum 1930 – 1930: momentum Drummond; 1956: RETRATO DE ‘MINHA GENTE’ (…)
momentum João Guimarães Rosa? ‘ASSIM COMO É, RACIALMENTE,
Prodígio do início ao fim O RETRATO DA FORMAÇÃO DE
Com a aceleração da redemocratização, mediante OUTROS GRUPOS FAMILIARES DO
uma abertura “lenta, gradual e segura”, essa reflexão
esmaeceu. No entanto, para quem escolheu ser gau-
PAÍS. COM TODOS OS DEFEITOS.
che na vida, a questão permanece. E, sendo assim, COM TODAS AS QUALIDADES’”
imortaliza Pedro Nava, que foi prodígio, do início ao
fim da vida. Nascido em Juiz de Fora em 1903, migrou
para Belo Horizonte para cursar medicina e passou a Contemporâneos de Manuel Bandeira, em 1946. Mas
integrar, positiva e intensamente, a avant-garde minei- só. Depois disso, apagão. Todos imaginavam que o
ra dos anos de 1920. Seus amigos e cúmplices, com- médico havia canibalizado o artista. Mas não.
pagnon de route, eram Emílio Moura, João Alphonsus,
Abgar Renault, Afonso Arinos de Melo Franco, Ciro O silêncio
dos Anjos, que criaram A revista, em 1925, que seria Perto dos 70 anos ele começou a tornar pública
um dos mais importantes vetores do modernismo mi- a sua obra maior. Obra de vida, iniciada com Baú
neiro de braço com o modernismo paulista de 1922. de Ossos. Um retrato de “minha gente” (…) “assim
Pedro Nava foi central nessa publicação. Confec- como é, racialmente, o retrato da formação de outros
cionando impressões, artigos, críticas e poemas, grupos familiares do país. Com todos os defeitos.
sendo O defunto, de 1928, a sua peça poética mais Com todas as qualidades”. Zero clichê e zero este-
destacada. Que deixou Mário de Andrade descon- reótipo. E, assim, quase história, quase memória,
certado. E Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e quase poesia, quase literatura, quase genealogia,
Murilo Mendes também. Foi onde ele, Pedro Nava, quase testemunho, quase documento e quase tudo
explicitou a sensibilidade de seu primor. A ponto de, num só momento. Com forte sátira e formoso en-
na época, Mário de Andrade confidenciar a Carlos genho. Fazendo seu leitor reviver, aqui e ali, o me-
Drummond de Andrade que “a critiquinha que ele lhor de Camões, Vieira e Machado. E, ali e acolá, o
[Pedro Nava] publicou na Revista sobre pintura me melhor de Drummond, Rosa, Nabuco.
deixou impressão forte de espírito bem organizado Aos 40 anos da morte de Pedro Nava – que mor-
para crítica”. “Quanto à poesia dele não sei não ain- reu dramaticamente na Glória, na cidade do Rio de
da porém me parece que será o mais batuta de vo- Janeiro, em maio de 1984, após complicações pes-
cês todos. Com a sua poesia” (vide A lição do Amigo, soais moralmente complexas –, espanta o silêncio.
cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de O ano de 2024 inteiro passou sem uma palavra ao
Andrade, editado por Drummond em 1982). encontro de nosso memorialista maior. Abandono.
“O mais batuta de vocês todos. Com a sua poesia.” Indiferença. Silêncio. Exato contrário diante do es-
Poderia ser. Mas não foi. Pedro Nava se dedicaria às trondo de 1972.
ciências médicas, publicando, doravante, majoritaria-
mente, nessas áreas. Deixando absorto o circuito efeti- DANIEL AFONSO DA SILVA é
vo das altas e belas letras. O seu poema O defunto seria pesquisador do Núcleo de Pesquisa em
Relações Internacionais (Nupri) da USP.
inserido na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos ✉ daniel.afonso66@hotmail.com

36 • humanitas
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CINEMA
Por Érico Andrade

QUANDO

© REPRODUÇÃO
MORRER É
UMA ESCOLHA
O
tema da morte é recorrente no cinema. A escolha de
discutir o desejo de decidir pelo fim da própria vida
VEJA O
remete o filme O quarto ao lado a uma temática exis- TRAILER AQUI:

tencial importante, sem dúvida. Para tanto, as famosas “co- Título: O quarto ao lado
Direção: Pedro Almodóvar
res de Almodóvar” perdem a sua intensidade para dar lugar Gênero: Drama
a um tom cinza e com planos fechados, sem que o colorido Duração: 107 min
Ano: 2024
habite a película, a não ser nas cenas iniciais da livraria.
Novamente, duas protagonistas mulheres são colocadas
no centro do filme com atuações boas para uma trama
sobre a memória, uma espécie de acerto de contas com bientais (do colega e ex-amante das duas personagens), fa-
a vida ou, na expressão da filósofa Butler, given a count. natismo religioso (do policial) e questões relativas à guerra
Mais do que a morte, o filme é uma decisão de falar sobre perdem-se completamente num filme que parece seguir
as vidas, uma vez que a decisão pela morte, é importante muito bem a cultura americana cujo centro está no indiví-
frisar, é decorrente de uma impossibilidade de uma vida duo e nas suas decisões individuais.
que possa efetivamente produzir memórias, e não apenas A crítica ao neoliberalismo, que o filme parece ensejar em
definhar rumo à morte. alguns momentos, não apenas perde o sentido como pode-
Com efeito, para pôr em prática esse enredo, Almodóvar ria se aplicar ao próprio filme. A forma de explicar que as
não apenas enfoca cores mais sóbrias, mas também opta pessoas lidam com a guerra (como o casal de frades que
pelo caminho de uma imagem da morte muito calcada numa estão no centro de uma guerra), graças ao sexo ou o desejo,
cultura europeia cuja articulação com a cultura americana faz um recorte extremamente individualista de uma temáti-
permite ao diretor recorrer à cena clássica de pessoas di- ca social como a guerra.
vagando sobre a vida e a morte enquanto a neve cai. Isso Parece que todo engajamento com os aspectos desse emba-
fica mais acentuado com a recorrência, em diálogos cultos, te só é suportável porque as pessoas estabelecem relações
entre as jornalistas e os personagens principais, escritores amorosas. Isso, contudo, só não é menos grave do que as-
e escritoras europeias. Os quadros de Hopper, explicados sistirmos a duas mulheres brancas, de classe média e num
didaticamente num dos diálogos do filme, são mimetizados lugar extremamente luxuoso, decidirem realizar uma espécie
nas cenas que prenunciam a morte e com a qual se encerra de eutanásia assistida sem qualquer discussão, entre elas,
a vida de Martha. A escolha pela pintura de Hopper dá o tom sobre o privilégio que lhes faz poder arriscar transgredir.
metafísico da questão da solidão e da morte.
As questões metafísicas, centradas numa ótica ocidental,
são conhecidas e o filme não porta nenhuma novidade para
ÉRICO ANDRADE é flósofo, psicanalista, pesquisador
© ARQUIVO PESSOAL

além daquilo que tanto esteticamente quanto discursiva- do CNPq e professor da Universidade Federal de
mente se apresenta como forma de lidar com o Ocidente. Pernambuco. É presidente da ANPOF (Associação Nacional
de Pós-graduação em Filosofia) – biênio 2023-2024.
Assim, temas que parecem colateralmente, problemas am- ✉ ericoandrade@gmail.com | @ericoandrade27

humanitas • 37
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RESENHA

Para entender como a literatura


infantojuvenil expandiu-se no Brasil,
é preciso rever sua linha do tempo.
É a partir dela que podemos explicar
como esses campos tornaram-se
uma das principais linhas de negócio
do mercado editorial brasileiro

MAIS APREÇO
À LEITURA

POR ISABEL LOPES COELHO


COL ABORAÇÃO FTD EDUCAÇÃO E PUCPRESS

38 • humanitas
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D
o período
pré-colonial
até a
década de 1970 no
Brasil, a produção
de literatura infantil
e juvenil ganhou
visibilidade a partir
de estudos que hoje
são considerados
referência na área,
tanto da perspectiva
da historiografia
quanto do diálogo
com outros campos
S

/ GE
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IMA
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de conhecimento,
DO
IMO
VAS
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especialmente o
pedagógico.

humanitas • 39
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RESENHA

Obras como Problemas da literatura infantil


e juvenil (1951), de Cecilia Meireles; Literatu-
ra infantil brasileira (1968/2011), de Leonardo
Arroyo; A literatura infantil na escola (1981),
de Regina Zilberman; Literatura infantil: teo-
ria, análise, didática (1981), de Nelly Novaes
Coelho; Literatura infantil: Teoria e prática (a
partir de 1983, uma releitura de Como ensinar
literatura infantil, de 1968), de Maria Anto-
nieta Cunha; A literatura infantil, de Barbara
Vasconcelos de Carvalho (1983); Introdução
à literatura infantil e juvenil (1984), de Lúcia
Pimentel Góes; Literatura infantil: História & Referências
histórias (1984/2020), de Marisa Lajolo e Re- A partir desses estudos, surge um embrião
gina Zilberman; O texto sedutor na literatura da crítica literária voltada a obras para crianças
infantil (1984), de Edmir Perroti; Literatura e jovens, permitindo ao campo cultural o reco-
infantil e ideologia (1985), de Fúlvia Rosem- nhecimento de um sistema literário vivo para
berg; O que é literatura infantil (1986), de Ligia esses tipos de livro (Candido, 1975). A literatu-
Cadermatori; Literatura infantil: gostosuras e ra infantil e juvenil brasileira ganha os espaços
bobices (1989), de Fanny Abramovich; e Es- acadêmicos, para além dos projetos e das inicia-
tudos de literatura infantil (1991), de Manoel tivas de leitura que começam a se manifestar de
Cardoso, são consideradas as principais fon- modo recorrente, tanto do setor privado quanto
tes de pesquisa para o estudo da história da do público (Lajolo; Zilberman, 1984/2020).
literatura infantil e juvenil no Brasil. Quarenta anos se passaram desde a publica-
Tais obras trazem, cada qual à sua ma- ção de tais obras e elas continuam a ser referên-
neira, um panorama histórico, social e eco- cia na área. O próprio sucesso dessas obras, que
nômico, europeu e brasileiro, compondo os se dispõem a compor um século de literatura,
diversos cenários que possibilitaram o sur- abriu discussões que se perpetuaram por novos
gimento e o desenvolvimento da literatura pesquisadores no sentido de aprofundar e deta-
infantil e juvenil brasileira. Algumas dessas lhar a literatura infantil e juvenil do século 20. A
obras aprofundam a leitura literária, em uma temática da pesquisa da área no Brasil abordou,
tentativa de traçar um denominador comum em sua grande maioria, as obras de Monteiro
que qualifique as características dos textos Lobato, a importância da leitura como política
para crianças e jovens (Perrotti, 1984; Abra- pública e a valorização da escola como ambiente
movich, 1989), e há ainda aquelas que se disparador na formação do leitor literário.
propõem sistematizar a relação com a peda- Ao final do século 20 e começo do 21, a lite-
gogia (Coelho, 2010; Cunha, 1983; Cardoso, ratura infantil e juvenil brasileira já estava con-
1991). Os estudos tomam fôlego até a década solidada como um nicho editorial promissor e
de 1970, considerada a “Era de Ouro” da lite- rentável graças ao advento da escolarização, que
ratura infantil brasileira, uma referência dire- torna a leitura literária compulsória e passa a ser
ta ao período homônimo europeu que se deu o principal canal de leitura para esse gênero tão
um século antes (Lopes Coelho, 2020). jovem e fértil. As obras assim produzidas têm

40 • humanitas
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em mente o primeiro leitor comprometido, sendo


esses professores e professoras, além de biblio-
tecários e bibliotecárias, imbuídos da função de
selecionar algumas poucas obras literárias que
serão lidas durante o curso do ano letivo.

Mudança de paradigma
As primeiras décadas do século 21 já apre-
sentam uma nova temática em sua produção
literária: as obras de cunho multimodais e a pre-
dominância do livro ilustrado como linguagem
mudam o curso da pesquisa em literatura infan-
til e juvenil no Brasil. Isso não necessariamente
mudou as práticas de ensino de literatura ou a
produção da literatura escolar, mas criou uma
ruptura no modelo utilitário de se ler a literatura
infantil e abriu portas para uma compreensão
mais próxima de seu valor estético. “AO FINAL DO SÉCULO
Essa mudança paradigmática na compreen- 20 E COMEÇO DO
são sobre a literatura infantil e juvenil brasileira
abriu caminhos para uma atualização da lite- 21, A LITERATURA
ratura crítica com um viés que permitisse um INFANTIL E JUVENIL
olhar mais profundo para os textos, especial-
mente visando à formação dos mediadores de
BRASILEIRA JÁ ESTAVA
leitura. Nesse sentido, a obra de Ana Maria Ma- CONSOLIDADA COMO
chado – Silenciosa Algazarra – cumpre uma fun-
UM NICHO EDITORIAL
ção estética importante ao propor, nos ensaios
reunidos na obra, uma aproximação da literatu- PROMISSOR E
ra àquilo que é sua própria matéria: as emoções RENTÁVEL GRAÇAS
dos indivíduos que denominamos de leitor. Os
textos que compõem o livro permitem ao leitor, AO ADVENTO DA
possivelmente um mediador de leitura, o resgate ESCOLARIZAÇÃO,
da delicadeza e da sensibilidade da potência li-
terária que constitui as obras de literatura infan-
QUE TORNA A
til e juvenil (em especial), que, se para o olhar de LEITURA LITERÁRIA
uma criança são únicos e primordiais, podem COMPULSÓRIA E PASSA
ser transformadoras para o leitor adulto.
Distribuídos em cinco partes, os textos pu- A SER O PRINCIPAL
blicados originaram-se de colóquios, congres- CANAL DE LEITURA
sos, artigos e outras manifestações de Machado
acerca do pensar sobre a literatura nos nossos
PARA ESSE GÊNERO
tempos contemporâneos, em que o próprio ato TÃO JOVEM E FÉRTIL”

humanitas • 41
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RESENHA

da leitura torna-se cada vez mais escasso. Com Narrativas digitais


o equilíbrio entre os temas mais comuns à área Assim, a primeira parte do livro, a mais extensa,
(como política de leitura) e a percepção estéti- diga-se de passagem, dedica-se ao tema capital
ca literária – próprios da escrita da autora –, o que inicia o século 21: as narrativas em ambientes
título da obra remete às centenas de milhares digitais. As autoras, como marca de suas obras
de obras gritando nas estantes pela leitura, mas em conjunto, trouxeram à tona uma série de obras
silenciadas pela falta de estímulo e de valoriza- icônicas em formato digital que iniciaram essa
ção da matéria narrativa. vertente na literatura infantil e juvenil no Brasil, ex-
pondo toda a criatividade de autores como Ângela
Inquietudes literárias Lago e Sergio Caparelli. Tais objetos digitais so-
Dessa forma, os textos de Machado, divididos freram do mal da imanência, muito comum a esse
nas seções “O processo simbólico”, “A manifes- formato, e não podem mais ser acessadas pelo lei-
tação cultural”, “A influência social”, “O caráter tor, o que traz ainda mais importância aos escritos
político” e “A formação e a educação”, operam de Lago e Zilberman, como um registro do início
como uma supressão do tempo aos nos lembra- de uma forma de narrar histórias que ainda será, e
rem da função primordial da literatura: nossa muito, aperfeiçoada ao longo dos anos.
constituição como ser humano social dentro da Assim como as outras obras das autoras, Lite-
nossa limitação afetiva e psíquica individual. ratura infantil brasileira: uma nova/outra história
Assim, os escritos de Silenciosa Algazarra de- faz também uma radiografia do mercado editorial
monstram não apenas toda a erudição de Ma- e de toda a cadeia livreira, mostrando as trans-
chado, mas o processo de uma intelectual de seu formações e os cenários neste século 21, espe-
porte diante das inquietudes da matéria literária. cialmente no que tange à relação entre leitura x
E se um dos prazeres da leitura de Silenciosa escola, ensino x literatura, criança x mediador
Algazarra está no resgate da resposta à pergunta adulto. Com tabelas embasando as análises
“por que gostamos de ler literatura?”, outra des- quantitativas, as autoras demonstram ao leitor o
coberta são os textos de Machado que se voltam panorama da produção e do consumo de literatu-
diretamente para as práticas de leitura no am- ra infantil no Brasil e como esse comportamento
biente escolar, que não se furtam a criticar prá- influencia a produção intelectual das obras, seja
ticas pedagógicas que ainda relegam a literatura do ponto de vista de sua criatividade, seja das
literária a segundo plano em função de um olhar premissas que sustentam a permanência do livro
utilitarista ou mercadológico do objeto livro. literário nas escolas.
Nesse sentido, o livro de Lajolo e Zilberman Desse cenário, as autoras passam para discu-
Literatura infantil brasileira: uma nova/outra tir as novas agendas sociais que sempre ocupa-
história mostra-se uma leitura complementar ram a literatura infantil e juvenil, especialmente
à medida que sistematiza a nova produção pelo seu caráter formativo de leitores iniciantes,
da área a partir dos anos 2000. Sequência do mas que neste início de século 21 tornaram-se
clássico mencionado no início deste artigo, o mais evidentes e necessárias. E assim surgem os
novo livro da constante parceria entre as pes- comentários sobre as novas abordagens da lite-
quisadoras mostra como a literatura infantil e ratura “indianista” (termo usado pelas autoras) e
juvenil tornou-se uma das principais linhas de da literatura feminista que atualizam não apenas
negócios do mercado editorial brasileiro, espe- a maneira como os temas são narrados, mas tam-
cialmente no formato de obras multimodais. bém seus autores e autoras.

42 • humanitas
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e prática. São Paulo: Ed. infantil na formação


Pontos-chave Ática, 1983. de professores no
Sem responder a perguntas, mas com um GÓES, Lúcia Pimentel. estado de São Paulo
A literatura infantil na (1947-2003). São Paulo:
olhar questionador, Lajolo e Zilberman seguem Cultura Acadêmica,
escola. Editora Pioneira,
seu trabalho de historiadoras da literatura in- 1981. 2015.
fantil e juvenil, jogando luz aos pontos-chave ISER, Wolfgang. O ato PERROTI, Edmir. O texto
da leitura (1976). Trad. sedutor na literatura
de cada época e obrigando “seus leitores a dar
Johanner Kretschmer. infantil. São Paulo:
respostas às questões que assim formulam. É o São Paulo: Ed. 34, 1996. Editora Ícone, 1984.
grande mérito do seu elegante livro”, prefacia o FARIA, Maria Alice. O RITER, Caio. A Formação
intelectual francês Roger Chartier. pedagógico no fio da do Leitor Literário em
navalha. In: Narrativas Casa e na Escola. São
juvenis – Outros modos Paulo: Biruta, 2009.
de ler. Org. CECCANTINI, ROSEMBERG, Fúlvia.
João Luiz; PEREIRA, Literatura infantil e
REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio et al. A Rony Farto. São Paulo: ideologia. São Paulo:
personagem de ficção. São Editora Unesp, Assis, Editora Global, 1985.
ABRAMOVICH, Fanny.
Paulo: Perspectiva, 2014. SP: ANEP, 2008. ZILBERMAN, Regina.
Literatura infantil:
gostosuras e bobices. São CARDOSO, Manoel. FUNDAÇÃO NACIONAL Como e por que ler
Paulo: Scipione, 1989. Estudos de literatura DO LIVRO INFANTIL a literatura infantil
infantil. São Paulo: Editora E JUVENIL. Livros brasileira. Rio de
ANTUNES, Benedito. Janeiro: Objetiva, 2005.
do Brasil, 1991. premiados. Disponível
Literatura na escola:
em: http://www.fnlij.org.
disciplina e prazer. In: CARVALHO, Barbara
br/principal.asp. Acesso
Narrativas juvenis – Vasconcelos de. A em: 25 fev. 2023.
Outros modos de ler. Org. literatura infantil: visão
CECCANTINI, João Luiz; histórica e crítica (1982). 2. LAJOLO, Marisa;
PEREIRA, Rony Farto. ed. São Paulo: Edart, 1983. ZILBERMAN, Regina.
São Paulo: Editora Unesp, Literatura infantil
CECCANTINI, João Luiz; brasileira: História &
Assis, SP: ANEP, 2008. PEREIRA, Rony Farto Histórias (1984). São
ARROYO, Leonardo. (Org.). Narrativas juvenis: Paulo: Editora Unesp,
Literatura infantil brasileira outros modos de ler. São 2022.
(1968). 3. ed. rev. e Paulo: Editora Unesp,
ampliada. São Paulo: Assis, SP: ANEP, 2008. LAJOLO, Marisa;
Editora Unesp, 2011. ZILBERMAN, Regina.
COELHO, Isabel Lopes. A Literatura infantil
CADEMATORI, Ligia. O representação da criança brasileira: Uma nova
Professor e a Literatura. na literatura infantojuvenil: outra história. Pref.
Belo Horizonte: Autêntica, Rémi, Pinóquio e Roger Chartier. Curitiba:
2009. Peter Pan. São Paulo: PUCPress, 2017.
CADEMATORI, Ligia. O que Perspectiva, 2020.
MACHADO, M. Z. V.;
é literatura infantil. Col. COELHO, Nelly Novaes. MARTINS, A. G.; PAIVA,
Primeiros Passos. São Literatura infantil: Teoria, A.; PAULINO, G. (Org.).
Paulo: Editora Brasiliense, análise, didática. São Escolhas Literárias em
1986. Paulo: Moderna, 2000. Jogo. Belo Horizonte: LITERATURA INFANTIL
CÂMARA BRASILEIRA DO COELHO, Nelly Novaes. Autêntica, 2009. BRASILEIRA: UMA
LIVRO. Edições do prêmio Panorama histórico da OLIVEIRA, Fernando NOVA OUTRA HISTÓRIA
Jabuti. Disponível em: literatura infantil/juvenil: Rodrigues de. História Autoras: Marisa Lajolo e
https://www.premiojabuti. Das origens indo-europeias Regina Zilberman
do ensino da literatura
com.br/premiados-por- ao Brasil contemporâneo Págs.: 152
edicao/. Acesso em: 1 maio (2010). 5. ed. São Paulo: Editora: PUCPRESS/
2023. Manole, 2010. FTD - Educação
CANDIDO, Antonio. O COLOMER, Teresa (2003).
direito à Literatura. In: A formação do leitor
Vários escritos. São Paulo: literário: narrativa infantil
Duas Cidades, 1995. e juvenil atual. Trad. Laura ISABEL LOPES COELHO é doutora em Teoria Literária e Literatura
CANDIDO, Antonio. Sandroni. São Paulo: Comparada (USP), pós-doutora em Literatura e Crítica Literária
Formação da literatura Global, 2023. (PUC-SP), autora de A representação da criança na literatura
brasileira. São Paulo: CUNHA, Maria Antonieta. infantojuvenil. Foi diretora do núcleo infantojuvenil da editora
Todavia, 2022. Literatura infantil – Teoria Cosac Naify e hoje é publisher de literatura na FTD Educação.

humanitas • 43
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INTERSECÇÕES
POR ANA MARIA HADDAD BAPTISTA

O QUE DEVERIA
SER UM PROFESSOR?
COMO TODOS OS PROFISSIONAIS, ELES SÓ PODERÃO EXERCER
© AI GENERATED / MIDJOURNEY

SUA PROFISSÃO COM DIGNIDADE E COMPROMISSO QUANDO


ESTIVEREM CONVICTOS DE QUE SUAS PROFISSÕES SÃO SUAS
PAIXÕES. NO ENTANTO, A PAIXÃO POR SI SÓ NÃO GARANTE NADA

44 • humanitas
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O
famoso escritor argentino Ernesto Sabato engenheiro que pode calcular uma ponte, um astrô-
(diga-se de passagem, bastante esquecido nomo que poderia prever um eclipse com precisão.
nos últimos anos), doutor em física, quando A erudição em um determinado campo nada tem a
a abandonou para se dedicar somente à literatura, re- ver com uma pessoa culta. Jamais será por tais parâ-
lata que o professor Guido Beck escreveu: “Discípulo metros especializados que se distingue uma pessoa
de Einstein emigrado em Buenos Aires, gran físico e realmente de cultura. “¿A quién verdaderamente se
buen amigo pero encarnizado creyente, me acusó de llama así? A quien está en posesión de um conjunto
entregarme al charlatanismo. Toda esa gente olvida de elásticos sistemas que confieren la intuición, el
que el hombre no es uma sinusoide, ni um poliedro, dominio y la valoración de la realidade”2.
ni una máquina, sino un ser vivo, dotado de alma y Sabe-se, existem muitos e muitos exemplos pes-
espíritu, propenso a las mitologías y tan contradic- quisados (não somente) em que, muitas vezes, os
torio, tan ajeno al principio aristotélico de identidad saberes altamente particularizados isolam o espe-
que hasta es capaz de inventar una doctrina que le cialista de outras áreas, não permitindo o diálogo
niega ese carácter contradictorio”1. essencial entre as diversas áreas do conhecimento.
Nesse caso, temos um professor, embora amigo Tal fato não é novidade. No entanto, a nosso ver, o
do escritor, que acha uma verdadeira loucura um pior é a cegueira para outras dimensões de nossa
doutor em física abandoná-la em prol da literatura. realidade, importantes para que o homem seja um
Entretanto, ele acreditou em si mesmo. E, sobretudo, grande leitor do que se passa ao seu redor. A ceguei-
foi atrás daquilo que realmente poderia satisfazê-lo. ra traz consequências fatais. Um economista que em
Uma prova real, diga-se de passagem, do quanto o sua própria casa mal sabe gerir suas finanças. Um
escritor sempre foi consciente de sua liberdade. veterinário que tem medo de ser mordido até por um
Sabato declara que desde que largou a ciência, simples cão. Um médico que não distingue uma dor
em 1945, ficou simplesmente obcecado em des- de garganta de uma caxumba.
vendar o homem concreto. Nascido em Buenos
Aires, em 1938 obteve um doutorado em física na Árvores&História
Universidade Nacional de La Plata. Trabalhou, com Sabato declara que, em especial, a geografia, a
bolsa de pesquisa, a respeito de questões sobre matemática deveriam ser ensinadas de outra manei-
radiação atômica no Laboratório Curie de Paris. ra. Dá-nos um grande exemplo. Relata que quando
Voltou à Argentina em 1940 para ser professor da estava escrevendo um de seus romances sentiu ne-
Universidade de Buenos Aires. Em 1943 afasta-se cessidade de ir para algum lugar em que se sentisse
de forma definitiva da área da ciência para se de- isolado do mundo, mas em uma cidade. Ele e sua
dicar à literatura e à pintura. Publicou dezenas de mulher, Matilde, foram para a Patagônia. Eram ami-
livros na Argentina e em outros países. Morreu em gos de um engenheiro chamado Tortorelli, que diri-
2011 com 99 anos de idade. gia os Parques Nacionais; ele conseguiu uma casa
para ele e Matilde por lá. Nessa ocasião, Tortorelli,
Formação multidisciplinar que era um engenheiro florestal, levou-os para co-
De acordo com Sabato, um professor deveria, nhecer uma parte da Patagônia.
acima de qualquer coisa, ter uma formação comple- Sabato ficou impressionado com a grande paixão
tamente diferente do que habitualmente ele vê, não que o engenheiro demonstrava pelas árvores e a for-
somente na Argentina, como em todos os países do ma pela qual ele as apresentava. O engenheiro apre-
mundo. E o que seria tal formação? Uma formação sentava as árvores abraçando-as! Acariciando-as! E
multidisciplinar. Ele nos dá dezenas de exemplos. ao mesmo tempo, de acordo com Sabato, dava uma
Ressalta que jamais a escola, via professores, deveria verdadeira aula de história! Dizia, entre tantas ou-
ensinar conteúdos que tivessem relação direta com a tras coisas, que muitas árvores já existiam durante o
memória, ou seja, o famoso decoreba. Datas. Cifras. Império Romano e também quando o mesmo Império
Para ele de nada adianta um saber polimático, um se desmoronou! E, depois, Tortorelli foi enumerando

humanitas • 45
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INTERSECÇÕES

uma porção de fatos históricos, associando-os à ida- “SOMENTE A FORMAÇÃO AMPLA


de das árvores. Os olhos do engenheiro chegavam a
ficar úmidos de emoção! Com isso, a emoção daque-
E A FAMILIARIDADE COM
les momentos contaminou o escritor e sua mulher. CONCEITOS DE DIVERSAS ÁREAS
Na verdade, o escritor argentino dá a chave para
DO CONHECIMENTO PODERIAM
o que ele considera que seria maravilhoso para um
professor: vincular, ao ensino da geografia, as vicis- TRANSFORMAR A EDUCAÇÃO, A
situdes humanas, os perigos mortais que ameaçam ESCOLA NUM PROCESSO COM
a humanidade, as grandes conquistas dos mares e
das terras e as forças independentes do homem que, POSSIBILIDADES DE SUCESSO”
muitas vezes, são implacáveis. “Al hombre, y sobre
todo al joven le apasiona todo aquello que está vin-
culado a las pasiones y vicisitudes de la raza hu- E as necessidades atuais?
mana. Los accidentes geográficos, las montañas y Ainda em pleno século 21, em que a educação,
golfos y mares quedaríam gravados de modo inde- mais do que nunca, deveria estar muito mais liga-
leble, y de maneira existencial, no meramente infor- da às reais necessidades da vida, infelizmente, as
mativa, si se los enseñase a través de las aventuras pesquisas, das mais variadas esferas, tanto em ter-
de grandes exploradores”3. mos quantitativos como qualitativos, demonstram
professores e estudantes frustrados e infelizes em
Paixão não basta relação à escola (em todos os níveis e graus). Uma
Vejam-se quantas possiblidades temos nesse porcentagem bem grande. Boa parte daqueles que
exemplo de Sabato. Uma geografia vinculada à his- estão mais diretamente ligados à Educação sentem
tória do homem. Uma geografia vinculada a uma his- um grande vazio em relação às suas próprias expec-
tória concreta. E, se aliarmos à literatura, mais rico tativas. As queixas atuais, em grande parte, estão
ficaria o ensino da geografia e da história. Podemos muito voltadas para um saudosismo mal delineado
citar, inclusive, os famosos livros como As Viagens e, sobretudo, mal avaliado.
de Gulliver, As cidades invisíveis, Adeus, Pirandello, Triste constatar que uma grande porcentagem
O Bibliotecário do Imperador e tantos outros que de- de professores, de todos os níveis, esteja concentra-
safiam os limites da ficção e do real. da num passado elitista de educação ou subestime
Contudo, reconhecemos, seguramente, que pre- a real capacidade de seus alunos de criar, inventar,
cisaríamos de professores preparados para isso. descobrir e sonhar!
Acima de qualquer coisa. O professor, como todos os
profissionais, somente poderá exercer sua profissão
com dignidade e compromisso quando estiver con- N O TA S
victo de que sua profissão é sua paixão. No entanto, 1 Ernesto Sabato. Ensayos. Barcelona: Seix Barral, 1998. p. 98.
não basta a paixão. A paixão por si só não garante 2 Idem, p. 272.
nada. O professor deveria ter uma formação sólida e 3 Idem, p. 572.

ampla, como afirma Sabato.


Somente a formação ampla e a familiaridade com ANA MARIA HADDAD BAPTISTA é
conceitos de diversas áreas do conhecimento pode- graduada em Letras. Tem mestrado e
doutorado em Comunicação e Semiótica
riam transformar a educação, a escola num processo pela Pontifícia Universidade Católica de
© ACERVO PESSOAL

com possibilidades de sucesso. Sucesso no sentido São Paulo (PUC-SP), pós-doutoramento


de levar o estudante a descobrir suas reais habili- em História da Ciência pela Universidade
de Lisboa e PUC-SP. Autora de diversos
dades, aptidões e sensibilidades. Uma verdadeira livros publicados no Brasil e no exterior.
viagem pelo tempo e espaço. E quem poderia dar as Atualmente é pesquisadora e professora da
Universidade Nove de Julho em São Paulo.
maiores lições em tal sentido? A boa e velha literatura! ✉ professoraanahb@gmail.com

46 • humanitas
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O B SE R VAT Ó R IOS O CI A L

O CASTELO
distanciamento entre o cidadão e o Estado. É o que vemos
na prometida “panaceia” da inteligência artificial (IA) e da
digitalização do setor público, que podem se tornar um novo
tipo de “castelo” – digital, mas igualmente impessoal.
Se, por um lado, sistemas on-line prometem facilitar o aces-
POR FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI so a serviços, por outro, surgem algoritmos e interfaces
que, em vez de promoverem clareza, tornam as decisões

M
uitos – infelizmente não todos – conhecem a obra mais obscuras e limitam o acesso a informações essenciais.
O Processo, de Franz Kafka, em que o protagonis- Até que ponto essa “transparência digital” atende ao que
ta Josef K. é preso e julgado sem nunca enten- realmente precisamos?
der as razões de sua culpa. Mas Assim como K., enfrentamos
há outra obra de Kafka que, para “protocolos automáticos” e “aten-
mim, teve ainda maior impacto: O dimentos robotizados” que se-
Castelo. Publicada postumamen- “A OBRA ALERTA SOBRE guem regras sem justificativas
te e inacabada, a obra explora te- O RISCO DE UMA claras, criando uma nova forma
mas de alienação e o absurdo de BUROCRACIA QUE SE de autoridade sem contato hu-
enfrentar uma autoridade impes- TORNA UM FIM EM SI mano. Na educação, algoritmos
soal e opaca, representada pela avaliam desempenho, definem
MESMA, AFASTANDO-SE
burocracia. Kafka nos apresenta acesso a cursos e perfis de can-
K., um agrimensor sem identi-
DA FUNÇÃO DE SERVIR AO didatos, prometendo identificar
dade definida que chega a uma PÚBLICO. HOJE, APESAR alunos “em risco” ou caminhos
aldeia dominada por um misterio- DAS TENTATIVAS DE “ideais” de aprendizado. Já no
so castelo. Sempre que tenta se MODERNIZAÇÃO, MUITOS Judiciário, a IA processa grandes
aproximar da autoridade do cas- volumes de ações, como o TCU
SERVIÇOS PÚBLICOS
telo – uma alegoria de um ente faz com startups. E como o cida-
elevado, distante, impenetrável,
MANTÊM ESSA TENDÊNCIA dão comum questiona essas deci-
mas poderoso –, ele se depara DE OPACIDADE E sões? A resposta talvez seja que
com barreiras e formalidades que DISTANCIAMENTO ENTRE “o algoritmo é o mesmo para to-
existem apenas para manter a O CIDADÃO E O ESTADO” dos” – uma justificativa ecoada na
distância entre ele e seu objetivo. Operação Lava Jato e que, como
No decorrer da narrativa, K. é vimos, nada tinha de imparcial.
conduzido por um labirinto de A suposta universalidade e “im-
protocolos e figuras de autoridade evasivas, que seguem parcialidade” dos algoritmos é frequentemente invocada
regras sem jamais explicar ou questionar seus motivos. para legitimar uma “justiça” que pode não ser tão acessível
Tudo o que ele deseja é uma simples permissão para entrar quanto parece, eivada de bias, apoiada em um fetichismo
no castelo, mas essa meta se transforma em um ideal inal- tecnológico que raramente questiona suas bases éticas, fre-
cançável. A burocracia age como uma entidade distante e quentemente enraizadas em perspectivas e interesses de
indiferente, que decide sem justificativas e sem jamais con- alguns, em vez de uma ideia mais pluralística do que seria
ceder qualquer controle ou compreensão. um bem social mais amplo.
Essa estrutura kafkiana, em que o indivíduo está preso em
FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI é doutor em
um labirinto burocrático, ainda reflete a realidade. O Castelo História Cultural pela PUC-SP. Pós-doutoramento
alerta sobre o risco de uma burocracia que se torna um pelo programa Marie Curie em Corrupção,
© ARQUIVO PESSOAL

Tecnologia e Políticas Públicas, realizado na Dublin


fim em si mesma, afastando-se da função de servir ao pú- City University (Irlanda). Foi estudante visitante
blico. Hoje, apesar das tentativas de modernização, muitos na Universidade de Chicago (EUA). É cofundador
do Corruption in the Global South Research
serviços públicos mantêm essa tendência de opacidade e Consortium. ✉ fernando.forattini@dcu.ie

humanitas • 47
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PSICANÁLISE

POR POR HELENA CUNHA DI CIERO COLABORAÇÃO SBPSP

NÃO EXISTE A
INAUGURAÇÃO
DE UM SUJEITO
ANALISTA, UMA VEZ
QUE UMA DADA
INQUIETUDE, UM
DESASSOSSEGO, ©
EN
VA
TO

UMA EMPATIA
DIANTE DO
SOFRIMENTO DO
OUTRO SEMPRE
ESTEVE LÁ. DO
CONTRÁRIO
NÃO TERIA SIDO
ESSE O CAMINHO
ESCOLHIDO

OFÍCIO DO

ANALIS
48 • humanitas
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UM BOM POEMA LEVA ANOS


CINCO JOGANDO BOLA,
MAIS CINCO ESTUDANDO SÂNSCRITO,
SEIS CARREGANDO PEDRA,
NOVE NAMORANDO A VIZINHA,
SETE LEVANDO PORRADA,
QUATRO ANDANDO SOZINHO,
TRÊS MUDANDO DE CIDADE,
DEZ TROCANDO DE ASSUNTO,
UMA ETERNIDADE, EU E VOCÊ,
CAMINHANDO JUNTO

PAULO LEMINSKI

P
sicanálise é experiência emocional vivi-
da. E como tal não pode ser transcrita,
gravada, explicada, compreendida ou
contada em palavras. É o que é. Assim define
T. Ogden (2006) em Esta arte de Psicanálise.
Também podemos considerar uma experiência
bastante singular e pessoal, que se inaugura
no ofício e no tempo de cada um de nós. Existe
uma palavra que abarque suficientemente o fa-
zer do analista? Isto é, seria possível pensar no
Versão digital publicada em www.sbpsp.org.br/blog/o-oficio-do-analista

analista enquanto uma instância, algo fechado,

STA
um nome simplesmente?
Descrever uma experiência psicanalítica é di-
fícil, pois dispomos de ferramentas que não são
facilmente nomeáveis, custam a tomar forma,
demoram a caber em palavras. Nossos grandes
sinalizadores são muitas vezes iniciados num
campo de sensações – intuição, silêncio, clima
emocional, percepções – fenômenos que são
do campo do não dito. São esses nossos fiéis
escudeiros que se apoiam em nossos espaços
inconscientes, até ganharem o corpo da palavra.
São como guias que nos ajudam a formular uma
interpretação que genuinamente acesse o outro.

humanitas • 49
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PSICANÁLISE

Porém, até alcançarmos uma fala que, de


fato, provoque alguma mudança psíquica, per-
manecemos por um tempo de tolerância num
lugar obscuro, num terreno cujo caminhar, mui- “TER UMA IDENTIDADE BEM DEFINIDA
tas vezes, é repleto de incertezas. São esses os
momentos que nos colocam em contato com ENQUANTO ANALISTA É ESSENCIAL,
algo precioso: a fé no trabalho psicanalítico. É E A INSTITUIÇÃO TORNA-SE PALCO
ela que nos sustenta quando o percurso torna-
se difícil, quando a realidade nos testa.
DESSE SER EM DESENVOLVIMENTO.
É NO CAMPO INSTITUCIONAL, NA
Resposta primordial ANÁLISE E NAS SUPERVISÕES, QUE
Essa fé liga-se ao desejo de insistir pela vida.
A fé não no sentido religioso de crenças e dog- SE CONFIGURA O ANINHAMENTO DO
mas. “Bion (1973) define a fé como uma res- ANALISTA EM FORMAÇÃO, ASSIM
posta primordial e profunda de defesa contra
o sentimento de catástrofe. É uma experiên- COMO A RICA TROCA DE IDEIAS”
cia emocional, singular. Porém, não se trata
de uma fé religiosa – um conjunto de dogmas
e doutrinas que constituem um culto. Para o psíquica, faltam palavras que expressem a força
autor, esta fé se torna apreensível quando se e a beleza pulsante desse momento.
representa no pensamento e por meio deste. Se E esses momentos servem como combustí-
trata da fé na existência de uma realidade ver- vel para fortalecer a tolerância do analista para
dadeira e última. A fé que move um cientista suportar os momentos mais nebulosos. Nestes,
a ir em busca de algo, mesmo sem dados ob- a sensação de travessia sendo feita pela dupla
jetivos. Em minha opinião, a fé e esperança é uma experiência muito intensa e profunda. A
do paciente e do analista estão intimamente celebração do paciente pelo analista é descrita
ligadas à pulsão de vida (Eros) e isso nos por Bollas (1992) como essa experiência de pra-
dá forças para que continuemos na aventura zer em sentir-se compreendido, celebrado, exis-
analítica” (Di Ciero, 2010, p. 3). tente durante uma sessão de análise.
A adaptação teatral do livro A alma Imo-
ral (Bonder, 1998) traz uma cena sobre a fuga Identidade definida
dos judeus do Egito, na qual revela que o que Ao longo do percurso da formação psicana-
levou o mar a se abrir foi a comoção de Deus lítica, a fé em nosso trabalho é questionada,
vendo a caminhada de seus fiéis: “Primeiro você discutida, reafirmada. O analista em formação
caminha, depois o mar abre”, diz a atriz Clari- prepara-se durante anos para que possa apro-
ce Nisker. No manejo analítico, muitas vezes priar-se do título: psicanalista. Contudo, será
caminhamos num terreno obscuro, com nossos que é de fato importante que alguém nomeie
pensamentos não tão claros. Desprovidos da fé nosso fazer, além de nossos pacientes? Ao
em nossa função analítica, podemos ficar parali- mesmo tempo, argumentamos: se só o paciente
sados em face do não sabido, em vez de nos dei- nos nomeia analista, algo também se complica,
xar ser levados por esse lugar para, no momento uma vez que é preciso responder em voz alta
apropriado, criar algo que efetivamente traga al- pelo nome que somos chamados.
gum movimento no campo analítico. Assim, ter uma identidade bem definida en-
Por outro lado, quando o paciente se sente quanto analista é essencial, e a instituição torna-
compreendido e o analista assiste a essa mu- -se palco desse ser em desenvolvimento. É no
dança de olhar, testemunhando uma mudança campo institucional, na análise e nas supervi-

50 • humanitas
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sões que se configura o aninhamento do analista “A FUNÇÃO PSICANALÍTICA


em formação, assim como a rica troca de ideias. CUSTA A SER LAPIDADA,
Cabe ressaltarmos, ainda, que esse nome
deve estar primeiramente gravado de cor, no TAL COMO O POEMA QUE
sentido usado pelos gregos antigamente: na INICIA O ARTIGO. E DEPENDE
corda do coração. Para assim reverberar com
clareza em nosso fazer.
DA QUALIDADE DO CONTATO
O analista sai de dentro de nós, per via de DO ANALISTA COM SEU
levare [pela via de retirar]. Como um escultor
MUNDO INTERNO, COM SUA
que liberta a figura aprisionada na pedra, ideia
de Freud, apresentada em seu artigo “Sobre a TERCEIRA MARGEM DO RIO”
Psicoterapia” (FREUD, 1904/1905). O psicana-
lista sempre esteve lá e vai se apossando de
nosso estado bruto aos poucos, à custa de es- ção à compreensão do que se passa no mundo
tudo, análise, supervisão e, finalmente, à custa mental daquele que entra em seu consultório.
de horas de trabalho e de suas entrelinhas. E Como adiciona o autor Paschoal Di Ciero:
essas entrelinhas correspondem a todos esses “Quando Bion fala de Continência do ana-
estados sem nome, sem lugar, a essa terceira lista, está falando de algo de dentro da pessoa
margem do rio que indicam que o caminho em do analista. Quando fala de Réverie do analista
direção à compreensão do paciente está sendo está se referindo ao mundo de fantasia deste.
seguido. Esse lugar entre o eu e o outro, que Na elaboração emocional do analista está
existe num campo emocional, antes de se vesti- implícito que este passa por situações de des-
rem de palavras. conhecimento, de angústia, de trabalho com
suas emoções e impulsos, de transformações
Processo de lapidação de sua pessoa que se dão ali no vínculo emo-
Não existe a inauguração de um sujeito ana- cional com seu paciente e induzido por este. Já
lista, uma vez que uma dada inquietude, um estamos longe daquele analista distante, obje-
desassossego, uma empatia diante do sofri- tivo, que era apenas uma tela em branco, cuja
mento do outro sempre esteve lá. Do contrário, pessoa teria que permanecer incógnita. Esta-
não teria sido esse o caminho escolhido. É pre- mos falando de um analista que é afetado pelo
ciso que sempre tenha estado, para vir a ser o paciente e que isso produz modificações em
local de pouso da história daquele que vem ao sua maneira de encarar o material analítico…
nosso encontro, em busca do sentimento que Isto é, o analista afetado pelo paciente pode
conduz a vida: a esperança. Manuel Lauriano ter experiências desde as mais regressivas até
Salgado de Castro (2005, p. 201), em seu artigo as mais elevadas. Assim, quando falamos de
“Tornar-se analista”, ressalta: “Ser um objeto contratransferência no sentido de Paula Hei-
significativo em análise que realmente aten- mann, continência de Bion e Holding de Win-
da às necessidades profundas do paciente é nicott, estamos falando de recursos da pessoa
uma função que depende totalmente do de- do analista que servem de instrumentos para
senvolvimento e da conquista da função psi- seu trabalho clínico” (p. 3).
canalítica pelo analista”.
A função psicanalítica custa a ser lapidada, Familiaridade com a noite
tal como o poema que inicia o artigo. E depen- A psicanálise não é um nome, é um estado.
de da qualidade do contato do analista com seu Uma maneira singular de estar no mundo e de
mundo interno, com sua terceira margem do rio, trocar com ele, percebendo o grande potencial
assim como o analista faz sua travessia em dire- transformador do humano, nosso material de

humanitas • 51
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PSICANÁLISE

trabalho. Nessa linha de pensamento, Ogden tudo, o reconhecimento por parte do analista da
adverte que o paciente precisa de alguém fami- transformação daquele encontro é o que com-
liarizado com a noite, com a dor, alguém que pleta o trabalho, possibilitando uma troca e um
se comova com a escuridão sem temê-la ou verdadeiro aprendizado.
paralisar-se diante dela. Talvez antes de nos
perguntarmos se somos ou não analistas, seja Processo dinâmico
mais importante observar se estamos ou não O texto “A situação analítica como campo
familiarizados com a noite. dinâmico” (Baranger; Baranger, 2010) descre-
No texto “Pôr-da-lua”, a psicanálise é des- ve a análise como uma situação na qual duas
crita por Rubem Alves (2013, p. 206) como um pessoas estão indefectivelmente ligadas e com-
exercício de poesia, e que cada pessoa é como plementares, num mesmo processo dinâmico e
um poema encarnado. Ele alerta que nossa que nenhum membro desse par pode ser enten-
infelicidade/neurose deve-se ao fato de esque- dido sem o outro. Esse lugar onde o paciente
cermos o poema que está em nós transcrito. O nos habita também não tem um nome definido.
psicanalista, segundo o autor, é o intérprete do É que um nome não contém todas as emoções
poema estrangulado. que envolvem todo esse percurso. Talvez um so-
O paciente que nos procura busca alguém nho as contenha, ou uma poesia. Também não
para abrigá-lo internamente, a fim de compre- sabemos nomear com clareza o espaço de um
endê-lo. Devemos ser capazes de nos reinventar analista na vida de alguém. Talvez esse lugar
para cada paciente, para nos tornamos o ana- esteja numa terceira margem do rio. Onde vaga-
lista do qual o paciente necessita: “O analista lumes se acendem na escuridão.
precisa aprender sob nova ótica, como ser o
analista de cada paciente em cada sessão”
(Ogden, 2006, p. 177).

REFERÊNCIAS psicanalítica. In: LEVINZON,


Troca e aprendizado ALVES, R. Pôr-da-lua. Jornal G. K.; SIMON, R.; YAMAMOTO,
Assim como o Ego é construído por uma sé- de Psicanálise, São Paulo, v. K. (Org.) Novos avanços em
rie de catexias objetais abandonadas, a função 46, n. 84. p. 205-206, 2013. psicoterapia psicanalítica. São
Paulo: Zagodoni, 2016.
analítica é construída pela capacidade do ana- BARANGER, M.; BARANGER,
W. A situação analítica no FREUD, S. Sobre Psicoterapia.
lista de assumir as transformações em si que campo dinâmico. Livro Anual In: FREUD, S. Obras
aquele atendimento lhe trouxe, como uma es- de Psicanálise, São Paulo, v. psicológicas completas: Edição
24, p. 187-214, 2010. Standard Brasileira. Rio de
pécie de gratidão pelo que o paciente, com seu Janeiro: Imago, 1969. v. XIV.111.
BOLLAS, C. A celebração do
mundo interno, desafiou-nos. analisando pelo analista. In: LEMINKSI, P. Toda Poesia. São
É Ogden (2006, p. 180) quem define a impor- BOLLAS, C. Forças do destino: Paulo: Companhia das Letras,
psicanálise e idioma humano. 2013a.
tância desse movimento: “Se o analista não se
Rio de Janeiro: Imago, 1992. LEVINZON, G. K.; SIMON, R.;
modificar a partir do conjunto de experiências BONDER, N. A alma imoral. Rio YAMAMOTO, K. Novos avanços
passadas e atuais que ocorreram dentro e fora de Janeiro: Rocco, 1998. em psicoterapia psicanalítica.
da análise, ou essas experiências são insigni- CASTRO, M. L. S. de. São Paulo: Zagodoni, 2016.
Tornar-se analista. Jornal de
ficantes ou o analista é incapaz de ser afetado OGDEN, T. H. Esta arte da
Psicanálise, São Paulo, v. 38, n. psicanálise. Livro Anual de
por sua experiência (incapaz de sonhá-la ou 69, p. 199-210, 2005. Psicanálise, São Paulo, v. 21, p.
aprender com ela). Se assim for, é duvidoso DI CIERO. Fé e compreensão 73-189, 2006.
que o analista possa se empenhar em traba-
lho analítico genuíno com o paciente”. HELENA CUNHA DI CIERO é psicanalista, membro efetivo da SBPSP
Fala-se muito da gratidão do paciente e do (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo). Especialista em
psicoterapia psicanalítica pela USP, é autora dos livros Instantes de
quanto ela é importante para um trabalho cons- dentro e O que enxerguei quando seus olhos ficaram opacos (Ed.
trutivo. De fato, ela é bastante importante. Con- Quelônio), além de colunista da revista Amarello.

52 • humanitas
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PSICOLAB

FLEXIBILIDADE
PARA SER FELIZ
POR TATIANY HONÓRIO PORTO AOKI
©1

V
ivemos uma cultura na qual a busca pela felicidade vem como a proposta de trabalhar a aceitação dos senti-
parece ser um processo constante e desejado pelas mentos e promover flexibilidade psicológica aos indivíduos.
pessoas. Como se nos sentirmos tristes, frustrados, Aceitar os sentimentos como eles se apresentam, mesmo
com raiva ou qualquer outro sentimento difícil devesse ser os mais difíceis, senti-los, compreender a relação deles
evitado a qualquer custo. É comum caminharmos e obser- com a nossa história e com o contexto atual, tem um efei-
varmos pessoas, seja pessoalmente, to muito maior na diminuição da sua
seja pelas redes sociais, e nos ques- intensidade e frequência do que ten-
tionarmos: por que minha vida não é tar fingir que esses sentimentos não
como a delas? E por que não consigo
“SE É RUIM OU estão ali. Aceitá-los significa abraçar
ser feliz como elas? DOLORIDO, EU NÃO com compaixão as nossas experiên-
A verdade é que todos, sem exceção, QUERO MAIS ISSO E cias internas, enquanto trabalhamos
sofrem, mesmo as pessoas que estão PRECISO DESCOBRIR na construção de novas formas de se
o tempo todo sorrindo nas fotos que COMO EVITAR ESSES comportar baseadas nos nossos valo-
compartilham. A pessoa pode ser ou res pessoais.
SENTIMENTOS OU
ter tudo que é admirado e/ou deseja- Momentos de dor psicológica são
do pelos outros e, mesmo assim, ex- CONTROLÁ-LOS. algo que todos nós enfrentamos e en-
perienciar sentimentos difíceis. PARECE QUE A VIDA frentaremos em diversos momentos
Se é ruim ou dolorido, eu não quero SÓ COMEÇA QUANDO de toda a nossa vida. O objetivo de
mais isso e preciso descobrir como O CONTROLE DESSES uma vida bem vivida é SENTIR BEM,
evitar esses sentimentos ou controlá- e não SENTIR-SE BEM. Em resumo,
SENTIMENTOS FOR
-los. Parece que a vida só começa vou citar a frase de [L.R.] Knost: “A
quando o controle desses sentimen-
POSSÍVEL” vida é incrível, mas também é horrí-
tos for possível. E como nós entramos vel, e entre o incrível e horrível ela é
em batalhas para evitar ou controlar só normal e rotineira”.
essas experiências! No entanto, a verdade é que quanto Que nós possamos encontrar momentos de felicidade, cone-
mais tentamos evitar esses sentimentos, mais fortes eles xão com o momento presente e sentido não só quando ela é
ficam. É como se eu ficasse repetindo para mim mesma que incrível, mas também na nossa rotina diária – e que seja pos-
não posso sentir isso, não posso sentir isso e, quanto mais sível sentir, entender e suportar os momentos horríveis.
eu repito, mais isso vem à minha cabeça. E tudo isso nos
paralisa, nos desconecta de nós mesmos, do momento pre-
sente e dos outros, ou seja, evita o contato com uma vida TATIANY HONÓRIO PORTO AOKI é
coordenadora da pós-graduação em
© GRIVINA / ADOBE STOCK

valorosa, uma vida que valha a pena ser vivida. Clínica em Análise do Comportamento
© ARQUIVO PESSOAL

A terapia de aceitação e compromisso apresentada por da Pontifícia Universidade Católica do


Paraná (PUCPR).
Steven Hayes, doutor em psicologia e conhecido por ser o ✉ tatiany.aoki@pucpr.br
idealizador da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT),

humanitas • 53
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DIREITO

© PE
RM TA
O ŠEIL
VIĆ

LEGADO
ROMA NO
POR LUIZ CARLOS DE AZEVEDO (IN MEMORIAN)

54 • humanitas
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As Institutas, do imperador Justiniano, foram


idealizadas para ser um manual para o estudo
do Direito dirigido a jovens estudantes. Além
do registro histórico, a sua importância decorre
da sua influência sobre a nossa vida hoje

N
o prólogo de sua obra Europa e o Direito Tradição romano-canônica
Romano, o renomado jurista e historia- Outro professor, de igual estatura e porte,
dor Paul Koschaker manifestava sua Michel Villey, assim perguntava, para logo
preocupação quanto à crise que abala- responder de modo afirmativo: “Por que es-
ra e ainda atingia o estudo do Direito Romano. tudar Direito Romano?”. Primeiro, porque a
Relembrando trabalho assim intitulado, que arte e o saber dos jurisprudentes romanos
escrevera no auge do nacional-socialismo, vi- mantêm-se perenes em seu inestimável va-
nha trazer, então, à consciência da humanida- lor, tanto que nunca deixamos de nela colher
de, entre os escombros deixados pela Segunda suas lições; e, depois, porque é no Direito
Guerra Mundial, o significado que continuara Romano que vamos encontrar a origem e a
comportando o Direito Romano como alicerce explicação das nossas instituições, mormen-
no contexto das ciências jurídicas ocidentais. te daquelas que se situam no Direito Privado.
Mil e duzentos anos de formação e cristali- Aquela crise arguida pelo primeiro desses
zação do Direito, na Antiguidade; aparente re- escritores, de alguma forma, veio repercutir
fluxo dos anos intermediários; ressurgimento e em nosso meio, tanto que o Direito Romano,
reconhecimento no calor da especulação me- enquanto disciplina, acabou abolido em
dieval, colhida nas classes universitárias; con- mais de um curso superior de Direito. Na
servação e utilização nos oito séculos que se verdade, a ideia de profissionalização ime-
seguiram, constituindo “a teoria e a prática dos diata, as profundas alterações ocorridas no
mais importantes direitos europeus”: é esse o substrato social, o predomínio da técnica e
legado e a inabalável consistência que o Direito o deslumbramento causado pelo progresso
Romano carrega, ensina e orienta. científico afastaram critérios vistos como en-
Nem por isso, todavia, naquela época, o seu traves ao exercício mais rápido e aligeirado
futuro oferecia-se claro e seguro, pois preten- das atividades correlatas ao Direito.
diam relegar o seu estudo aos limites da pes- Foi um momento. Hoje, seja na Europa,
quisa histórica, excluindo-o, praticamente, das seja nos países da América, seja, enfim, en-
disciplinas obrigatórias nos cursos ministrados tre os povos que carregam a tradição roma-
nas faculdades de Direito. Advertia, pois, aque- no-canônica e ainda entre aqueles que nem
le professor, para a necessidade de integrá-lo tanto a guardam, certo é que os estudos do
aos cursos regulares, não à conta das nuanças Direito Romano e da História do Direito per-
da cultura, mas como elemento vivo de forma- manecem íntegros pelo muito que proporcio-
ção do jurista, imprescindível para quem nessa nam àqueles que buscam o conhecimento
área pretendia assentar-se. do Direito.

humanitas • 55
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DIREITO

“A objetividade lógica dos romanos,


o seu profundo senso de equidade,
tantas vezes representado pelo gênio
pretoriano, e o imenso capital que nos
deixaram constituem, entre outros,
marcos perenes de sua indiscutível
necessidade e de seu valor”

INSTITUTAS DO
IMPERADOR JUSTINIANO
Manual de estudos Autor: Flavius Petrus
Sabbatius Justinianus
Na verdade, se alguém pretende afincar-se
Tradutor: Edson Bini
com esmero nesse campo, empregando-o e utili- Páginas: 240
zando-o inclusive para o bom apuro do exercício Editora: Edipro

profissional, não pode reduzir-se à leitura siste-


mática dos textos legais vigentes, aplicando-os
mecanicamente à medida que venham se ajustar Proêmio, quando o Imperador se dirige à cupidae
aos casos concretos; a tarefa há de ser muito mais legum juventuti, à mocidade que estuda as leis: o
ingente, exigindo compreensão e explicação, ex- Imperador não se impõe no poder só pelo lustre
periência e interpretação; daí a necessidade dos das armas, mas também pelas leis, para que na
estudos mencionados, quando irão demonstrar guerra ou na paz saiba governar sabiamente.
que o Direito não partiu do nada, muito ao con-
trário, de incontáveis ordens da realidade, nunca Conceitos perenes
estáticas, mas dinâmicas, que se alternam con- As Institutas seguem o ritmo e o sistema das
forme igualmente se modificam os fatores que a de Gaio, pessoas, coisas, ações, mantendo o in-
vida continuamente nos leva a enfrentar. tuito didático, já que dirigidas àqueles que pre-
A objetividade lógica dos romanos, o seu pro- tendiam se instruir no campo do Direito; não
fundo senso de equidade, tantas vezes represen- obstante, Justiniano deu a elas o valor de lei,
tado pelo gênio pretoriano, e o imenso capital assim consignando, no § 6º da Introdução: … et
que nos deixaram constituem, entre outros, mar- plenissinum nostrarum constitutionum robur eis
cos perenes de sua indiscutível necessidade e de accomodavimus [e nós acomodamos a eles toda
seu valor. Incorporadas às grandes compilações a força de nossas constituições]. Atravessando
do Imperador Justiniano, as Institutas constituí- séculos, chegaram aos nossos dias, dado que
ram um manual para o estudo do Direito, vindo inúmeros de seus fragmentos acham-se repeti-
a substituir aquelas de Gaio, pelo tempo que se dos nas legislações atuais dos países que com-
passara e porque já não correspondiam ao Direito põem a família romano-germânica.
que nos séculos subsequentes se utilizava.
Promulgaram-se a 21 de novembro de 533,
sendo seus principais autores os juristas Doroteu
e Teófilo, que se inspiraram na obra dos juris- LUIZ CARLOS DE AZEVEDO foi advogado,
consultos clássicos, como Gaio, Paulo e Ulpiano. professor, magistrado, jurista, escritor e
historiador, além de professor da Faculdade de
A razão de ser das Institutas vem explicada no Direito da Universidade de São Paulo.

56 • humanitas
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PRINCÍPIOS

A IA NO DIREITO
POR PATRICIA ELIANE DA ROSA SARDETO
©1

V
ivenciamos uma mudança de era e temos sido im-
pactados por novas tecnologias, em especial pela in- “É IMPERATIVO QUE A FORMAÇÃO DOS
teligência artificial (IA). Essa tecnologia não é nova,
mas nos últimos cinco a dez anos vivenciamos uma verda-
FUTUROS PROFISSIONAIS DO DIREITO
deira “explosão” de aplicações utilizando tal ferramenta, e ALINHE-SE ÀS TRANSFORMAÇÕES
isso nos maravilha e também nos assusta. DIGITAIS EM CURSO. SOMOS O PAÍS
No Direito, podemos observar esse fenômeno sob duas pers-
pectivas: a primeira relaciona-se à atuação profissional e
COM O MAIOR NÚMERO DE CURSOS DE
como o setor tem se posicionado; já a segunda analisa o pa- DIREITO NO MUNDO, CERCA DE 1.900”
pel dos cursos de Direito e sua importância não só para a for-
mação de futuros profissionais, mas também para a garantia
de uma sociedade pautada em valores e comprometida com advocacia esteja alinhado aos princípios fundamentais da
o respeito ao ser humano e a tudo que isso implica. profissão e às exigências legais.
O Judiciário está atento às inovações tecnológicas desde Diante disso, é imperativo que a formação dos futuros pro-
a Lei n. 11.419/2006, que informatizou o processo judicial, fissionais do Direito alinhe-se às transformações digitais
aumentando o índice de digitalização dos acervos proces- em curso. Somos o país com o maior número de cursos de
suais e de soluções inovadoras. É o caso do Juízo 100% Direito no mundo, cerca de 1.900, e apenas 10% deles rece-
Digital, que permite a prática de atos processuais de modo beram o Selo OAB Recomenda na sua oitava edição (2024).
remoto; do Balcão virtual, que promove o acesso à Justiça Seria leviano fazer uma relação direta desses números
no campo digital e normatiza o uso de instrumentos como com a formação deficitária em novas tecnologias, filoso-
a videoconferência para atendimento às partes; e da Sinap- fia ou ética, uma vez que não temos suporte para tanto.
ses, plataforma nacional de armazenamento, treinamento Por outro lado, quando se fala em formação de qualidade,
supervisionado, controle de versionamento, distribuição que atenda às necessidades da sociedade, percebe-se que
e auditoria dos modelos de IA, apenas para citar alguns muito ainda precisa ser feito para que entreguemos ao
exemplos do Programa Justiça 4.0. mercado de trabalho profissionais competentes, críticos,
Dados publicados em junho de 2024 pelo Conselho Nacional responsáveis, engajados e éticos, e que dominem as no-
de Justiça (CNJ), em pesquisa realizada nos 91 tribunais e 3 vas tecnologias para que sejam sempre utilizadas para o
conselhos, apontaram um total de 140 projetos relacionados, benefício do homem, da sociedade e possam efetivamente
desde os em estado inicial até os já finalizados. No mesmo promover justiça.
ritmo vislumbram-se numerosas soluções destinadas à ad-
vocacia por meio de lawtechs ou legaltechs e softwares.
Preocupado com o uso da ferramenta na prática jurídica, o PATRICIA ELIANE DA ROSA SARDETO é professora
© VISUAL GENERATION / ADOBE STOCK

do MBA em Inovação e Inteligência Artificial para


Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Negócios da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica
© ARQUIVO PESSOAL

aprovou, em novembro de 2024, uma série de recomen- do Paraná) campus Londrina. É coordenadora do
Laboratório de Inovação Jurídica e membro do
dações para orientar o uso da IA, objetivando estabelecer Observatório de IA na Educação Superior da mesma
diretrizes que promovam a ética e a responsabilidade no instituição e endorser do Rome Call for AI Ethics da
Fundação RenAIssance-Vaticano.
emprego da tecnologia, além de garantir que seu uso na ✉ patricia.sardeto@pucpr.br

humanitas • 57
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NOSSA LÍNGUA

POR LEO RICINO

VIDA, MORTE E
RENASCIMENTO
58 • humanitas
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Contra o vai e vem dos usos das palavras,


IMA Y
ETT

não adianta berrar contra, reclamar,


G
EZ /
GRE

espernear, não aceitar, criticar. A língua é o


DEA ©

que é, e lutar contra as contínuas mudanças


pelas quais ela passa é “a luta mais vã”,
como ensinou Carlos Drummond de Andrade

V
ários dos grandes gramáticos do
passado, como os de agora também,
sempre destacaram que a língua é
uma roda-viva, dependente das gerações e
sua constante movimentação. A língua que
falamos hoje não é a mesma de vinte ou
trinta anos atrás, muito menos ainda a de
duzentos, quinhentos anos atrás. Só para se
ter ideia das diferenças, vou colocar um pe-
queno texto aqui de uma lei de D. Afonso IV,
chamada Pragmática de 1340, que estabe-
lecia o que se podia comer e vestir naquela
época de pré-pandemia da Peste Negra, que,
quando veio sete a oito anos após essa lei,
exterminou um terço da população portu-
guesa, que de aproximadamente novecentas
mil pessoas ficou reduzida a seiscentas mil.

humanitas • 59
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NOSSA LÍNGUA

Eu costumo dizer que essa lei criou o mo-


derníssimo procedimento de delação premia-
da. Com a permissão e paciência do leitor, vou
transcrever o Art. 4.º, com o qual se confirma o “OS CLÁSSICOS DICIONÁRIOS
que acabei de falar: “E sse algũas outras pesso- DE ETIMOLOGIA, COMO O DE
as sobreditas nom guardarem este ordinhamen-
to como em ele he contehudo pola primeyra uez.
ANTENOR NASCENTES, JOSÉ
peyte cinque libras cada pessoa. E pola segun- PEDRO MACHADO, ANTÔNIO
da dez libras. E pola terceyra quinze libras. E GERALDO DA CUNHA, DIZEM QUE
dalj em deante por cada uez quinze libras. E de
majs estranharmo lho nos como for nossa mer- A ORIGEM DA PALAVRA LARÁPIO
çée. E destes dinheyros suso ditos. aia o que as É OBSCURA. NASCENTES E
acusar a meyadade. E nos a outra meyadade.
E sse aquel que for acusado nom ouuer onde
JOSÉ PEDRO AINDA CITAM A
pague. o que for acusado seia preso ata que HISTORIETA FOLCLÓRICA DO
pague. ou ata que lhy seia per nos stranhado
SURGIMENTO DA PALAVRA”
como for nossa merçée”.
Como se vê, é nossa língua, mas não é nos-
sa língua. É língua portuguesa daquela época.
Numa quase tradução bem livre, esse artigo
4.º diz que se algumas pessoas não cumprirem
o que se estabeleceu nos artigos anteriores, sapareceu, substituída por cota, cuja origem é,
sobre o que comer, terão de pagar multas. E como diz o Houaiss, quota e significa “em que
quem as delatou ficará com metade (meyada- número de partes?”. Não está sendo diferente
de) da multa e o reino com a outra. Se o infrator com quotidiano, já praticamente substituído
não pagar, ficará preso até que haja uma bon- por cotidiano.
dade, um favor (merçée) por parte do rei, para Como divisão já por natureza é o desfazi-
soltá-lo. Pronto, em 1340 estava estabelecida a mento de um todo, não sei quem vem vencen-
delação premiada. do a disputa por mais espaço, se cociente ou
quociente, do latim quotiens, ou seja, “quantas
Brincar com palavras vezes”. A tendência é a forma com C ser mais
Se eu perguntar ao leitor se ele já viu (ou usada, como já acontece com as palavras do
ouviu) a palavra enquadernar (praticamente já parágrafo anterior. Que fique claro, no entanto,
substituída por encadernar), caso ele seja bem que não se encaixa no exposto acima a falsa du-
antigo, bem provecto, a resposta deve ser sim. alidade CINCOETA x CINQUENTA. Isso porque
Porém, se ele for jovem, a resposta é certamente cinquenta nada tem a ver com cinco, já que são
não. Mas em relação a quatorze, a provável res- palavras completamente diferentes, derivadas
posta é sim para as várias gerações. Quatorze de radicais próprios. CINCO vem de cinque, e
ainda convive harmoniosamente com catorze, cinquenta vem de quinquaginta, ambas do la-
que está se impondo. Quota praticamente já de- tim popular. Em tempo: CINCOENTA não existe.

60 • humanitas
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Etimologia folclórica
FAMÍLIA E
Os clássicos dicionários de etimologia, SINCRETISMO
como o de Antenor Nascentes, José Pedro As palavras quatorze, catorze; quo-
Machado, Antônio Geraldo da Cunha, dizem ciente, cociente etc. formam família,
que a origem da palavra larápio é obscura. ou seja, são verdadeiramente irmãs.
Nascentes e José Pedro ainda citam a histo- Aliás, é muito interessante a origem
rieta folclórica do surgimento da palavra. Já o da palavra família, forma erudita a
Dicionário de Etimologias da Língua Portugue- partir de famuli, ou seja, o conjunto
sa (Ed. Biblioteca Universitária), de R. F. Man- de “criados, servos, domésticos” e só
sur Guérios, que também afirma que a origem posteriormente foi ganhando o signifi-
de larápio é obscura, delicia-nos contando a cado que temos hoje. Ou seja, a família
historieta ficcional da criação dessa palavra. era representada pelos seres que ha-
Vou transcrever literalmente, mas já vou bitavam a mesma casa, conforme está
adiantando que larápio significa “gatuno, no Dicionário de Etimologias da Língua
aquele que tem o hábito de furtar” e, como Portuguesa, de R. F. Mansur Guérios,
no Brasil nunca, em tempo algum, existiram que diz mais: “O parentesco ou a famí-
autoridades de todos os poderes e particula- lia pelo sangue era denominado gens
res que tivessem esse péssimo hábito, talvez (cong. de génere, ‘gerar’)”.
fique difícil para alguns entenderem. Vamos à Já que falamos de parentesco, união,
transcrição: “Havia na ant. Roma ‘um pretor, vamos falar agora de sincretismo lin-
guístico. O prefixo grego sin significa
para quem a propriedade alheia só por enga-
união, harmonização, junção, daí pala-
no não lhe tocara nas partilhas do mundo. As
vras como sinfonia, sincronia, síntese,
suas sentenças só favoreciam quem mais e
sintonia etc. A palavra sincretismo ori-
melhor lhe pagasse’”.
ginal referia-se à união dos cretenses
E prossegue: “Chamava-se Lucius Amarus
para combater seus adversários. Já o
Rufus Appius (ou, segundo outros, Lucius An-
sincretismo na morfologia é a iden-
tonius Rufus Appius, ou, então, Lucius Aulus
tidade entre palavras com escritas
Rufus Appius). Os romanos costumavam qua-
iguais ou bem parecidas, mas o mes-
se sempre escrever somente as iniciais de seu mo significado. Coisa e cousa; louro e
n. e sobrenome (praenomen, nomen gentiliciu e loiro; touro e toiro; assovio e assobio;
cognomen), mas, se tinham um quarto n., este taverna e taberna, flauta e frauta; fle-
era escrito por extenso (agnomen). Assim, o cha e frecha; rubi e rubim etc. são to-
pretor assinava L A R Appius, e o povo roma- das palavras sincréticas. A tendência é
no aplicou o n. todo, como unidade, Larappius uma delas prevalecer, causando o de-
(i. é, abreviações e o n. final) a outros amigos saparecimento da irmã. É a eterna luta
do alheio, para suavizar, em vez de fur, latro, pelo espaço, que também ocorre no
direptor, interceptor, praedo. E de Larappius o mundo da língua, já que língua é ele-
aport. larápio, e deste se fez o verbo larapiar, mento social. O presente do subjuntivo
‘furtar’, e larapinar, idem (este, provincianis- também apresenta formas sincréticas,
mo transmontano)” (p. 116). como “que eu fale”, “que ele fale”; “que
eu queira”, que ele “queira” etc.

humanitas • 61
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NOSSA LÍNGUA

Acrescento que essa mesma historieta tam- ator é bem famigerado não pega bem. O senti-
bém veio contada até um pouco antes no Di- do negativo, que está tomando conta, acaba se
cionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, destacando. Melhor evitar.
de Maximiano Augusto Gonçalves (Edições de
Ouro). Provavelmente, como já notaram José Tinha ganho, ganhado…
Pedro Machado e Antenor Nascentes, isso Tenho ouvido hodiernamente (hodie, “neste
não passe de lorota (palavra também de ori- dia”, em latim quer dizer hoje) muitas pessoas
gem obscura), mas que é uma historieta muito da média e da nova geração ressuscitando a ex-
bem bolada, muito bem engendrada, ah! isso é. pressão TINHA GANHADO e suas variações.
Como adoro ficções, gosto muito dessas etimo- Vamos aqui fazer uma visitinha à velha e boa
logias folclóricas. gramática histórica, que foi proibida de se en-
sinar para o Ensino Médio desde 1971, quan-
Famigerado e famélico do foi considerada desnecessária, e, a partir
Não poucas vezes ouvi na vida frases como: dali, também para as próximas gerações, assim
“Isso só podia vir daquele famigerado” ou ain- como o latim e outras disciplinas.
da “Esses famigerados moradores de rua aca- Na 42ª edição, de 1972 (a 1ª edição é de
bam emporcalhando tudo”. Nos dois casos, o 1957), da indispensável Gramática Normativa
adjetivo famigerado deve ter sido usado como da Língua Portuguesa (José Olympio Editora),
sinônimo de pobre, abestalhado, desregulado de Rocha Lima, há uma passagem bem categó-
socialmente, faminto e outros tais. Acontece rica: “Na linguagem contemporânea, quer com
que o adjetivo famigerado, na sua origem lati- o auxiliar ter, quer com ser, só se usam os par-
na, significa afamado, célebre, notório, notável, ticípios irregulares ganho, gasto e pago, dos
ou seja, no geral, só coisas boas. verbos ganhar, gastar e pagar” (pág. 171). A
Assim, artistas de novelas, séries, filmes ou “linguagem contemporânea” acima é dos anos
apresentadores de televisão são famigerados, 1920 e talvez antes. Todos sabemos que, com os
isto é, conhecidos, afamados. No entanto, o verbos abundantes, ou seja, e para o que aqui
emprego arrevesado acima acabou dando nova interessa, aqueles que têm dois particípios,
conotação ao adjetivo famigerado, que passou usamos o particípio regular, longo (terminado
também a referir-se a conhecidos de forma tris- sempre em ADO e IDO) com os auxiliares ter e
te, lamentável. Em “Esses famigerados mora- haver; e o irregular, curto (SO, TO, NHO, GUE
dores de rua acabam emporcalhando tudo”, o etc.) com o auxiliar ser e estar. No entanto, a
famigerados aí deve indicar que são famosos tendência de uso da língua é preferir a forma
negativa, triste e lamentavelmente. menor (o particípio irregular). Assim, as formas
Embora o produtor dessa frase também pos- GANHO, PEGO e PAGO destituíram as irmãs
sa ter tido essa intenção, famigerado não quer maiores GANHADO, PEGADO e PAGADO e
dizer faminto, nada tem a ver com famélico, passaram a ser as usadas em qualquer situa-
que quer dizer aquele que tem muita fome, que ção, com qualquer auxiliar. Por isso é estranho
está exacerbadamente faminto, e foi com essa mesmo que a média e a nova gerações estejam
ideia que essa palavra já veio do latim. Cá pra voltando a usar a forma “morta”, mas… língua é
nós, hoje em dia, falar, por exemplo, que um isso mesmo. Nasce-se, morre-se e ressuscita-se.

62 • humanitas
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pago” (pág. 217). Outro autor de peso, M. Said


“DIZ UM SÁBIO DITADO QUE Ali, em sua também indispensável Gramática
Histórica da Língua Portuguesa, 3ª edição, Edi-
‘A VOZ DO POVO É A VOZ DE ções Melhoramentos, 1964 (a 1ª edição é de
DEUS’. TAMBÉM PODEMOS 1921), ensina-nos, no verbete 751, o seguinte:
“GANHADO e GANHO: Particípio sempre usa-
DIZER QUE A LÍNGUA do em português antigo e português moderno
DO POVO É A LÍNGUA DA é ganhado. Igual atribuição se deu ao vocábu-
lo ganho no século XIX, e na incerteza entre
INCLUSÃO, DA EXCLUSÃO,
as duas maneiras de dizer, vai-se manifestan-
DA TRANSFORMAÇÃO. DIGO do hoje predileção pelo particípio intruso”, ou
ISSO PORQUE O POVO, seja, pelo particípio menor, GANHO.

DENTRE TANTAS OUTRAS Chegar chegando


COISAS LINGUÍSTICAS, VEM Diz um sábio ditado que “A voz do povo é a
voz de Deus”. Também podemos dizer que a
TRANSFORMANDO O VERBO língua do povo é a língua da inclusão, da ex-
CHEGAR NUM VERBO clusão, da transformação. Digo isso porque o
ABUNDANTE, INCLUINDO- povo, dentre tantas outras coisas linguísticas,
vem transformando o verbo CHEGAR num ver-
LHE UMA FORMA bo abundante, incluindo-lhe uma forma parti-
PARTICIPIAL QUE AINDA cipial que ainda não existe (pelo menos como
particípio): CHEGO. Os mais puristas esper-
NÃO EXISTE (PELO MENOS neiam, gritam contra, esbravejam, mas é luta
COMO PARTICÍPIO): CHEGO” vã. Um dia haverá de fato o particípio CHEGO e
o verbo chegar será abundante, o que já acon-
teceu com outros verbos.
Said Ali também ensina, por exemplo, que
gastar não era verbo abundante, mas o povo, já
Outra Gramática Normativa da Língua Por- no século 18, começou a introduzir nessa briga
tuguesa, de Silveira Bueno (Saraiva), edição o substantivo deverbal (formado a partir de um
de 1968 (a 1ª edição é de 1944), também diz verbo, no caso gastar) gasto com status de par-
taxativo, na página 217, numa NOTA: “Vários ticípio e gastar ganhou um novo particípio hoje
verbos, que possuíam duas formas para o par- bem mais usado. Não foi diferente com o verbo
ticípio passado, já vão perdendo uma delas. As- pasmar, ao qual se deu o particípio curto pas-
sim ganhar, pagar. Ainda ouvimos, de vez em mo. Diz-nos Evanildo Bechara, em seu Novo di-
quando, alguém dizer: Tenho ganhado muitos cionário de dúvidas da língua portuguesa (Nova
prêmios. Temos pagado nossas dívidas. Mas Fronteira): “Nossa língua tem-se mostrado fértil
já não soam bem aos ouvidos estas formas, em inaugurar particípio contrato ou curto, ao
e vamos preferindo a forma breve: ganho e lado do regular; como concorrente de ganhado,

humanitas • 63
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NOSSA LÍNGUA

fez surgir ganho; de pagado, pago; de entre-


gado, entregue; de imprimido, impresso; de
pegado, pego”. E faz uma referência às tenta-
tivas de impedir o avanço do novíssimo parti-
cípio irregular pasmo, como vem acontecendo
com a criação de chego. Referindo-se a pego,
no mesmo verbete acima, diz: “Este último
curto sofreu crítica igual a pasmo, pasmado,
como particípio e adjetivo, apesar de usado por
escritores escrupulosos, como Alencar, (…)”
(pág. 219). E eu tenho, prazerosamente, gasto
tanto tempo tentando mostrar essa realidade!
E digo mais: há muitos verbos abundantes
cujo particípio regular (ADO, IDO) vem per-
dendo a disputa territorial para o menor. Aliás,
nessa luta morfológica pela existência entre
grandes e pequenos, ser menor é levar vanta-
gem, pela sábia e salutar lei do menor esforço.
Entregue está destronando entregado; salvo
está destronando salvado; eleito está man-
dando elegido às favas; aceito (cujo sentido
original é agradável, favorecido) já reclama da
presença desagradável de seu irmão aceitado.

Para fim de conversa


Só para encerrar esta parlenda (palavra nas-
cida pelos anos de 1817/19, falatório, discus-
são, como nos mostra Houaiss), vamos colocar Como se pôde perceber, formas como TE-
um pequeno trecho de uma gramática de 1803 NHO ENTREGUE, TENHO GASTO, TENHO
(mas a minha edição, a 4ª, é de 1866), a Gram- PAGO já eram escritas no iniciozinho do século
matica Philosophica da Lingua Portugueza, de 19, ou seja, nos anos 1800. Portanto e concluin-
Jeronymo Soares Barbosa, quando diz peremp- do, não adianta mesmo berrar contra, reclamar,
tório, o seguinte: “Isto não obstante, alguns espernear, não aceitar, criticar, língua é isso, e
d’estes adjectivos verbaes se usam em senti- lutar contra mudanças na língua e contra as pa-
do activo juntos ao auxiliar ter, como: tenho lavras é “a luta mais vã”, como ensinou Carlos
entregue, tenho farto, tenho escripto, tenho Drummond de Andrade.
gasto, tenho junto, tenho morto, tenho pago,
tenho aceito; e outros com sentido passivo,
como: ter aberto, coberto, expulso, extincto, LEO RICINO é mestre em Comunicação e
Letras, professor na FECAP (Fundação Escola
eleito, morto, preso, roto, solto, etc.” (p. 200).
de Comércio Álvares Penteado) e autor de
Gramática Simples (Ed. Vértice), coautor
de Redação na prática – Um guia que faz a
diferença na hora de escrever bem (Ed. Saraiva).
✉ leoricino34@gmail.com

64 • humanitas
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PAIDEIA

BRAIN ROT E
A EDUCAÇÃO
MODERNA
POR CELSO HARTMANN

O
termo “brain rot” [deterioração mental], eleito pelo
Dicionário de Oxford como a palavra do ano de
2024, reflete uma preocupação social que deve ser
tratada como um problema de saúde pública. As implica-
ções são vastas: o futuro da aprendizagem, a capacidade
de pensar criticamente e a formação de cidadãos inteiros e
engajados estão em jogo.
As escolas, que deveriam ser santuários de aprendizado,
frequentemente se transformam em ambientes sobrecar-
regados de informações superficiais e estímulos incessan-
tes. Essa realidade resulta em uma geração que, mais do
“ESSA REALIDADE RESULTA EM
que nunca, sente-se incapaz de concentrar-se em tarefas
significativas. A educação deve cultivar uma mentalidade UMA GERAÇÃO QUE, MAIS DO QUE
crítica que permita reflexão e interpretação, formando in- NUNCA, SENTE-SE INCAPAZ DE
divíduos integralmente preparados para a vida. CONCENTRAR-SE EM TAREFAS
Se considerarmos o brain rot como um reflexo da fraqueza SIGNIFICATIVAS”
da estrutura social, a questão amplifica-se: estamos dando
o exemplo? Se adultos e educadores sucumbem às mes-
mas distrações digitais, como esperamos que crianças e Formar cidadãos conscientes e proativos não é apenas a
jovens desenvolvam resistência? A solução não está ape- função da escola, mas de todos. A reflexão crítica é crucial:
nas nas iniciativas escolares, mas na responsabilidade co- estamos fazendo o suficiente para dar o exemplo? Somen-
letiva de criar um ambiente que valorize a atenção plena e te assim poderemos iniciar a transformação necessária e
a aprendizagem significativa. evitar uma geração submissa ao consumismo acelerado e
Iniciativas como projetos de mindfulness ou áreas livres de refém da tecnologia.
tecnologia, embora necessárias, não são suficientes sem
uma mudança cultural mais ampla. Precisamos repensar
o consumo de informação e valorizar o tempo e a atenção.
© AI GENERATED / MIDJOURNEY

Campanhas efetivas que incentivem o uso responsável da


CELSO HARTMANN é diretor-executivo
© ARQUIVO PESSOAL

tecnologia e promovam a saúde mental devem ser priori- dos colégios da Rede Positivo.
dade em todas as esferas da sociedade. O desafio é imenso ✉ celsohart@positivo.com.br

e a responsabilidade é coletiva.

humanitas • 65
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O QUE O LEITOR PENSA

Uma educação
consciente pode ser
uma boa alternativa,
junto com o uso
adequado da IA, a fim
de encontramos o
equilíbrio. É chegada
a hora de revermos
o que podemos fazer
por nosso país, e não
ficarmos esperando
que façam por nós

EDUCAÇÃO
COMEÇA
EM CASA
POR AFFONSO HENRIQUES DE AZEVEDO NOGUEIRA

66 • humanitas
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© AI GENERATED / MIDJOURNEY
A
s redes sociais e a IA
(inteligência artificial)
nasceram com o objetivo
de aproximar as pessoas e tornar
a comunicação mais fácil entre
elas. Não poucas vezes estamos
afastados (por motivo de viagens,
estudos etc.) dos nossos filhos,
pais, amigos, e as redes sociais
facilitam que nos conectemos
mesmo estando separados por
longas distâncias. Assim, são
inegáveis os benefícios que esses
instrumentos de comunicação e
interação podem proporcionar.

humanitas • 67
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O QUE O LEITOR PENSA

Entretanto, quando usados inadequada- anteriormente. É recomendável, ainda, ajustar o


mente e, em especial, sem a devida seguran- tempo de tela e, sobretudo, as configurações de
ça, podem se tornar um perigo para nossos privacidade dos smartphones e outros dispo-
filhos e para os pais. Especificamente nos ca- sitivos que tenham acesso à internet. E mais:
sos dos pais, gostaria de alertar que, quando conversar com os filhos sobre essa realidade,
seus filhos estiverem “surfando” nas redes so- orientá-los para sempre perguntar se podem
ciais, prestem atenção onde estão conectados, acessar as redes sociais, que primeiro mostrem
como estão conectados (se estão usando um o que estão acessando ou querendo jogar.
protetor contra possíveis invasores, geralmen-
te chamados de hackers) e o que estão fazen- Limites
do. Tudo isso, claro, com carinho e respeito. Essa conversa pode ser uma oportunidade
Pode ser que esteja tudo bem. Ótimo! No en- para estabelecer certos limites para o uso da
tanto, pode ser, e isso vem acontecendo cada internet, por exemplo: horário, de preferência
vez mais, que estejam brincando em “jogui- quando os pais estiverem em casa e até mesmo
nhos” muito perigosos. Estes muitas vezes são estabelecer um limite de tempo para “surfarem”
criados por pessoas mal-intencionadas com na internet, incentivando os filhos a terem, tam-
o fito de atrair a atenção de crianças, adoles- bém, contatos reais, a brincarem com outros jo-
centes e adultos, pois possuem um design que gos, instrutivos, evidentemente.
desperta a nossa atenção para que comecemos
a jogar. Então, durante o jogo, vão aparecendo
mensagens como: “clique aqui, clique ali” e, de
repente, estamos em armadilhas perigosas.

Uso guiado “Na minha visão, o


Essas armadilhas são feitas para capturar
dados. Dados como seu número de telefone, mais importante
sua conta bancária, seu endereço e muito mais. seria incentivar o
Infelizmente, o que era para ser uma forma de
interação, passou a ser usada como uma ma- contato real entre
neira de explorar, roubar e até mesmo coagir as crianças, pois
geralmente pessoas incautas e ingênuas. Sei
já está provado
de muitos casos, sim, muitos casos, em que os
pais tiveram que pagar grandes somas de di- que a realidade (a
nheiro para se verem livres dessas pessoas que realidade mesmo!)
criam tais “joguinhos”.
Outras nem foram coagidas ou algo similar. é benéfica para o
Simplesmente tiveram a intimidade invadida e desenvolvimento
seu dinheiro depositado em bancos roubados.
Infelizmente, a polícia ainda não está totalmen-
humano e para a
te preparada para lidar com essas situações e interação entre
muito menos os bancos, mesmo com os fortes
as pessoas”
sistemas de segurança.
A fim de evitar esse tipo de perigo para nós
e nossos filhos, não custa nada fazer o relatado

68 • humanitas
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Na minha visão, o mais importante seria in- Temos responsabilidades indelegáveis para
centivar o contato real entre as crianças, pois já a construção de um mundo melhor para nós e,
está provado que a realidade (a realidade mes- em especial, para nossos filhos, que serão nós
mo!) é benéfica para o desenvolvimento huma- no futuro com outros de nós. Realmente, temos
no e para a interação entre as pessoas. Não uma responsabilidade inarredável, indelegável,
quero aqui desprezar as redes sociais, pois representando um profundo comprometimento
elas têm um papel importante, como relatado. por dias melhores, por melhores gerações para
Porém, há que se ter um equilíbrio ou vamos este mundo e não só um mundo melhor para
ter gerações de pessoas que, por exemplo, só elas, mas também filhos melhores para o mun-
conhecerão uma “galinha” virtualmente. Isso do. Isso só é possível com a educação auxiliada
não me parece saudável! E esse equilíbrio só pela IA. E isso depende de todos nós.
pode vir da educação que… começa em casa,
com a colaboração da IA. Por um mundo melhor
O que quero dizer é que precisamos abstrair Sim! Por que não dizer filhos melhores para
a realidade com nossa própria razão e sentimen- este mundo? Estamos diante de fatos, dados,
tos, e não sermos apenas repetidores do que le- evidências incontestes de que as crianças e, em
mos, vemos, ouvimos e, no final, nos tornarmos especial, muitos adolescentes se sentem donos
parte da massa ignara que é assim porque os do mundo, da verdade última, gerando compor-
poderes institucionais, desde tempos primevos, tamentos não adequados. É uma verdade, e to-
em quase todos os países, a implementaram e dos nós sabemos disso.
implementam de forma consciente. Culpa da criança, do adolescente? Não! Mas
do sistema, uma abstração. Que, como tal, não
Realidade e equilíbrio existe. Portanto, não vamos falar em culpa, mas
Aqui cabe uma reflexão sobre os games. em responsabilidade dos pais, que “largam” seus
Com raríssimas exceções, são joguinhos vio- filhos conforme relatei anteriormente em lugares
lentos, e já está provado que esse fato interfere perigosos da internet, e do Estado, conforme
no sistema nervoso central (SNC) das pesso- aponto adiante. Está na hora de encontrar uma
as, especialmente de crianças e adolescentes, solução de EQUILÍBRIO para essa situação.
que estão ainda formando sua capacidade de E, não! O que aqui escrevo não tem nenhum
abstração da realidade, isto é, são seres que viés ideológico (direita, centro ou esquerda), mas,
absorvem, sem critérios ainda, tudo o que lhes repito, está baseado em evidências. Sim! As evi-
é oferecido, mostrado e, especialmente permi- dências estão aí. Basta uma olhada nos meios de
tido. Equilíbrio, não permissividade. comunicação, nas redes sociais e perceberemos
Assim, a minha sugestão é não permitir nitidamente o relatado. Crianças, adolescentes,
que seus sentimentos se sobreponham à sua jovens adultos que estão criando as próprias nor-
razão – o que não quer dizer que os sentimen- mas, esquecendo que vivemos em uma só casa e
tos não sejam importantes no momento de que temos que respeitar nossos vizinhos.
tomadas de decisões, adoção de comporta-
mentos etc., mas que, quando estivermos nas Educação e IA
situações anteriormente descritas, que seja Uma educação consciente pode ser uma boa
possível encontrar um ponto de equilíbrio en- alternativa, junto com o uso adequado da IA, a
tre razão e emoção. fim de alcançarmos o equilíbrio. É chegado o

humanitas • 69
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O QUE O LEITOR PENSA

momento de revermos o que podemos fazer por Então, já temos as respostas? Um Plano
nosso país, e não ficar esperando que façam por Nacional para a educação, a IA, a segurança
nós. Não se pode mais tolerar políticas públicas das pessoas na internet? Sim! Mas no papel! E
que não têm a participação popular; de fato não assim não resolve, não encaminha verdadeiras
têm, dessa forma, por consequência, somos e factíveis soluções. Hora de acordar, Brasil,
um País pobre e as maiores vítimas são as brasileiras e brasileiros!
crianças e a nossa juventude que ficam aban-
donadas nesses “joguinhos” extremamente Novas perspectivas
perigosos e desprezando a riqueza de alterna- A partir dessas reflexões, meu único intuito
tivas que a IA pode trazer para a educação. é colaborar para a construção de um “mun-
Sim, educação. Porém, uma educação séria, do melhor” para nossas crianças, por meio
cujos princípios, valores e objetivos sejam real- da educação e nos apropriando do que a IA
mente discutidos pela sociedade civil. Pergunto- pode nos oferecer nesse campo e em muitos
-me: a continuar assim, e pedindo emprestado outros, como saúde, economia, segurança etc.
ao maravilhoso Renato Russo (1960-1996), uma No mais, quero ressaltar que não sou dono da
pessoa que criticava essa situação: “Que país é verdade, nem quero ser. Apenas exponho aqui
(será) esse?” Que crianças vamos ter? Que edu- um pensamento, experiências não muito agra-
cação estamos proporcionando para elas? Como dáveis com o uso desenfreado e inadequado
vamos lidar com a IA? Temos responsabilidades! da internet, das redes sociais, da inteligência
artificial e o papel da educação, que, repito e
insisto, começa e termina em casa!
Parece acaso, mas terminei a escrita deste
ensaio após revisões (como dizia um famoso
“Sim! Por que não
autor – não lembro o nome: “Escrever é huma-
dizer filhos no; Editar é Divino!”) e fui tomar um café. Es-
melhores para este tava vendo um dos meus programas favoritos
(CNN News), quando me deparo com uma notí-
mundo? Estamos cia de que uma lei proibindo o uso de celulares
diante de fatos, nas escolas está avançando. Parece que as au-
toridades constituídas estão acordando, como
dados, evidências
mencionei esta necessidade neste ensaio! No
incontestes de que meu ponto de vista, uma lei benéfica.
as crianças e, em
especial, muitos
adolescentes se
AFFONSO HENRIQUES DE AZEVEDO NOGUEIRA
sentem donos do tem bacharelado em Administração (UniCEUB), pós-
graduação em Gestão de Negócios (IBMEC), é mestre
mundo, da verdade em Marketing (UnB) e doutor em Cross-Cultural and
Decision-Making Process, Cultural Diversity (ESADE
última, gerando Business School & Law – Barcelona/Espanha).
✉ nogu0012@gmail.com
comportamentos
não adequados”

70 • humanitas
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NEGÓCIOS

GESTÃO INOVADORA
E SUSTENTÁVEL NO
AGRONEGÓCIO
POR MATHEUS DE LIMA GOEDERT
©1

O
agronegócio brasileiro desempenha um papel crucial dade. Programas de treinamento, educação continuada e
na economia nacional e mundial, mas enfrenta desa- valorização profissional são essenciais para formar equi-
fios que demandam uma gestão cada vez mais inova- pes aptas a lidar com as inovações tecnológicas e com as
dora e sustentável. A crescente pressão por produtividade, práticas sustentáveis.
somada às preocupações ambientais e sociais, exige que Outro aspecto relevante é a integração e colaboração en-
os gestores adotem estratégias que integrem tecnologia e tre os diferentes atores da cadeia produtiva. Parcerias
eficiência operacional, envolvendo práticas de ESG (Environ- estratégicas, cooperativismo e fortalecimento de redes de
mental, Social and Governance) cada vez mais alinhadas aos colaboração permitem a troca de conhecimentos, compar-
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (OSD) propostos tilhamento de recursos e acesso a mercados mais amplos.
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Isso é especialmente importante para pequenos e médios
Nesse cenário, sustentabilidade não é mais um diferencial, produtores, que podem se beneficiar do apoio mútuo e de
mas uma exigência do mercado e da sociedade. Por isso, economias de escala.
práticas como a agricultura biogenerativa – envolvendo o A gestão de riscos também ganha destaque, considerando
manejo integrado de pragas, a recuperação de áreas degra- as incertezas climáticas, variações de mercado e questões
dadas e a adoção de energias renováveis – são fundamen- regulatórias. Assim, planos de contingência, diversificação
tais para minimizar os impactos ambientais do setor. Além de atividades e seguro rural são instrumentos que ajudam
disso, cumprem com as exigências de consumidores mais a mitigar impactos negativos e assegurar a sustentabilida-
conscientes e de mercados internacionais que impõem pa- de financeira dos negócios.
drões rigorosos de sustentabilidade. Em resumo, a gestão inovadora e sustentável no agronegó-
Uma das principais alavancas para superar esses desafios cio é uma necessidade imperativa para enfrentar os desa-
é a transformação digital. Nesse sentido, o uso de tecnolo- fios atuais e futuros. Ao incorporar tecnologias avançadas,
gias como big data, inteligência artificial, drones e sensores práticas sustentáveis, valorização de pessoas e colabora-
inteligentes permite monitorar as condições de culturas ção, o setor se fortalece, garantindo sua competitividade e
em tempo real, prever pragas e doenças, otimizar o uso de contribuindo para o desenvolvimento econômico, social e
insumos e melhorar a logística da cadeia produtiva. Essa ambiental do País.
abordagem orientada a dados proporciona tomadas de de-
cisão mais assertivas, reduzindo os custos operacionais e
©1: BSD STUDIO / ADOBE STOCK

MATHEUS DE LIMA GOEDERT é coordenador


aumentando a produtividade e a qualidade dos produtos. do curso bacharelado de Gestão Integrada
Outro fator que merece atenção nesse contexto de ESG é a de Agronegócios da Pontifícia Universidade
© ARQUIVO PESSOAL

Católica do Paraná (PUCPR) - campus Toledo.


gestão de pessoas. Investir na capacitação e no bem-estar ✉ matheus.goedert@pucpr.br
dos colaboradores aumenta o engajamento e a produtivi-

humanitas • 71
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PENSE!

Como podemos definir


esse quadro? Seria
ele uma patologia,
um adoecimento, ou
apenas uma resposta
à sociedade em que
nos encontramos?
Quais são as
consequências de
viver nessa situação
constantemente?

EM ESTADO DE
ANSIEDADE
72 • humanitas
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© ANTON VIERIETIN / GETTY IMAGES

POR MONICA AIUB

D
as conversas no consultório de filoso- bioquímicas que demandam pesquisa, suporte
fia às notícias divulgadas em diferentes e acompanhamento profissional; entre outras
mídias; dos encontros e interlocuções possibilidades. Assim, afirmar que vivemos em
casuais aos consultórios médicos e índices da estado de ansiedade não significa que esteja-
Organização Mundial de Saúde (OMS); tudo mos vivendo em um mesmo e único estado. A
indica que vivemos em estado de ansiedade, ansiedade que sinto pode ser de natureza muito
tendo praticamente todas as áreas de nossa diferente daquela que afeta o outro; mas se for
vida invadidas por ela. Inundados por esse da mesma natureza, ainda assim, sua manifes-
estado, respiramos, comemos, trabalhamos, tação pode ser completamente distinta em cada
estudamos, dormimos, ou seja, vivemos ansio- pessoa, em cada momento, em cada contexto.
samente. Talvez ela esteja tão entranhada em
nosso ser que poderíamos pensar ou dizer que Quando procurar ajuda?
somos a própria ansiedade. Seria, o estado de Em psicopatologia, segundo Dalgalarrondo,
ansiedade, uma patologia, um adoecimento ou “a ansiedade é definida como estado de humor
apenas uma resposta à sociedade em que nos desconfortável, apreensão negativa em relação
encontramos? Quais são as consequências de ao futuro, inquietação interna desagradável.
viver em constante estado de ansiedade? Há Inclui manifestações somáticas e fisiológicas
tratamento para isso? (dispneia, taquicardia, vasoconstrição ou dila-
Quando dizemos que estamos ansiosos tação, tensão muscular, parestesias, tremores,
ou sofremos de ansiedade, não significa, ne- sudorese, tontura, etc.) e manifestações psíqui-
cessariamente, que fomos acometidos por um cas (inquietação interna, apreensão, desconfor-
transtorno e necessitamos de tratamento mé- to mental, etc.)” (Dalgalarrondo, 2008, p. 166).
dico. É comum utilizarmos o termo “ansieda- Ele ainda destaca o fato de vários autores
de” para expressar nossa inquietação, nossa utilizarem ansiedade e angústia como sinôni-
impaciência diante de algo que desejamos ou mos, mas aponta o que considera diferenças
tememos que aconteça ou que não aconteça. entre os termos: “Angústia relaciona-se direta-
Aliás, é um termo muito presente em nossos mente à sensação de aperto no peito e na gar-
diálogos cotidianos, cabendo questionar se, de ganta, de compressão, sufocamento. […] Tem
fato, vivemos em estado de ansiedade e, prin- conotação mais corporal e mais relacionada


cipalmente, o que isso significa. ao passado” (p. 166). Mas não negligencia a
A depender do significado, podemos estar angústia existencial como definidora da condi-
diante de uma reação instintiva ou construída ção humana. Ele ainda distingue “ansiedade” e
culturalmente; de um sinal para aguçarmos nos- “angústia” de “medo”, afirmando que o medo é
sa percepção e compreendermos o que se passa sempre medo de alguma coisa, refere-se a algo
conosco, com o mundo ou com as outras pes- preciso, enquanto “ansiedade” e “angústia”
soas; de uma expressão da necessidade de mu- são difusas, não se dirigem, exatamente, a um
dança nos rumos de nossa vida; de alterações objeto específico.

humanitas • 73
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PENSE!

“MUITOS SÃO OS ELEMENTOS Algo não está bem?


A percepção de um constante estado de an-
APONTADOS COMO GERADORES siedade pode ser sinônimo de que algo não es-
DE ANSIEDADE EM NOSSO teja bem. Inicialmente, checar nosso estado de
saúde é importante. Uma consulta médica e al-
COTIDIANO, E NÃO É O CASO
guns exames poderão avaliar se o que sentimos
DE ELEGERMOS UM OU OUTRO está relacionado a alterações em nosso sistema
COMO O ‘VILÃO’ QUE DEVERIA nervoso ou cardiovascular, ou ainda a desequi-
líbrios hormonais ou imunológicos. Há várias
SER EXTIRPADO DE NOSSA síndromes que geram sintomas similares àque-
VIDA. SE ASSIM O FIZÉSSEMOS, les de transtornos relacionados à ansiedade.
Descartadas as possibilidades de outras sín-
CERTAMENTE OUTROS ‘VILÕES’ dromes, é preciso checar nosso cotidiano e agu-
APARECERIAM E NOS MANTERIAM çar nossa percepção sobre nós, o mundo e as
EM ESTADO DE ANSIEDADE” pessoas com quem nos relacionamos, conside-
rando o momento de vida específico e as condi-
ções em que nos encontramos. Um exame de tal
natureza poderá evidenciar que temos motivos
reais para estarmos em estado de ansiedade ou
O medo é considerado uma reação natural nos indicar que há algo de outra ordem provo-
de nossos organismos diante de ameaças à so- cando a ansiedade.
brevivência. Um dispositivo inato, mas também Incertezas sobre o futuro, urgência na reali-
aprendido e desenvolvido, pois não reagimos to- zação de expectativas – às vezes idealizadas –,
dos e sempre da mesma maneira. A presença do sobrecarga de trabalho, cobranças por desem-
objeto que nos traz risco – ou a lembrança dele – penho e produtividade em diferentes setores da
provoca em nós reações que podemos perceber vida, insatisfação, solidão, frustração, procura
nas modificações do corpo, dos sentimentos e por um propósito ou projeto de vida, busca por
dos pensamentos. Observá-las e compreender reconhecimento, redes sociais digitais, envelhe-
seus processos, assim como observar e compre- cimento… Muitos são os elementos apontados
ender o funcionamento do objeto ameaçador, é como geradores de ansiedade em nosso cotidia-
fundamental para encontrarmos as melhores no, e não é o caso de elegermos um ou outro
maneiras para enfrentar as situações de risco. como o “vilão” que deveria ser extirpado de
Nas situações em que não há um objeto pre- nossa vida. Se assim o fizéssemos, certamente
ciso, é importante compreender a gênese de tais outros “vilões” apareceriam e nos manteriam
reações, pois elas podem estar relacionadas à em estado de ansiedade.
memória de situações vividas anteriormente,
a associações de sensações ou ideias, a um Sociedade ansiosa
mal-estar real com uma situação fisiológica ou Constituímos nossa sociedade a partir da
existencial ainda não percebida, entre outras cultura do medo (Aiub; Costa, 2016). Teme-
possibilidades. Em casos assim, muitas vezes mos o futuro, o outro, a nós mesmos, a morte,
precisamos de ajuda para a compreensão de a vida… Nossos medos e desejos são exausti-
nossos processos. Há, ainda, as situações em vamente pesquisados e utilizados para modelar
que é urgente procurar ajuda e cuidar, pois as nossos comportamentos, pensamentos, senti-
reações, além de não se relacionarem a peri- mentos e decisões, para criar padrões que, ao
gos reais, são frequentes, geram sofrimento e mesmo tempo, garantam “segurança” e levem
tornam-se impedimentos à vida. aos resultados desejados por seus “criadores”.

74 • humanitas
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A “segurança” é ilusória, pois não há como foram pensadas em seus momentos históricos e
controlarmos todas as variáveis que atuam sobre como tais reflexões impactaram a construção de
nossa vida. Podemos nos conhecer e ao mun- novos modos de vida pode nos inspirar a refletir
do; quanto mais conhecimento, maior o grau de sobre nosso momento histórico e nossa contri-
previsibilidade em relação ao futuro; porém, não buição para as construções presentes e futuras.
temos como abarcar todo o conhecimento neces- Entender a ansiedade como um elemento da
sário, nem como prever a ação do acaso. Assim, condição humana nos permite – em vez de temê-
não vivemos sólidas certezas, mas a maleabilida- -la, patologizá-la e medicalizá-la – examiná-la,
de e o fluir da vida, o que nos exige a constante compreendê-la e, ao mesmo tempo, refletir sobre
revisão de nossos hábitos e a incessante criação a vida que estamos vivendo. Não é um exercício
de novas formas de ser e estar no mundo. fácil e não se dá a partir de receitas ou padrões,
Os “criadores” dos padrões que prometem pois não há respostas prontas nem caminhos tri-
garantir nossa segurança não são divindades lhados. É, por isso, um exercício filosófico.
capazes de vislumbrar o futuro, nem sujeitos É parte desse exercício reconhecer que um
desinteressados que buscam tão somente o estado de ansiedade não é bom ou mau por si
bem comum. Em geral, tais padrões benefi- e que não é o caso de extinguir toda e qualquer
ciam certos grupos ou pessoas, pois promo- ansiedade, ainda que isso fosse possível. Qual é,
vem condutas e criam cenários geradores de afinal, o caso? Depende da natureza e do signifi-
lucro e propiciadores de exercício de poder. Na cado de cada estado específico de ansiedade, em
maior parte do tempo, não pensamos sobre as cada condição singular e concreta de cada um
consequências de tais padrões, apenas busca- de nós. Em outras palavras, é preciso compre-
mos uma forma de proteção, reconhecimento ender o que o estado de ansiedade que estamos
ou garantia de estarmos fazendo as melhores vivendo neste exato momento revela sobre nossa
escolhas para nossa vida. existência – singular e como sociedade – e, prin-
A disputa polarizada entre os “padrões” he- cipalmente, o que podemos ou devemos fazer a
gemônicos, que ao final não diferem tanto em respeito disso. Você vive em um estado de ansie-
seus fins últimos, traz a incerteza que nos colo- dade? Se sim, o que ele revela a você?
ca novamente em estado de ansiedade. Um es-
tado necessário para a manutenção e existência
de padrões que prometem apaziguá-lo. Enfim,
um cenário no qual a ansiedade é necessária
para o exercício do poder, mas precisa ser pa- Nota: Agradeço à amiga Neysa Campos
tologizada e controlada a partir de um modelo pelas provocações que geraram este texto.
inatingível de uma vida “tranquila” e “feliz”, que
retroalimenta o estado de ansiedade, levando a REFERÊNCIAS
um adoecimento social. AIUB, Monica; COSTA, César Mendes. Minorias: da
sociedade de consumo à sociedade do convívio. São
Paulo: FiloCzar, 2016.
Condição humana
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia
Na história da filosofia, podemos encontrar dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.
reflexões sobre ansiedade, angústia, medo, en-
fim, emoções e sentimentos que se fazem pre-
MONICA AIUB é doutora
© RENATA SILVA

sentes na história da humanidade. Tomá-las


em Filosofia (PUC-SP). Atua
como respostas e derivar receitas para a vida a como orientadora filosófica
partir delas é fazer uso da filosofia para justifi- no Espaço Monica Aiub.
✉ www.monicaaiub.com.br
car a criação de “padrões”, e nada é mais an-
tifilosófico que isso. Contudo, observar como

humanitas • 75
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HAPPY HOUR

PELO
DETOX
DIGITAL
Perdidos em um mundo virtual idealizado, sequestrados
por seus estímulos, deixamos passar a vida – a única
que temos e que podemos ter. E assim, frustrados,
afundamos no atoleiro de nossas próprias neuroses

POR JELSON OLIVEIRA

O
consumo excessivo do digital na forma
das inúmeras telas que se espalham por
todos os lados na nossa vida cotidiana
vem sendo apontado como uma grande fonte
de preocupação. O tempo que crianças, jovens
e adultos passam em frente às telas vem aumen-
tando de forma assustadora nos últimos anos,
transformando a posse desses dispositivos e seu
uso em um verdadeiro frenesi de múltiplos im-
pactos, que passam pelo isolamento, pela quebra
dos vínculos sociais, pelo aumento das doenças
neuronais de todo tipo, entre eles o suicídio.

76 • humanitas
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O caso da perda da vida pelo suicídio do jo- “TODOS JÁ VIMOS A CENA:


vem Sewell Setzer, de 14 anos, pretensamente UM CASAL COM FILHOS CHEGA
apaixonado por uma personagem criada por
A UM RESTAURANTE E, EM
inteligência artificial (IA) é um exemplo disso.
Segundo sua mãe, que agora processa a star- VEZ DE CONVERSAREM COM
tup Character.AI e o Google por terem causado AS CRIANÇAS, EXPLICANDO-
a morte do filho, a personagem dizia a ele que
-LHES AS REGRAS DE
o amava, causando uma ilusão que levou o jo-
vem a desistir de viver porque não queria viver CONDUTA DAQUELE LOCAL,
fora do mundo artificial. Afinal, na vida concre- JOGAM EM SUAS MÃOS
ta, aquele amor não era correspondido. UM TABLET COM ALGUM
O evento lembra a história do filme She (Ela),
FILME QUE FAZ A CRIANÇA
no qual o personagem de Joaquin Phoenix
apaixona-se pela voz de Scarlett Johansson, FICAR VIDRADA – O QUE
projetada por uma forma de IA. A questão vol- SIGNIFICA, TAMBÉM,
ta com força: é a arte que copia a vida ou a vida CALADA, SILENCIADA,
que copia a arte? Difícil responder. Fato é que
essas – e outras – histórias começam a se re-
CONTIDA, REPRIMIDA”
petir ao redor do mundo, ligando a luz amarela
de pais, educadores e especialistas, que têm
se preocupado com a saúde mental daqueles
que se sentem viciados no mundo artificial das
telas digitais a ponto de quebrarem todos os afetivos com os pais, essa criança cresce vítima
vínculos com o mundo real. das mesmas empresas que agora são seus ver-
dadeiros “educadores”, lobistas digitais e mer-
Interações amputadas cadores algorítmicos que dominam esse mundo
Vozes críticas a tudo isso não param de apa- aberto e desconhecido.
recer em várias áreas. O neurocientista francês A propósito da educação, Desmurget cita,
Michel Desmurget escreveu A fábrica dos creti- por exemplo, um dado assustador: “Nossos
nos digitais para denunciar os perigos do uso adolescentes passam 22 vezes mais tempo com
exacerbado de telas para as crianças. De tudo as telas recreativas do que com os livros”.2 É
o que eu li nesse livro, o que mais me chamou triste, não é mesmo? Lendo cada vez menos, as
a atenção foi o argumento demonstrando que crianças crescem sem vocabulário e suas for-
o verdadeiro perigo das telas não está apenas mas de comunicação se empobrecem tanto que
dentro delas, por assim dizer, mas fora delas: ficam reduzidas aos memes, chavões e clichês.
tem a ver com a quebra dos vínculos sociais Com dificuldade para se expressar, não por aca-
que elas provocam. Desmurget fala de “intera- so, ficam cada vez mais fechadas, misantropas
ções humanas amputadas”.1 e, por isso mesmo, não raro, mais preconceituo-
Todos já vimos a cena: um casal com filhos sas, misóginas, homofóbicas…
chega a um restaurante e, em vez de conversa-
rem com as crianças, explicando-lhes as regras Infância no celular
de conduta daquele local, jogam em suas mãos As consequências de tudo isso foram cata-
© MIKHAIL OGNEV / GETTY IMAGES

um tablet com algum filme que faz a criança logadas e largamente explicadas pelo psicólogo
ficar vidrada – o que significa, também, calada, Jonathan Haidt, que mostrou como a hipercone-
silenciada, contida, reprimida. Sem vínculos xão das gerações atuais desde a infância impac-
tam negativamente a saúde mental de crianças

humanitas • 77
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HAPPY HOUR

e adolescentes. Seu livro A geração ansiosa é “ESSA SOMA DE ESTÍMULOS


um retrato terrível dos transtornos mentais re- VINDOS DAS TELAS ACABA,
sultantes do uso excessivo das redes digitais.
POR ISSO, FAZENDO-NOS MAIS
Mais do que isso: é uma espécie de advertência
para todos nós: o uso exacerbado desses dispo- INFELIZES, EMBORA NOS
sitivos nos torna escravos por meio de um vício ENGANEM COM AS PROMESSAS
difícil de combater. FÁCEIS DE QUE É POSSÍVEL
Seguindo a tese de Richard Louv em outro li-
FUGIR DAQUILO QUE, NA
vro que trata do tema, A última criança na natu-
reza (no qual o autor analisa como as crianças REALIDADE, PODE SER
vêm se distanciando das experiências de brin- DESAGRADÁVEL E NEGATIVO”
cadeira no mundo natural, a tal ponto de sofre-
rem de um transtorno que ele classifica como
“déficit de natureza”), Haidt fala de um declínio anomia (falta de comportamento, regramento e
da “infância baseada no brincar”, substituída desintegração social) que emerge entre os ado-
por uma “infância baseada no celular”. lescentes e jovens, precisamos trazer as crian-
Para Haidt, a hiperconectividade não faz bem ças para casa, propõe o autor.
para a saúde mental de ninguém: altera o de-
senvolvimento social e neurológico de nossas Fogo&Foco
crianças e adolescentes, causa privação do O filósofo norte-americano Albert Borgmann,
sono, provoca isolamento, reduz as oportunida- ainda no final do século passado, chamou a aten-
des de crescimento interpessoal, empobrece a ção para o efeito distrativo dos dispositivos digi-
atenção, gera dispersão, vicia. Para ele, os pais, tais em nossa vida. Ele relacionou a palavra foco
as escolas e toda a sociedade deveriam atuar à palavra fogo, demonstrando como, na etimolo-
para proteger a infância desses prejuízos. gia das duas palavras, reside a ideia de atenção e
Entre seus conselhos estão: não usar smart- vínculo: no mundo grego, o fogo estava associa-
phone antes do primeiro ano do ensino médio do à deusa Héstia, cujo culto foi muito popular
(no Brasil), não ter redes sociais antes dos 16 no mundo romano (onde se chamava Vesta).
anos, proibir o uso de celulares nas escolas e Essa deusa, com suas ajudantes, era respon-
aumentar o tempo das brincadeiras não super- sável por cuidar do fogo cerimonial. Seu lugar era
visionadas na infância. Só assim as crianças a lareira, o lugar aconchegante, o lugar onde to-
e os adolescentes teriam oportunidade de am- dos se reúnem e onde os vínculos são formados.
pliar e enriquecer as interações sociais e desen- Héstia é a deusa do fogo, mas também do foco, ou
volver as habilidades necessárias para a vida seja, do encontro e do apego, que exige atenção,
em sociedade. Com mais tempo para os outros, cuidado, carinho e proximidade. Para Borgman,
nós temos mais oportunidade de cultivarmos perdemos exatamente isso no mundo moderno
as raízes que nos ligam aos outros, à família, à com o uso exacerbado de dispositivos tecnológi-
natureza, aos nossos animais de estimação, à cos: todas essas telas que carregamos nos bolsos
nossa comunidade, à sociedade como um todo. ou que se abrem em mil janelas sob o encanto
Sem gastar tanto tempo na frente das telas, dos nossos olhos não geram foco. Ao contrário:
teremos, afinal, mais tempo para sermos felizes a tecnologia nos enche de dispositivos desfocais,
de verdade, no mundo real, que é onde estão quer dizer, dispositivos que separam, distraem,
as pessoas reais e as coisas mais importantes alienam. Desfocados, vivemos com medo uns
da nossa vida. Para vencer a solidão, a ansie- dos outros e, pior: com medo de nós mesmos,
dade e os diversos transtornos que nos tiram a com medo das experiências mais importantes
saúde mental e, sobretudo, acabam por gerar a que têm o potencial de nos tornar quem somos.

78 • humanitas
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Essa soma de estímulos vindos das telas acaba, contar o tempo que passamos na frente das telas),
por isso, fazendo-nos mais infelizes, embora nos melhorar a comunicação e a interação interpesso-
enganem com as promessas fáceis de ser possí- al, concentrar-se em metas que sejam compatíveis
vel fugir daquilo que, na realidade, pode ser de- com nossas potencialidades e prevenir os diferentes
sagradável e negativo. O filósofo Byung-Chul Han transtornos ligados ao uso excessivo das telas.
chamou isso de “excesso de positividade”, mani-
festando-se, segundo ele, na soma exagerada de Livres das máquinas
estímulos, informações e impulsos que modificam No fundo, desligar as telas por um tempo e redu-
a economia da atenção que orienta a nossa vida zir o uso de dispositivos eletrônicos para simples-
para um equilíbrio. mente… viver! É preciso que nos reconectemos com
as coisas que mais importam e que são reais. No
Vida autêntica fundo, é fundamental ir mais devagar, prestar mais
Assim, desequilibrados, já não sabemos mais atenção no que mais importa, gastar mais tempo
lidar com as negatividades. Queremos apenas o com quem amamos, cuidar de nós mesmos. Não
que é prazeroso e aprazível. Queremos apenas o ser dominado pelas máquinas é o caminho para
que é satisfatório e nos afastamos de tudo o que continuarmos sendo humanos autênticos.
tem o risco mínimo de nos trazer eventual descon- PS: Paro de escrever por aqui. Desligo meu com-
forto. O problema é: as coisas mais significativas putador e meu smartphone. Plínio, meu cão, já está
de nossa vida podem estar precisamente aí, nes- impaciente aos meus pés. Ele me leva para passear
ses aspectos pretensamente negativos de nossa toda tarde, às 17h. Eu sempre acho graça do seu
vida. Envolvidos com nossas telas, as quais nos rebolado à minha frente, cheirando tudo ao redor.
oferecem mundos agradáveis selecionados pelo Enquanto caminho, sinto a cidade desacelerando,
algoritmo que aprende o que nos agrada, perde- ouço os pássaros procurando ninhos para passar a
mos a chance de experimentar a vida em sua au- noite, reparo o sol se derramando sobre as folhas da
tenticidade. E, com isso, acabamos por perder a araucária da minha rua, celebro a graça do ipê-rosa
oportunidade de adquirir as condições que nos florido e do viço que move todas as flores para cima.
possibilitam enfrentar essas negatividades. Meu celular está desligado. Se você me ligar, eu não
Quem nunca lida com seus monstrinhos nun- vou atender agora. Estarei vivendo.
ca vai aprender a domá-los. Diante de nossas te-
las, tentamos preencher um vazio existencial que
nos consome e, entre encantados e embriagados, N O TA S
deixamos o nosso tempo de vida escoar entre os 1 Desmurget, Michel. A fábrica de cretinos digitais.
pixels das telas sobre as quais passamos, mono- Os perigos das telas para nossas crianças. Trad.
Mauro Pinheiro. São Paulo: Vertigio, 2023, p. 137.
tonamente, as polpas digitais de nossos dedos. 2 Ibidem, p. 159.
Perdidos nesse mundo virtual idealizado, seques-
trados por seus estímulos, deixamos passar a vida
REFERÊNCIAS
– a única que temos e que podemos ter. E assim,
DOMÍNGUEZ, Olga González. Detox Digital.
frustrados, afundamos no atoleiro de nossas pró- Barcelona: Penguin Random House, 2019.
prias neuroses.
Para enfrentar o problema, a psicóloga Olga
JELSON OLIVEIRA é escritor,
González Domínguez, em seu livro Detox Digital, filósofo, coordenador do Curso de
desenvolveu um programa de 21 dias para ajudar Gestão da Felicidade e Projeto de
Vida da PUCPR. Autor de dezenas de
© ACERVO PESSOAL

as pessoas a retomarem o controle de seus hábitos artigos e livros, entre os quais está
tecnológicos e aproveitarem o presente de forma Sabedoria Prática (PUCPRess, 2012)
mais consciente. Para ela, devemos começar com- e Moeda sem efígie: a crítica de Hans
Jonas à ilusão do progresso (Kotter
preendendo melhor os nossos hábitos (o que inclui editorial, 2023). @jelsonoliveira

humanitas • 79
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CODEX

OS LIVROS ANTES DO LIVRO


Com riqueza de imagens, detalhes e mapas, esta obra da designer Cibele
Bustamante é uma jornada pela história da escrita, seus suportes e formatos
que antecederam o “códice”, utilizado atualmente. A autora convida a repen-
sar o papel dos livros na atualidade, revelando como eles continuam a ser
uma ponte entre gerações, culturas e realidades. A obra é dividida em três pi-
lares: sistemas de escrita, suportes e formatos, nos quais a autora questiona
o que define um livro, provocando-nos a refletir sobre seu impacto político e
cultural ao longo do tempo – e sobre o que o futuro pode reservar para essa
forma de comunicação que transcende o tempo.

Autora: Cibele Bustamante Págs.: 248 Editora: Modelo

DIREITOS HUMANOS NO BRASIL


A nova obra organizada pelas jornalistas Daniela Stefano e Maria Luisa
Mendonça traz análises aprofundadas que refletem os avanços das organi-
zações sociais na defesa dos direitos humanos. Os 25 artigos apresentam
um amplo panorama com denúncias de violações aos direitos humanos e
suas principais causas. Buscam ainda apresentar propostas em diversas
áreas. Os temas incluem questões rurais e urbanas, trabalho, educação,
cultura, povos indígenas, quilombolas e camponeses, relações raciais, or-
ganizações feministas e LGBTQIA+. O livro reúne pessoas e organizações
comprometidas com a defesa da justiça social.

Orgs.: Daniela Stefano e Maria L. Mendonça


Págs.: 209 Editora: Outras Expressões/Fund. P. Abramo

REVOLUÇÃO EM MENTE
Esta obra não pretende ser uma defesa ou um ataque à psicanálise, tampou-
co elabora ou desenvolve conceitos psicanalíticos e sua aplicabilidade clíni-
ca. Em vez disso, o psiquiatra George Makari busca resgatar a evolução ou
a “criação” da psicanálise como um movimento intelectual, uma abordagem
psicológica e filosófica da mente e uma nova forma de pensar. Uma obra ím-
par, profunda e erudita, mas de leitura agradável, imprescindível para todos
os que se interessam pelas aventuras da mente humana, em geral, e para
qualquer pessoa que queira compreender o que é a psicanálise, como ela se
desenvolveu e, em particular, como ela representa os percursos e desvios do
pensamento ocidental contemporâneo.

Autor: George Makari Tradução: Paulo Sérgio de Souza Jr. Págs.: 512 Editora: Perspectiva

80 • humanitas
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HUMANITAS é uma publicação mensal da EBR _ Empresa Brasil de

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Revistas Ltda. ISSN 2675-5262. A publicação não se responsabiliza
por conceitos emitidos em artigos assinados ou por qualquer
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ANO 16 - EDIÇÃO 183

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e doutora em Comunicação e Programa de Pós-Graduação em
Semiótica (PUC-SP) e pós- Filosofia da PUC-PR, doutor em FILIADA À IMPRESSÃO E ACABAMENTO
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Filosofia pela Univ. de Paris 1 e Paulo Ferraz de Camargo Oliveira, e SBPSP.

pós-doutor pelas Univ. de Oxford e mestre em Ciências no programa de


Notre Dame. É professor do Depto. História Social da FFLCH-USP FALE CONOSCO
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ESCOLA DA VIDA

OBEDECER Stanley
Milgram

OU NÃO?
POR HOMERO SANTIAGO
“A OBEDIÊNCIA É FÁCIL PORQUE

U
m dos ramos mais interessantes e controversos da
EXIGE APENAS DAR CURSO AO QUE
psicologia social é o estudo do fenômeno da obe-
diência, especialmente quando tenta compreender DE NÓS SE ESPERA; DESOBEDECER,
como esse imperativo da vida social “normal” às vezes AO CONTRÁRIO, REQUER A
gera situações extremas e “anormais”, como o policial que CORAGEM DE REALIZAR UM DIFÍCIL
tortura e mata a mando de um superior ou – é o exemplo
clássico – os vigias de campos de concentração nazistas.
TRABALHO DE PENSAMENTO”
Intrigado pela questão, o psicólogo norte-americano Stan-
ley Milgram realizou em 1961 um experimento que ficou tornava possível que pessoas “normais”, numa situação
célebre (ver Obediência à autoridade. Uma visão experi- determinada, cometessem atos “anormais”, como a tor-
mental, Francisco Alves, 1983). Numa chamada em jornal, tura por choques elétricos. Daí a conclusão fundamental
ele convoca voluntários para um estudo sobre a influência de Milgram: um fenômeno como o dos campos de con-
do castigo físico no aprendizado. No laboratório, o voluntá- centração nazistas pode explicar-se, entre outras coisas,
rio exerce o papel de “professor” e, de uma cabina, aplica por uma estrutura social comum, o dever de obediência.
choques elétricos num “aluno” a cada falha deste em res- Porém, nem todos simplesmente obedeceram. Algumas
ponder a um questionário. Conforme a repetição dos erros pessoas decidiram desobedecer e abandonaram o ex-
cresce, as descargas aumentam, podendo alcançar o limite perimento. Indagadas por que agiram assim, alegaram
de 450 volts; descarga que, como se alerta, causa muita também um dever para com as suas próprias convicções;
dor e é perigosa. para elas, é legítimo desobedecer quando o cumprimento
No entanto, tudo não passa duma grande armação. Não de uma ordem implica uma atrocidade. É uma diferen-
se estuda o aprendizado. O objetivo real de Milgram é in- ça reveladora: os que somente obedeceram, fizeram-no
vestigar “como um homem se comporta quando recebe a meio automaticamente; os que desobedeceram refletiram
ordem de uma autoridade legítima para agir contra uma sobre as ordens recebidas antes de cumpri-las e, no en-
terceira pessoa”. No caso, a autoridade é a do pesquisa- tanto, emergiu o pensar.
dor que manda o “professor” aplicar o castigo e assume a Um aspecto perturbador do experimento de Milgram é
responsabilidade pelo ato; a vítima, o “aluno”, em verdade percebermos que, no fundo, obedecer é mais simples que
é um ator que, sem receber descargas, simula expressões desobedecer. A obediência é fácil porque exige apenas
de dor e desespero. dar curso ao que de nós se espera; desobedecer, ao con-
O surpreendente foi que um número considerável de pes- trário, requer a coragem de realizar um difícil trabalho de
soas (dentre os mais de 1.000 sujeitos do experimento) pensamento.
chegou ao limite de descargas que provocavam dor inten-
sa e eram potencialmente mortais. Questionadas depois, HOMERO SANTIAGO é professor associado
do Departamento de Filosofia da Faculdade
explicaram ter agido assim porque haviam concordado em
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
© ARQUIVO PESSOAL

fazê-lo e o superior que dava as ordens se responsabilizara Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
pelas consequências. Ou seja, a obediência “normal” (aque- ✉ homero@usp.br

la de um funcionário qualquer que segue ordens do chefe)

82 • humanitas
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Henry David Thoreau desafia


convenções em ‘Desobediência
Civil’, explorando limites da
autoridade governamental e
a necessidade de resistência
pacífica. Leitura essencial sobre
cidadania e consciência moral.

NAS LIVRARIAS
Ou acesse www.escala.com.br
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Girls’ Boarding School. 1907. Marianne von Werefkin.

“Não podemos ter sucesso quando


metade de nós é retida. Apelemos às
nossas irmãs para que sejam corajosas
– para abraçar a força dentro de si
mesmas e realizar seu pleno potencial.”
Malala Yousafzai
FEVEREIRO

Roxo Laranja
Conscientização do Combate à leucemia e
Lúpus, Fibromialgia incentivo a doação de
e Mal de Alzheimer sangue ou medula
óssea

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