Humanitas #183 - Fev25
Humanitas #183 - Fev25
183
COMPLEXIDADE DA SAÚDE
FATORES SIGNIFICATIVOS
NESSE SERVIÇO
ESSENCIAL QUE AGORA
DEVE INCLUIR CUSTOS DE
UMA POPULAÇÃO IDOSA
EDUCAÇÃO
PARA
(E PELAS)
MULHERES
ESTRATÉGIAS DE ANA DE CASTRO, PROFESSORA QUE
DEFENDEU O DIREITO À INTELIGÊNCIA, EXCLUSIVIDADE
MASCULINA NO BRASIL DO SÉCULO 19
Roxo Laranja
Combate à leucemia e
Conscientização do
incentivo a doação de
Lúpus, Fibromialgia
sangue ou medula
e Mal de Alzheimer
óssea
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NAS LIVRARIAS
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EDITORIAL
A educação
das mulheres
O
rganizações voltadas à proteção dos direitos humanos decla-
ram que 122 milhões de meninas ainda estão fora da escola,
reforçando a importância de as mulheres terem acesso à edu-
cação, o que não se limita a frequentar uma escola: espera-se que elas
possam completar todos os graus.
Apesar dos esforços para mudar tal quadro, mulheres continuam sen-
do consideradas vulneráveis, além de serem marginalizadas em nossa
Boa leitura!
Cristina Almeida - Editora
humanitas • 3
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SUMÁRIO
183
18_ CAPA
© IMAGEM DE CAPA: AI GENERATED / MIDJOURNEY
PELO DIREITO
183 À EDUCAÇÃO
O resgate da memória
COMPLEXIDADE DA SAÚDE
FATORES SIGNIFICATIVOS
NESSE SERVIÇO
de Ana de Castro,
ESSENCIAL QUE AGORA
DEVE INCLUIR CUSTOS DE
UMA POPULAÇÃO IDOSA
fundadora de um
colégio de instrução
primária e de
humanidades para
meninas no século 19,
EDUCAÇÃO
PARA revela sua luta pelo
(E PELAS) acesso das mulheres
48 _ SER ANALISTA
MULHERES à instrução, um
EDIÇÃO 183 - PREÇO R$ 25,00
Átrio DA REDAÇÃO
MALCOLM X: COMPLEXO,
MAS INFLUENTE
Há 60 anos, em 21 de fevereiro, o líder foi assassinado durante uma palestra, fato
que colocou fim à trajetória de um dos maiores nomes da luta afro-americana pelos
direitos civis. Neste ano de 2025, caso estivesse vivo, Malcolm completaria 100 anos
© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG
O
ativista Malcolm Little, que ficaria conheci- reconhecido por ser uma figura inspiradora, já que se
do como Malcolm X, nasceu no estado de Ne- tornou um símbolo do orgulho negro, da resistência e
braska (EUA), foi um dos mais conhecidos líde- da autodeterminação. Os seus discursos e, sobretudo,
res da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e sua biografia, seguem inspirando iniciativas voltadas
continua sendo um ícone do movimento Black Power para a luta por justiça. As suas ideias e o seu empenho
até os dias de hoje. No princípio de sua jornada, Lit- na defesa dos direitos tiveram uma dimensão global,
tle foi um apoiador e se tornou uma liderança entre visto que continuam influenciando ativistas em todo o
muçulmanos negros que compunham a Nação do Islã. mundo – especialmente os que se voltam ao combate
Posteriormente acabou se destacando desse grupo ao racismo sistêmico, à violência policial e à desi-
por suas crenças separatistas e militância. Hoje ele é gualdade econômica.
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ÁT RIO
52%
É A REPRESENTAÇÃO
DO ELEITORADO
FEMININO BRASILEIRO.
© CHERRYANDBEES / ADOBE STOCK
O DIREITO AO VOTO SÓ
ACONTECEU EM 1932;
PORTANTO, HÁ 93 ANOS.
Fonte: TSE.
RELEVANTE
Apesar da concorrência acirrada dos podcasts e streamings de áudio, as
rádios continuam sendo companheiras de todas as horas e demonstram não
ter perdido o alcance e o apelo junto ao público brasileiro. Confira os dados
da pesquisa Inside Audio 2024:
O interesse dos
ouvintes é local, ou Majoritariamente a escuta
seja, eles desejam se dá por meio da AM e
saber o que acontece FM, depois vêm YouTube
na sua região. e streamings de áudio.
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Na Rede
© KATE / ADOBE STOCK
© DIVULGAÇÃO
COMPORTAMENTO HUMANO
humanitas • 7
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Neurociência
e Filosofia
A mente não é o cérebro, não possui lugar definido,
nem vínculo orgânico, frontal ou parietal.
MARCO LUCCHESI é poeta,
escritor, tradutor, professor e
Onde está Deus? Numa determinada zona cerebral. atual presidente da Biblioteca
Ou além do tempo-espaço no Empíreo. Nacional. Mestre e doutor
em Ciência da Literatura
(UFRJ). Pós-doutoramento
em Filosofia da Renascença
(Universidade de Colônia/
Alemanha). Foi presidente da
Academia Brasileira de Letras
(ABL) de 2018 a 2021 onde
O avanço da neurociência. E seu devido approach ocupa a cadeira de nº15.
filosófico: analogia, paralelos, interfaces. @marcolucbr
www.marcolucchesi.org
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ANÁLISES
DESOBSTRUIR O CAMINHO
DO EMPREENDEDOR
POR JOSÉ PIO MARTINS há 61 países com PIB maior que o da Dinamarca antes de
chegar ao PIB do Brasil. Esse dado poderia dar a impressão
C
om o fim da pandemia em 2022, o inventário dos de que a Dinamarca é mais pobre que o Brasil, e essa con-
estragos econômicos foi assombroso. A vida preci- clusão não faz o menor sentido, pois a Dinamarca tem 5,7
sava voltar ao normal rapidamente para enfrentar milhões de habitantes e a renda por pessoa lá é equivalente
o cenário econômico e social de terra arrasada. Desempre- a quatro vezes a brasileira.
go, miséria, fome, empresas combalidas, finanças pessoais A Dinamarca não tem miséria, não tem pobreza, o padrão mé-
fragilizadas, dívidas não pagas, inadimplência elevada no dio de bem-estar social está muito acima do padrão brasileiro.
sistema financeiro e, principalmente, perda total ou parcial Se o Brasil dobrasse seu produto por habitante, chegaríamos
da renda de grande parte da população. apenas à metade do PIB por habitante di-
O segundo semestre de 2022 foi a porta namarquês. Isto posto, como medida do
de abertura para a recuperação, cujas
“O DISCURSO DE grau de pobreza e de padrão de vida, o
exigências mais prementes eram a reto- tamanho absoluto do PIB não esclarece
QUE A ECONOMIA
mada da operação pelas empresas para- muita coisa. Se o número de bocas para
lisadas durante a pandemia e o aumento
BRASILEIRA É A serem alimentadas continua crescendo e
do nível de emprego. NONA DO MUNDO o PIB não cresce, a situação piora.
De início surgiu a necessidade de ajustes NÃO FAZ SENTIDO, O cenário aqui descrito nos leva à seguin-
empresariais, reorganização das finan- POIS ESSE DADO te conclusão: o sistema estatal, as leis, os
ças familiares, recomposição das finan- REFERE-SE APENAS governos, os poderes e os burocratas de-
ças públicas e preparação para obter AO TOTAL DO veriam dar prioridade máxima à desobs-
alguma taxa de crescimento sustentável PRODUTO INTERNO trução dos canais que impulsionam a pro-
nos anos seguintes. Essas providências dução e o crescimento. A palavra-chave
BRUTO (PIB) SEM
impuseram-se como indispensáveis para deveria ser: desobstruir… desobstruir o
amenizar o atraso e a pobreza que ha-
CONSIDERAR O caminho dos empreendedores pela retira-
viam sido aprofundados durante a crise. TAMANHO DA da dos entraves para quem quiser empre-
No caso do Brasil, o quadro social exigia POPULAÇÃO” ender, investir, arriscar, trabalhar, produ-
recuperação rápida como condição ne- zir, gerar emprego e pagar impostos.
cessária para tentar concluir a terceira Neste momento, é melhor errar por ex-
década deste século em situação econômica e social melhor cesso de liberdade do que manter a nação sufocada por
do que terminou a primeira e a segunda década. Medido regulamentos e montanhas de leis e normas restritivas
pela renda por habitante, o Brasil continua sendo um país da liberdade de iniciativa. Não crescer é um luxo ao qual o
pobre. O discurso de que a economia brasileira é a nona Brasil não pode se permitir, pois a pobreza e a miséria são
do mundo não faz sentido, pois esse dado refere-se apenas grandes demais.
ao total do Produto Interno Bruto (PIB) sem considerar o
tamanho da população.
A produção total nacional não diz muita coisa se não for
© ARQUIVO PESSOAL
relacionada com o número de habitantes a quem o PIB deve JOSÉ PIO MARTINS
atender. A Dinamarca, por exemplo, está na 70ª posição em é economista, professor,
palestrante e consultor.
tamanho do PIB, ou seja, 61 posições atrás do Brasil. Isto é, ✉ pio.economista@gmail.com
humanitas • 9
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ENSAIO
A TRÍADE DO
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ALISMO
G
eorges Orwell nasce na Birmânia e
ainda pequeno vai para a Inglaterra;
forma-se numa das mais conceituadas
escolas do país, graças a uma bolsa de estudos.
Diplomado, em vez de seguir o caminho natu-
ral da universidade, decide retornar às Índias
e presta o concurso para o oficialato da polícia
imperial. Ele fica na Birmânia por cinco anos,
até que em 1927, de licença na Inglaterra, re-
solve exonerar-se do posto e tornar-se escritor.
A experiência no Oriente fornece a matéria-
-prima de seu primeiro romance, Dias na Bir-
mânia,1 terminado em 1933 e publicado no ano
seguinte, bem como de outros textos do jovem
Orwell, que passou assim a ocupar um capítulo
relevante nesse ramo das letras britânicas que
© ARCO TORESIN
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ENSAIO
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ENSAIO
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humanitas • 15
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IDEIAS&EVENTOS
O QUE ESPERAR EM
POR DANIEL MEDEIROS
Q
uando você estiver lendo estas linhas, o ano já esta-
rá em curso e você já saberá, com relativa precisão,
se as promessas que fez em dezembro vão ser cum-
pridas ou não. Afinal, janeiro é o mês de Janus, o deus com
um olhar voltado para frente e outro para trás, secando os uma sociedade melhor, um espaço de paridade social
olhos das angústias ainda vívidas e sorrindo das perspec- no qual ninguém possa ser discriminado por ser quem
tivas por vir. O fato é que a esperança é a doença crônica é e que nenhuma relação possa ser considerada justa
mais comum do ser humano. O mais pessimista, se ainda se não garantir o mínimo de dignidade. Uma esperança
respira, é porque acredita que tudo ainda pode melhorar. com quatro passos atrás para tentar ensaiar um passo
O problema de hoje é que o horizonte do possível para frente, só pra variar.
tornou-se algo raro de perscrutar. Antes, a miragem O ano não parece promissor para os jovens, para os
confundia-se com o horizonte. Hoje, o horizonte é a mi- pobres, para as mulheres, para os negros, para os que
ragem. Olhamos, olhamos, mas só há uma névoa densa têm consciência ambiental, para as pessoas que preci-
e inconstante, alterando-se a todo momento. Até nosso sam do apoio do governo e de suas agências. O ano não
otimismo crônico sofre com esse novo desafio. Afinal, parece promissor porque está na moda afirmar que
acreditar em quê? No ano passado, acreditamos que os todo mundo é vítima e que quem quiser sair dessa con-
americanos não iriam votar em um candidato que pôs dição tem de fazer por si, sem ajuda de ninguém, tem
em risco o que parecia ser o mais sagrado princípio da de ter mentalidade vencedora e tudo o mais que é repe-
sociedade daquele país: suas instituições. tido pelo melhor coach da semana de todos os tempos.
Diante disso, como apresentarmos aos nossos filhos, No entanto, por outro lado, o ano é promissor para
nossos alunos, um programa ético básico para servir de quem sabe que tudo isso é apenas a expressão do ho-
balizamento para o futuro? “Não minta, não calunie, não mem natural, do homem infantilizado e incapaz de per-
ameace, não ignore, não seja preconceituoso, não seja ceber que vive em meio aos outros, que não abre mão
insensível, dinheiro não é tudo, o importante é o Bem Co- de uma suposta liberdade que julga ter por origem e
mum”. Como podemos dizer isso com a firmeza de quem cujo exercício nega qualquer limite ou condicionamen-
sabe que o mundo não vai desmenti-lo? Pobre Aristóte- to. Como lembrava Hobbes – o primeiro a teorizar so-
les, como poderia imaginar que viveríamos esse proces- bre esse tipo de gente –, uma vida cercada de homens
so de fratura social, essa revolta das elites, com o aplau- naturais é pobre, infrutífera, sem esperanças.
so entusiasmado de seus súditos, os empreendedores
E, para quem sabe disso, o ano é promissor porque não
esperançosos de, um dia, alçarem-se a essa posição de
total niilismo social e indiferença com os losers. Pois é, há nada mais estimulante do que arregaçar as mangas
será isso que o ano promete? e mudar o mundo, mais uma vez, e tantas vezes quanto
Ou não. Pois nada impede que refaçamos nossos laços, for necessário para que a esperança não pereça defini-
aprendamos a dar outros tipos de nós, produzamos no- tivamente.
vas texturas e inventemos novos matizes, misturando
expectativas diferentes das que murcharam, perderam
© DENY / ADOBESTOCK.COM
ricana, fala muito da integração entre políticas de redis- DANIEL MEDEIROS é doutor em Educação
tribuição e de reconhecimento e da invenção de um es- Histórica e professor no Curso Positivo.
✉ danielmedeiros.articulista@gmail.com
paço comum para reagendar nossos esforços de luta por Redes sociais: @profdanielmedeiros
humanitas • 17
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CAPA
EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO
FEMININ A O resgate da
memória de Ana de
Castro, escritora e
fundadora de um
colégio de instrução
primária e de
humanidades para
meninas no século
19, e as estratégias
por ela usadas
para a defesa do
direito feminino à
inteligência
© AI GENERATED / MIDJOURNEY
18 • humanitas
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A
mante das
A
letras, entusiasta
da educação
feminina,
preceptora,
escritora. Em seu necrológio
publicado na Revista Mensal da
Sociedade Ensaios Literários,
assinado por Jerônimo Simões,
Ana Luísa de Azevedo Castro
é descrita como uma mulher
distinta e afável, de esmerada
educação e excelente coração,
uma talentosa professora,
uma senhora benquista pela
sociedade. Contudo, como
muitas escritoras do período, que
foram silenciadas ou esquecidas,
pouco sabemos sobre a vida
de Ana de Castro (doravante
D. ANNA CASTRO ERA
vou chamá-la dessa maneira
UMA SENHORA DOTADA
abreviada). Mesmo considerada
DE BASTANTE ESPÍRITO E a primeira romancista de
INTELIGÊNCIA, ESTUDIOSA, Santa Catarina, há mais
E DE CONHECIMENTOS especulações e perguntas sem
LITERÁRIOS; ERA ANIMADA respostas do que fatos sobre
DE NOBRES E ELEVADOS sua biografia. “Lástima para a
INTUITOS EM FAVOR DA literatura feminina brasileira que
EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO esqueceu, por tanto tempo, uma
DE SEU SEXO […]1 boa pioneira”2.
humanitas • 19
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CAPA
Prestígio
Em 1858, entre 13 de abril e 6 de julho, Ana de
Castro publicou no periódico A Marmota, sob o
pseudônimo Indígena do Ipiranga, o seu único ro-
mance, D. Narcisa de Villar. Em 1859, a obra sai no
formato de livro pela Tipografia de F. de Paula Brito.
Somente após mais de 100 anos o romance foi re-
editado, graças ao trabalho de resgate de textos de
autoria feminina do século 19 desenvolvido pela
pesquisadora Zahidé Lupinacci Muzart. Com o selo
da Editora Semprelo, sai em 1990 uma tiragem de
200 exemplares de D. Narcisa do Villar (com venda
antecipada, a edição foi um sucesso). Em 1997 e em
2000, a Editora Mulheres, de Santa Catarina, impri-
me a 4ª e a 5ª edição da obra. Da produção de Ana
de Castro, ainda temos acesso ao poema O pranto
do poeta, de 1860, e um discurso realizado em 1866
na Sociedade Ensaios Literários.
Apesar da escassez e inexatidão de informações,
é possível pressupor que Ana de Castro teve uma
educação qualificada e foi uma leitora ativa – tanto
pelo fato de ter se tornado professora quanto pelas
20 • humanitas
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referências que podemos encontrar em seus tex- Porém, como parte do processo de construção da
tos, como Montesquieu, Madame Staël e Madame nova nação brasileira, em que a educação tornava-
Cottin. Em 16 de abril de 1866, a escritora foi eleita -se essencial para o desenvolvimento do Brasil, bus-
sócia honorária da Sociedade Ensaios Literários, cou-se contemplar a educação feminina instituindo
instituição da qual poucas mulheres faziam parte a obrigatoriedade do ensino primário gratuito tam-
– o que demonstra o prestígio da escritora, que, bém para elas – em classes separadas dos meninos
além de participar das reuniões, contribuía para a e com professores do mesmo sexo. Afinal, como
revista da Sociedade. escreveu um jurista da época, para que a pátria
Faltam registros sobre a recepção de D. Narcisa cumprisse seus altos destinos, “o desenvolvimento
de Villar, mas os diversos anúncios do romance nos das faculdades intelectuais não é menos necessário
jornais da época e o fato de Ana de Castro ser sido do que o das qualidades morais, para que a mulher
considerada uma escritora por seus contemporâne- possa preencher neste mundo a sua missão santa
os dizem muito do lugar da autora. Já sua atuação de esposa e mãe”11.
como preceptora era muito afamada e elogiada nos O projeto não teve muito êxito. O número de es-
periódicos da época. Seu colégio, conhecido como colas era pequeno e a procura era baixa, já que as
Colégio de D. Anna de Castro, foi dirigido por ela até famílias de classes menos abastadas não viam sen-
sua morte, em 1869. A instituição, que ensinava fran- tido em enviar suas filhas para a escola, enquanto
cês, italiano, cosmografia, geografia, aritmética, his- nas famílias de elite, o ensino ficava a cargo de pre-
tória natural, desenho, canto, piano, harpa e dança, ceptoras particulares. Faltavam também professoras
contava com 80 alunas matriculadas em 1865 – 60 qualificadas para ensinar as meninas – e foi então
na instrução primária e 20 na secundária9. que, em meados do século 19, foram criadas as
Escolas Normais, a fim de prepará-las para exercer
Educação feminina o magistério. De qualquer maneira, a educação es-
O Censo Geral do Império de 187210, o primei- colar para meninas não foi vista com bons olhos no
ro censo demográfico realizado no Brasil, revela período, e os ensinamentos dirigidos a elas foram
dados importantes sobre o grau de instrução da restritos às prendas domésticas e a questões muito
população nacional. Dos mais de 9 milhões de ha- básicas de leitura, escrita e matemática.
bitantes do País, 81,43% eram analfabetos. Dentre As instituições particulares de ensino secundá-
os 4.806.604 de mulheres que compunham a socie- rio para meninas começaram a surgir a partir de
dade brasileira, apenas 11,5% eram alfabetizadas. 1850. No entanto, como as mulheres não tinham
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CAPA
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mulheres nas faculdades de Medicina, a exemplo da A razão pode estar no receio dessas mulheres de
Europa e dos Estados Unidos. não serem respeitadas, no medo de serem repudia-
Ainda havia um longo caminho pela frente. Foram das ou até mesmo ignoradas. Por isso, elas antecipa-
poucas – e corajosas – as mulheres que enfrentaram damente já estariam, de certa forma, desculpando-se
preconceitos e hostilidades a fim de se aventurar por expressar suas ideias e seus pensamentos. Sobre
nos bancos das academias. Corajosas também fo- a questão das metáforas, a pesquisadora explica que
ram as vozes que se levantaram no esforço por uma “se os homens, na vida cotidiana, só as valorizariam
educação de qualidade para as mulheres; dentre pelos seus encantos físicos como beleza e juventude,
elas, Ana de Castro. Essa foi uma reinvindicação é igualmente nesses atributos que incide a ênfase
constante das escritoras oitocentistas – difícil en- valorativa dos prefácios”16.
contrar um nome que não tenha escrito ao menos No caso de Ana de Castro, o uso desses artifícios,
uma linha sobre o assunto. Em um discurso pro- além de outros elementos próprios que caracteriza-
ferido no dia 20 de janeiro de 1866, na sessão em vam a feminilidade, fez-se de forma premeditada. Ao
comemoração ao sexto aniversário da Sociedade utilizar palavras que remetiam à docilidade, à graça,
Ensaios Literários, que posteriormente foi publica- à amabilidade e à sensibilidade da mulher, a autora
do na oitava edição da Revista Mensal da Sociedade buscou “amansar” seu público, parecendo aceitar o
Ensaios Literários, Ana de Castro aproveita o espa- papel que lhe é atribuído pela sociedade para, em
ço para advogar a favor da instrução feminina. seguida, fazer críticas a ele. A exaltação e os elogios
Ao se dirigir aos senhores membros da institui- em profusão para a Sociedade Ensaios Literários e
ção, a escritora faz uso de uma linguagem formal, seus membros também pareceram servir para “pre-
requintada, com referências ao filósofo, escritor e parar” o público para melhor receber suas ideias.
intelectual francês Montesquieu e à mitologia gre- Interessante também como ela faz uso das ideias do
ga. Sabe-se que, por ter se tornado sócia honorá- discurso dominante para validar seus argumentos.
ria da Sociedade, a autora teria certo prestígio no Um exemplo é a própria citação de Montesquieu,
meio intelectual. Porém, essas escolhas em seu que funciona como uma “alfinetada” – se, afinal, os
discurso, vocabulário e citações apontam para o homens querem desenvolver e elevar a nação, eles
cuidado que teve a fim de ser levada a sério, para precisam proporcionar educação para as mulheres.
ter sua fala aceita e legitimada pelos demais in-
tegrantes do grupo, e até mesmo uma preocupa- Vidas limitadas
ção em se mostrar adequada, como mulher, aos O discurso também traz a consciência da escrito-
padrões patriarcais dominantes. ra em relação aos preconceitos e às opressões desti-
nadas às mulheres, como se a inteligência fosse um
Posição de humildade atributo apenas dos homens. Ana de Castro aponta
Além disso, a escritora coloca-se, a todo momen- que as mulheres também podem encontrar seu lu-
to, em um lugar de humildade, apresentando-se gar no “banquete das inteligências”17, mas já deixa
como uma modesta mãe de família e preceptora: claro que, para tal, elas precisam ter “forças para
“No banquete das inteligências não há sexo. […] penetrar os seus pórticos”18. Afinal, as dificuldades
protegida com esta verdade, afrontando a timidez e resistências seriam muitas.
do meu sexo, os usos da minha pátria, venho aqui Durante sua exposição, a escritora defende a
misturar convosco a minha débil voz no sublime educação feminina e ainda elabora uma crítica con-
festim de que sois convivas”14. Analisando os pre- tra o casamento, que seria um impeditivo para que
fácios e as dedicatórias de escritoras do século 19, a mulher desenvolvesse seu intelecto. Segundo a
Zahidé Lupinacci Muzart percebeu o uso constante autora, toda instrução recebida na escola, conquis-
dessa posição de humildade, juntamente com o que tada após muitos sacrifícios e privações, seria des-
ela chama de metáforas “florais”15 (também utiliza- cartada e inutilizada tão logo a moça se casasse
das por Ana de Castro em seu discurso). – e mais: o casamento, por fim, silenciaria sua voz
humanitas • 23
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CAPA
“A razão pode estar no como uma leitura menor, fútil e perigosa, mesmo
tendo sido ela autora de um texto do gênero. Para
receio dessas mulheres concluir seu discurso, volta a utilizar ideias legiti-
24 • humanitas
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FONTES ano XII, n. 132, p. 1, segunda coluna. Disponível Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
A Marmota. Rio de Janeiro, 13/04/1858, n. 942, em: http://memoria.bn.br/docreader/ 24/03/1865, ano XLIII, n. 83, p. 3,
p. 1, 1ª coluna. Disponível em: http://memoria. DocReader.aspx?bib=217280&pagfis=10382. quarta coluna. Disponível em: http://
bn.br/pdf/706914/per706914_1858_00942. Acesso em: 10 out. 2024. memoria.bn.br/docreader/DocReader.
pdf. Acesso em: 29 set. 2024. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, aspx?bib=364568_05&pagfis=8381. Acesso
24/12/1867, ano XXIV, n. 353, p. 3, em: 7 set. 2024.
Auroras – Estudos Críticos. Rio de Janeiro,
Tipografia e Litografia de F. A. de Souza, segunda coluna. Disponível em: http:// Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
1869, n. 03, p. 65. Disponível em: http:// memoria.bn.br/docreader/DocReader. 27/12/1863, ano XXXVIII, n. 357, p. 3,
memoria.bn.br/docreader/DocReader. aspx?bib=217280&pagfis=28534. Acesso em: quarta coluna. Disponível em: http://
aspx?bib=717460&pagfis=357. Acesso em: 13 10 set. 2024. memoria.bn.br/docreader/DocReader.
set. 2024. Diário do Rio de Janeiro, 14/05/1855, ano aspx?bib=364568_05&pagfis=6226. Acesso
XXXIV, n. 132, p.2, segunda coluna. Disponível em: 12 set. 2024.
CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. D. Narcisa de
Villar. 4. ed. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2000. em: http://memoria.bn.br/docreader/ Mapa das matrículas de instrução primária e
DocReader.aspx?bib=094170_01&pagf secundária nos estabelecimentos particulares
CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. Discurso. is=41313. Acesso em: 13 set. 2024. para o sexo feminino. 1865. Disponível em:
Revista Mensal da Sociedade Ensaios
IPIRANGA, A Indígena do. O pranto do poeta. http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.
Literários, Edição 8, 1866. Disponível em:
A Marmota. Rio de Janeiro, 07/09/1860, aspx?bib=720968&pagfis=6820. Acesso em:
http://memoria.bn.br/docreader/docreader.
n. 1193, p. 2-3. Disponível em: http:// 14 out. 2024.
aspx?bib=338966&pagfis=1283. Acesso em:
12 set. 2024. memoria.bn.br/docreader/DocReader. Revista Mensal da Sociedade Ensaios
aspx?bib=706922&pagfis=713. Acesso em: 8 Literários. Rio de Janeiro, 31/05/1873,
BARROSO, José Liberto. A instrucção set. 2024. n. 10, p. 790. Disponível em: http://
publica no Brazil. Rio de Janeiro: Tipografia
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, memoria.bn.br/docreader/DocReader.
Nacional, 1867. Disponível em: http://www2.
26/01/1869, ano XLVIII, n. 20, p. 1, sétima aspx?bib=338966&pagfis=1782. Acesso em: 10
senado.leg.br/bdsf/handle/id/227376.
coluna. Disponível em: http://memoria.bn.br/ set. 2024.
Acesso em: 2 out. 2024.
docreader/DocReader.aspx?bib=364568_05& Recenseamento do Brazil em 1872. Instituto
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. pagfis=14977. Acesso em: 6 set. 2024. Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1847. Disponível em: https://biblioteca.ibge.
Janeiro, Imprensa Nacional, 1900. Disponível
11/01/1854, ano XXIX, n. 11, p. 1, gov.br/biblioteca-catalogo?id=225477&view=
em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/
quarta coluna. Disponível em: http:// detalhes#:~:text=Resumo%3A%20O%20
id/221681. Acesso em: 10 out. 2024.
memoria.bn.br/docreader/DocReader. Censo%20Geral%20do, Reinado. Acesso em:
CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. D. Narcisa de aspx?bib=364568_04&pagfis=6400. Acesso 28 set. 2024.
Villar. 4. ed. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2000. em: 6 set. 2024. SIMÕES, Jerônimo. Necrologia.
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 14/12/1860, Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, Revista Mensal da Sociedade Ensaios
ano XVII, n. 345, p. 4, quarta coluna. Disponível 19/04/1860, ano XXXV, n. 108, p. 3, Literários. Rio de Janeiro, 31 de outubro
em: http://memoria.bn.br/docreader/ quarta coluna. Disponível em: http:// de 1872, n. 7. Disponível em: http://
DocReader.aspx?bib=217280&pagfis=18437. memoria.bn.br/docreader/DocReader. memoria.bn.br/docreader/DocReader.
Acesso em: 10 out. 2024. aspx?bib=364568_05&pagfis=436. Acesso em: aspx?bib=338966&pagfis=1667. Acesso em: 6
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 14/05/1855, 7 set. 2024. out. 2024.
humanitas • 25
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CAPA
26 • humanitas
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TECNAMENTE
PLANETA
INABITÁVEL
POR JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA
R
ecentemente estive num simpósio sobre eventos
climáticos extremos. Logo na abertura, veio uma
advertência: já estamos enfrentando uma emer-
gência climática. Independentemente da emissão de CO2, o
planeta lentamente se aquece em direção a uma nova era
geológica. Esse pequeno aquecimento tem um efeito im-
portante sobre o solo, que, mais quente, produz mais eva- Os oceanos estão inteiramente poluídos. Quando comemos
poração e chuvas torrenciais. Não sabemos precisamente peixe, engolimos micropartículas de plástico que afetam
onde e quando elas ocorrerão, pois a aleatoriedade faz par- nossa saúde. Na água dos grandes rios há resíduos de anti-
te do novo cenário climático que chegou. Por conta desse depressivos e antibióticos. Até resíduos de cocaína já foram
aquecimento, os oceanos sobem um milímetro por ano. Pa- encontrados. Recentemente, os habitantes que vivem pró-
rece pouco, mas, em dez anos, isso representa um metro. ximo ao Everest encontraram mais de 300 ossadas huma-
A inclinação da Terra está se modificando e, com isso, no- nas nas suas encostas. Encontraram, também, 5 toneladas
vas eras geológicas vão ocorrendo. Há 12 mil anos, por de fezes humanas. Quando chove, elas escorrem montanha
exemplo, vivíamos na Era do Gelo. Agora, possivelmente, abaixo, inundando aldeias.
estamos caminhando para uma era tórrida. Nada podemos Sabemos que não é mais possível prover água potável e
fazer em relação a esse fenômeno astronômico. alimentação sadia para 8 bilhões de pessoas. Nossa água
A contribuição humana para esse desastre é conhecida por e nossa comida estão perigosamente envenenadas. No en-
todos. O CO2 impede que os raios solares sejam refletidos, tanto, a população planetária continua a crescer, impulsio-
o que faz com que a atmosfera esquente ainda mais. É o nada, sobretudo, pelo dogmatismo estúpido das religiões.
famoso “efeito estufa”, produzido principalmente pelo uso Somos um planeta insustentável.
de combustíveis fósseis. Terminei de escrever esta matéria nas vésperas do início da
Os países do hemisfério norte são os maiores produtores COP29, que, este ano, foi em Baiku, no Azerbaijão. Mais uma
do efeito estufa. Ele não é apenas o resultado do uso de ve- conferência sobre o clima. Enquanto isso, os grandes polui-
ículos com motores a combustão. Isso representa apenas dores se refestelam. A China emite 30% do CO2; os Estados
1% das emissões. Os aviões emitem apenas 3%. A grande Unidos, 25%. Eles querem que o hemisfério sul se exploda.
emissão ocorre pelo aquecimento doméstico no inverno e Para isso usam a pior poluição do mundo: a burocracia.
pela indústria pesada, principalmente as usinas de cimen- Os brasileiros não precisam se preocupar: emitimos entre
to. Para os tolos de consciência pesada foram inventados 2,5% e 5% de CO2.
os carros elétricos.
E há outros problemas que estão tornando nosso planeta JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA estudou
© AI GENERATED / MIDJOURNEY
Enquanto nos esforçamos para economizar água, grandes na PUC-SP. Estuda filosofia da mente e da
tecnologia. ✉ jteixe@terra.com.br
corporações assinam contratos no valor de 500 bilhões de
dólares para explorar petróleo no Ártico.
humanitas • 27
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ECONOMIA
IMPERFEIÇÃO
COMO DESAFIO A ANÁLISE, SOB AS
LENTES DA ECONOMIA,
DA COMPLEXIDADE DE
QUESTÕES ENVOLVIDAS NO
MERCADO DA SAÚDE NO
BRASIL – QUE ABRANGEM
SEU CONCEITO E GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS, ALÉM
DA PERSPECTIVA DE
ENVELHECIMENTO RÁPIDO
DA POPULAÇÃO
28 • humanitas
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A
Organização Mundial de Saúde (OMS) consumo opcional, e essa característica torna
afirma que saúde é o estado de completo a formação dos preços complexa. Um exemplo
bem-estar físico, mental e social, e não são os planos de saúde, casos em que, além do
a simples ausência de doença ou enfermidade. prestador do serviço (médico ou outro profissio-
A Constituição Federal brasileira estabelece, em nal), do paciente, do tipo de serviço e do preço,
seu artigo 196, que a “saúde é direito de todos há um quinto ator: o pagador, que não é o clien-
e dever do Estado, garantido mediante políticas te (paciente), mas a operadora. Esse quinto ator
sociais e econômicas que visem à redução do no mercado (a operadora) dispensa a tratativa
risco de doença e de outros agravos e ao acesso financeira entre o cliente e o fornecedor, permite
universal e igualitário às ações e serviços para abusos e desperdícios, e obriga as operadoras a
sua promoção, proteção e recuperação”. terem equipes de auditoria e fiscalização.
Já os economistas afirmam que a economia Nos mercados de bens e serviços, há pelo
da saúde é constituída de um mercado com- menos quatro atores: o produtor, o consumidor,
posto dos bens materiais (hospitais, unidades o produto e o preço. No caso da assistência à
de saúde, máquinas, equipamentos, aparelhos, saúde, o mercado é organizado no mais das ve-
medicamentos etc.) e dos serviços prestados zes com a atuação do quinto ator: o pagador,
por médicos e demais profissionais da área da que pode ser o governo (como é o SUS) ou a
saúde. Os dois modelos de assistência à saúde operadora do seguro-saúde (como são as opera-
predominantes no Brasil são o previdencialis- doras de planos de saúde).
mo (esquema de seguro-saúde em que pessoas
participam de um grupo e fazem contribuição
rotineira previamente fixada, como é o caso dos
planos de saúde privados) e o universalismo,
nosso conhecido Sistema Único de Saúde (SUS).
O mercado da saúde é imperfeito por defini-
ção, sobretudo em razão das falhas estruturais “OS SERVIÇOS DE SAÚDE SÃO
de mercado, notadamente as seguintes: a ne-
cessidade é não mercantil, os produtos não são
COMPRADOS E VENDIDOS EM UM
comparáveis, há reduzida autonomia do con- MERCADO NÃO COMPETITIVO,
sumidor, o consumo do serviço é simultâneo à
produção, e a formação de preços é deficiente. DIFERENTE DOS MOLDES DOS BENS
E SERVIÇOS DE CONSUMO OPCIONAL,
© EONEREN / GETTY IMAGES
humanitas • 29
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ECONOMIA
“A NECESSIDADE OBRIGATÓRIA
DE TER O SERVIÇO E A
EXISTÊNCIA DE UM PAGADOR QUE A MÃO DE OBRA
NÃO É O USUÁRIO SÃO ASPECTOS DO CUIDADO
QUE LEVAM À APROVAÇÃO O IBGE revela outra informação importante: o
número de familiares trabalhando nos cuidados
DE LEIS E REGRAS DE a pessoas com mais de 60 anos era de 3,7 milhões
FUNCIONAMENTO DO MERCADO em 2016 e subiu para 5,1 milhões em 2019. Para
compreender o tamanho do mercado em potencial,
DE SAÚDE, PRINCIPALMENTE é importante olhar para o cuidado não remunerado
feito no País hoje. São pessoas – na maioria, mulhe-
NO CASO DOS PLANOS DE res – que trabalham muitas vezes na invisibilidade,
SAÚDE, INCLUINDO REGRAS sem remuneração, fazendo grandes sacrifícios
pessoais (por exemplo, abandonando suas
DE FORMAÇÃO DE PREÇOS E profissões, colocando em risco sua saúde e
sua própria sobrevivência financeira na
PROCEDIMENTOS DE CONTROLE” velhice), segundo especialistas.
30 • humanitas
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vembro de 2024, um projeto de lei que institui a des, unidades de pronto atendimento, hospitais pú-
Política Nacional de Cuidado. O projeto foi aprova- blicos), clínicas e hospitais privados que atendem
do em dezembro do mesmo ano também pelo Sena- pelo SUS, clínicas e hospitais privados que atendem
do e, após toda a tramitação, seguirá para sanção planos de saúde, e clínicas e hospitais privados que
da presidência da República. A ideia é que, sendo o atendem exclusivamente os particulares. É claro que
Brasil um país pobre, no futuro o SUS acabe entran- os serviços de assistência à saúde demandados e as
do na prestação dos serviços de cuidados ao ido- estruturas de oferta são mais complexos do que o
so. O IBGE informa que, entre 2019 e 2023, houve resumo citado, mas é essa estrutura que dá o tom
aumento no número de cuidadores remunerados e de como se formam os preços no mercado de saúde,
que eles já seriam 840 mil profissionais trabalhando em especial os preços fora do sistema SUS, como
nesses serviços. os vinculados aos planos de saúde. Trata-se de um
mercado complexo, com imperfeita formação de pre-
Visão econômica ços e sistemas rígidos de controle em razão de o usu-
Olhando o mercado de saúde sob a ótica do siste- ário não ser o pagador direto.
ma econômico, de um lado está a demanda feita por Vale destacar o caso das cooperativas médicas
toda a população com suas características etárias e outros serviços de saúde, a exemplo da Unimed,
(crianças, adultos, idosos) e suas características de que operam como intermediárias entre o usuário in-
renda (pobres dependentes exclusivamente do SUS, dividual e o prestador de serviços. Nesses casos,
classes de renda média que usam SUS mais planos o equilíbrio financeiro entre as receitas (recebidas
privados de saúde, e um grupo pequeno que usa a dos usuários) e as despesas (pagas aos prestadores
assistência particular custeada pelo usuário). de serviços) é um equilíbrio difícil, que tem no con-
De outro lado, estão os prestadores de serviços trole dos atendimentos demandados pelos usuários
compostos das estruturas estatais (postos de saú- e na prestação dos serviços pelos médicos, clínicas
e hospitais, uma relação eivada de conflitos.
Complexidade
Há quem estima que, nos próximos anos, deve
humanitas • 31
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SOCIOLOGIA
O FENÔMENO DA
FINANCEIRIZAÇÃO
E
ntre os diagnósticos que não escapam ao handbook em língua portuguesa a tratar de forma
tempo presente, um parece claro: hoje em dia, tão abrangente o fenômeno da financeirização.
não há como pensar a sociedade contempo- No livro, esse conceito é abordado sob múltiplas
rânea sem considerar o papel das finanças. Por isso, perspectivas, contemplando temas que vão da
nada mais bem-vindo do que uma obra abrangente macroeconomia aos direitos sociais, da saúde ao
sobre o tema como o livro Financeirização - Crise, urbanismo, e do meio ambiente à educação. Essa
Estagnação e Desigualdade, organizado por Lena pluralidade reflete a vasta extensão com que a fi-
Lavinas, Norberto Montani Martins, Guilherme nanceirização permeia a contemporaneidade, tor-
Leite Gonçalves e Elisa Van Waeyenberge. Lançado nando difícil identificar um campo da vida humana
em abril de 2024 pela editora Contracorrente, o livro que tenha permanecido imune à lógica das finan-
conta com o apoio de instituições renomadas, como ças. Sob esse regime de acumulação, são as finan-
o Instituto de Economia da Universidade Federal do ças que ditam a direção da economia, alterando as
Rio de Janeiro (UFRJ), o Centro Celso Furtado, a dinâmicas das diversas áreas da sociedade.
Faculdade de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) Embora os estudos sobre financeirização não se-
da Universidade de Londres, o Friedrich Ebert jam uma novidade – já no final do século 20, obras
Stiftung Brasil e a Fundação de Amparo à Pesquisa importantes começaram a tratar do tema –, o deba-
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). te ganhou relevância a partir da crise financeira de
Composto por 35 capítulos e um total de 66 2008, quando as consequências desse regime de
artigos, a obra pode ser considerada o primeiro acumulação tornaram-se mais evidentes. Após a
32 • humanitas
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crise do subprime, interpretar e entender o fenôme- da pela criação e pelo desenvolvimento do Sistema
no da financeirização entrou para a ordem do dia, Único de Saúde (SUS), cuja sustentabilidade finan-
com esse assunto ocupando lugar de destaque tan- ceira tem sido alvo constante de pressão.
to nos debates acadêmicos quanto nas discussões A obra destaca-se ainda pela diversidade de au-
políticas, dada a sua urgência e seu impacto global. tores que contribuíram para o volume. Entre os co-
O livro explora de maneira profunda e crítica essas laboradores estão nomes consagrados, como Leda
questões, propondo uma reflexão sobre os efeitos Paulani, Luiz Fernando de Paula, Raquel Rolnik e
da financeirização na dinâmica social e econômica, Ricardo Antunes, além de uma nova geração de
especialmente em momentos de crise. pesquisadores que trazem perspectivas inovadoras
Ao longo dos capítulos, uma ideia central é de- sobre o tema. Essa pluralidade de vozes enriquece
senvolvida: a financeirização não deve ser enca- o debate e confere à obra um caráter interdisciplinar
rada como uma mera expansão quantitativa das e abrangente, tornando-a um ponto de referência
finanças, mas também como uma transformação obrigatório para quem busca entender as comple-
qualitativa da economia e da sociedade. Os autores xidades da financeirização no Brasil e no mundo.
demonstram que esse regime de acumulação guia- Em síntese, Financeirização - Crise, Estagnação
do pelas finanças tem gerado impactos profundos e Desigualdade é uma obra fundamental para quem
na divisão social do trabalho, nas políticas públicas deseja compreender o impacto do domínio finan-
e na forma como os direitos sociais são implemen- ceiro na sociedade. Ao reunir análises de diferen-
tados (ou negligenciados). A lógica financeira, que tes campos do conhecimento e ao tratar tanto das
outrora ocupava um espaço restrito, hoje redefine particularidades brasileiras quanto das tendências
as prioridades de governos, empresas e indivíduos, globais, o livro oferece uma visão crítica e abran-
frequentemente em detrimento do bem-estar social. gente sobre um dos fenômenos mais relevantes
Outro grande mérito da obra é o fato de que ela da atualidade: a financeirização. A leitura, densa e
não se restringe a analisar o fenômeno da finan- multifacetada, é recompensadora pela riqueza de
ceirização nos países centrais do capitalismo, mas informações e pela qualidade das reflexões apre-
também traz à tona as particularidades dos países sentadas.
periféricos, com destaque para o Brasil. Em muitos
dos artigos, os autores abordam como as caracte-
rísticas locais, por exemplo, as assimetrias históri- HENRIQUE OLIVO F. GALDINO
LUCAS é advogado e mestrando
cas e as taxas de juros exorbitantes, influenciam a em Teoria e Filosofia do Direito
financeirização no contexto brasileiro. O livro tam- no PPGD-UERJ (Programa de
Pós-graduação da Universidade
bém explora o impacto desse processo em áreas do Estado do Rio de Janeiro).
fundamentais como a saúde pública, exemplifica- ✉ henrique.ofgl@gmail.com
humanitas • 33
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MEMÓRIA
O SILÊNCIO SEM
PEDRO NAVA
O ano de 2024 marca quatro décadas da morte
deste que foi prodígio, do início ao fim da vida.
Nascido em Juiz de Fora, migrou para Belo
Horizonte com o objetivo de cursar medicina e
passou a integrar, positiva e intensamente, a
avant-garde mineira dos anos de 1920
POR DANIEL AFONSO DA SILVA
E
strondo: barulho, barulho alto, ruído for-
te, rumor prolongado. Furacão, ventania,
tempestade. Estampido. Rompendo har-
monias. Estocando convenções. Sacudindo
estruturas. Secas e molhadas. Tragédia e
novação. Transtorno e convulsão. Quase
nunca em salvação. Quase sempre em mu-
tação. Anunciando tempo feio. Sem alvora-
da nem dias bons.
Foi isso que se viu, sentiu, agiu no Brasil
naquele distante 1972. Ano triste. Que, em
definitivo, não foi bom. Ano-símbolo do mila-
gre econômico. Quando o País cresceu muito
e cresceu bem. Porém – em adendo –, matou
muita gente também. Era o momento mais
cruento do regime. Linha dura e braço forte. Era
o apogeu da presidência do general Médici. Muito
aquém do Brasil Potência e muito além do Pra frente
Brasil. A referência era o pau de arara. Sentando a
pua. Sem moderação nem escrúpulos. Aliás, dizia-
-se “às favas os escrúpulos de consciência”.
34 • humanitas
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mundo viu: foi tempestade. bém. Assim como o melhor de todas as Artes. Das
QUIVO
Otto Lara Resende acentuou tratar-se de “livro artes plásticas ao urbanismo, à música. Achegando-
NACION AL
fundador, no sentido de que é um livro que sozinho -se, com firmeza, à poesia e à prosa.
dá notícia da cultura. Mais importante para a litera- Quem, assim, fechava os olhos lendo Baú de
tura brasileira que Marcel Proust para a cultura fran- Ossos poderia, em algum momento, abri-los lendo
cesa. Simplesmente genial”. O poeta maior, cidadão Alguma Poesia. Quem adentrava a trote largo a obra,
de Itabira, restringiu-se a dizer tudo dizendo apenas em alguma curva, perceber-se-ia em Sagarana ou
“baú de surpresas”. O historiador Francisco Iglésias, Corpo de Baile. E, não dificilmente, atolado perdido
também em síntese, tudo diria com “acontecimento”. em esquinas de Grande Sertão: Veredas.
Baú de Ossos foi isto: algo espetacular, pertur-
Início de memórias bador, desconcertante. E era apenas o início das
Era isso e era assim. Efeméride. Surpresas li- Memórias de Pedro Nava que foram concluídas em
nha a linha, página a página. Soco no estômago. seis volumes: Baú de Ossos (1972), Balão Cativo
Aturdimento integral. Quem com algum cultivo do (1973), Chão de Ferro (1976), Beira-Mar (1978), Galo-
espírito entendeu logo do que se tratava. Baú de das-trevas (1981) e O Circo Perfeito (1983).
humanitas • 35
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MEMÓRIA
E, mais, Baú de Ossos inaugurou o transe que “PERTO DOS 70 ANOS ELE
conduziu a sociedade brasileira letrada a profundas
meditações. Que, em sério, até hoje permanecem
COMEÇOU A TORNAR PÚBLICA A
relevantes e aduzem dilemas essenciais contidos SUA OBRA MAIOR. OBRA DE VIDA,
em questões como: o momentum 1972 teria alguma
INICIADA COM BAÚ DE OSSOS. UM
equivalência com o momentum 1956 ou com o mo-
mentum 1930 – 1930: momentum Drummond; 1956: RETRATO DE ‘MINHA GENTE’ (…)
momentum João Guimarães Rosa? ‘ASSIM COMO É, RACIALMENTE,
Prodígio do início ao fim O RETRATO DA FORMAÇÃO DE
Com a aceleração da redemocratização, mediante OUTROS GRUPOS FAMILIARES DO
uma abertura “lenta, gradual e segura”, essa reflexão
esmaeceu. No entanto, para quem escolheu ser gau-
PAÍS. COM TODOS OS DEFEITOS.
che na vida, a questão permanece. E, sendo assim, COM TODAS AS QUALIDADES’”
imortaliza Pedro Nava, que foi prodígio, do início ao
fim da vida. Nascido em Juiz de Fora em 1903, migrou
para Belo Horizonte para cursar medicina e passou a Contemporâneos de Manuel Bandeira, em 1946. Mas
integrar, positiva e intensamente, a avant-garde minei- só. Depois disso, apagão. Todos imaginavam que o
ra dos anos de 1920. Seus amigos e cúmplices, com- médico havia canibalizado o artista. Mas não.
pagnon de route, eram Emílio Moura, João Alphonsus,
Abgar Renault, Afonso Arinos de Melo Franco, Ciro O silêncio
dos Anjos, que criaram A revista, em 1925, que seria Perto dos 70 anos ele começou a tornar pública
um dos mais importantes vetores do modernismo mi- a sua obra maior. Obra de vida, iniciada com Baú
neiro de braço com o modernismo paulista de 1922. de Ossos. Um retrato de “minha gente” (…) “assim
Pedro Nava foi central nessa publicação. Confec- como é, racialmente, o retrato da formação de outros
cionando impressões, artigos, críticas e poemas, grupos familiares do país. Com todos os defeitos.
sendo O defunto, de 1928, a sua peça poética mais Com todas as qualidades”. Zero clichê e zero este-
destacada. Que deixou Mário de Andrade descon- reótipo. E, assim, quase história, quase memória,
certado. E Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e quase poesia, quase literatura, quase genealogia,
Murilo Mendes também. Foi onde ele, Pedro Nava, quase testemunho, quase documento e quase tudo
explicitou a sensibilidade de seu primor. A ponto de, num só momento. Com forte sátira e formoso en-
na época, Mário de Andrade confidenciar a Carlos genho. Fazendo seu leitor reviver, aqui e ali, o me-
Drummond de Andrade que “a critiquinha que ele lhor de Camões, Vieira e Machado. E, ali e acolá, o
[Pedro Nava] publicou na Revista sobre pintura me melhor de Drummond, Rosa, Nabuco.
deixou impressão forte de espírito bem organizado Aos 40 anos da morte de Pedro Nava – que mor-
para crítica”. “Quanto à poesia dele não sei não ain- reu dramaticamente na Glória, na cidade do Rio de
da porém me parece que será o mais batuta de vo- Janeiro, em maio de 1984, após complicações pes-
cês todos. Com a sua poesia” (vide A lição do Amigo, soais moralmente complexas –, espanta o silêncio.
cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de O ano de 2024 inteiro passou sem uma palavra ao
Andrade, editado por Drummond em 1982). encontro de nosso memorialista maior. Abandono.
“O mais batuta de vocês todos. Com a sua poesia.” Indiferença. Silêncio. Exato contrário diante do es-
Poderia ser. Mas não foi. Pedro Nava se dedicaria às trondo de 1972.
ciências médicas, publicando, doravante, majoritaria-
mente, nessas áreas. Deixando absorto o circuito efeti- DANIEL AFONSO DA SILVA é
vo das altas e belas letras. O seu poema O defunto seria pesquisador do Núcleo de Pesquisa em
Relações Internacionais (Nupri) da USP.
inserido na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos ✉ daniel.afonso66@hotmail.com
36 • humanitas
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CINEMA
Por Érico Andrade
QUANDO
© REPRODUÇÃO
MORRER É
UMA ESCOLHA
O
tema da morte é recorrente no cinema. A escolha de
discutir o desejo de decidir pelo fim da própria vida
VEJA O
remete o filme O quarto ao lado a uma temática exis- TRAILER AQUI:
tencial importante, sem dúvida. Para tanto, as famosas “co- Título: O quarto ao lado
Direção: Pedro Almodóvar
res de Almodóvar” perdem a sua intensidade para dar lugar Gênero: Drama
a um tom cinza e com planos fechados, sem que o colorido Duração: 107 min
Ano: 2024
habite a película, a não ser nas cenas iniciais da livraria.
Novamente, duas protagonistas mulheres são colocadas
no centro do filme com atuações boas para uma trama
sobre a memória, uma espécie de acerto de contas com bientais (do colega e ex-amante das duas personagens), fa-
a vida ou, na expressão da filósofa Butler, given a count. natismo religioso (do policial) e questões relativas à guerra
Mais do que a morte, o filme é uma decisão de falar sobre perdem-se completamente num filme que parece seguir
as vidas, uma vez que a decisão pela morte, é importante muito bem a cultura americana cujo centro está no indiví-
frisar, é decorrente de uma impossibilidade de uma vida duo e nas suas decisões individuais.
que possa efetivamente produzir memórias, e não apenas A crítica ao neoliberalismo, que o filme parece ensejar em
definhar rumo à morte. alguns momentos, não apenas perde o sentido como pode-
Com efeito, para pôr em prática esse enredo, Almodóvar ria se aplicar ao próprio filme. A forma de explicar que as
não apenas enfoca cores mais sóbrias, mas também opta pessoas lidam com a guerra (como o casal de frades que
pelo caminho de uma imagem da morte muito calcada numa estão no centro de uma guerra), graças ao sexo ou o desejo,
cultura europeia cuja articulação com a cultura americana faz um recorte extremamente individualista de uma temáti-
permite ao diretor recorrer à cena clássica de pessoas di- ca social como a guerra.
vagando sobre a vida e a morte enquanto a neve cai. Isso Parece que todo engajamento com os aspectos desse emba-
fica mais acentuado com a recorrência, em diálogos cultos, te só é suportável porque as pessoas estabelecem relações
entre as jornalistas e os personagens principais, escritores amorosas. Isso, contudo, só não é menos grave do que as-
e escritoras europeias. Os quadros de Hopper, explicados sistirmos a duas mulheres brancas, de classe média e num
didaticamente num dos diálogos do filme, são mimetizados lugar extremamente luxuoso, decidirem realizar uma espécie
nas cenas que prenunciam a morte e com a qual se encerra de eutanásia assistida sem qualquer discussão, entre elas,
a vida de Martha. A escolha pela pintura de Hopper dá o tom sobre o privilégio que lhes faz poder arriscar transgredir.
metafísico da questão da solidão e da morte.
As questões metafísicas, centradas numa ótica ocidental,
são conhecidas e o filme não porta nenhuma novidade para
ÉRICO ANDRADE é flósofo, psicanalista, pesquisador
© ARQUIVO PESSOAL
além daquilo que tanto esteticamente quanto discursiva- do CNPq e professor da Universidade Federal de
mente se apresenta como forma de lidar com o Ocidente. Pernambuco. É presidente da ANPOF (Associação Nacional
de Pós-graduação em Filosofia) – biênio 2023-2024.
Assim, temas que parecem colateralmente, problemas am- ✉ ericoandrade@gmail.com | @ericoandrade27
humanitas • 37
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RESENHA
MAIS APREÇO
À LEITURA
38 • humanitas
Telegram @clubederevistas
D
o período
pré-colonial
até a
década de 1970 no
Brasil, a produção
de literatura infantil
e juvenil ganhou
visibilidade a partir
de estudos que hoje
são considerados
referência na área,
tanto da perspectiva
da historiografia
quanto do diálogo
com outros campos
S
/ GE
TTY
IMA
GE
de conhecimento,
DO
IMO
VAS
©Q
especialmente o
pedagógico.
humanitas • 39
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RESENHA
40 • humanitas
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Mudança de paradigma
As primeiras décadas do século 21 já apre-
sentam uma nova temática em sua produção
literária: as obras de cunho multimodais e a pre-
dominância do livro ilustrado como linguagem
mudam o curso da pesquisa em literatura infan-
til e juvenil no Brasil. Isso não necessariamente
mudou as práticas de ensino de literatura ou a
produção da literatura escolar, mas criou uma
ruptura no modelo utilitário de se ler a literatura
infantil e abriu portas para uma compreensão
mais próxima de seu valor estético. “AO FINAL DO SÉCULO
Essa mudança paradigmática na compreen- 20 E COMEÇO DO
são sobre a literatura infantil e juvenil brasileira
abriu caminhos para uma atualização da lite- 21, A LITERATURA
ratura crítica com um viés que permitisse um INFANTIL E JUVENIL
olhar mais profundo para os textos, especial-
mente visando à formação dos mediadores de
BRASILEIRA JÁ ESTAVA
leitura. Nesse sentido, a obra de Ana Maria Ma- CONSOLIDADA COMO
chado – Silenciosa Algazarra – cumpre uma fun-
UM NICHO EDITORIAL
ção estética importante ao propor, nos ensaios
reunidos na obra, uma aproximação da literatu- PROMISSOR E
ra àquilo que é sua própria matéria: as emoções RENTÁVEL GRAÇAS
dos indivíduos que denominamos de leitor. Os
textos que compõem o livro permitem ao leitor, AO ADVENTO DA
possivelmente um mediador de leitura, o resgate ESCOLARIZAÇÃO,
da delicadeza e da sensibilidade da potência li-
terária que constitui as obras de literatura infan-
QUE TORNA A
til e juvenil (em especial), que, se para o olhar de LEITURA LITERÁRIA
uma criança são únicos e primordiais, podem COMPULSÓRIA E PASSA
ser transformadoras para o leitor adulto.
Distribuídos em cinco partes, os textos pu- A SER O PRINCIPAL
blicados originaram-se de colóquios, congres- CANAL DE LEITURA
sos, artigos e outras manifestações de Machado
acerca do pensar sobre a literatura nos nossos
PARA ESSE GÊNERO
tempos contemporâneos, em que o próprio ato TÃO JOVEM E FÉRTIL”
humanitas • 41
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RESENHA
42 • humanitas
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humanitas • 43
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INTERSECÇÕES
POR ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
O QUE DEVERIA
SER UM PROFESSOR?
COMO TODOS OS PROFISSIONAIS, ELES SÓ PODERÃO EXERCER
© AI GENERATED / MIDJOURNEY
44 • humanitas
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O
famoso escritor argentino Ernesto Sabato engenheiro que pode calcular uma ponte, um astrô-
(diga-se de passagem, bastante esquecido nomo que poderia prever um eclipse com precisão.
nos últimos anos), doutor em física, quando A erudição em um determinado campo nada tem a
a abandonou para se dedicar somente à literatura, re- ver com uma pessoa culta. Jamais será por tais parâ-
lata que o professor Guido Beck escreveu: “Discípulo metros especializados que se distingue uma pessoa
de Einstein emigrado em Buenos Aires, gran físico e realmente de cultura. “¿A quién verdaderamente se
buen amigo pero encarnizado creyente, me acusó de llama así? A quien está en posesión de um conjunto
entregarme al charlatanismo. Toda esa gente olvida de elásticos sistemas que confieren la intuición, el
que el hombre no es uma sinusoide, ni um poliedro, dominio y la valoración de la realidade”2.
ni una máquina, sino un ser vivo, dotado de alma y Sabe-se, existem muitos e muitos exemplos pes-
espíritu, propenso a las mitologías y tan contradic- quisados (não somente) em que, muitas vezes, os
torio, tan ajeno al principio aristotélico de identidad saberes altamente particularizados isolam o espe-
que hasta es capaz de inventar una doctrina que le cialista de outras áreas, não permitindo o diálogo
niega ese carácter contradictorio”1. essencial entre as diversas áreas do conhecimento.
Nesse caso, temos um professor, embora amigo Tal fato não é novidade. No entanto, a nosso ver, o
do escritor, que acha uma verdadeira loucura um pior é a cegueira para outras dimensões de nossa
doutor em física abandoná-la em prol da literatura. realidade, importantes para que o homem seja um
Entretanto, ele acreditou em si mesmo. E, sobretudo, grande leitor do que se passa ao seu redor. A ceguei-
foi atrás daquilo que realmente poderia satisfazê-lo. ra traz consequências fatais. Um economista que em
Uma prova real, diga-se de passagem, do quanto o sua própria casa mal sabe gerir suas finanças. Um
escritor sempre foi consciente de sua liberdade. veterinário que tem medo de ser mordido até por um
Sabato declara que desde que largou a ciência, simples cão. Um médico que não distingue uma dor
em 1945, ficou simplesmente obcecado em des- de garganta de uma caxumba.
vendar o homem concreto. Nascido em Buenos
Aires, em 1938 obteve um doutorado em física na Árvores&História
Universidade Nacional de La Plata. Trabalhou, com Sabato declara que, em especial, a geografia, a
bolsa de pesquisa, a respeito de questões sobre matemática deveriam ser ensinadas de outra manei-
radiação atômica no Laboratório Curie de Paris. ra. Dá-nos um grande exemplo. Relata que quando
Voltou à Argentina em 1940 para ser professor da estava escrevendo um de seus romances sentiu ne-
Universidade de Buenos Aires. Em 1943 afasta-se cessidade de ir para algum lugar em que se sentisse
de forma definitiva da área da ciência para se de- isolado do mundo, mas em uma cidade. Ele e sua
dicar à literatura e à pintura. Publicou dezenas de mulher, Matilde, foram para a Patagônia. Eram ami-
livros na Argentina e em outros países. Morreu em gos de um engenheiro chamado Tortorelli, que diri-
2011 com 99 anos de idade. gia os Parques Nacionais; ele conseguiu uma casa
para ele e Matilde por lá. Nessa ocasião, Tortorelli,
Formação multidisciplinar que era um engenheiro florestal, levou-os para co-
De acordo com Sabato, um professor deveria, nhecer uma parte da Patagônia.
acima de qualquer coisa, ter uma formação comple- Sabato ficou impressionado com a grande paixão
tamente diferente do que habitualmente ele vê, não que o engenheiro demonstrava pelas árvores e a for-
somente na Argentina, como em todos os países do ma pela qual ele as apresentava. O engenheiro apre-
mundo. E o que seria tal formação? Uma formação sentava as árvores abraçando-as! Acariciando-as! E
multidisciplinar. Ele nos dá dezenas de exemplos. ao mesmo tempo, de acordo com Sabato, dava uma
Ressalta que jamais a escola, via professores, deveria verdadeira aula de história! Dizia, entre tantas ou-
ensinar conteúdos que tivessem relação direta com a tras coisas, que muitas árvores já existiam durante o
memória, ou seja, o famoso decoreba. Datas. Cifras. Império Romano e também quando o mesmo Império
Para ele de nada adianta um saber polimático, um se desmoronou! E, depois, Tortorelli foi enumerando
humanitas • 45
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INTERSECÇÕES
46 • humanitas
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O B SE R VAT Ó R IOS O CI A L
O CASTELO
distanciamento entre o cidadão e o Estado. É o que vemos
na prometida “panaceia” da inteligência artificial (IA) e da
digitalização do setor público, que podem se tornar um novo
tipo de “castelo” – digital, mas igualmente impessoal.
Se, por um lado, sistemas on-line prometem facilitar o aces-
POR FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI so a serviços, por outro, surgem algoritmos e interfaces
que, em vez de promoverem clareza, tornam as decisões
M
uitos – infelizmente não todos – conhecem a obra mais obscuras e limitam o acesso a informações essenciais.
O Processo, de Franz Kafka, em que o protagonis- Até que ponto essa “transparência digital” atende ao que
ta Josef K. é preso e julgado sem nunca enten- realmente precisamos?
der as razões de sua culpa. Mas Assim como K., enfrentamos
há outra obra de Kafka que, para “protocolos automáticos” e “aten-
mim, teve ainda maior impacto: O dimentos robotizados” que se-
Castelo. Publicada postumamen- “A OBRA ALERTA SOBRE guem regras sem justificativas
te e inacabada, a obra explora te- O RISCO DE UMA claras, criando uma nova forma
mas de alienação e o absurdo de BUROCRACIA QUE SE de autoridade sem contato hu-
enfrentar uma autoridade impes- TORNA UM FIM EM SI mano. Na educação, algoritmos
soal e opaca, representada pela avaliam desempenho, definem
MESMA, AFASTANDO-SE
burocracia. Kafka nos apresenta acesso a cursos e perfis de can-
K., um agrimensor sem identi-
DA FUNÇÃO DE SERVIR AO didatos, prometendo identificar
dade definida que chega a uma PÚBLICO. HOJE, APESAR alunos “em risco” ou caminhos
aldeia dominada por um misterio- DAS TENTATIVAS DE “ideais” de aprendizado. Já no
so castelo. Sempre que tenta se MODERNIZAÇÃO, MUITOS Judiciário, a IA processa grandes
aproximar da autoridade do cas- volumes de ações, como o TCU
SERVIÇOS PÚBLICOS
telo – uma alegoria de um ente faz com startups. E como o cida-
elevado, distante, impenetrável,
MANTÊM ESSA TENDÊNCIA dão comum questiona essas deci-
mas poderoso –, ele se depara DE OPACIDADE E sões? A resposta talvez seja que
com barreiras e formalidades que DISTANCIAMENTO ENTRE “o algoritmo é o mesmo para to-
existem apenas para manter a O CIDADÃO E O ESTADO” dos” – uma justificativa ecoada na
distância entre ele e seu objetivo. Operação Lava Jato e que, como
No decorrer da narrativa, K. é vimos, nada tinha de imparcial.
conduzido por um labirinto de A suposta universalidade e “im-
protocolos e figuras de autoridade evasivas, que seguem parcialidade” dos algoritmos é frequentemente invocada
regras sem jamais explicar ou questionar seus motivos. para legitimar uma “justiça” que pode não ser tão acessível
Tudo o que ele deseja é uma simples permissão para entrar quanto parece, eivada de bias, apoiada em um fetichismo
no castelo, mas essa meta se transforma em um ideal inal- tecnológico que raramente questiona suas bases éticas, fre-
cançável. A burocracia age como uma entidade distante e quentemente enraizadas em perspectivas e interesses de
indiferente, que decide sem justificativas e sem jamais con- alguns, em vez de uma ideia mais pluralística do que seria
ceder qualquer controle ou compreensão. um bem social mais amplo.
Essa estrutura kafkiana, em que o indivíduo está preso em
FERNANDO MIRAMONTES FORATTINI é doutor em
um labirinto burocrático, ainda reflete a realidade. O Castelo História Cultural pela PUC-SP. Pós-doutoramento
alerta sobre o risco de uma burocracia que se torna um pelo programa Marie Curie em Corrupção,
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humanitas • 47
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PSICANÁLISE
NÃO EXISTE A
INAUGURAÇÃO
DE UM SUJEITO
ANALISTA, UMA VEZ
QUE UMA DADA
INQUIETUDE, UM
DESASSOSSEGO, ©
EN
VA
TO
UMA EMPATIA
DIANTE DO
SOFRIMENTO DO
OUTRO SEMPRE
ESTEVE LÁ. DO
CONTRÁRIO
NÃO TERIA SIDO
ESSE O CAMINHO
ESCOLHIDO
OFÍCIO DO
ANALIS
48 • humanitas
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PAULO LEMINSKI
P
sicanálise é experiência emocional vivi-
da. E como tal não pode ser transcrita,
gravada, explicada, compreendida ou
contada em palavras. É o que é. Assim define
T. Ogden (2006) em Esta arte de Psicanálise.
Também podemos considerar uma experiência
bastante singular e pessoal, que se inaugura
no ofício e no tempo de cada um de nós. Existe
uma palavra que abarque suficientemente o fa-
zer do analista? Isto é, seria possível pensar no
Versão digital publicada em www.sbpsp.org.br/blog/o-oficio-do-analista
STA
um nome simplesmente?
Descrever uma experiência psicanalítica é di-
fícil, pois dispomos de ferramentas que não são
facilmente nomeáveis, custam a tomar forma,
demoram a caber em palavras. Nossos grandes
sinalizadores são muitas vezes iniciados num
campo de sensações – intuição, silêncio, clima
emocional, percepções – fenômenos que são
do campo do não dito. São esses nossos fiéis
escudeiros que se apoiam em nossos espaços
inconscientes, até ganharem o corpo da palavra.
São como guias que nos ajudam a formular uma
interpretação que genuinamente acesse o outro.
humanitas • 49
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PSICANÁLISE
50 • humanitas
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humanitas • 51
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PSICANÁLISE
trabalho. Nessa linha de pensamento, Ogden tudo, o reconhecimento por parte do analista da
adverte que o paciente precisa de alguém fami- transformação daquele encontro é o que com-
liarizado com a noite, com a dor, alguém que pleta o trabalho, possibilitando uma troca e um
se comova com a escuridão sem temê-la ou verdadeiro aprendizado.
paralisar-se diante dela. Talvez antes de nos
perguntarmos se somos ou não analistas, seja Processo dinâmico
mais importante observar se estamos ou não O texto “A situação analítica como campo
familiarizados com a noite. dinâmico” (Baranger; Baranger, 2010) descre-
No texto “Pôr-da-lua”, a psicanálise é des- ve a análise como uma situação na qual duas
crita por Rubem Alves (2013, p. 206) como um pessoas estão indefectivelmente ligadas e com-
exercício de poesia, e que cada pessoa é como plementares, num mesmo processo dinâmico e
um poema encarnado. Ele alerta que nossa que nenhum membro desse par pode ser enten-
infelicidade/neurose deve-se ao fato de esque- dido sem o outro. Esse lugar onde o paciente
cermos o poema que está em nós transcrito. O nos habita também não tem um nome definido.
psicanalista, segundo o autor, é o intérprete do É que um nome não contém todas as emoções
poema estrangulado. que envolvem todo esse percurso. Talvez um so-
O paciente que nos procura busca alguém nho as contenha, ou uma poesia. Também não
para abrigá-lo internamente, a fim de compre- sabemos nomear com clareza o espaço de um
endê-lo. Devemos ser capazes de nos reinventar analista na vida de alguém. Talvez esse lugar
para cada paciente, para nos tornamos o ana- esteja numa terceira margem do rio. Onde vaga-
lista do qual o paciente necessita: “O analista lumes se acendem na escuridão.
precisa aprender sob nova ótica, como ser o
analista de cada paciente em cada sessão”
(Ogden, 2006, p. 177).
52 • humanitas
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PSICOLAB
FLEXIBILIDADE
PARA SER FELIZ
POR TATIANY HONÓRIO PORTO AOKI
©1
V
ivemos uma cultura na qual a busca pela felicidade vem como a proposta de trabalhar a aceitação dos senti-
parece ser um processo constante e desejado pelas mentos e promover flexibilidade psicológica aos indivíduos.
pessoas. Como se nos sentirmos tristes, frustrados, Aceitar os sentimentos como eles se apresentam, mesmo
com raiva ou qualquer outro sentimento difícil devesse ser os mais difíceis, senti-los, compreender a relação deles
evitado a qualquer custo. É comum caminharmos e obser- com a nossa história e com o contexto atual, tem um efei-
varmos pessoas, seja pessoalmente, to muito maior na diminuição da sua
seja pelas redes sociais, e nos ques- intensidade e frequência do que ten-
tionarmos: por que minha vida não é tar fingir que esses sentimentos não
como a delas? E por que não consigo
“SE É RUIM OU estão ali. Aceitá-los significa abraçar
ser feliz como elas? DOLORIDO, EU NÃO com compaixão as nossas experiên-
A verdade é que todos, sem exceção, QUERO MAIS ISSO E cias internas, enquanto trabalhamos
sofrem, mesmo as pessoas que estão PRECISO DESCOBRIR na construção de novas formas de se
o tempo todo sorrindo nas fotos que COMO EVITAR ESSES comportar baseadas nos nossos valo-
compartilham. A pessoa pode ser ou res pessoais.
SENTIMENTOS OU
ter tudo que é admirado e/ou deseja- Momentos de dor psicológica são
do pelos outros e, mesmo assim, ex- CONTROLÁ-LOS. algo que todos nós enfrentamos e en-
perienciar sentimentos difíceis. PARECE QUE A VIDA frentaremos em diversos momentos
Se é ruim ou dolorido, eu não quero SÓ COMEÇA QUANDO de toda a nossa vida. O objetivo de
mais isso e preciso descobrir como O CONTROLE DESSES uma vida bem vivida é SENTIR BEM,
evitar esses sentimentos ou controlá- e não SENTIR-SE BEM. Em resumo,
SENTIMENTOS FOR
-los. Parece que a vida só começa vou citar a frase de [L.R.] Knost: “A
quando o controle desses sentimen-
POSSÍVEL” vida é incrível, mas também é horrí-
tos for possível. E como nós entramos vel, e entre o incrível e horrível ela é
em batalhas para evitar ou controlar só normal e rotineira”.
essas experiências! No entanto, a verdade é que quanto Que nós possamos encontrar momentos de felicidade, cone-
mais tentamos evitar esses sentimentos, mais fortes eles xão com o momento presente e sentido não só quando ela é
ficam. É como se eu ficasse repetindo para mim mesma que incrível, mas também na nossa rotina diária – e que seja pos-
não posso sentir isso, não posso sentir isso e, quanto mais sível sentir, entender e suportar os momentos horríveis.
eu repito, mais isso vem à minha cabeça. E tudo isso nos
paralisa, nos desconecta de nós mesmos, do momento pre-
sente e dos outros, ou seja, evita o contato com uma vida TATIANY HONÓRIO PORTO AOKI é
coordenadora da pós-graduação em
© GRIVINA / ADOBE STOCK
valorosa, uma vida que valha a pena ser vivida. Clínica em Análise do Comportamento
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humanitas • 53
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DIREITO
© PE
RM TA
O ŠEIL
VIĆ
LEGADO
ROMA NO
POR LUIZ CARLOS DE AZEVEDO (IN MEMORIAN)
54 • humanitas
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N
o prólogo de sua obra Europa e o Direito Tradição romano-canônica
Romano, o renomado jurista e historia- Outro professor, de igual estatura e porte,
dor Paul Koschaker manifestava sua Michel Villey, assim perguntava, para logo
preocupação quanto à crise que abala- responder de modo afirmativo: “Por que es-
ra e ainda atingia o estudo do Direito Romano. tudar Direito Romano?”. Primeiro, porque a
Relembrando trabalho assim intitulado, que arte e o saber dos jurisprudentes romanos
escrevera no auge do nacional-socialismo, vi- mantêm-se perenes em seu inestimável va-
nha trazer, então, à consciência da humanida- lor, tanto que nunca deixamos de nela colher
de, entre os escombros deixados pela Segunda suas lições; e, depois, porque é no Direito
Guerra Mundial, o significado que continuara Romano que vamos encontrar a origem e a
comportando o Direito Romano como alicerce explicação das nossas instituições, mormen-
no contexto das ciências jurídicas ocidentais. te daquelas que se situam no Direito Privado.
Mil e duzentos anos de formação e cristali- Aquela crise arguida pelo primeiro desses
zação do Direito, na Antiguidade; aparente re- escritores, de alguma forma, veio repercutir
fluxo dos anos intermediários; ressurgimento e em nosso meio, tanto que o Direito Romano,
reconhecimento no calor da especulação me- enquanto disciplina, acabou abolido em
dieval, colhida nas classes universitárias; con- mais de um curso superior de Direito. Na
servação e utilização nos oito séculos que se verdade, a ideia de profissionalização ime-
seguiram, constituindo “a teoria e a prática dos diata, as profundas alterações ocorridas no
mais importantes direitos europeus”: é esse o substrato social, o predomínio da técnica e
legado e a inabalável consistência que o Direito o deslumbramento causado pelo progresso
Romano carrega, ensina e orienta. científico afastaram critérios vistos como en-
Nem por isso, todavia, naquela época, o seu traves ao exercício mais rápido e aligeirado
futuro oferecia-se claro e seguro, pois preten- das atividades correlatas ao Direito.
diam relegar o seu estudo aos limites da pes- Foi um momento. Hoje, seja na Europa,
quisa histórica, excluindo-o, praticamente, das seja nos países da América, seja, enfim, en-
disciplinas obrigatórias nos cursos ministrados tre os povos que carregam a tradição roma-
nas faculdades de Direito. Advertia, pois, aque- no-canônica e ainda entre aqueles que nem
le professor, para a necessidade de integrá-lo tanto a guardam, certo é que os estudos do
aos cursos regulares, não à conta das nuanças Direito Romano e da História do Direito per-
da cultura, mas como elemento vivo de forma- manecem íntegros pelo muito que proporcio-
ção do jurista, imprescindível para quem nessa nam àqueles que buscam o conhecimento
área pretendia assentar-se. do Direito.
humanitas • 55
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DIREITO
INSTITUTAS DO
IMPERADOR JUSTINIANO
Manual de estudos Autor: Flavius Petrus
Sabbatius Justinianus
Na verdade, se alguém pretende afincar-se
Tradutor: Edson Bini
com esmero nesse campo, empregando-o e utili- Páginas: 240
zando-o inclusive para o bom apuro do exercício Editora: Edipro
56 • humanitas
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PRINCÍPIOS
A IA NO DIREITO
POR PATRICIA ELIANE DA ROSA SARDETO
©1
V
ivenciamos uma mudança de era e temos sido im-
pactados por novas tecnologias, em especial pela in- “É IMPERATIVO QUE A FORMAÇÃO DOS
teligência artificial (IA). Essa tecnologia não é nova,
mas nos últimos cinco a dez anos vivenciamos uma verda-
FUTUROS PROFISSIONAIS DO DIREITO
deira “explosão” de aplicações utilizando tal ferramenta, e ALINHE-SE ÀS TRANSFORMAÇÕES
isso nos maravilha e também nos assusta. DIGITAIS EM CURSO. SOMOS O PAÍS
No Direito, podemos observar esse fenômeno sob duas pers-
pectivas: a primeira relaciona-se à atuação profissional e
COM O MAIOR NÚMERO DE CURSOS DE
como o setor tem se posicionado; já a segunda analisa o pa- DIREITO NO MUNDO, CERCA DE 1.900”
pel dos cursos de Direito e sua importância não só para a for-
mação de futuros profissionais, mas também para a garantia
de uma sociedade pautada em valores e comprometida com advocacia esteja alinhado aos princípios fundamentais da
o respeito ao ser humano e a tudo que isso implica. profissão e às exigências legais.
O Judiciário está atento às inovações tecnológicas desde Diante disso, é imperativo que a formação dos futuros pro-
a Lei n. 11.419/2006, que informatizou o processo judicial, fissionais do Direito alinhe-se às transformações digitais
aumentando o índice de digitalização dos acervos proces- em curso. Somos o país com o maior número de cursos de
suais e de soluções inovadoras. É o caso do Juízo 100% Direito no mundo, cerca de 1.900, e apenas 10% deles rece-
Digital, que permite a prática de atos processuais de modo beram o Selo OAB Recomenda na sua oitava edição (2024).
remoto; do Balcão virtual, que promove o acesso à Justiça Seria leviano fazer uma relação direta desses números
no campo digital e normatiza o uso de instrumentos como com a formação deficitária em novas tecnologias, filoso-
a videoconferência para atendimento às partes; e da Sinap- fia ou ética, uma vez que não temos suporte para tanto.
ses, plataforma nacional de armazenamento, treinamento Por outro lado, quando se fala em formação de qualidade,
supervisionado, controle de versionamento, distribuição que atenda às necessidades da sociedade, percebe-se que
e auditoria dos modelos de IA, apenas para citar alguns muito ainda precisa ser feito para que entreguemos ao
exemplos do Programa Justiça 4.0. mercado de trabalho profissionais competentes, críticos,
Dados publicados em junho de 2024 pelo Conselho Nacional responsáveis, engajados e éticos, e que dominem as no-
de Justiça (CNJ), em pesquisa realizada nos 91 tribunais e 3 vas tecnologias para que sejam sempre utilizadas para o
conselhos, apontaram um total de 140 projetos relacionados, benefício do homem, da sociedade e possam efetivamente
desde os em estado inicial até os já finalizados. No mesmo promover justiça.
ritmo vislumbram-se numerosas soluções destinadas à ad-
vocacia por meio de lawtechs ou legaltechs e softwares.
Preocupado com o uso da ferramenta na prática jurídica, o PATRICIA ELIANE DA ROSA SARDETO é professora
© VISUAL GENERATION / ADOBE STOCK
aprovou, em novembro de 2024, uma série de recomen- do Paraná) campus Londrina. É coordenadora do
Laboratório de Inovação Jurídica e membro do
dações para orientar o uso da IA, objetivando estabelecer Observatório de IA na Educação Superior da mesma
diretrizes que promovam a ética e a responsabilidade no instituição e endorser do Rome Call for AI Ethics da
Fundação RenAIssance-Vaticano.
emprego da tecnologia, além de garantir que seu uso na ✉ patricia.sardeto@pucpr.br
humanitas • 57
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NOSSA LÍNGUA
VIDA, MORTE E
RENASCIMENTO
58 • humanitas
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V
ários dos grandes gramáticos do
passado, como os de agora também,
sempre destacaram que a língua é
uma roda-viva, dependente das gerações e
sua constante movimentação. A língua que
falamos hoje não é a mesma de vinte ou
trinta anos atrás, muito menos ainda a de
duzentos, quinhentos anos atrás. Só para se
ter ideia das diferenças, vou colocar um pe-
queno texto aqui de uma lei de D. Afonso IV,
chamada Pragmática de 1340, que estabe-
lecia o que se podia comer e vestir naquela
época de pré-pandemia da Peste Negra, que,
quando veio sete a oito anos após essa lei,
exterminou um terço da população portu-
guesa, que de aproximadamente novecentas
mil pessoas ficou reduzida a seiscentas mil.
humanitas • 59
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NOSSA LÍNGUA
60 • humanitas
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Etimologia folclórica
FAMÍLIA E
Os clássicos dicionários de etimologia, SINCRETISMO
como o de Antenor Nascentes, José Pedro As palavras quatorze, catorze; quo-
Machado, Antônio Geraldo da Cunha, dizem ciente, cociente etc. formam família,
que a origem da palavra larápio é obscura. ou seja, são verdadeiramente irmãs.
Nascentes e José Pedro ainda citam a histo- Aliás, é muito interessante a origem
rieta folclórica do surgimento da palavra. Já o da palavra família, forma erudita a
Dicionário de Etimologias da Língua Portugue- partir de famuli, ou seja, o conjunto
sa (Ed. Biblioteca Universitária), de R. F. Man- de “criados, servos, domésticos” e só
sur Guérios, que também afirma que a origem posteriormente foi ganhando o signifi-
de larápio é obscura, delicia-nos contando a cado que temos hoje. Ou seja, a família
historieta ficcional da criação dessa palavra. era representada pelos seres que ha-
Vou transcrever literalmente, mas já vou bitavam a mesma casa, conforme está
adiantando que larápio significa “gatuno, no Dicionário de Etimologias da Língua
aquele que tem o hábito de furtar” e, como Portuguesa, de R. F. Mansur Guérios,
no Brasil nunca, em tempo algum, existiram que diz mais: “O parentesco ou a famí-
autoridades de todos os poderes e particula- lia pelo sangue era denominado gens
res que tivessem esse péssimo hábito, talvez (cong. de génere, ‘gerar’)”.
fique difícil para alguns entenderem. Vamos à Já que falamos de parentesco, união,
transcrição: “Havia na ant. Roma ‘um pretor, vamos falar agora de sincretismo lin-
guístico. O prefixo grego sin significa
para quem a propriedade alheia só por enga-
união, harmonização, junção, daí pala-
no não lhe tocara nas partilhas do mundo. As
vras como sinfonia, sincronia, síntese,
suas sentenças só favoreciam quem mais e
sintonia etc. A palavra sincretismo ori-
melhor lhe pagasse’”.
ginal referia-se à união dos cretenses
E prossegue: “Chamava-se Lucius Amarus
para combater seus adversários. Já o
Rufus Appius (ou, segundo outros, Lucius An-
sincretismo na morfologia é a iden-
tonius Rufus Appius, ou, então, Lucius Aulus
tidade entre palavras com escritas
Rufus Appius). Os romanos costumavam qua-
iguais ou bem parecidas, mas o mes-
se sempre escrever somente as iniciais de seu mo significado. Coisa e cousa; louro e
n. e sobrenome (praenomen, nomen gentiliciu e loiro; touro e toiro; assovio e assobio;
cognomen), mas, se tinham um quarto n., este taverna e taberna, flauta e frauta; fle-
era escrito por extenso (agnomen). Assim, o cha e frecha; rubi e rubim etc. são to-
pretor assinava L A R Appius, e o povo roma- das palavras sincréticas. A tendência é
no aplicou o n. todo, como unidade, Larappius uma delas prevalecer, causando o de-
(i. é, abreviações e o n. final) a outros amigos saparecimento da irmã. É a eterna luta
do alheio, para suavizar, em vez de fur, latro, pelo espaço, que também ocorre no
direptor, interceptor, praedo. E de Larappius o mundo da língua, já que língua é ele-
aport. larápio, e deste se fez o verbo larapiar, mento social. O presente do subjuntivo
‘furtar’, e larapinar, idem (este, provincianis- também apresenta formas sincréticas,
mo transmontano)” (p. 116). como “que eu fale”, “que ele fale”; “que
eu queira”, que ele “queira” etc.
humanitas • 61
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NOSSA LÍNGUA
Acrescento que essa mesma historieta tam- ator é bem famigerado não pega bem. O senti-
bém veio contada até um pouco antes no Di- do negativo, que está tomando conta, acaba se
cionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, destacando. Melhor evitar.
de Maximiano Augusto Gonçalves (Edições de
Ouro). Provavelmente, como já notaram José Tinha ganho, ganhado…
Pedro Machado e Antenor Nascentes, isso Tenho ouvido hodiernamente (hodie, “neste
não passe de lorota (palavra também de ori- dia”, em latim quer dizer hoje) muitas pessoas
gem obscura), mas que é uma historieta muito da média e da nova geração ressuscitando a ex-
bem bolada, muito bem engendrada, ah! isso é. pressão TINHA GANHADO e suas variações.
Como adoro ficções, gosto muito dessas etimo- Vamos aqui fazer uma visitinha à velha e boa
logias folclóricas. gramática histórica, que foi proibida de se en-
sinar para o Ensino Médio desde 1971, quan-
Famigerado e famélico do foi considerada desnecessária, e, a partir
Não poucas vezes ouvi na vida frases como: dali, também para as próximas gerações, assim
“Isso só podia vir daquele famigerado” ou ain- como o latim e outras disciplinas.
da “Esses famigerados moradores de rua aca- Na 42ª edição, de 1972 (a 1ª edição é de
bam emporcalhando tudo”. Nos dois casos, o 1957), da indispensável Gramática Normativa
adjetivo famigerado deve ter sido usado como da Língua Portuguesa (José Olympio Editora),
sinônimo de pobre, abestalhado, desregulado de Rocha Lima, há uma passagem bem categó-
socialmente, faminto e outros tais. Acontece rica: “Na linguagem contemporânea, quer com
que o adjetivo famigerado, na sua origem lati- o auxiliar ter, quer com ser, só se usam os par-
na, significa afamado, célebre, notório, notável, ticípios irregulares ganho, gasto e pago, dos
ou seja, no geral, só coisas boas. verbos ganhar, gastar e pagar” (pág. 171). A
Assim, artistas de novelas, séries, filmes ou “linguagem contemporânea” acima é dos anos
apresentadores de televisão são famigerados, 1920 e talvez antes. Todos sabemos que, com os
isto é, conhecidos, afamados. No entanto, o verbos abundantes, ou seja, e para o que aqui
emprego arrevesado acima acabou dando nova interessa, aqueles que têm dois particípios,
conotação ao adjetivo famigerado, que passou usamos o particípio regular, longo (terminado
também a referir-se a conhecidos de forma tris- sempre em ADO e IDO) com os auxiliares ter e
te, lamentável. Em “Esses famigerados mora- haver; e o irregular, curto (SO, TO, NHO, GUE
dores de rua acabam emporcalhando tudo”, o etc.) com o auxiliar ser e estar. No entanto, a
famigerados aí deve indicar que são famosos tendência de uso da língua é preferir a forma
negativa, triste e lamentavelmente. menor (o particípio irregular). Assim, as formas
Embora o produtor dessa frase também pos- GANHO, PEGO e PAGO destituíram as irmãs
sa ter tido essa intenção, famigerado não quer maiores GANHADO, PEGADO e PAGADO e
dizer faminto, nada tem a ver com famélico, passaram a ser as usadas em qualquer situa-
que quer dizer aquele que tem muita fome, que ção, com qualquer auxiliar. Por isso é estranho
está exacerbadamente faminto, e foi com essa mesmo que a média e a nova gerações estejam
ideia que essa palavra já veio do latim. Cá pra voltando a usar a forma “morta”, mas… língua é
nós, hoje em dia, falar, por exemplo, que um isso mesmo. Nasce-se, morre-se e ressuscita-se.
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humanitas • 63
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NOSSA LÍNGUA
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PAIDEIA
BRAIN ROT E
A EDUCAÇÃO
MODERNA
POR CELSO HARTMANN
O
termo “brain rot” [deterioração mental], eleito pelo
Dicionário de Oxford como a palavra do ano de
2024, reflete uma preocupação social que deve ser
tratada como um problema de saúde pública. As implica-
ções são vastas: o futuro da aprendizagem, a capacidade
de pensar criticamente e a formação de cidadãos inteiros e
engajados estão em jogo.
As escolas, que deveriam ser santuários de aprendizado,
frequentemente se transformam em ambientes sobrecar-
regados de informações superficiais e estímulos incessan-
tes. Essa realidade resulta em uma geração que, mais do
“ESSA REALIDADE RESULTA EM
que nunca, sente-se incapaz de concentrar-se em tarefas
significativas. A educação deve cultivar uma mentalidade UMA GERAÇÃO QUE, MAIS DO QUE
crítica que permita reflexão e interpretação, formando in- NUNCA, SENTE-SE INCAPAZ DE
divíduos integralmente preparados para a vida. CONCENTRAR-SE EM TAREFAS
Se considerarmos o brain rot como um reflexo da fraqueza SIGNIFICATIVAS”
da estrutura social, a questão amplifica-se: estamos dando
o exemplo? Se adultos e educadores sucumbem às mes-
mas distrações digitais, como esperamos que crianças e Formar cidadãos conscientes e proativos não é apenas a
jovens desenvolvam resistência? A solução não está ape- função da escola, mas de todos. A reflexão crítica é crucial:
nas nas iniciativas escolares, mas na responsabilidade co- estamos fazendo o suficiente para dar o exemplo? Somen-
letiva de criar um ambiente que valorize a atenção plena e te assim poderemos iniciar a transformação necessária e
a aprendizagem significativa. evitar uma geração submissa ao consumismo acelerado e
Iniciativas como projetos de mindfulness ou áreas livres de refém da tecnologia.
tecnologia, embora necessárias, não são suficientes sem
uma mudança cultural mais ampla. Precisamos repensar
o consumo de informação e valorizar o tempo e a atenção.
© AI GENERATED / MIDJOURNEY
tecnologia e promovam a saúde mental devem ser priori- dos colégios da Rede Positivo.
dade em todas as esferas da sociedade. O desafio é imenso ✉ celsohart@positivo.com.br
e a responsabilidade é coletiva.
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Uma educação
consciente pode ser
uma boa alternativa,
junto com o uso
adequado da IA, a fim
de encontramos o
equilíbrio. É chegada
a hora de revermos
o que podemos fazer
por nosso país, e não
ficarmos esperando
que façam por nós
EDUCAÇÃO
COMEÇA
EM CASA
POR AFFONSO HENRIQUES DE AZEVEDO NOGUEIRA
66 • humanitas
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© AI GENERATED / MIDJOURNEY
A
s redes sociais e a IA
(inteligência artificial)
nasceram com o objetivo
de aproximar as pessoas e tornar
a comunicação mais fácil entre
elas. Não poucas vezes estamos
afastados (por motivo de viagens,
estudos etc.) dos nossos filhos,
pais, amigos, e as redes sociais
facilitam que nos conectemos
mesmo estando separados por
longas distâncias. Assim, são
inegáveis os benefícios que esses
instrumentos de comunicação e
interação podem proporcionar.
humanitas • 67
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Na minha visão, o mais importante seria in- Temos responsabilidades indelegáveis para
centivar o contato real entre as crianças, pois já a construção de um mundo melhor para nós e,
está provado que a realidade (a realidade mes- em especial, para nossos filhos, que serão nós
mo!) é benéfica para o desenvolvimento huma- no futuro com outros de nós. Realmente, temos
no e para a interação entre as pessoas. Não uma responsabilidade inarredável, indelegável,
quero aqui desprezar as redes sociais, pois representando um profundo comprometimento
elas têm um papel importante, como relatado. por dias melhores, por melhores gerações para
Porém, há que se ter um equilíbrio ou vamos este mundo e não só um mundo melhor para
ter gerações de pessoas que, por exemplo, só elas, mas também filhos melhores para o mun-
conhecerão uma “galinha” virtualmente. Isso do. Isso só é possível com a educação auxiliada
não me parece saudável! E esse equilíbrio só pela IA. E isso depende de todos nós.
pode vir da educação que… começa em casa,
com a colaboração da IA. Por um mundo melhor
O que quero dizer é que precisamos abstrair Sim! Por que não dizer filhos melhores para
a realidade com nossa própria razão e sentimen- este mundo? Estamos diante de fatos, dados,
tos, e não sermos apenas repetidores do que le- evidências incontestes de que as crianças e, em
mos, vemos, ouvimos e, no final, nos tornarmos especial, muitos adolescentes se sentem donos
parte da massa ignara que é assim porque os do mundo, da verdade última, gerando compor-
poderes institucionais, desde tempos primevos, tamentos não adequados. É uma verdade, e to-
em quase todos os países, a implementaram e dos nós sabemos disso.
implementam de forma consciente. Culpa da criança, do adolescente? Não! Mas
do sistema, uma abstração. Que, como tal, não
Realidade e equilíbrio existe. Portanto, não vamos falar em culpa, mas
Aqui cabe uma reflexão sobre os games. em responsabilidade dos pais, que “largam” seus
Com raríssimas exceções, são joguinhos vio- filhos conforme relatei anteriormente em lugares
lentos, e já está provado que esse fato interfere perigosos da internet, e do Estado, conforme
no sistema nervoso central (SNC) das pesso- aponto adiante. Está na hora de encontrar uma
as, especialmente de crianças e adolescentes, solução de EQUILÍBRIO para essa situação.
que estão ainda formando sua capacidade de E, não! O que aqui escrevo não tem nenhum
abstração da realidade, isto é, são seres que viés ideológico (direita, centro ou esquerda), mas,
absorvem, sem critérios ainda, tudo o que lhes repito, está baseado em evidências. Sim! As evi-
é oferecido, mostrado e, especialmente permi- dências estão aí. Basta uma olhada nos meios de
tido. Equilíbrio, não permissividade. comunicação, nas redes sociais e perceberemos
Assim, a minha sugestão é não permitir nitidamente o relatado. Crianças, adolescentes,
que seus sentimentos se sobreponham à sua jovens adultos que estão criando as próprias nor-
razão – o que não quer dizer que os sentimen- mas, esquecendo que vivemos em uma só casa e
tos não sejam importantes no momento de que temos que respeitar nossos vizinhos.
tomadas de decisões, adoção de comporta-
mentos etc., mas que, quando estivermos nas Educação e IA
situações anteriormente descritas, que seja Uma educação consciente pode ser uma boa
possível encontrar um ponto de equilíbrio en- alternativa, junto com o uso adequado da IA, a
tre razão e emoção. fim de alcançarmos o equilíbrio. É chegado o
humanitas • 69
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momento de revermos o que podemos fazer por Então, já temos as respostas? Um Plano
nosso país, e não ficar esperando que façam por Nacional para a educação, a IA, a segurança
nós. Não se pode mais tolerar políticas públicas das pessoas na internet? Sim! Mas no papel! E
que não têm a participação popular; de fato não assim não resolve, não encaminha verdadeiras
têm, dessa forma, por consequência, somos e factíveis soluções. Hora de acordar, Brasil,
um País pobre e as maiores vítimas são as brasileiras e brasileiros!
crianças e a nossa juventude que ficam aban-
donadas nesses “joguinhos” extremamente Novas perspectivas
perigosos e desprezando a riqueza de alterna- A partir dessas reflexões, meu único intuito
tivas que a IA pode trazer para a educação. é colaborar para a construção de um “mun-
Sim, educação. Porém, uma educação séria, do melhor” para nossas crianças, por meio
cujos princípios, valores e objetivos sejam real- da educação e nos apropriando do que a IA
mente discutidos pela sociedade civil. Pergunto- pode nos oferecer nesse campo e em muitos
-me: a continuar assim, e pedindo emprestado outros, como saúde, economia, segurança etc.
ao maravilhoso Renato Russo (1960-1996), uma No mais, quero ressaltar que não sou dono da
pessoa que criticava essa situação: “Que país é verdade, nem quero ser. Apenas exponho aqui
(será) esse?” Que crianças vamos ter? Que edu- um pensamento, experiências não muito agra-
cação estamos proporcionando para elas? Como dáveis com o uso desenfreado e inadequado
vamos lidar com a IA? Temos responsabilidades! da internet, das redes sociais, da inteligência
artificial e o papel da educação, que, repito e
insisto, começa e termina em casa!
Parece acaso, mas terminei a escrita deste
ensaio após revisões (como dizia um famoso
“Sim! Por que não
autor – não lembro o nome: “Escrever é huma-
dizer filhos no; Editar é Divino!”) e fui tomar um café. Es-
melhores para este tava vendo um dos meus programas favoritos
(CNN News), quando me deparo com uma notí-
mundo? Estamos cia de que uma lei proibindo o uso de celulares
diante de fatos, nas escolas está avançando. Parece que as au-
toridades constituídas estão acordando, como
dados, evidências
mencionei esta necessidade neste ensaio! No
incontestes de que meu ponto de vista, uma lei benéfica.
as crianças e, em
especial, muitos
adolescentes se
AFFONSO HENRIQUES DE AZEVEDO NOGUEIRA
sentem donos do tem bacharelado em Administração (UniCEUB), pós-
graduação em Gestão de Negócios (IBMEC), é mestre
mundo, da verdade em Marketing (UnB) e doutor em Cross-Cultural and
Decision-Making Process, Cultural Diversity (ESADE
última, gerando Business School & Law – Barcelona/Espanha).
✉ nogu0012@gmail.com
comportamentos
não adequados”
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NEGÓCIOS
GESTÃO INOVADORA
E SUSTENTÁVEL NO
AGRONEGÓCIO
POR MATHEUS DE LIMA GOEDERT
©1
O
agronegócio brasileiro desempenha um papel crucial dade. Programas de treinamento, educação continuada e
na economia nacional e mundial, mas enfrenta desa- valorização profissional são essenciais para formar equi-
fios que demandam uma gestão cada vez mais inova- pes aptas a lidar com as inovações tecnológicas e com as
dora e sustentável. A crescente pressão por produtividade, práticas sustentáveis.
somada às preocupações ambientais e sociais, exige que Outro aspecto relevante é a integração e colaboração en-
os gestores adotem estratégias que integrem tecnologia e tre os diferentes atores da cadeia produtiva. Parcerias
eficiência operacional, envolvendo práticas de ESG (Environ- estratégicas, cooperativismo e fortalecimento de redes de
mental, Social and Governance) cada vez mais alinhadas aos colaboração permitem a troca de conhecimentos, compar-
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (OSD) propostos tilhamento de recursos e acesso a mercados mais amplos.
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Isso é especialmente importante para pequenos e médios
Nesse cenário, sustentabilidade não é mais um diferencial, produtores, que podem se beneficiar do apoio mútuo e de
mas uma exigência do mercado e da sociedade. Por isso, economias de escala.
práticas como a agricultura biogenerativa – envolvendo o A gestão de riscos também ganha destaque, considerando
manejo integrado de pragas, a recuperação de áreas degra- as incertezas climáticas, variações de mercado e questões
dadas e a adoção de energias renováveis – são fundamen- regulatórias. Assim, planos de contingência, diversificação
tais para minimizar os impactos ambientais do setor. Além de atividades e seguro rural são instrumentos que ajudam
disso, cumprem com as exigências de consumidores mais a mitigar impactos negativos e assegurar a sustentabilida-
conscientes e de mercados internacionais que impõem pa- de financeira dos negócios.
drões rigorosos de sustentabilidade. Em resumo, a gestão inovadora e sustentável no agronegó-
Uma das principais alavancas para superar esses desafios cio é uma necessidade imperativa para enfrentar os desa-
é a transformação digital. Nesse sentido, o uso de tecnolo- fios atuais e futuros. Ao incorporar tecnologias avançadas,
gias como big data, inteligência artificial, drones e sensores práticas sustentáveis, valorização de pessoas e colabora-
inteligentes permite monitorar as condições de culturas ção, o setor se fortalece, garantindo sua competitividade e
em tempo real, prever pragas e doenças, otimizar o uso de contribuindo para o desenvolvimento econômico, social e
insumos e melhorar a logística da cadeia produtiva. Essa ambiental do País.
abordagem orientada a dados proporciona tomadas de de-
cisão mais assertivas, reduzindo os custos operacionais e
©1: BSD STUDIO / ADOBE STOCK
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PENSE!
EM ESTADO DE
ANSIEDADE
72 • humanitas
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D
as conversas no consultório de filoso- bioquímicas que demandam pesquisa, suporte
fia às notícias divulgadas em diferentes e acompanhamento profissional; entre outras
mídias; dos encontros e interlocuções possibilidades. Assim, afirmar que vivemos em
casuais aos consultórios médicos e índices da estado de ansiedade não significa que esteja-
Organização Mundial de Saúde (OMS); tudo mos vivendo em um mesmo e único estado. A
indica que vivemos em estado de ansiedade, ansiedade que sinto pode ser de natureza muito
tendo praticamente todas as áreas de nossa diferente daquela que afeta o outro; mas se for
vida invadidas por ela. Inundados por esse da mesma natureza, ainda assim, sua manifes-
estado, respiramos, comemos, trabalhamos, tação pode ser completamente distinta em cada
estudamos, dormimos, ou seja, vivemos ansio- pessoa, em cada momento, em cada contexto.
samente. Talvez ela esteja tão entranhada em
nosso ser que poderíamos pensar ou dizer que Quando procurar ajuda?
somos a própria ansiedade. Seria, o estado de Em psicopatologia, segundo Dalgalarrondo,
ansiedade, uma patologia, um adoecimento ou “a ansiedade é definida como estado de humor
apenas uma resposta à sociedade em que nos desconfortável, apreensão negativa em relação
encontramos? Quais são as consequências de ao futuro, inquietação interna desagradável.
viver em constante estado de ansiedade? Há Inclui manifestações somáticas e fisiológicas
tratamento para isso? (dispneia, taquicardia, vasoconstrição ou dila-
Quando dizemos que estamos ansiosos tação, tensão muscular, parestesias, tremores,
ou sofremos de ansiedade, não significa, ne- sudorese, tontura, etc.) e manifestações psíqui-
cessariamente, que fomos acometidos por um cas (inquietação interna, apreensão, desconfor-
transtorno e necessitamos de tratamento mé- to mental, etc.)” (Dalgalarrondo, 2008, p. 166).
dico. É comum utilizarmos o termo “ansieda- Ele ainda destaca o fato de vários autores
de” para expressar nossa inquietação, nossa utilizarem ansiedade e angústia como sinôni-
impaciência diante de algo que desejamos ou mos, mas aponta o que considera diferenças
tememos que aconteça ou que não aconteça. entre os termos: “Angústia relaciona-se direta-
Aliás, é um termo muito presente em nossos mente à sensação de aperto no peito e na gar-
diálogos cotidianos, cabendo questionar se, de ganta, de compressão, sufocamento. […] Tem
fato, vivemos em estado de ansiedade e, prin- conotação mais corporal e mais relacionada
…
cipalmente, o que isso significa. ao passado” (p. 166). Mas não negligencia a
A depender do significado, podemos estar angústia existencial como definidora da condi-
diante de uma reação instintiva ou construída ção humana. Ele ainda distingue “ansiedade” e
culturalmente; de um sinal para aguçarmos nos- “angústia” de “medo”, afirmando que o medo é
sa percepção e compreendermos o que se passa sempre medo de alguma coisa, refere-se a algo
conosco, com o mundo ou com as outras pes- preciso, enquanto “ansiedade” e “angústia”
soas; de uma expressão da necessidade de mu- são difusas, não se dirigem, exatamente, a um
dança nos rumos de nossa vida; de alterações objeto específico.
humanitas • 73
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PENSE!
74 • humanitas
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A “segurança” é ilusória, pois não há como foram pensadas em seus momentos históricos e
controlarmos todas as variáveis que atuam sobre como tais reflexões impactaram a construção de
nossa vida. Podemos nos conhecer e ao mun- novos modos de vida pode nos inspirar a refletir
do; quanto mais conhecimento, maior o grau de sobre nosso momento histórico e nossa contri-
previsibilidade em relação ao futuro; porém, não buição para as construções presentes e futuras.
temos como abarcar todo o conhecimento neces- Entender a ansiedade como um elemento da
sário, nem como prever a ação do acaso. Assim, condição humana nos permite – em vez de temê-
não vivemos sólidas certezas, mas a maleabilida- -la, patologizá-la e medicalizá-la – examiná-la,
de e o fluir da vida, o que nos exige a constante compreendê-la e, ao mesmo tempo, refletir sobre
revisão de nossos hábitos e a incessante criação a vida que estamos vivendo. Não é um exercício
de novas formas de ser e estar no mundo. fácil e não se dá a partir de receitas ou padrões,
Os “criadores” dos padrões que prometem pois não há respostas prontas nem caminhos tri-
garantir nossa segurança não são divindades lhados. É, por isso, um exercício filosófico.
capazes de vislumbrar o futuro, nem sujeitos É parte desse exercício reconhecer que um
desinteressados que buscam tão somente o estado de ansiedade não é bom ou mau por si
bem comum. Em geral, tais padrões benefi- e que não é o caso de extinguir toda e qualquer
ciam certos grupos ou pessoas, pois promo- ansiedade, ainda que isso fosse possível. Qual é,
vem condutas e criam cenários geradores de afinal, o caso? Depende da natureza e do signifi-
lucro e propiciadores de exercício de poder. Na cado de cada estado específico de ansiedade, em
maior parte do tempo, não pensamos sobre as cada condição singular e concreta de cada um
consequências de tais padrões, apenas busca- de nós. Em outras palavras, é preciso compre-
mos uma forma de proteção, reconhecimento ender o que o estado de ansiedade que estamos
ou garantia de estarmos fazendo as melhores vivendo neste exato momento revela sobre nossa
escolhas para nossa vida. existência – singular e como sociedade – e, prin-
A disputa polarizada entre os “padrões” he- cipalmente, o que podemos ou devemos fazer a
gemônicos, que ao final não diferem tanto em respeito disso. Você vive em um estado de ansie-
seus fins últimos, traz a incerteza que nos colo- dade? Se sim, o que ele revela a você?
ca novamente em estado de ansiedade. Um es-
tado necessário para a manutenção e existência
de padrões que prometem apaziguá-lo. Enfim,
um cenário no qual a ansiedade é necessária
para o exercício do poder, mas precisa ser pa- Nota: Agradeço à amiga Neysa Campos
tologizada e controlada a partir de um modelo pelas provocações que geraram este texto.
inatingível de uma vida “tranquila” e “feliz”, que
retroalimenta o estado de ansiedade, levando a REFERÊNCIAS
um adoecimento social. AIUB, Monica; COSTA, César Mendes. Minorias: da
sociedade de consumo à sociedade do convívio. São
Paulo: FiloCzar, 2016.
Condição humana
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia
Na história da filosofia, podemos encontrar dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.
reflexões sobre ansiedade, angústia, medo, en-
fim, emoções e sentimentos que se fazem pre-
MONICA AIUB é doutora
© RENATA SILVA
humanitas • 75
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HAPPY HOUR
PELO
DETOX
DIGITAL
Perdidos em um mundo virtual idealizado, sequestrados
por seus estímulos, deixamos passar a vida – a única
que temos e que podemos ter. E assim, frustrados,
afundamos no atoleiro de nossas próprias neuroses
O
consumo excessivo do digital na forma
das inúmeras telas que se espalham por
todos os lados na nossa vida cotidiana
vem sendo apontado como uma grande fonte
de preocupação. O tempo que crianças, jovens
e adultos passam em frente às telas vem aumen-
tando de forma assustadora nos últimos anos,
transformando a posse desses dispositivos e seu
uso em um verdadeiro frenesi de múltiplos im-
pactos, que passam pelo isolamento, pela quebra
dos vínculos sociais, pelo aumento das doenças
neuronais de todo tipo, entre eles o suicídio.
76 • humanitas
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um tablet com algum filme que faz a criança logadas e largamente explicadas pelo psicólogo
ficar vidrada – o que significa, também, calada, Jonathan Haidt, que mostrou como a hipercone-
silenciada, contida, reprimida. Sem vínculos xão das gerações atuais desde a infância impac-
tam negativamente a saúde mental de crianças
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HAPPY HOUR
78 • humanitas
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Essa soma de estímulos vindos das telas acaba, contar o tempo que passamos na frente das telas),
por isso, fazendo-nos mais infelizes, embora nos melhorar a comunicação e a interação interpesso-
enganem com as promessas fáceis de ser possí- al, concentrar-se em metas que sejam compatíveis
vel fugir daquilo que, na realidade, pode ser de- com nossas potencialidades e prevenir os diferentes
sagradável e negativo. O filósofo Byung-Chul Han transtornos ligados ao uso excessivo das telas.
chamou isso de “excesso de positividade”, mani-
festando-se, segundo ele, na soma exagerada de Livres das máquinas
estímulos, informações e impulsos que modificam No fundo, desligar as telas por um tempo e redu-
a economia da atenção que orienta a nossa vida zir o uso de dispositivos eletrônicos para simples-
para um equilíbrio. mente… viver! É preciso que nos reconectemos com
as coisas que mais importam e que são reais. No
Vida autêntica fundo, é fundamental ir mais devagar, prestar mais
Assim, desequilibrados, já não sabemos mais atenção no que mais importa, gastar mais tempo
lidar com as negatividades. Queremos apenas o com quem amamos, cuidar de nós mesmos. Não
que é prazeroso e aprazível. Queremos apenas o ser dominado pelas máquinas é o caminho para
que é satisfatório e nos afastamos de tudo o que continuarmos sendo humanos autênticos.
tem o risco mínimo de nos trazer eventual descon- PS: Paro de escrever por aqui. Desligo meu com-
forto. O problema é: as coisas mais significativas putador e meu smartphone. Plínio, meu cão, já está
de nossa vida podem estar precisamente aí, nes- impaciente aos meus pés. Ele me leva para passear
ses aspectos pretensamente negativos de nossa toda tarde, às 17h. Eu sempre acho graça do seu
vida. Envolvidos com nossas telas, as quais nos rebolado à minha frente, cheirando tudo ao redor.
oferecem mundos agradáveis selecionados pelo Enquanto caminho, sinto a cidade desacelerando,
algoritmo que aprende o que nos agrada, perde- ouço os pássaros procurando ninhos para passar a
mos a chance de experimentar a vida em sua au- noite, reparo o sol se derramando sobre as folhas da
tenticidade. E, com isso, acabamos por perder a araucária da minha rua, celebro a graça do ipê-rosa
oportunidade de adquirir as condições que nos florido e do viço que move todas as flores para cima.
possibilitam enfrentar essas negatividades. Meu celular está desligado. Se você me ligar, eu não
Quem nunca lida com seus monstrinhos nun- vou atender agora. Estarei vivendo.
ca vai aprender a domá-los. Diante de nossas te-
las, tentamos preencher um vazio existencial que
nos consome e, entre encantados e embriagados, N O TA S
deixamos o nosso tempo de vida escoar entre os 1 Desmurget, Michel. A fábrica de cretinos digitais.
pixels das telas sobre as quais passamos, mono- Os perigos das telas para nossas crianças. Trad.
Mauro Pinheiro. São Paulo: Vertigio, 2023, p. 137.
tonamente, as polpas digitais de nossos dedos. 2 Ibidem, p. 159.
Perdidos nesse mundo virtual idealizado, seques-
trados por seus estímulos, deixamos passar a vida
REFERÊNCIAS
– a única que temos e que podemos ter. E assim,
DOMÍNGUEZ, Olga González. Detox Digital.
frustrados, afundamos no atoleiro de nossas pró- Barcelona: Penguin Random House, 2019.
prias neuroses.
Para enfrentar o problema, a psicóloga Olga
JELSON OLIVEIRA é escritor,
González Domínguez, em seu livro Detox Digital, filósofo, coordenador do Curso de
desenvolveu um programa de 21 dias para ajudar Gestão da Felicidade e Projeto de
Vida da PUCPR. Autor de dezenas de
© ACERVO PESSOAL
as pessoas a retomarem o controle de seus hábitos artigos e livros, entre os quais está
tecnológicos e aproveitarem o presente de forma Sabedoria Prática (PUCPRess, 2012)
mais consciente. Para ela, devemos começar com- e Moeda sem efígie: a crítica de Hans
Jonas à ilusão do progresso (Kotter
preendendo melhor os nossos hábitos (o que inclui editorial, 2023). @jelsonoliveira
humanitas • 79
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CODEX
REVOLUÇÃO EM MENTE
Esta obra não pretende ser uma defesa ou um ataque à psicanálise, tampou-
co elabora ou desenvolve conceitos psicanalíticos e sua aplicabilidade clíni-
ca. Em vez disso, o psiquiatra George Makari busca resgatar a evolução ou
a “criação” da psicanálise como um movimento intelectual, uma abordagem
psicológica e filosófica da mente e uma nova forma de pensar. Uma obra ím-
par, profunda e erudita, mas de leitura agradável, imprescindível para todos
os que se interessam pelas aventuras da mente humana, em geral, e para
qualquer pessoa que queira compreender o que é a psicanálise, como ela se
desenvolveu e, em particular, como ela representa os percursos e desvios do
pensamento ocidental contemporâneo.
Autor: George Makari Tradução: Paulo Sérgio de Souza Jr. Págs.: 512 Editora: Perspectiva
80 • humanitas
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COLAB
Revistas Ltda. ISSN 2675-5262. A publicação não se responsabiliza
por conceitos emitidos em artigos assinados ou por qualquer
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Ana Maria Haddad Baptista, mestra Jelson Oliveira, professor do Caixa Postal 16.381, CEP 02515-970, São Paulo, SP
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e doutora em Comunicação e Programa de Pós-Graduação em
Semiótica (PUC-SP) e pós- Filosofia da PUC-PR, doutor em FILIADA À IMPRESSÃO E ACABAMENTO
-doutoramento em História da Filosofia, com pós-doutorado pela OCEANO
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impressão do futuro
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Bruno Garcia, doutor em História Leandro Torelli, cientista político RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na Grá-
fica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os
pela PUC-RJ pela FESPSP e mestre em História resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos.
__ Econômica pela Unicamp
2025
Flávia Millena Biroli Tokarski, __ REALIZAÇÃO
DIRETOR-GERAL: Angel Fragallo • DIRETORA
professora do Instituto de Ciência Monica Aiub, doutora em Filosofia EDITORIAL: Juliana Klein – Mtb. 48.542 •
EDITORA: Cristina Almeida – Mtb. 61.241 –
Política da UnB e presidenta da pela PUC-SP cristina@fullcase.com.br • DIAGRAMAÇÃO:
Wellington Zanini • REVISÃO: Adriana Giusti
Associação Brasileira de Ciência __ • REDAÇÃO: Affonso Henriques de Azevedo
Política (2018-2020) Nelson Lourenço, sociólogo, Nogueira, Aline Dias Anile Chella, Ana Maria
Haddad Baptista, Celso Hartmann, Daniel
__ professor catedrático da (11) 2809-5910
Afonso da Silva, Daniel Medeiros, Fernando
Miramontes Forattini, Helena Cunha Di Ciero,
fullcase.com.br
Homero Santiago, professor do Universidade Nova de Lisboa e Henrique Olivo F. Galdino Lucas, Homero
Santiago, Isabel Lopes Coelho, Jelson
Depto. de Filosofia da FFLCH-USP presidente do Grupo de Reflexão Oliveira, João de Fernandes Teixeira, José Pio
Martins, Leo Ricino, Luiz Carlos de Azevedo
__ Estratégica sobre Segurança (GRES) (in memorian), Marco Lucchesi, Matheus de
Lima Goedert, Monica Aiub, Patricia Eliane da
Ivan Domingues, doutor em __ Rosa Sardeto e Tatiany Honório Porto Aoki.
COLABORAÇÃO: FTD Educação, PUCPRESS
Filosofia pela Univ. de Paris 1 e Paulo Ferraz de Camargo Oliveira, e SBPSP.
PARA ANUNCIAR
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DITADORES AS POR
VOCÊ VENDERIA A , SEM
DE HAMLET
DIREITOS CIVIS LIBERDADE E SEM
ALMA AO DIABO?
A EXISTÊNCIA , ELES NÃO GARANTEM
EDIÇÃO 182 - PREÇO
AS ORIGENS DE
UM CLÁSSICO QUE
REVELA O FASCÍNIO
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ESCOLA DA VIDA
OBEDECER Stanley
Milgram
OU NÃO?
POR HOMERO SANTIAGO
“A OBEDIÊNCIA É FÁCIL PORQUE
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m dos ramos mais interessantes e controversos da
EXIGE APENAS DAR CURSO AO QUE
psicologia social é o estudo do fenômeno da obe-
diência, especialmente quando tenta compreender DE NÓS SE ESPERA; DESOBEDECER,
como esse imperativo da vida social “normal” às vezes AO CONTRÁRIO, REQUER A
gera situações extremas e “anormais”, como o policial que CORAGEM DE REALIZAR UM DIFÍCIL
tortura e mata a mando de um superior ou – é o exemplo
clássico – os vigias de campos de concentração nazistas.
TRABALHO DE PENSAMENTO”
Intrigado pela questão, o psicólogo norte-americano Stan-
ley Milgram realizou em 1961 um experimento que ficou tornava possível que pessoas “normais”, numa situação
célebre (ver Obediência à autoridade. Uma visão experi- determinada, cometessem atos “anormais”, como a tor-
mental, Francisco Alves, 1983). Numa chamada em jornal, tura por choques elétricos. Daí a conclusão fundamental
ele convoca voluntários para um estudo sobre a influência de Milgram: um fenômeno como o dos campos de con-
do castigo físico no aprendizado. No laboratório, o voluntá- centração nazistas pode explicar-se, entre outras coisas,
rio exerce o papel de “professor” e, de uma cabina, aplica por uma estrutura social comum, o dever de obediência.
choques elétricos num “aluno” a cada falha deste em res- Porém, nem todos simplesmente obedeceram. Algumas
ponder a um questionário. Conforme a repetição dos erros pessoas decidiram desobedecer e abandonaram o ex-
cresce, as descargas aumentam, podendo alcançar o limite perimento. Indagadas por que agiram assim, alegaram
de 450 volts; descarga que, como se alerta, causa muita também um dever para com as suas próprias convicções;
dor e é perigosa. para elas, é legítimo desobedecer quando o cumprimento
No entanto, tudo não passa duma grande armação. Não de uma ordem implica uma atrocidade. É uma diferen-
se estuda o aprendizado. O objetivo real de Milgram é in- ça reveladora: os que somente obedeceram, fizeram-no
vestigar “como um homem se comporta quando recebe a meio automaticamente; os que desobedeceram refletiram
ordem de uma autoridade legítima para agir contra uma sobre as ordens recebidas antes de cumpri-las e, no en-
terceira pessoa”. No caso, a autoridade é a do pesquisa- tanto, emergiu o pensar.
dor que manda o “professor” aplicar o castigo e assume a Um aspecto perturbador do experimento de Milgram é
responsabilidade pelo ato; a vítima, o “aluno”, em verdade percebermos que, no fundo, obedecer é mais simples que
é um ator que, sem receber descargas, simula expressões desobedecer. A obediência é fácil porque exige apenas
de dor e desespero. dar curso ao que de nós se espera; desobedecer, ao con-
O surpreendente foi que um número considerável de pes- trário, requer a coragem de realizar um difícil trabalho de
soas (dentre os mais de 1.000 sujeitos do experimento) pensamento.
chegou ao limite de descargas que provocavam dor inten-
sa e eram potencialmente mortais. Questionadas depois, HOMERO SANTIAGO é professor associado
do Departamento de Filosofia da Faculdade
explicaram ter agido assim porque haviam concordado em
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
© ARQUIVO PESSOAL
fazê-lo e o superior que dava as ordens se responsabilizara Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
pelas consequências. Ou seja, a obediência “normal” (aque- ✉ homero@usp.br
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