Julgados da Sardenha

estados independentes da Sardenha do século IX e XV

Os julgados ou judicados (em latim: judicatus; em sardo: judicadu, logu ou rennu) foram estados independentes que tomaram o poder na Sardenha entre os séculos IX e XV, com summa potestas (isto é, soberanos) e governados cada um por seu juiz-rei (em sardo: judike).

Julgados da Sardenha.

Advento

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Após um domínio vândala relativamente breve (456-534) e de uma curtíssima ocupação ostrogoda, a Sardenha foi conquistada em 534 por Justiniano e tornou-se uma província do Império Bizantino em 535, como parte da prefeitura pretoriana da África, que também incluía a Córsega, as Baleares e partes do norte da África e do sul da Península Ibérica.[1][2] Em 551, a Sardenha foi ocupada pelos ostrogodos, mas logo recuperada pelos bizantinos na Guerra Gótica.[3] Após a guerra contra os lombardos, Tibério II transformou a prefeitura da África no Exarcado de Cartago, conferindo maior autonomia à região.[4] Após a conquista de Cartago pelo Califado Omíada, a ilha da Sardenha foi anexada ao Exarcado de Ravena, e crescentemente a figura dos duques se eclipsou, a autoridade máxima sobre a ilha passando para o juiz da Província (em latim: Judex Provinciae).[5]

Depois de 705, com a rápida expansão do islamismo, piratas muçulmanos do norte da África começaram a atacar a ilha, não encontrando oposição efetiva pelo exército bizantino, de forma que mais poderes foram agregados pelo juiz, conferindo, pois, autonomia substancial à antiga província.[6] Em 815, os embaixadores da Sardenha pediram pessoalmente assistência militar de Luís I, o Piedoso, sacro imperador romano-germânico sem intermédio do Império Bizantino, denotando sua independência do mesmo.[7] Em 827, após muito resistir às ofensivas islâmicas, a Sicília foi conquistada pelo Emirado Aglábida, cortando definitivamente a influência bizantina direta sobre a Sardenha.[2]

A escassez de fontes históricas não permite a certeza da data da passagem da autoridade central bizantina para o governo autônomo na Sardenha. Acredita-se que em algum momento o Judex Provinciae (talvez o presidente) de Cagliari tenha exercido total controle sobre a ilha.[8] A primeira fonte incontestável que cita a existência de quatro julgados é a epístola enviada pelo papa Gregório VII em 14 de outubro de 1073 aos juízes da Sardenha, mas a autonomia e pluralidade deles já era aparente em uma carta anterior do Papa João VIII (872), na qual ele se referia aos "príncipes da Sardenha".[9] Entre os séculos X e XI, contudo, algumas inscrições em grego falam da existência de um arconte único e supremo sobre toda a Sardenha.[10]

Decadência

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Pisa e Gênova começaram a infiltrar a política e economia dos judicados no início século XI, apoiando-o contra a Taifa de Dénia, reino islâmico que buscava conquistar a ilha, em movimento apoiado pelo Papado frequentemente entendido pelos historiadores modernos como uma "proto-Cruzadas".[11]

Na segunda metade fim do século XIII, a existência autônoma dos judicados de Logudoro, Gallura e Cagliari terminou através de manobras diplomáticas de Pisa e Gênova. Cagliari foi conquistada em 1258 por uma aliança entre Pisa e os três outros judicados, e foi dividida entre o juiz-rei de Arborea, o Visconde de Gallura e o Conde de Gerardesca, uma família sarda.[12] Adelásia, última rainha-juíza de Torres, faleceu no ano seguinte e seu reino foi dividido entre as famílias genovesas Doria, Malaspina e Spinola.[13] O último juiz-rei da Gallura, Nino Visconti, cuja dinastia pisana havia adquirido domínio do Judicado em 1218 através do casamento, morreu em 1296, e após isto Gallura passou diretamente para a República de Pisa.[14]

A sobrevivência de Arborea foi mais longa, e, entre 1323 e 1326, participou em aliança com a Coroa de Aragão para o reanexo das possessões pisanas na Sardenha. O juiz-rei Mariano IV, contudo, ameaçado pela pretensão de suserania de Aragão por toda a ilha, quebrou a aliança e declarou guerra contra a Coroa. Em 1368, uma ofensiva de Arborea quase expulsou por completo os aragoneses da ilha, reduzindo so Reino da Sardenha a meramente as cidades portuárias de Cagliari e Alghero, incorporando todo o resto a Arborea. Um tratado de paz com Aragão resultou no retorno de suas posses prévias em 1388, mas as tensões permaneceram, de forma que, em 1391, o exército de Arborea, liderado por Brancaleone Doria, novamente conquistou a maior parte da ilha. Esta situação se alongou até 1409, quando o exército do Judicado foi derrotado por Aragão em Sanluri, mas o Judicado permaneceu existindo residualmente até a venda de seus últimos territórios aos aragoneses pelo último juiz-rei, Guilherme II de Narbona, por cem mil florins de ouro.[15][16]

Administração

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Mariano IV da Arborea, juiz-rei no século XIV

São conhecidos quatro julgados medievais, cada um com fronteiras fortificadas, leis, administração e emblemas próprios:[17]

A organização administrativa dos julgados diferia significantemente das formas feudais do restante da Europa medieval, tendo maior semelhança com a administração do Império Bizantino, cujas instituições se desenvolveram e continuaram organicamente mesmo após a separação da ilha.[2] Cada Julgado era estruturado em curadorias, derivadas das subdivisões administrativas romanas e bizantinas primárias. Cada curadoria era administrada por uma assembleia chamada corona de curatoria, instituição semidemocrática chefiada por um corador nomeado pelo juiz-rei. e por sua vez era subdividida em vilas. Cada vila era administrada por um prefeito (em sardo: majore), nomeado pelo curador e encarregado de funções fiscais, judiciais e de segurança.[20]

As coronas de curatorias elegiam seus próprios representantes para assembleias parlamentares maiores chamadas coronas de logu, conselhos de anciães (representantes das curatorias e presbíteros). Eles apontavam o governante e atribuíam a ele o poder supremo, enquanto mantinham o poder para ratificar atas e acordos relacionados a todo o reino.[21] O juiz-rei não era um governante absoluto da tradição feudal, ao menos formalmente: não podia declarar guerra ou assinar tratados de paz sem o consentimento da corona de Logu. A sucessão ao trono era dinástica, dando-se preferência à linhagem masculina, mas havia casos de possibilidade de eleição pela corona de Logu.[22]

Um condache (também chamado kondake, condache, condake, condaxi ou fundaghe, do grego bizantino κοντάκιον, kontákion) era uma espécie de documento administrativo utilizada nos julgados entre os séculos XI e XIII.[23] São dos documentos mais antigos na língua sarda. O julgado de Arborea em particular desenvolveu a Carta de Logu, um código legal escrito em sardo e promulgado pelo juiz Eleanor em 1392. Foi vigente na Sardenha até ser substituído pelo código de Carlos Félix em 1827.[24]

Referências

  1. Casula 1990, pp. 137-8.
  2. a b c Solmi 2001, pp. 58-62.
  3. Casula 1990, p. 152.
  4. Casula 1990, p. 146.
  5. Casula 1990, p. 151-3.
  6. Casula 1990, pp. 157.
  7. Casula 1990, p. 159.
  8. Meloni 1994.
  9. Casula 1990, p. 163.
  10. Ortu 2005, pp. 43-5.
  11. Tyerman 2007, p. 55.
  12. Solmi 2001, p. 365.
  13. Meloni & Spiga 1999, p. 297.
  14. Sanciu Obino 1997, p. 47.
  15. Solmi 2001, pp. 386-409.
  16. D'Arienzo 1997, p. 9.
  17. Casula 1990.
  18. Casula 1990, p. 210.
  19. Casula 1990, p. 143.
  20. Solmi 2001, pp. 113-40.
  21. Casula 1990, pp. 170-171.
  22. Fais 2003, p. 11.
  23. Brown 1983.
  24. Birochi & Mattone 2004.

Bibliografia

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  • Birocchi; Mattone, eds. (2004), La Carta de logu d'Arborea nella storia del diritto medievale e moderno, ISBN 88-420-7328-8, Roma: Bari 
  • Brown, Rosalind (1983), «The Sardinian Condaghe of S. Michele di Salvenor in the Sixteenth Century», Papers of the British school at Rome, 51, pp. 248-257 
  • Casula, Francesco Cesare (1990), La politica religiosa del giudicato di Torres, ne I Cistercensi in Sardegna, Nuoro 
  • D'Arienzo, Luisa (1977), Documenti sui visconti di Narbona e la Sardegna, 1, Pádua: CEDAM 
  • Fais, Valerio (2003), Corona de Tottu Su Logu de Sardigna, Oristano: S'Alvure 
  • Meloni, Giuseppe; Dessì Fulgheri, Andrea (1994), Mondo rurale e Sardegna del XII secolo, Nápoles: Liguori 
  • Meloni, G.; Spiga, G., eds. (1999), Il Regno di Torres: atti di Spazio e Suono, Sassari: Centro Studi Basilica San Gavino 
  • Ortu, Gian Giacomo (2005), La Sardegna dei Giudici, Nuoro: Il Maestrale 
  • Sanciu Obino, Irma (1997), Il Giudicato di Gallura sotto i Visconti, Viella: Roma 
  • Solmi, Arrigo (2001) [1917], Maria Eugenia Cadeddu, ed., Studi storici sulle istituzioni della Sardegna nel Medioevo (PDF), ISBN 88-87825-28-9, Cagliari: Ilisso 
  • Tyerman, Christopher (2007), God's War: A New History of the Crusades, ISBN 9780141904313, Londres: Penguin Books 
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