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OS CAMPOS DA MEMÓRIA E DO PATRIMÔNIO CULTURAL: DISPUTAS,

NARRATIVAS E REPRESENTAÇÕES

THE FIELDS OF MEMORY AND CULTURAL HERITAGE: DISPUTES,


NARRATIVES AND REPRESENTATIONS

Recebido em: 02/09/2020


Aceito em:10/10/2020

Amilcar Guidolim Vitor1

Resumo: O artigo trata sobre questões relacionadas à memória e ao patrimônio enquanto campos semânticos
multifacetados e dispostos em diferentes áreas do conhecimento, buscando entendê-los sob uma perspectiva
histórica que os reconhece como um espaço de seleção, disputas e construção social do que deve ser lembrado ou
esquecido, patrimonializado ou não. Destaca o chamado “boom da memória” a partir das ideias de Jay Winter
(2006) e problematiza a questão dos lugares de memória a partir de Pierre Nora (1993), incluindo neste contexto
o patrimônio imaterial.

Palavras-chave: Memória; Patrimônio; Disputas; Representações.

Abstract: The article deals with issues related to memory and heritage as multifaceted semantic fields and
arranged in different areas of knowledge, seeking to understand them from a historical perspective that
recognizes them as a space for selection, disputes and social construction of what should be remembered or
forgotten, patrimonialized or not. It highlights the so-called “memory boom” based on the ideas of Jay Winter
(2006) and problematizes the issue of places of memory from Pierre Nora (1993), including intangible heritage
in this context.

Keyword: Museum; Memory; Patrimony; Disputes; Representations

INTRODUÇÃO
Analisar questões relacionadas à memória e às expressões do patrimônio cultural é
antes de tudo verificar a necessidade de empreender uma discussão semântica destas
definições do que é memória ou patrimônio. Tal necessidade está relacionada ao fato de que
estes termos são empregados em diferentes situações e áreas do conhecimento, especialmente
nas ciências humanas e sociais. Portanto, é imprescindível especificar em que contexto e
situações, bem como por qual viés são empregados.

1
Professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - URI - Campus Santo Ângelo. Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Maria -
UFSM.
53
Para a análise que aqui iremos desenvolver, trataremos os campos da memória e do
patrimônio tomando-os como parte de um universo de disputas ideológicas, políticas,
simbólicas e de representações sociais do passado, buscando entender como a memória e o
patrimônio são construídos socialmente a partir de interesses e disputas do presente.
Entendemos estes termos sob uma perspectiva histórica que os transformam em um campo de
litígio a partir do entendimento distinto que determinados grupos sociais fazem de eventos e
personagens do passado, ativando-os, representando-os e negociando com este passado tendo
em vista fazer lembrar e legitimar ou silenciar e negar.
Em um primeiro momento do texto iremos discutir definições e referenciais teóricos
acerca da memória e do patrimônio como campos de disputas, acionamentos, seleções,
lembranças e esquecimentos. Também trataremos do universo das representações e o papel
que desempenham nesse processo, pois existe uma relação estabelecida entre acionamentos
do passado, disputas pela memória e construção de legitimidade quanto às expressões do
patrimônio cultural que se valem das representações como forma de reconhecimento das
expressões materiais e imateriais que se elegem e patrimonializam como símbolos de grupos,
acontecimentos ou personagens da história.
Em um segundo momento iremos abordar as questões relacionadas ao
desenvolvimento do interesse pela memória e sua relação com o passado e o presente,
especialmente a partir da segunda metade do século XX. Nesse sentido trazemos as
contribuições de Jay Winter (2006) acerca do “boom da memória”. Na esteira disso, também
problematizamos a partir de Pierre Nora (1993) as questões que envolvem os lugares de
memória, reconhecendo como tal não apenas as expressões materiais do patrimônio, mas
imateriais também, como o caso da Tava Miri Guarani-Mbyá, em São Miguel das Missões,
Rio Grande do Sul, reconhecida em dezembro de 2014 e inscrita como Lugar de Referência
para o Povo Guarani no Livro de Registro de Lugares do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN).

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL: CAMPOS SEMÂNTICOS E


LITIGIOSOS
Especialmente no processo de escrita da história, o historiador se depara com
conceitos e definições que assumem diversos sentidos e significações, diferenças de
interpretações ou aplicação de termos em determinadas situações. Especialmente quando se
trabalha com definições de cultura, identidade, tradição, memória e patrimônio há que se levar
54
em consideração que tais termos constituem-se em campos semânticos, dada a sua
aplicabilidade em diferentes áreas do conhecimento, como a história, a sociologia, a filosofia,
a antropologia, a psicologia ou outras áreas, especialmente das ciências sociais e humanas.
Até mesmo em áreas mais técnicas é necessário esse cuidado, tendo em vista que vivemos em
uma era tecnológica onde se armazenam dados em memórias virtuais e onde patrimônio
significa antes de qualquer coisa bens com valor de mercado.
Neste contexto, tanto a palavra memória quanto patrimônio compõe um léxico
contemporâneo de expressões cuja característica principal é a multiplicidade de sentidos e
definições que a elas podem ser atribuídos (FERREIRA, 2006, p. 79). Assim, antes de
produzir qualquer tipo de discussão no que se refere a estes termos é necessário especificá-los
e retirá-los de uma macro análise que pode comprometer o sentido do que se está tentando
problematizar. Além do mais, “são conceitos complexos, ambíguos e polissêmicos, porque
são construções sociais cujos significados mudam dependendo da época, do tempo histórico e
segundo quem os emprega e para que fins os utilizem” (AREVALO, 2004, p. 925).
Para a análise e discussão aqui proposta, entendemos a memória e o patrimônio no
campo da história como o resultado de um processo de disputas e de construção social que
tem por objetivo dar legitimidade a um passado em que se recorre com a intenção de
representar e reafirmar a sua importância, seja num universo local, regional ou mesmo
nacional, construindo-se processos de patrimonialização de determinados bens de natureza
material ou imaterial. Esses acionamentos do passado que geram disputas, seleções e
representações sobre o que deve ser preservado podem ser sentidos de forma mais recorrente
no universo das expressões materiais do patrimônio cultural, apesar de não ser estranho em
relação às expressões imateriais. Conforme o Artigo 216 da Constituição Federal de 1988, o
patrimônio cultural constitui-se como sendo os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL, 1988). E é a partir deste ponto
que se pode discutir sobre quem define, quem seleciona, quem representa e com que objetivos
faz isso, que disputas estão por trás do estabelecimento dos bens materiais e imateriais que
irão constituir o patrimônio cultural de uma cidade, região, estado ou país?
De acordo com Possamai (2000), sendo a cultura universo de escolha, não é demais
ressaltar que as operações relacionadas ao patrimônio implicam, antes de qualquer coisa, uma
seleção dos elementos culturais que serão alvo das práticas de preservação. É justamente na
atribuição de valor que se situa o ponto nodal da noção de patrimônio, valores de cunho
55
nacional, histórico, artístico, arquitetônico, paisagístico, afetivo, entre outros, operando a
definição do que será considerado patrimônio, portanto digno de preservação, e o que será
relegado ao esquecimento. Neste sentido, sendo escolha, o patrimônio pode ser considerado
como representação social. Roger Chartier (2002, p. 66) refere que: “representar é fazer
conhecer as coisas imediatamente pela ‘pintura de um objeto’, ‘pelas palavras e pelos gestos’,
por algumas figuras, por algumas marcas – como os enigmas, os emblemas, as fábulas, as
alegorias”. Para o autor as representações sociais podem ser concebidas como algumas das
respostas que as coletividades dão aos seus conflitos, divisões e opiniões manifestadas
distintamente, constituindo uma força reguladora da vida cotidiana e coletiva, pois é no centro
das representações e dos imaginários que o problema da legitimação do poder e da afirmação
dos grupos se encontra. Aqueles grupos que conseguem definir os canais de representação,
inclusive a interpretação atribuída ao passado, também detém o poder de impor a visão e a
divisão do mundo social que melhor lhes convém (POMMER, 2009, p. 46).
Dessa forma, sendo parte de um universo de representações sociais os campos da
memória e do patrimônio cultural estão suscetíveis a disputas, sejam elas políticas,
econômicas ou simbólicas que visam fazer lembrar determinados períodos ou personagens do
passado efetivando escolhas sobre o que pode ou deve ser reconhecido como expressão
material ou imaterial do patrimônio cultural de uma dada cidade, região, estado ou país. São
resultados de processos de construção social, de usos, ativações e disputas ideológicas por
legitimação que tem como pano de fundo um passado a ser ativado no presente. São campos
em processo de litígio que vão sendo acionados e representados conforme interesses de
grupos e que variam de acordo com épocas e espaços.
Muito disso, desses embates por legitimação e acionamentos do passado, refere-se a
dimensão econômica do patrimônio cultural, pois, sob a ótica de Dias (2006) ele tornou-se um
elemento valioso para os municípios oferecerem ao mercado turístico, quer sob a forma de
manifestações materiais (monumentos, esculturas, palácios, habitações etc.), quer sob a forma
de manifestações imateriais (festas, folclore, danças, folguedos, manifestações religiosas,
música etc.). Ainda de acordo com o autor, os bens a serem conservados são escolhidos pelas
diferentes sociedades em uma momento determinado e refletirão os valores compartilhados
pelo grupo social, que pretende reforçar com o patrimônio. A população identifica-se com o
patrimônio, de modo a reforçar sua identidade, constituir sua memória social e histórica, pela
qual identificam o processo de construção cultural de sua realidade presente e reforçam sua
consciência de pertencer a um grupo histórico especifico (DIAS, 2006, p. 68-69).
56
No que se refere às concepções teóricas acerca da memória torna-se imprescindível
destacar sua importância como elemento de influência no processo de estabelecimento e
representações de acontecimentos, personagens ou expressões do patrimônio cultural. Sendo
amplamente assediada através de discursos de diferentes grupos ou instituições, a memória
pode afirmar, alterar ou criar concepções que dizem respeito a eventos do passado
rememorados no presente, estabelecendo, dessa forma, a relação entre ambos (LE GOFF,
1996, p. 204).
A memória coletiva é amplamente regulada, tanto pela oralidade quanto pela escrita
para demonstrar a sua aceitação, ou não, em relação aos seres atuantes da sociedade e suas
ideologias. De acordo com a ideia de Halbwachs (2006, p.32): “É comum que imagens desse
tipo, impostas pelo meio em que vivemos, modifiquem a impressão que guardamos de um
fato antigo, de uma pessoa outrora conhecida”. A tentativa de influenciar a memória coletiva
faz parte de um processo que tem por finalidade atuar no imaginário através das
representações produzidas pelos diferentes grupos da sociedade. Esses aspectos são sentidos
frequentemente em relações que fazem parte dos embates pelo poder, principalmente o
político. Conforme Le Goff (1996, p. 426) a memória coletiva foi colocada como um
importante instrumento na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da
memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações dos grupos sociais e as
ativações ou esquecimentos são mecanismos da memória coletiva.
Ainda sobre a memória coletiva, Nora (apud LE GOFF, 1996, 472) a define como
sendo “o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado”.
Assim, compreende-se que este passado no vivido dos grupos se expressa através do
patrimônio cultural. Já o que os grupos fazem do passado, caracteriza-se como a utilização
desses elementos no presente. “Mais do que falar em memória individual ou coletiva, também
é importante refletir sobre a ideia de que falamos de apropriações do passado e seus usos
sociais no presente” (FERREIRA, 2012, p. 13).
Na relação que se estabelece entre memória e patrimônio Guillaume apud Candau
(2016, p. 158-159) defende que o patrimônio funciona como um aparelho ideológico da
memória, pois a conservação sistemática dos vestígios serve de reservatório para alimentar as
ficções da história que se constrói a respeito do passado. Na mesma linha, Poulot apud
Candau (2016, p. 159) afirma que a história do patrimônio é a história da construção do
sentido de identidade e dos imaginários de autenticidade que inspiram as políticas

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patrimoniais. Assim, o relicário da memória se transforma em um relicário de identidade que
se busca no passado. (CANDAU, 2016, p. 159).
De acordo com Dias (2006, p. 50) o patrimônio cultural simboliza a identidade
cultural de uma comunidade, sendo a expressão mais explícita desta, pois ao se identificarem
com determinada expressão do patrimônio os membros de um grupo social se filiam a um
mesmo agrupamento, compartilhando significados e símbolos e facilitando a produção de
identidades coletivas. A memória é instância construtora e cimentadora de identidades
mediante a seleção do que se recorda e do que, consciente ou inconscientemente, se silencia.
(CATROGA, 2015, p. 74).
François Hartog (2015, p. 193), trata o patrimônio como uma espécie de alter ego da
memória, questionando o que se tem chamado de patrimonialização no que se refere às
políticas de memória, idealização e construção social do patrimônio cultural nas últimas
décadas. De acordo com ele, se inventariou todo tipo de novos patrimônios e se declinaram
novos usos do patrimônio. Assim, se percebe o quanto o patrimônio se tornou um instrumento
não apenas de afirmação e reafirmação de identidades, mas também um instrumento político e
alvo de disputas políticas. Cabe inserir nessa discussão, os escritos de Llorenç Prats (1997, p.
20) acerca do patrimônio como o resultado de um processo de construção social. De acordo
com ele, o patrimônio não existe na natureza, não é algo dado e nem um fenômeno universal,
mas um artificio idealizado por alguém em lugar e momento para determinados fins.
Em se tratando de invenção e da construção do patrimônio, Prats destaca que não são
processos antagônicos, opostos, mas fases complementares. De acordo com ele, invenção se
refere, sobretudo a processos pessoais e conscientes de manipulação, enquanto a construção
social se associa a processos inconscientes e impessoais de legitimação. Nesse caso, a
invenção, para se arraigar e perpetuar necessita converter-se em construção social. Reside aí o
papel importantíssimo que desempenham as representações sociais como postulou Roger
Chartier, na medida em que são capazes de tornar presente um objeto ausente, principalmente
no que se refere ao passado, legitimando-o como parte essencial de um projeto de nação, de
identidade ou como trata Llorenç Prats, de patrimônio cultural. Segundo Canclini (1999 apud
DIAS, 2006, p. 83-84), o patrimônio cultural deve ser analisado como um espaço, não apenas
de unidade, mas também de disputas materiais e simbólicas entre classes, etnias e grupos
sociais.

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O “BOOM DA MEMÉRIA”, OS LUGARES DE MEMÓRIA E O PATRIMÔNIO
IMATERIAL.
A partir da segunda metade do século XX a historiografia demonstrou preocupação,
com as questões relacionadas à memória e o papel desempenhado por ela na sociedade,
principalmente a partir da atuação do Estado e suas políticas de reconhecimento e
patrimonialização, que num primeiro momento foram mais direcionadas às expressões do
patrimônio cultural material. Nesse ponto, a teoria dos lugares de memória de Pierre Nora foi
fundamental para esta discussão acerca do papel que o Estado desempenhou na construção
destes lugares, muitos deles reconhecidos como expressão do patrimônio. Nessa relação entre
memória e história, o mesmo Pierre Nora (1993, p. 9) vem nos dizer que a memória é a vida
carregada pelos grupos vivos estando em permanente evolução, aberta a dialética da
lembrança e do esquecimento. Já a história é a reconstrução sempre problemática e
incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente, enquanto a história uma representação do passado. Cabe ao Historiador
encontrar os lugares ativos para reencontrar os discursos dos quais estes lugares foram os
suportes. O que faz o lugar de memória é que ele seja um entroncamento onde se cruzaram
diferentes caminhos de memória, de modo que somente ainda estão vivos os lugares
retomados, revisitados, remodelados. (HARTOG, 2015, p. 165).
Dessa forma, os lugares de memória desempenham importante papel na sociedade,
constituindo-se em espaços que têm a possibilidade de tornarem-se sujeitos portadores de
recordação e dotados de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres
humanos. Os locais não tem em si uma memória imanente, mas ainda assim fazem parte da
construção de espaços culturais de recordação muito significativos. Não apenas porque
solidificam e validam a recordação, mas também por corporificarem uma continuidade da
duração que supera a recordação relativamente breve dos indivíduos, épocas e culturas
concretizadas em artefatos (ASSMANN, 2001, p. 317-318).
Por outro lado, os lugares de memória são criados e a eles atribuídos significados que
nem sempre pertencem a todos os grupos que compõem a sociedade, o que pode gerar
disputas por passados e memórias. O que pode ser considerado legítimo para um pode não o
ser para outro. Muitos grupos sociais e até mesmo acontecimentos do passado não dispõem de
lugares onde se faça referências às suas histórias, ao seu “ontem” como forma de entender o
seu “hoje”, principalmente as minorias étnicas, pela opressão historicamente sofrida.

59
Dando-nos suporte para essas afirmações em relação aos lugares de memória, Pierre
Nora (1993, p. 13) vem afirmar que esses nada mais são do que expressões de uma sociedade
preocupada com sua transformação e renovação, valorizando mais o novo que o antigo, mais
o futuro que o passado. Para o autor:

[...] São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa
sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os
particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por principio;
sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende
a reconhecer indivíduos iguais e idênticos (NORA, 1993, p. 13).

Além disso, o autor destaca que os lugares de memória são criados porque não há
memória espontânea. Eles são construídos, pois o que defendem apresenta-se ameaçado e sem
vigilância comemorativa. A história rapidamente os varreria. Para o autor, se realmente
vivêssemos as lembranças que os lugares de memória envolvem eles seriam inúteis. E,
também, se a história não se apoderasse deles para transformá-los, eles não se tornariam
lugares de memória (NORA, 1993, p. 13). A partir daí, pode-se aferir que a história, enquanto
representação produzida pelos historiadores e pelos próprios grupos sociais pode ser o agente
criador, transformador e legitimador dos lugares de memória. Para Nora, os lugares de
memória são:

[...] Lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semi-oficiais e
institucionais, semi-afetivos e sentimentais; lugares de unanimidade sem
unanimismo que não exprimem mais nem convicção militante nem participação
apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica. Oscilação do
memorial ao histórico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um mundo da
relação contingente com aquilo que nos engendrou, passagem de uma história
totêmica para uma história critica; é o momento dos lugares de memória [...]
(NORA, 1993, p. 13).

Assim, os lugares de memória apresentam-se como uma idealização dos grupos a


partir da história. Nem todos os grupos sociais reconhecem ou criam seus lugares de memória,
e o mesmo acontece com o patrimônio cultural. Entretanto, Nora (1993, p. 25) define bem a
relação que se estabelece entre memória e história a partir de sua ideia de que a memória
pendura-se em lugares, enquanto a história em acontecimentos.
A segunda metade do século XX proporcionou estas preocupações com a memória e o
papel desempenhado por ela em sociedade, suscitando inclusive a ideia de que se teve um
“boom da memória” com diversos estudos sobre esta temática nas ciências sociais e humanas.

60
Esse processo também teria gerado uma multiplicação descontrolada de novos lugares de
memória. Assim, pesquisas sobre est temática emergiram na Europa na década de 1980 com
a reedição da teoria sociológica da memória de Maurice Halbwachs, além dos estudos do
próprio Pierre Nora. Nietzsche, Benjamin e Foucault foram outros pontos de contato
importantes para os debates subsequentes (HUYSSEN, 2014, p. 13).
Algo que também exerceu influência neste processo de desenvolvimento dos estudos
da memória na década de 1980 foi a preocupação com as questões relacionadas aos eventos
traumáticos do século XX, como guerras civis, massacres, genocídios e, especialmente a
shoah2 no contexto da Segunda Guerra Mundial. O Terceiro Reich, o Holocausto e a história
da Segunda Guerra Mundial passaram a serem os principais focos dos estudos da memória na
Europa e nos Estados Unidos. No campo da ciência histórica a Mnemo-história tornou-se um
termo corrente para designar esse novo subcampo da historiografia. (HUYSSEN, 2014, p.
13).
Entretanto, não apenas no âmbito das ciências os estudos e pesquisas acerca da
memória se desenvolveram. Também no cinema houve contribuição para que as questões
relativas à memória e o passado pudessem aparecer com mais força naquele cenário. Um
grande exemplo disso foi o documentário Shoah, dirigido pelo francês Claude Lanzmann e
lançado em 1985. Nele Lanzmann prefere ouvir os testemunhos e as memórias traumáticas
verbalizadas por alguns dos próprios sobreviventes da shoah, oferecendo um panorama real
daqueles que vivenciaram os horrores da guerra e dos campos de concentração. O próprio
diretor disse querer produzir um documento acerca do assunto com o filme.
O “boom da memória” no final do século XX é reflexo de uma matriz complexa de
sofrimento, ativismo político, reivindicações de indenização, pesquisa científica, reflexão
filosófica e arte (WINTER, 2006, p. 87). Também é o resultado de um novo cenário que na
esteira da globalização e da pós-modernidade vai produzir e mercantilizar a cultura e o
próprio passado. Nos anos 1990 havia uma população de pessoas de nível universitário muito
maior do que antes. Sua demanda por produtos culturais de diversas espécies era evidente. O
mercado estava lá; a população alvo para produtos culturais estava lá; e depois de duas
décadas de retração, o suporte do Estado para a “herança” ou “le patrimoine” estava lá com
um grau maior ou menor de generosidade. A transformação da memória em mercadoria valeu
a pena, houve um enorme “boom” de consumo do passado em filmes, livros, artigos e, mais
recentemente, na internet e na televisão. Há toda uma indústria dedicada a “exibições de

61
grande impacto” em museus, cujos visitantes parecem responder cada vez mais a shows
espetaculares (WINTER, 2006, p. 77-79).
Na esteira desse “boom da memória” que nos coloca Jay Winter, é que as discussões
sobre o reconhecimento da dimensão imaterial do patrimônio cultural também ganhou espaço.
De acordo com o portal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) os
bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social
que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão
cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que
abrigam práticas culturais coletivas3. Para atender às determinações legais e criar
instrumentos adequados ao reconhecimento e à preservação desses bens imateriais, o IPHAN
coordenou os estudos que resultaram na edição do Decreto nº. 3.551, de 4 de agosto de 2000,
o qual que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), consolidando o Inventário Nacional de Referências
Culturais (INCR). Em 2004, uma política de salvaguarda mais estruturada e sistemática
começou a ser implementada pelo Iphan a partir da criação do Departamento do Patrimônio
Imaterial (DPI)4.
No processo de registro dos bens culturais de natureza imaterial, o IPHAN criou
algumas categorias no sentido de organizar as diferentes possibilidades de manifestação do
patrimônio em seu universo imaterial. Assim, existe o Livro de Registro dos Saberes, que
reúne conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, como
conhecimentos tradicionais associados a atividades desenvolvidas por atores sociais
reconhecidos como grandes conhecedores de técnicas, ofícios e matérias-primas que
identifiquem um grupo social ou uma localidade; o Livro de Registro das Celebrações, que
reúne os rituais e festas que marcam a vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras
práticas da vida social; o Livro de Registro das Formas de Expressão, criado para registrar as
manifestações artísticas em geral, como performances culturais de grupos sociais,
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas, importantes para a cultura,
memória e identidade; e, por fim, o Livro de Registro dos Lugares, onde estão inscritos os
mercados, feiras, santuários e praças onde se concentram e/ou se reproduzem práticas
culturais coletivas. Lugares que possuem sentido cultural diferenciado para a população local,

62
onde são realizadas práticas e atividades de naturezas variadas, tanto cotidianas quanto
excepcionais5.
Sendo o Brasil um país de grande diversidade étnica e cultural existem múltiplas
manifestações do patrimônio imaterial, bem como narrativas e representações sobre ele. A
efetivação de políticas públicas através de inventários, registros e processos de
reconhecimento das expressões imateriais do patrimônio, especialmente a partir deste século,
têm sido fundamentais no sentido de demonstrar que as discussões sobre memória e
patrimônio cultural vão muito além da dimensão material. A própria metodologia da educação
patrimonial tornou-se uma ferramenta indispensável para auxiliar no processo de formação de
cidadãos sensíveis ao reconhecimento das expressões imateriais que compõem a cultura de
suas cidades e regiões. Maria de Lourdes Parreiras Horta (1999), explica que a educação
patrimonial é instrumento de “alfabetização cultural”, a qual possibilita ao individuo fazer a
leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da
trajetória histórico-temporal em que está inserido. Assim, valoriza-se a cultura brasileira,
compreendida como múltipla e plural.
Na região das missões do Rio Grande do Sul uma das principais expressões do
patrimônio imaterial é a Tava Miri Guarani-Mbyá, reconhecida em dezembro de 2014 e
inscrita como Lugar de Referência para o Povo Guarani no Livro de Registro de Lugares.
Para os Guarani-Mbyá, a Tava é um local onde viveram seus antepassados, onde é possível
vivenciar o bom modo de ser Guarani-Mbyá. Também é considerada um lugar de referência
por ser um espaço vivo que articula concepções relativas ao bem-viver, integra narrativas
sobre a trajetória deste povo e é diariamente vivenciada como lugar de atividades diversas e
de aprendizado para os jovens. Seu valor patrimonial reside na sua capacidade de comunicar
temporalidades, espacialidades, identidades e elementos da cultura indígena cravada na
história brasileira6.
Independentemente de sua dimensão, se material ou imaterial, o patrimônio cultural
precisa ser reconhecido como um campo de seleções, disputas, narrativas e representações
capaz de suscitar a busca pela legitimidade e reconhecimento de determinados eventos do
passado ou manifestações culturais tidas como fundamentais para determinados grupos
étnicos, sociais ou políticos. Perceber que tipos de discursos são construídos sobre estas
expressões torna-se relevante na medida em que estes processos de acionamentos não são

63
naturais ou espontâneos. E isto não implica ser algo negativo, pelo contrário, nada mais são
do que o reflexo de nossas relações sociais, as quais são capazes de produzir união ou
dissociação e disputas por espaços de reconhecimentos dos mais variados grupos e atores
sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os campos da memória e do patrimônio são multifacetados, envolvem uma série de
elementos que devem ser levados em consideração tendo em vista a abordagem que se faz
acerca destes campos semânticos. Nossa proposta foi buscar compreendê-los a partir de uma
perspectiva histórica que pudesse evidenciar o quanto o passado pode ser interpretado,
reinterpretado e representado a partir de interesses específicos, seja de pessoas, grupos sociais
e instituições, e o quanto isso pode vir a transformar o campo da memória e do patrimônio em
alvos de disputa por legitimidade.
Nesse sentido, cabe ao historiador dar visibilidade e analisar estas questões. Muito
mais importante do que hierarquizar memórias e expressões do patrimônio cultural, é
necessário entender como se dá o processo de seleção destas memórias e destes patrimônios, o
que está por trás disso, quem está por trás disso e que impactos possui na construção das
identidades e na maneira como as sociedade enxergam seu passado. Mais do que romantizar a
memória e o patrimônio é fundamental entender sua complexidade enquanto campos de
seleção e disputa.
No decorrer do século XX, especialmente na segunda metade, e na medida em que os
acontecimentos históricos passaram a serem analisados com uma profusão de teorias e
metodologias que contribuíram para a profissionalização da pesquisa histórica, temas como a
importância e o papel desempenhado pela memória, os lugares de memória e as disputas em
torno destas memórias passaram a serem alvos de estudo.
Como destacou Jay Winter (2006), esse processo também foi estimulado por um
cenário de transformações sociais provocadas pela pós-modernidade e a globalização. Não
apenas políticas de Estado, mas uma profusão de fatores proporcionou uma maior
preocupação com o papel que a memória e os lugares de memória desempenham para nações,
grupos étnicos e identidades culturais. Memórias de grandes acontecimentos, memórias de
interesse do Estado para a consolidação de um projeto de nação, memórias de grupos étnicos
e minorias e principalmente memórias de eventos traumáticos passaram a ser estudadas pelas
ciências sociais e humanas.
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Na esteira desse processo, houve o reconhecimento pela dimensão imaterial do
patrimônio cultural. Festas, rituais religiosos, lugares de memória, como a Tava Miri Guarani-
Mbyá, além de diversos outros saberes e fazeres das mais variadas culturas passaram a ser
registrados e reconhecidos, o que não significa que também não façam parte da mesma
estrutura de seleção, disputas e representações sociais pelas quais as expressões materiais
geralmente são alvo. Por isso a importância e a necessidade de pesquisas, estudos de caso e
análises que contemplem os campos da memória e do patrimônio cultural como alvos desses
processos de disputas, seleções, reconhecimentos e representações, descortinando os grupos
sociais e os interesses nisso.

REFERÊNCIAS

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