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Document (1) Civil

O artigo analisa sistematicamente as vicissitudes da inexecução das obrigações, diferenciando os efeitos da não realização da prestação da imputabilidade do devedor. Discute aspectos como a impossibilidade liberatória, a mora no direito brasileiro, e as consequências do inadimplemento, incluindo a responsabilidade de devedores solidários. O estudo busca entender como essas vicissitudes impactam o contrato sinalagmático como um todo.

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Vinícius Dias
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O artigo analisa sistematicamente as vicissitudes da inexecução das obrigações, diferenciando os efeitos da não realização da prestação da imputabilidade do devedor. Discute aspectos como a impossibilidade liberatória, a mora no direito brasileiro, e as consequências do inadimplemento, incluindo a responsabilidade de devedores solidários. O estudo busca entender como essas vicissitudes impactam o contrato sinalagmático como um todo.

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DOI: 10.33242/rbdc.2023.03.

009

INEXECUÇÃO DAS OBRIGAÇÕES E


SUAS VICISSITUDES: ENSAIO PARA A
ANÁLISE SISTEMÁTICA DOS EFEITOS
DA FASE PATOLÓGICA DAS RELAÇÕES
OBRIGACIONAIS*
FAILURE TO PERFORM OBLIGATIONS AND THEIR
VICISSITUDES: ASSAY FOR A SYSTEMATIC APPROACH
TO THE EFFECTS OF THE PATHOLOGICAL PHASE OF
OBLIGATIONAL RELATIONSHIPS

Gustavo Tepedino
Professor titular de Direito Civil e Ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2018-9336.
E-mail: gt@tepedino.adv.br

Carlos Nelson Konder


Professor titular de Direito Civil Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutor e Mestre
em Direito Civil pela UERJ. Especialista em Direito Civil pela Università di Camerino
(Itália). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8535-0218. E-mail: carlos.konder@uerj.br

Resumo: O artigo pretende oferecer análise sistemática das vicissitudes da inexecução das obrigações,
a partir de método indutivo e de pesquisa bibliográfica exploratória, de modo a distinguir os efeitos vin-
culados à não realização da prestação em si daqueles decorrentes da imputabilidade do devedor pelo
descumprimento. Partindo da distinção entre inexecução e inadimplemento e dos critérios para imputa-
ção do devedor, aborda-se o alargamento da impossibilidade liberatória, as peculiaridades da mora no
regime legal brasileiro, o tratamento conferido à execução por terceiro e ao desfazimento forçado, bem
como o regime aplicável aos juros e às perdas e danos no inadimplemento imputável a somente um dos
devedores solidários. Por fim, discute-se a repercussão da inexecução da obrigação sobre o contrato
sinalagmático como um todo.
Palavras-chave: Inadimplemento. Mora. Resolução. Contrato. Cláusula penal.

* Os autores agradecem ao Max Planck Institute für Ausländisches und Internationales Privatrecht Hamburg,
onde realizaram grande parte da pesquisa necessária ao presente artigo, bem como à professora Milena
Donato Oliva, pela leitura dos originais.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

Abstract: The article aims a systematic approach to the vicissitudes of non-performance, based on an
inductive method and exploratory bibliographical research, in order to distinguish the effects linked to
the non-performance itself from those arising from the debtor’s liability for non-compliance. Starting
from the distinction between non-execution and default, and the criteria for attributing responsibility to
the debtor, it addresses the extension of the liberatory impossibility, the peculiarities of default in the
Brazilian legal regime, the treatment given to execution by a third party and forced undoing, as well as
the applicable regime of interests and indemnity in default attributable to only one of the joint debtors.
Finally, the repercussion of non-performance of the obligation on the reciprocal contract as a whole is
discussed.
Keywords: Default. Non-performance. Rescission. Contract. Penalty clause.
Sumário: 1 Notas introdutivas – 2 Inexecução e inadimplemento. Critérios de imputabilidade do deve-
dor. A culpa e a difusão da imputabilidade objetiva – 3 Imputabilidade e impossibilidade superveniente.
Relatividade da impossibilidade liberatória – 4 Abrangência e peculiaridades da mora no ordenamento
brasileiro – 5 Releitura da execução por terceiro e do desfazimento forçado nas obrigações de fazer
e não fazer – 6 Fundamentos da distinção entre o regime das perdas e danos e dos juros pela ine-
xecução imputável a somente um dos codevedores solidários – 7 Projeções das vicissitudes da rela-
ção obrigacional sobre o contrato sinalagmático: exceção de contrato não cumprido e resolução – 8
Apontamentos conclusivos – Referências

O efeito que decorre, imediatamente,


da obrigação, e o que mais avulta, é a sua execução.
(Clovis Bevilaqua)**

1 Notas introdutivas
Ingrato o destino do vínculo obrigacional: desde o seu nascimento prepara-se
funcionalmente para a própria extinção. O pagamento, por sua vez, o modo natural
de extinção, apresenta incontornável paradoxo: quanto mais forte o vínculo obriga-
cional, mais efêmero ele se torna, com a liberação do devedor e a satisfação do
credor no tempo e modo pactuados. Diante desse inquietante cenário, o direito
obrigacional se dedica a debelar dois grandes riscos para o sistema: o risco do
inadimplemento e o risco da insolvência. Este último é contornado com a adoção
de garantias, reais ou fidejussórias, as quais, ao acostar ao patrimônio do devedor
determinados bens móveis ou imóveis (garantias reais) ou patrimônios distintos
(garantias fidejussórias), fortalecem a expectativa do credor quanto à satisfação
do crédito.

**
BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1936. p. 93.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

Em relação ao risco do inadimplemento, que interessa diretamente ao pre-


sente estudo, além das garantias especiais, o ordenamento pretende debelá-lo
com o conjunto de instrumentos inseridos nos cinco capítulos do Título IV do Li-
vro Primeiro da Parte Especial do Código Civil, dedicado ao direito das obrigações,
visando a garantir a coercitividade das prestações e a prever as consequências
adversas do inadimplemento, de modo a dissuadi-lo. Tamanha revela-se tal pre-
ocupação, que o direito civil, tradicionalmente, preocupava-se apenas com esse
fatídico momento do vencimento das prestações, de modo a aferir se houve o pa-
gamento regular, extinguindo-se o vínculo obrigacional, ou, ao contrário, inocorreu
o cumprimento nos termos pactuados. Na falta de execução exata, inaugura-se a
fase patológica da vida da obrigação, devendo-se perquirir a causa do incumpri-
mento e suas consequências.
Todavia, desde a segunda metade do século passado, e especialmente nas
últimas cinco décadas, passou-se a perceber o vínculo obrigacional como relação
de cooperação, que se inicia antes mesmo da celebração do negócio, já no con-
tato social estabelecido nas tratativas, e se desenvolve, ao longo de toda a vida
da obrigação, a exigir, de credor e devedor, empenho, diligência e lealdade em
toda a preparação, concretização e execução da relação obrigacional.1 Trata-se de
perspectiva dinâmica ou funcional da teoria das obrigações, mediante a qual se
constata que os modelos jurídicos são dotados de estrutura que deve atender à
precedente definição da função a que se pretende alcançar por qualquer ato ou
fato jurídico. Notadamente no que tange ao tema aqui proposto, a partir da função
a ser desempenhada pelo vínculo obrigacional deverá ser definida a estrutura que
melhor atenda ao tráfico jurídico – e não o contrário.2
A abordagem setorial das variadas vicissitudes da fase patológica das rela-
ções obrigacionais acaba por prejudicar as necessárias harmonia e coerência que se
impõem à análise do inadimplemento no ordenamento como um todo. Justifica-se,
portanto, a partir de método indutivo e de pesquisa bibliográfica exploratória, em-
preender análise sistemática dos efeitos da inexecução, de modo a associar quais
efeitos se vinculam à não realização, por si só, da prestação e quais demandam a
imputabilidade do devedor pelo descumprimento. Sob essa perspectiva, examina-se
o alargamento da impossibilidade liberatória, as peculiaridades da mora no regime
legal brasileiro, o tratamento dado à execução por terceiro e ao desfazimento força-
do, bem como o regime aplicável aos juros e às perdas e danos no inadimplemento
imputável a somente um dos devedores solidários. A título conclusivo, discute-se

1
LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Tradução de Jaime Santos Briz. Madrid: Revista de Derecho
Privado, 1958. t. I. p. 20 e ss. Na doutrina brasileira, cf. COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como
processo. reimpr. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 19.
2
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 642-643.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

ainda a necessidade de ponderar quais dessas vicissitudes obrigacionais efetiva-


mente repercutem – e com que extensão – sobre o interesse tutelado no contrato
sinalagmático em que se inserem.

2 Inexecução e inadimplemento. Critérios de imputabilidade


do devedor. A culpa e a difusão da imputabilidade objetiva
Se é certo que, em perspectiva dinâmica e funcional, o processo obrigacional
percorre cada um dos momentos de vida da obrigação, desde sua gestação até
a extinção, as adversidades igualmente podem ser identificadas em todas essas
etapas de desenvolvimento. De certa maneira, pode-se dizer que o pagamento faz
convergir todas as possíveis vicissitudes que poderão ter, por assim dizer, fortale-
cido ou enfraquecido a posição do credor. Por esse motivo, é neste momento da
exigibilidade do pagamento, em que deve ser conferida a execução da obrigação
pelo devedor, que ocorrerá a sua extinção, tal qual pactuado, ou o recurso aos
instrumentos predispostos pelo legislador e pelas partes para o enfrentamento
dessa fase patológica.
Em tal perspectiva, ao inaugurar o Título IV, o art. 389 do Código Civil precei-
tua: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais ju-
ros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos,
e honorários de advogado”. O inadimplemento ou descumprimento da prestação,
a rigor, subordina-se à imputabilidade, isto é, ao nexo de atribuição da respon-
sabilidade (objetiva ou subjetiva) ao devedor, instado a executar a obrigação na
forma pactuada. Por esse motivo, antes de se conhecer a causa da ausência ou
inexatidão do pagamento na data, no local e na forma convencionados – e que
acarretará a imputabilidade do devedor – tem-se simplesmente a inexecução da
obrigação. De fato, do ponto de vista sistemático, a noção de execução mostra-se
mais abrangente e independe de imputação. Assim é que o codificador, reiteradas
vezes, associa o não cumprimento ou inadimplemento à imputabilidade, ao passo
que a expressão “inexecução da prestação” é utilizada tanto para hipóteses de
imputabilidade (art. 403)3 quanto de inimputabilidade (arts. 253 e 254).4

3
CC, art. 403. “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos
efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”
(grifos nossos).
4
CC, art. 253. “Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível,
subsistirá o débito quanto à outra” (grifos nossos); CC, art. 254. “Se, por culpa do devedor, não se puder
cumprir nenhuma das prestações, não competindo ao credor a escolha, ficará aquele obrigado a pagar o
valor da que por último se impossibilitou, mais as perdas e danos que o caso determinar” (grifos nossos).

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

Constatada a inexecução da prestação, que conceituada doutrina designa,


de modo eloquente, como cooperazione mancata,5 há que se investigar se o fato
superveniente que impossibilita a prestação é imputável ao devedor. Avulta neste
momento o conceito de imputabilidade, como nexo de atribuição da responsabili-
dade pela inexecução ao devedor.
Tradicionalmente, tendo em conta provavelmente a centralidade da responsabi-
lidade subjetiva na responsabilidade civil, reduzia-se a imputabilidade à culpabilidade
do devedor.6 Em consequência, seria considerado responsável pelo inadimplemento,
relativo ou absoluto, o agente culpado pelo descumprimento do dever jurídico, contra-
tual ou extracontratual. Tal era a leitura, a título ilustrativo, que se fazia do revogado
art. 955, CC1916, em linguagem idêntica à do atual art. 394, Código Civil (“Consi-
dera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser
recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”), e do art.
963 do regime anterior, correspondente à dicção do atual art. 396: “Não havendo
fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.
Gradualmente, contudo, com a expansão das hipóteses de responsabilidade
objetiva, seja pela legislação especial, como o Código de Defesa do Consumidor7
e a legislação ambiental,8 seja pelo próprio codificador civil,9 estabeleceu-se no
direito brasileiro sistema dualista de responsabilidade, em que a responsabilida-
de subjetiva, cuja imputabilidade se subordina à culpa ou dolo do agente (arts.
186 e 927, caput, do Código Civil),10 convive, lado a lado, com a responsabilidade
objetiva, decorrente da imputação legal de riscos associados a determinadas ati-
vidades. Tal critério objetivo de reponsabilidade, normalmente vinculado a impera-
tivos de segurança e de garantia, justificam, em larga medida, a difusa alusão à

5
BETTI, Emilio. Teoria generale delle obbligazioni. Milano: Giuffrè, 1953. v. I. p. 107. Em tradução livre,
“ausência de cooperação” ou “cooperação fracassada”.
6
Extrai-se, curiosamente, o resquício de tal redução conceitual na própria linguagem do codificador. Cfr., v.g.,
o art. 408: “Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cum-
prir a obrigação ou se constitua em mora”. Mostra-se significativo que, no preceito equivalente do Código
Civil de 1916, não havia a referência à inculpação: art. 921. “Incorre de pleno direito o devedor na cláusula
penal, desde que se vença o prazo da obrigação, ou, se o não há, desde que se constitua em mora”.
7
Cfr. Lei nº 8.078/90, art. 12 e ss.
8
Cfr. art. 14, §1º, Lei nº 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente.
9
Cfr., v.g., arts. 927, parágrafo único, 931 e 933, CC, in verbis: art. 927, parágrafo único: “Haverá obri-
gação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos
de outrem”; art. 931. “Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e
as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em
circulação”; art. 933. “As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja
culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”.
10
CC, art. 186. “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”; art. 927. “Aquele que, por ato
ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

denominada objetivação da responsabilidade civil.11 Tal tendência metodológica,


presente nos últimos trinta anos, justifica-se quer pelo crescente leque de ativi-
dades sujeitas à imputação objetiva do dever de indenizar, quer pelo fato de que,
mesmo no campo de imputabilidade subjetiva, esmorece pouco a pouco a concep-
ção da culpa de matriz volitiva, caracterizada pela intenção do agente, em favor
da denominada culpa normativa, definida pela ruptura, pelo agente, de padrões
de comportamento socialmente exigidos em cada espécie de relação contratual
ou extracontratual. Neste âmbito, a exoneração do devedor demanda ruptura do
próprio nexo de causalidade, como ocorre em decorrência de caso fortuito ou de
força maior. O elemento fortuito se constitui, nesta hipótese, no evento causador
do dano. Ambas as expressões, caso fortuito ou força maior, equivalem-se, na
tradição codificada brasileira, como vetores exonerativos do dever de indenizar,
tornando-se ociosa, desse modo, a distinção conceitual.
Para propiciar a exoneração da responsabilidade, o evento que impossibilita a
prestação, superveniente à celebração do contrato, há de ser dotado de inevitabi-
lidade e necessariedade. Vale dizer, o evento, irresistível, torna-se causa da inexe-
cução em razão de sua necessariedade; ao devedor apresenta-se incontornável, já
que não tem meios para impedir que produza aquele efeito. A imprevisibilidade, por
outro lado, não se mostra requisito essencial, já que muitas contingências, como
os fenômenos da natureza, recorrentes em determinadas áreas geográficas, em-
bora previsíveis, tornam-se por vezes inevitáveis e configuram, assim, força maior,
“como força indomável e irresistível”.12 De outra parte, para serem considerados
de força maior e permitirem a exoneração de responsabilidade, mesmo quando ne-
cessários, os eventos devem escapar ao possível controle do contratante, que se
reconhece impotente para evitar a sua materialização, mesmo com o emprego dos
meios razoavelmente exigíveis naquela espécie de relação obrigacional.
Por outro lado, na hipótese de responsabilidade objetiva, em que o dever de
indenizar não decorre da culpa, mas da assunção do risco imputado objetivamente
ao agente, desenvolveu-se, em doutrina e jurisprudência, a distinção entre fortuito
interno e fortuito externo. Considera-se fortuito interno o evento intrinsecamente
relacionado à atividade desenvolvida pelo devedor e que, por isso mesmo, mostra-
-se insuficiente para gerar a exoneração. Em contrapartida, causa exonerativa da
responsabilidade será o denominado fortuito externo, isto é, a circunstância inevi-
tável e necessária cuja externalidade à atividade lhe confere aptidão para o efetivo
rompimento do nexo de imputação causal.

11
Sobre o ponto, por todos, TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio
da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. v. 4. p.
137 e ss.
12
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 11. ed. atual. por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro:
Gen-Forense, 2016. p. 395.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

A distinção entre fortuito interno e externo aplica-se tanto às relações de con-


sumo quanto às relações paritárias, e a sua caracterização depende de circuns-
tâncias fáticas que se alteram ao longo do tempo, de acordo com a intensificação
e redução de riscos de cada setor, bem como dos mecanismos de prevenção
disponíveis no estado da arte. Mostra-se natural que, diante da ampliação dos
engenhos tecnológicos e da crescente complexidade das atividades econômicas,
hiperbolize-se o risco e, conseguintemente, a intensidade das exigências de se-
gurança. Nessa esteira, por exemplo, fraudes em operações bancárias, tornadas
corriqueiras, passam a ser consideradas fortuitos internos na percepção social.13
Dessa forma, transforma-se o respectivo risco em elemento inerente para o de-
senvolvimento das respectivas atividades, a afastar a exoneração e, contempora-
neamente, estimular a adoção e o fortalecimento dos instrumentos de segurança
adotados pelo agente econômico.
Por outro lado, assim como a lei por vezes impõe responsabilidade ao de-
vedor pelos casos fortuitos,14 admite-se, em relações paritárias, a assunção con-
vencional do fortuito, hipótese em que tais eventos deixam de ser exonerativos
em razão da alocação de riscos estabelecida entre as partes.15 Nesses casos,
entende-se que o risco se insere no sinalagma contratual, no âmbito da comutati-
vidade pactuada. Consentindo-se o neologismo da linguagem comercial, afirma-se
estar o risco do fortuito de alguma forma “precificado”. Em consequência, se há
inexecução, mesmo se decorrente do fortuito, haverá imputação ao devedor, que
assumiu, contratualmente, a responsabilidade pelo fortuito.

3 Imputabilidade e impossibilidade superveniente.


Relatividade da impossibilidade liberatória
Torna-se indispensável, como visto, para a compreensão da fase patológi-
ca do vínculo obrigacional, a investigação da imputabilidade.16 De acordo com o

13
Enunciado nº 479 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: “As instituições financeiras respondem obje-
tivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no
âmbito de operações bancárias”.
14
Por exemplo, ao devedor em mora o legislador aloca imperativamente os riscos pelo fortuito, como a seguir
analisado (art. 399 do Código Civil).
15
KONDER, Carlos Nelson; KONDER, Cíntia Muniz de Souza. A contratualização do fortuito: reflexões sobre a
alocação negocial do risco de força maior. In: TERRA, A. M. V.; GUEDES, G. S. C. (Coord.). Inexecução das
obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2021, p. 56-58. v. 2.
16
Sobre a imputabilidade, amplamente, Judith Martins-Costa sublinha a distinção da noção de imputação
daquela de inculpação: “imputar não é inculpar, não é atribuir culpa, é atribuir dever e responsabilidade.
Responsabilizar é imputar, não é necessariamente inculpar” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao
Novo Código Civil. Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009.
v. V. t. II. p. 135).

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

sistema de responsabilidade civil contratual, o inadimplemento constitui-se na


inexecução imputável.17 Com efeito, a prestação deve ser executada conforme o
pactuado. Como ressaltado em doutrina, “o devedor somente é obrigado a prestar
se, in concreto, há possibilidade, segundo a concepção do tráfico”.18 Tal singela
afirmação reveste-se de enorme significado. Em primeiro lugar, por exigir do intér-
prete, no caso de inexecução, a investigação da qualidade do fato supervenien-
te que tornou impossível a prestação. Em segundo lugar, por introduzir no plano
interpretativo, o exame em concreto do comportamento do devedor segundo os
usos do tráfico (art. 113 do Código Civil),19 sendo certo que, na lição da mesma
doutrina, “essa concepção do tráfico está no conteúdo do negócio jurídico”.20 No
caso de inexecução, há que se estabelecer, portanto, a noção, as espécies e as
consequências da impossibilidade da prestação.
Tratando-se de impossibilidade superveniente, as partes já se encontram vin-
culadas e a impossibilidade será subjetiva ou objetiva; total ou parcial, relativa ou
absoluta. Se a impossibilidade se afigura subjetiva, isto é, deve-se a dificuldades
pessoais do devedor, não há liberação, a menos que a obrigação seja infungível,
ou seja, quando somente possa ser cumprida pelo próprio devedor, que enfrenta
dificuldade intransponível, impedindo a execução pessoal da prestação. 21 Afirma-
-se nesta direção que a impossibilidade que exonera o devedor, extinguindo a obri-
gação, será a impossibilidade objetiva (total ou parcial), admitindo-se que, nas
obrigações de fazer infungíveis, em que a figura do devedor se insere no conteúdo

17
O inadimplemento ou descumprimento subordinado à imputabilidade é amplamente adotado no Código
Civil. Cfr. arts. 389, 390 e 391: art. 389. “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas
e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e
honorários de advogado”; art. 390. “Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde
o dia em que executou o ato de que se devia abster”; art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações
respondem todos os bens do devedor” (grifos nossos).
18
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior
e Rosa Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 185, §2.795.
19
Este aspecto é enfatizado por MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Coordenação de
Sálvio de Figueiredo Teixeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009. v. V. t. II. p. 384.
20
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior
e Rosa Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 185, §2.795.
21
Conforme ressalta Pontes de Miranda, “A impossibilidade não se há de confundir com a difficultas, ou
seja, a impossibilidade subjetiva, ou seja a existência de obstáculos a que se preste” (PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior e Rosa Nery.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 185). No mesmo sentido, Antunes Varela aparta a
impossibilidade da prestação da mera difficultas praestandi: “Para que a obrigação se extinga, é necessá-
rio, segundo a letra e o espírito da lei, que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja
por determinação da lei, seja por força da natureza (caso fortuito ou força maior) ou por ação do homem.
Não basta que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para
o devedor, como pode suceder com frequência nos períodos de mais acentuada inflação monetária ou
de súbita valorização de certos produtos” (ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral.
reimpr. da 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004. v. II. p. 68).

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

da prestação, circunstâncias subjetivas possam se tornar objetivamente impediti-


vas, como no caso do pianista que adoece no dia no recital para o qual fora con-
tratado.22
A doutrina clássica considerava que a impossibilidade da prestação, para
ser liberatória, deveria ser absoluta, ou seja, caraterizada por hipótese de cum-
primento física ou juridicamente impossível (v.g., perecimento ou perda do obje-
to, impossibilidade de acesso ao local da execução ou ilicitude superveniente). A
esta concepção de objetividade absoluta, desenvolvida em página clássica pela
doutrina italiana,23 contrapôs-se intensamente Emilio Betti, para quem a impossi-
bilidade liberatória, embora objetiva, será sempre relativa, já que aferida no tipo
de relação jurídica em que se atua, a exigir específico esforço de cooperação, que
variará conforme a relação jurídica de que se trata.24 Na tentativa de conciliação
das posições contrapostas do antigo debate, tem-se afirmado que é possível ad-
mitir-se como absoluta a impossibilidade objetiva de modo relativo, desde que se
apreenda não o vínculo obrigacional abstratamente considerado, mas tendo em
conta “os meios concretamente disponíveis naquele tipo de obrigação”.25

22
Na síntese de Antunes Varela: “Tratando-se de prestação não fungível, ou seja, de prestação em que, pela
sua natureza intrínseca, pela estipulação das partes ou por disposição da lei, o devedor não possa ser
substituído por terceiro, basta a impossibilidade subjetiva para que a obrigação se extinga [...] A, artista
de variedades, obriga-se a participar num espetáculo em certa data. Adoece gravemente desse dia, fican-
do impossibilitado de cumpri: a obrigação extingue-se” (ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações
em geral. reimpr. da 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004. v. II. p. 72).
23
OSTI, Giuseppe. Impossibilità sopravveniente. In: Novissimo digesto italiano, VIII. 3. ed. Torino: Utet,
1962. p. 289, para quem a impossibilidade da prestação inimputável é somente aquela “assoluta, insu-
perabile dalle forze umane, o superabile solo con un’attività illecita o con rischio per l’integrità fisica o per
un altro attributo della personalità del debitore” (em tradução livre, “absoluta, insuperável pelas forças
humanas, ou superável somente com uma atividade ilícita ou com risco para a integridade física ou para
um outro atributo da personalidade do devedor”).
24
BETTI, Emilio. Teoria generale delle obbligazioni. Milano: Giuffrè, 1953. v. I. p. 112: “l’impossibilità
giuridicamente rilevante in confronto del creditore è solo quella oggettiva; ma essa è anche essenzialmente
relativa al tipo di rapporto obbligatorio di cui si tratta. Non si deve infatti credere che i vari tipi di rapporti di
obbligazione governino uniformemente la condotta dovuta dal debitore: tali rapporti richiedono una intensità
di sforzo, di impegno, che varia secondo il tipo cui appartengono. È proprio in vista di rapporti per i quali è
richiesto il grado maggiore di intensità che – adoperando un concetto limite – si parla di impossibilità ‘assoluta’
(per esempio per le obbligazioni di genere)” (em tradução livre: “a impossibilidade juridicamente relevante
diante do credor é somente aquela objetiva; mas esta é também essencialmente relativa ao tipo de relação
obrigacional de que se trata. Não se deve, de fato, acreditar que os vários tipos de relação obrigacional
governam uniformemente a conduta devida pelo devedor: tais relações requerem uma intensidade de esforço,
de empenho, que varia segundo o tipo a que pertencem. É justamente tendo em vista relações para as quais
é necessário o maior grau de intensidade que – adotando um conceito limite – se fala de impossibilidade
‘absoluta’ (por exemplo, para as obrigações genéricas)”). Em critica direta a Osti, o autor acrescenta: “quando
si dice che il debitore è esonerato solo nel caso di impossibilità assoluta, si adopera un qualifica enfatica,
idonea solo ad ingenerare equivoci, perché in realtà si tratta solo di identificare un caso-limite di impossibilità
relativa” (em tradução livre: “quando se diz que o devedor fica exonerado somente no caso de impossibilidade
absoluta, se adota uma qualificação enfática, idônea apenas a gerar equívocos, porque, na realidade, se trata
somente de identificar um caso-limite de impossibilidade relativa”) (Ibid.).
25
CABELLA PISU, Luciana. Dell’impossibilità sopravvenuta (art. 1.463-1466). In: GALGANO, Francesco (A cura
di). Commentario del codice civile Scialoja-Branca Libro quarto – delle obbligazioni. Bologna-Roma: Zanichelli-

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

No direito brasileiro prevalece entendimento equivalente, sublinhando-se que


a impossibilidade objetiva superveniente é insuperável quando a dificuldade somen-
te possa ser vencida “se sacrificados interesses desproporcionadamente maiores
do que aqueles que estão em causa”: nesta hipótese, a desproporcionalidade
dos gastos se torna impossibilidade objetiva.26 Na mesma linha, considera-se tam-
bém como fato superveniente inimputável, apto a conduzir à liberação do devedor,
“mesmo a impossibilidade que não é absoluta no sentido das Ciências Naturais,
mas que assim possa ser razoavelmente qualificada, considerados dados fáticos e
normativos que englobam considerações de ordem social, econômica e cultural”.27
Sob tal ângulo de visão, compreendem-se os exemplos trazidos pela doutrina
de situações limítrofes, em que se admite a impossibilidade liberatória quando só
seria possível ao devedor a execução mediante esforço descomunal. De fato, na
obrigação de dar “a coisa que caiu no abismo ou no mar e só mediante despesas
desproporcionadas poderia ser apanhada é para o dono coisa derelicta e a pres-
tação, que a tivesse por objeto, estaria impossibilitada”.28
Tal processo de relativização da impossibilidade absoluta e liberatória per-
mitiu a admissão de conceito de impossibilidade menos rigoroso,29 que tem sido
observado na experiência brasileira e estrangeira. No direito alemão, a reforma
do direito obrigacional de 2001 acrescentou, no âmbito da impossibilidade libe-
ratória, a noção de inexigibilidade, mediante a qual se avalia, na concreta relação
jurídica, o limite do esforço subjetivo exigível do devedor.30

Foro Italiano, 2002. p. 45. Para a autora, o acolhimento das observações críticas de Betti não significa “il
rigetto della nozione assoluta di impossibilità, mas solo la sua riformulazione: essa non veniva più circoscritta
agli impedimenti insuperabili con un sforzo esorbitante dall’ entità astrattamente considerata del vincolo
obbligatorio, mas ricomprendeva anche gli impedimenti insuperabili con i mezzi concretamente dedotti in
quel tipo di obbligazione” (em tradução livre: “a rejeição da noção absoluta de impossibilidade, mas somente
a sua reformulação: não mais limitada aos impedimentos insuperáveis com ​​ um esforço exorbitante por parte
da entidade abstratamente considerada do vínculo obrigacional, mas incluindo também os impedimentos
insuperáveis com
​​ os meios concretamente deduzidos naquele tipo de obrigação”) (Ibid.).
26
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior e Rosa
Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 185. O mesmo autor, para ilustrar a impossibilidade
objetiva, oferece o exemplo do transportador que “prometeu levar à montanha o material de construção; a
ponte sobre o rio caiu; para levá-lo até o lugar que se designou seria preciso dar a volta à montanha e entrar
por outro caminho, o que custaria muitíssimo mais do que o preço dos transportes” (ob. loc. cit.).
27
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira.
2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009. v. V. t. II. p. 385. Na mesma direção, MENEZES CORDEIRO,
Antonio. Tratado de direito civil. Direito das obrigações – Introdução sistema e direito europeu – Dogmática
geral. Coimbra: Almedina, 2012. v. VI. p. 103, para quem “a impossibilidade deve ser tomada em sentido
sócio-cultural: não físico ou naturalístico”.
28
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior
e Rosa Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 185.
29
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira.
2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009. v. V. t. II. p. 386.
30
A tradução é de Menezes Cordeiro (Tratado de direito civil. Direito das obrigações – Introdução sistema
e direito europeu – Dogmática geral. Coimbra: Almedina, 2012. v. VI. p. 89), que analisa a reforma

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

No que concerne à impossibilidade superveniente, preceitua o §275(2),


BGB, que o

devedor pode recusar o cumprimento sempre que a prestação exija


um esforço que, tendo em vista o conteúdo da relação obrigacional
e as exigências da boa-fé, esteja em grave desproporção em relação
ao interesse do credor no cumprimento. Ao determinar os esforços
que podem ser razoavelmente esperados do devedor, deve-se igual-
mente levar em conta se o devedor é responsável pelo impedimento
ao cumprimento.31

Na alínea (3), o mesmo §275 do BGB estabelece: “O devedor pode igualmen-


te recusar o cumprimento se tiver de realizar a prestação pessoalmente e, pon-
derados os obstáculos do devedor ao cumprimento frente ao interesse do credor,
não for razoável esperar que o devedor cumpra”.32
Ao comentar a reforma do Código Civil alemão, Menezes Cordeiro ressalta
que a redação do §275/2 “pretendeu operar uma clivagem entre uma impossi-
bilidade fáctica e a mera impossibilidade econômica, conhecida como limite do
sacrifício e que apenas poderia ser integrada no instituto da alteração das circuns-
tâncias, agora codificado no §313, BGB”.33 O autor português oferece, ainda, dois
exemplos contidos na justificação de motivos da reforma legislativa e formulados
por Heck. Em primeiro lugar, figura a obrigação de dar o anel que o devedor, ao se
encaminhar para a entrega ao credor, deixou cair em lago arenoso. Neste caso, a
execução da prestação, embora faticamente possível, dependeria de gastos des-
comunais exigidos para a dragagem do lago e procura da joia: “Haveria, todavia
e perante a boa-fé, um grave desequilíbrio em face do interesse do credor”.34 Na

legislativa alemã. Quanto à alteração das bases do negócio, a nova redação do 313(3), do BGB, dedicada
a interferências na base do negócio, preceitua que “Quando uma modificação do contrato não seja
possível ou surja inexigível para uma das partes, pode a parte prejudicada resolver o contrato”.
31
Tradução livre de “Der Schuldner kann die Leistung verweigern, soweit diese einen Aufwand erfordert, der
unter Beachtung des Inhalts des Schuldverhältnisses und der Gebote von Treu und Glauben in einem groben
Missverhältnis zu dem Leistungsinteresse des Gläubigers steht. Bei der Bestimmung der dem Schuldner
zuzumutenden Anstrengungen ist auch zu berücksichtigen, ob der Schuldner das Leistungshindernis zu
vertreten hat”.
32
Tradução livre de “Der Schuldner kann die Leistung ferner verweigern, wenn er die Leistung persönlich zu
erbringen hat und sie ihm unter Abwägung des seiner Leistung entgegenstehenden Hindernisses mit dem
Leistungsinteresse des Gläubigers nicht zugemutet werden kann”.
33
MENEZES CORDEIRO, Antonio. Tratado de direito civil. Direito das obrigações – Introdução sistema e
direito europeu – Dogmática geral. Coimbra: Almedina, 2012. v. VI. p. 103.
34
MENEZES CORDEIRO, Antonio. Tratado de direito civil. Direito das obrigações – Introdução sistema e
direito europeu – Dogmática geral. Coimbra: Almedina, 2012. v. VI. p. 103. O exemplo é também referido
por MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Coordenação de Sálvio de Figueiredo
Teixeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009. v. V. t. II. p. 384.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

mesma linha se situaria o segundo exemplo, ainda mais emblemático, “da canto-
ra que se recusa a atuar no espetáculo para estar à cabeceira do filho, gravemen-
te doente”: a reforma assinalaria, na arguta percepção de Menezes Cordeiro, o
“alargamento” da noção de impossibilidade.35
No direito italiano, percebeu-se igualmente tal ampliação da noção de
impossibilidade,36 já tendo sido reconhecida, pela Corte Constitucional, nos anos
90 do século passado, a inexigibilidade de prestação por motivo existencial super-
veniente. Sustenta-se, nessa linha de entendimento, a necessidade de sopesar
os interesses do credor e do devedor, para verificar a razoabilidade da exigibili-
dade da execução diante de dificuldades supervenientes justificáveis. Na aludida
decisão, em particular, admitiu-se como justificável o descumprimento de obriga-
ção exigida pela legislação especial de Bozzano, que vinculava os benefícios do
recebimento de mútuo subsidiado para a aquisição de moradia à efetiva ocupação
e permanência no imóvel, sem qualquer interrupção, por 10 anos. No caso, a mu-
dança de domicílio e de cidade pelo mutuário deveu-se à necessidade de assistên-
cia ao genitor idoso e incapaz de vida autônoma. Ou seja, considerou-se inexigível
e, portanto, hipótese de impossibilidade superveniente liberatória, sob pena de in-
constitucionalidade da lei regional, a execução da obrigação pelo locatário diante
da necessidade existencial merecedora de tutela prevalente.37

35
MENEZES CORDEIRO, Antonio. Tratado de direito civil. Direito das obrigações – Introdução sistema e
direito europeu – Dogmática geral. Coimbra: Almedina, 2012. v. VI. p. 103-104.
36
Sobre o ponto, observa Mauro Paladini: “Assiste-se, assim, a um fenômeno que se poderia definir como
expansão da extinção das obrigações sem adimplemento que, no plano exclusivamente sistemático,
representa uma contratendência em relação ao sensível estreitamento da categoria operada pelo
codificador de 1942. No original: “Si assiste, così, a un fenomeno che si potrebbe definire di ‘espansione’
dell’estinzione dell’obbligazione senza adempimento che, sul piano esclusivamente sistematico,
rappresenta una controtendenza rispetto al sensibile snellimento della categoria operata dal codificatore del
1942” (PALADINI, Mauro. L’estinzione dell’obbligazione negli incerti confini tra doverosità dell’adempimento
e inesigibilità della prestazione. In: PALADINI, Mauro (Coord.). L’estinzione dell’obbligazione senza
adempimento. Torino: Utet, 2010. Introduzione, p. XII).
37
Sentenza di 3.2.1994, n. 19, in Giur. Cost. 1994, 136. No texto da decisão, ressaltou-se: “non v’è dubbio
che il caso di una persona, che non può assolvere alla condizione posta dalla legge per continuare a
beneficiare del contributo pubblico sul mutuo edilizio, consistente nell’occupazione effettiva, continuativa e
stabile della propria abitazione, a causa dell’esigenza di assistere in altra città il proprio padre gravemente
ammalato e incapace di una vita autonoma, rientri fra le ipotesi di contemperamento con un superiore
dovere di solidarietà sociale, qualificato come «inderogabile» dagli artt. 2 e 29 Cost., in grado di costituire
uma ragionevole giustificazione d’ll’inadempimento del predetto onere” (em tradução livre, “não há dúvida
de que o caso de uma pessoa que não possa preencher a condição legal para continuar a beneficiar-se
da contribuição pública sobre o financiamento imobiliário, consistente na ocupação efetiva, continuada
e estável da sua habitação, em virtude da necessidade de assistir o pai gravemente doente em outra
cidade e incapaz de uma vida autônoma, enquadra-se na hipótese de ponderação com um dever superior
de solidariedade social, qualificado como ‘inderrogável’ pelos artigos 2º e 29 da Constituição, capaz
de constituir uma justificativa razoável para o descumprimento do referido ônus”). Do ponto de vista
metodológico, a Corte discordou do magistrado, que circunscrevia a aplicação dos princípios constitucionais
às relações do cidadão para com o Poder Público alcançando, por extensão, o mútuo subsidiado pelo
Estado – para firmar posição quanto à vinculação direta de todo o direito obrigacional aos princípios

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

Em apoio a tal entendimento, tem-se afirmado:

a referência à boa-fé, precisamente em termos de inexigibilidade,


possa ser recuperada, ademais, do lado do credor, valendo como
critério de avaliação da sua conduta de modo a excluir, em particular,
que possa se considerar conforme o direito – ou seja, não abusiva – a
exigência de adimplemento.38

Essa forte referência da doutrina italiana à boa-fé e ao dever de diligência


permite a compreensão da inexigibilidade como hipótese de impossibilidade su-
perveniente, em virtude de motivos relevantes existenciais em face dos quais
a exigência creditória se torna abusiva.39 Vale dizer, “a inexigibilidade segundo
boa-fé abrange hipóteses de obstáculos superáveis somente com o emprego de
meios que excedem o empenho que o regulamento contratual atribui ao devedor”.
Dessa forma, a impossibilidade aproxima-se da noção de inexigibilidade em hipó-
teses em que a preservação de valores existenciais depende de “circunstâncias

constitucionais. É ver-se: “Contrariamente a quanto mostra di ritenere il giudice a quo, il principio appena
ricordato non è applicabile soltanto nell’ambito dell’ordinamento giuridico statale. Coinvolgendo categorie
e valori di rilevanza costituzionale e trattandosi di un principio generale concernente i rapporti obbligatori
come tali, esso deve avere applicazione universale nell’ordinamento giuridico e non può, dunque, essere
trascurato neppure nell’interpretazione della legge della Provincia autonoma di Bolzano oggetto di
contestazione nel presente giudizio. Quest’ultima, anzi, solo se interpretata in armonia con il ricordato
principio, evita di comportare il contrasto con il principio costituzionale di eguaglianza prospettato dal
giudice a quo” (em tradução livre, “Ao contrário do que o juízo a quo demonstra acreditar, o princípio que
acabamos de mencionar não é aplicável apenas no âmbito do ordenamento jurídico estatal. Envolvendo
categorias e valores de significado constitucional e tratando-se de um princípio geral concernente às
relações obrigacionais enquanto tais, ele deve ter aplicação universal no ordenamento jurídico e não pode,
portanto, ser negligenciado nem mesmo na interpretação da lei da Província Autônoma de Bolzano objeto
de contestação neste julgamento. Esta lei, ao contrário, somente se interpretada em harmonia com o
referido princípio, deixa de entrar em conflito com o princípio constitucional da igualdade proposto pelo
tribunal de primeira instância”).
38
PASSARO, Emanuele. L’impossibilità sopravvenuta della prestazione. In: PALADINI, Mauro (Coord.).
L’estinzione dell’obbligazione senza adempimento. Torino: Utet, 2010. p. 407. No original: “il riferimento
alla buona fede, proprio in termine di inesigibilità, potrà esse recuperato, al più, a latere creditoris, valendo
come criterio di giudizio della sua condotta da escludere, in particolare, che possa considerarsi conforme a
diritto – ossia non abusiva – la pretesa di adempimento”. O autor acrescenta, ainda: “a inevitabilidade do
evento impeditivo deve ser valorada em relação à diligência do devedor (geral ou específica), na medida em
que varia o conteúdo da relação obrigatória”. No original: “L’inevitabilità dell’evento impeditivo [...] debba
essere valutata alla stregua della diligenza del debitore (generica o specifica), al variare del contenuto del
rapporto obbligatorio” (ibid.).
39
Em tal direção, Umberto Breccia (Diligenza e buona fede nell’atuazione del rapporto obbligatorio. Milano:
Giuffrè, 1968. p. 55-56) afirma que o critério da boa-fé como medida da prestação permite não somente
superar a noção de impossibilidade como absoluta, como considerar o devedor liberado nas hipóteses
em que, para alcançar o resultado fosse necessário desempenhar atividade considerada estranha ao
conteúdo da obrigação (“isto é, um esforço tal que o devedor não possa considerar-se, segundo boa-fé,
empenhado ao seu emprego”). No original: “cioè uno sforzo tale che il debitore non possa ritenersi, se-
condo buona fede, impegnato al sua impiego”.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

intrínsecas ao conteúdo da prestação”, de tal forma que “a execução da presta-


ção se torna, por si mesma, perigosa”.40

4 Abrangência e peculiaridades da mora no ordenamento


brasileiro
Desde que não haja inimputabilidade liberatória, a inexecução ou a execução
inexata, mantendo-se a possibilidade da prestação e o interesse do credor, acar-
retam a mora. Na linguagem do art. 394 do Código Civil, “considera-se em mora
o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no
tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”. Significa dizer que,
ao contrário das legislações portuguesa41 e alemã anterior à reforma de 2002,42
bem como da apreensão comum do vocábulo na tradição doutrinária brasileira,43
normalmente associado a atraso temporal no pagamento, encontra-se em mora
igualmente o devedor que não efetua o pagamento nos exatos termos pactuados.
O Código Civil adota, com efeito, conceito amplo de mora, que compreende a
execução inexata da obrigação, seja em relação ao tempo, no caso de retardamen-
to da prestação, seja quanto ao lugar ou ao modo de cumprimento pactuados. A
mora designa-se inadimplemento relativo, contrapondo-se ao inadimplemento ab-
soluto, quando definitiva. Por esse motivo, a noção de mora subordina-se à perma-
nência do interesse útil do credor à prestação, como estatui o art. 395,44 sob pena
de caracterizar-se o inadimplemento absoluto, com a extinção do vínculo obrigacio-
nal originário e sua substituição pelo dever indenizatório, a possibilitar, ainda, nos
contratos bilaterais, a resolução contratual. No caso da mora do credor, ou mora
accipiendi, embora o legislador não tenha previsto a imputação subjetiva para a
sua configuração, entende-se que o respeito à boa-fé objetiva vincula devedor e

40
CABELLA PISU, Luciana. Dell’impossibilità sopravvenuta (art. 1.463-1466). In: GALGANO, Francesco (A
cura di). Commentario del codice civile Scialoja-Branca Libro quarto – delle obbligazioni. Bologna-Roma:
Zanichelli-Foro Italiano, 2002. p. 49-50.
41
CCp, art. 804º, 2. “O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável,
a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido” (grifos nossos). Conforme João de
Matos Antunes Varela, “A mora do devedor (mora solvendi) é o atraso (demora ou dilatação) culposo no
cumprimento da obrigação” (ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral. reimpr. da 7.
ed. Coimbra: Almedina, 2004. v. II. p. 113-114 – grifos no original).
42
BGB, §286 (redação original). “(1) Der Schuldner hat dem Gläubiger den durch den Verzug entstehenden
Schaden zu ersetzen”. Em tradução livre: “(1) O devedor deverá indenizar o credor pelos danos causados
pelo atraso” (grifos nossos).
43
Nos termos de Clovis Bevilaqua, “Mora é o retardamento na execução da obrigação” (Direito das
obrigações. Rio de Janeiro: Rio, 1982. p. 110 – grifos no original).
44
CC, art. 395. “Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos
valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

credor ao dever de cooperação para a extinção do vínculo contratual, devendo o


credor receber de forma leal o pagamento e contribuir, assim, para o adimplemen-
to da obrigação pelo devedor.
Duas são as consequências da mora do devedor. Em primeiro lugar, o agra-
vamento da obrigação, com a imputação ao devedor moroso, nos termos do art.
395, dos prejuízos causados, acrescidos de juros, atualização monetária, e hono-
rários advocatícios. Ainda no âmbito do agravamento da obrigação, destaca-se o
deslocamento da atribuição dos riscos da coisa, inclusive aqueles decorrentes de
caso fortuito ou força maior, ao devedor que se encontre em mora. A redação do
art. 399 não é feliz, por condicionar a possibilidade de exoneração da responsabi-
lidade do devedor moroso à demonstração da isenção de culpa, circunstância que,
a rigor, excluiria a caracterização da mora, na imputação subjetiva.45
O dispositivo mantém idêntica redação ao seu predecessor no CC1916 (art.
957), o qual parece ter sido inspirado no art. 103 do Código suíço de obrigações
(1911).46 Entretanto, a ressalva do dispositivo suíço quanto à prova de ausência de
culpa se justifica naquele contexto, já que o legislador suíço inicia a seção sobre
a inexecução afirmando a responsabilidade do devedor pelos danos decorrentes
do atraso, salvo prova de ausência de culpa. Assim, diante da presunção de cul-
pa preliminarmente estabelecida, justifica-se a ressalva de que a responsabilida-
de pelo fortuito cessa uma vez ilidida essa presunção pelo devedor.47 No final das
contas, sendo o devedor imputável pela mora, também no direito suíço o devedor
somente se exonera da responsabilidade pela impossibilidade superveniente da
prestação se provar a ruptura da causalidade entre a mora e a impossibilidade.48

45
CC, art. 399: “O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibili-
dade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isen-
ção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada”.
46
COs, art. 103. “Le débiteur en demeure doit des dommages-intérêts pour cause d’exécution tardive et
répond même du cas fortuit. 2 Il peut se soustraire à cette responsabilité en prouvant qu’il s’est trouvé
en demeure sans aucune faute de sa part ou que le cas fortuit aurait atteint la chose due, au détriment
du créancier, même si l’exécution avait eu lieu à temps”. Em tradução livre: “O devedor em mora deve
perdas e danos por atraso no cumprimento e responde mesmo por casos fortuitos. 2 Ele pode se exonerar
desta responsabilidade provando que não teve culpa no atraso ou que o caso fortuito teria atingido a coisa
devida, em detrimento do credor, ainda que a execução tivesse ocorrido oportunamente”.
47
A conexão entre a exceção do art. 103 e a presunção do art. 97 pode ser encontrada na doutrina suíça
clássica (FUNK, Fritz. Commentaire du Code Fédéral des obligations. Genève: Delachaux & Niestlé, 1930.
p. 87) e contemporânea (THÉVENOZ, Luc; WERRO, Franz (Coord.). Commentaire Romand – Code des
obligations I. Genève: Helbing & Lichtenhahn, 2003. p. 617).
48
Explica Andreas Von Tuhr: “S’il a encouru la demeure par sa propre faute, il répond même de la perte
ou détérioration fortuite de la chose, art. 103. Cette responsabilité pour le casus mixtus découle des
principes généraux relatifs au rapport de causalité. Le cas fortuit est bien un événement imprévisible,
mais il est aussi une conséquence indirecte de la demeure, car il ne se serait pas produit si le débiteur
avait exécuté son obligation à temps” (VON TUHR, Andreas. Partir générale du Code fédéral des Obliations.
Lausanne: G. Vaney-Burnier, 1929. v. 1. p. 542 – em tradução livre: “Se ele incorreu em mora por culpa
própria, responde ainda pela perda ou deterioração fortuita da coisa, art. 103. Esta responsabilidade

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

No ordenamento brasileiro, reproduzindo-se a redação da disposição suíça de for-


ma descontextualizada, o preceito foi de plano reputado “defeituoso”: se a mora
pressupunha inexecução culposa, a prova de ausência de culpa a excluiria, tor-
nando inaplicável o dispositivo, cujo pressuposto é justamente estar “o devedor
em mora”.49
Admitindo-se, todavia, a imputabilidade objetiva do devedor, em que a mora
prescinde de culpa, é de se indagar a possibilidade de a exceção de prova de au-
sência de culpa afastar, em tais casos, a responsabilidade pela impossibilidade
superveniente da prestação. A despeito de respeitável posição em contrário,50 pare-
ce contraditório conceber que possa o devedor eximir-se da responsabilidade pela
conservação da coisa comprovando que não teve culpa no atraso, e não conseguir
afastá-la no caso de inimputabilidade objetiva. Imagine-se a transportadora que se
responsabilizou objetivamente pela entrega de maquinário e, apesar dos seus cui-
dados, acaba por cumprir a prestação em lugar diverso do avençado, por erro escu-
sável na compreensão do endereço do destinatário. No local em que foi entregue, o
bem vem a ser furtado por terceiros. Ainda que não tenha havido culpa da devedora
na entrega imperfeita, que a constituiu em mora, nem no furto que impossibilitou a
prestação, não poderá o devedor exonerar-se alegando esse fato, sob pena de es-
vanecer-se a própria ratio da responsabilização objetiva, agravada pela mora a ponto
de alcançar, por compreensível opção legislativa, até mesmo a impossibilidade de-
corrente de caso fortuito (ou seja, prescindindo do nexo de causalidade).
Assim, a interpretação mais adequada parece reconhecer a imprecisão da
redação: quis o legislador referir-se à imputabilidade do devedor, de modo que,
provando o devedor que não era imputável pelo atraso ou cumprimento imperfei-
to, não estava em mora, o que afasta de per si a incidência do artigo e a respon-
sabilidade agravada pela conservação da prestação. Condiz, por exemplo, com a

pelo casus mixtus decorre dos princípios gerais relativos ao nexo de causalidade. O caso fortuito é sim
um evento imprevisível, mas é também uma consequência indireta da mora, pois não teria ocorrido se o
devedor tivesse cumprido sua obrigação oportunamente”).
49
A expressão é de Carvalho Santos: “[...] é preciso convir que é defeituoso o Código ao admittir a allegação
desse facto, que constituiria defesa opportuna para negar a propria mora, quando presuppõe esta já
evidenciada, não mais podendo ser contestada, o que se percebe claramente quando dispõe o texto
supra, de início: o devedor em mora... Ora, si a mora presuppõe a culpa, não se pode em devedor em mora
sem que tenha culpa. Logo, admittida a móra, não se concebe possa livrar-se dos riscos com prova de
isenção de culpa, mesmo porque, como é evidente, si elle não tinha culpa não era um devedor em mora”
(CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil interpretado principalmente do ponto de vista prático. Rio de
Janeiro: Calvino Filho, 1936. p. 326).
50
Na visão de Judith Martins-Costa (Comentários ao Novo Código Civil. Coordenação de Sálvio de Figueiredo
Teixeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009. v. V. t. II. p. 418-419), o codificador pretendeu
estabelecer “exceção ao rigor da regra” da imputabilidade, criando de fato o benefício ao devedor de se
exonerar com a demonstração de ausência de culpa, para afastar a imputabilidade da responsabilidade
civil. Para a conceituada professora, “Tratando-se de uma exceção à regra de o moroso responder, a
demonstração da inexistência de culpa é um plus, um ônus imposto ao moroso”.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

orientação adotada pelos legisladores alemão51 e italiano,52 que, cientes que a


exceção da ausência de culpa dizia respeito à peculiaridade da responsabilidade
por mora do devedor no regime suíço, limitaram-se a preconizar, como única saí-
da para o devedor em mora exonerar-se da responsabilidade pela impossibilidade
superveniente da prestação, a prova de que a prestação seria igualmente prejudi-
cada caso tivesse sido entregue ao credor.
Em síntese, o legislador impõe o ônus de prova extremamente difícil a cargo
do devedor já constituído em mora que, não logrando demonstrar a ausência de
imputabilidade, assume a responsabilidade pelo fortuito, salvo se a parte que se
encontra em mora puder demonstrar que o dano ocorreria ainda que a obrigação
houvesse sido cumprida adequadamente, nos termos da denominada “relevância
negativa da causa virtual”.53
Relativamente à mora do credor, o art. 400 enumera três efeitos relativos
ao agravamento do vínculo obrigacional.54 Em primeiro lugar, isenta o devedor da
responsabilidade pela conservação ou deterioração da coisa, exceto na hipótese
de dolo. Em seguida, impõe ao credor o dever de ressarcimento pelas despesas
efetuadas com a conservação da coisa. Finalmente, atribui ao devedor o direito
de receber a prestação pela estimação que lhe for mais favorável, na hipótese de
oscilação do respectivo valor entre a data prevista para o pagamento e a do efe-
tivo cumprimento. Além dos efeitos previstos expressamente pelo Código Civil,
doutrina e jurisprudência entendem que a mora do credor, adicionalmente, libera
o devedor da pena convencional estipulada para o caso de inadimplemento e dos
juros de mora, fazendo surgir, por outro lado, para o devedor, a possibilidade de

51
BGB, §287. “Verantwortlichkeit während des Verzugs. Der Schuldner hat während des Verzugs jede
Fahrlässigkeit zu vertreten. Er haftet wegen der Leistung auch für Zufall, es sei denn, dass der Schaden
auch bei rechtzeitiger Leistung eingetreten sein würde”.
52
CCi, art. 1221. “Effetti della mora sul rischio. Il debitore che è in mora non è liberato per la sopravvenuta
impossibilità della prestazione derivante da causa a lui non imputabile, se non prova che l’oggetto della
prestazione sarebbe ugualmente perito presso il creditore. [...]”. Em tradução livre: “Efeitos da mora sobre
o risco. O devedor em mora não se exonera pela impossibilidade superveniente da prestação decorrente
de causa que não lhe seja imputável, se não provar que o objeto da prestação teria perecido igualmente
com o credor. [...]”. Explica Pietro Perlingieri: “L’effetto liberatorio si può produrre soltanto per le prestazio-
ni aventi ad oggetto una cosa determinata, qualora, il debitore provi che la cosa sarebbe egualmente perita
presso il creditore” (PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. 5. ed. Napoli: ESI, 2005. p. 279-280).
53
CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2005. p. 250.
54
CC, art. 400. “A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da
coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela
estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e
o da sua efetivação”. Cuida-se de política legislativa destinada a tutelar as vítimas de dano injusto e, por
essa razão, doutrina e jurisprudência, com a ampliação dos fatores de imputação da responsabilidade
pelo dano injusto, estendem a solução legislativa para as hipóteses de responsabilidade extracontratual
objetiva. Em se tratando de dano injusto, a sua verificação deflagra, assim, os juros moratórios em favor
da vítima.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

consignar em pagamento a prestação, como meio de se desobrigar, nos termos


do art. 335, inc. I, do Código Civil.
Sublinhe-se, por oportuno, que o ônus decorrente da oscilação do valor da
prestação, entre o originariamente pactuado e o da data do pagamento efetivo,
embora não previsto para o caso de mora do devedor, deve alcançar seu suporte
fático por analogia. Nesta direção, entende conceituada doutrina ser

justo presumir, a favor do credor, que este a teria alienado no dia em


que atingiu o máximo do preço. Por isso, deverá o devedor pagar esse
preço máximo. E, se a coisa não pereceu, deverá entregá-la e mais a
diferença do preço, tendo em vista a oscilação, a fim de compensar
o credor.55

Para a verificação da mora do devedor, exige-se a sua constituição em mora,


que poderá exigir, para a sua caracterização, a interpelação do devedor pelo cre-
dor (mora ex personae) ou decorrer automaticamente de fato previsto no negócio
ou na lei (mora ex re). Neste caso, encontra-se a mora pelo simples transcurso
da data aprazada, em se tratando de prestação positiva e líquida (CC, art. 397,
caput); pela ocorrência de dano injusto extracontratual (mora ex delito – art. 398
do Código Civil);56 ou ainda, no âmbito das obrigações negativas, cujo cumprimen-
to se efetua pela abstenção do devedor, considera-se em mora o devedor desde
o dia em que se executou a atividade a que se obrigara a não fazer (art. 390).57
Nesta última hipótese, observe-se que, não obstante a topologia e redação do
dispositivo, associadas a entendimento doutrinário tradicional, prevalece hoje a

55
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1972. p.
110-111. Na mesma direção, anotou-se em outra sede: “Aplica-se aqui analogicamente, em favor do
credor, a norma contida no art. 400, Código Civil, que autoriza ao devedor, diante da mora do credor,
a receber o bem pela estimação que lhe for mais favorável, se o valor oscilar entre o dia estabelecido
para pagamento e o da sua efetivação” (TEPEDINO, Gustavo. O conceito de parte contratual em face
dos princípios da obrigatoriedade dos pactos e da função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo.
Opiniões doutrinárias: novos problemas de direito privado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. v.
III. p. 229).
56
CC, art. 398. “Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o
praticou”.
57
CC, art. 390. “Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que execu-
tou o ato de que se devia abster”. A mora, neste caso, se transforma em inadimplemento absoluto se,
pela natureza da obrigação e circunstâncias do negócio jurídico, as consequências da execução do ato
não puderem mais ser desfeitas, perdendo o credor o interesse útil à abstenção do devedor. O Código de
Processo Civil prevê que o juiz possa, a pedido do credor, determinar prazo para o desfazimento do ato
pelo devedor (CPC, art. 822), sendo possível, ainda, a cominação de astreintes (CPC, arts. 536 e 814).
No caso de recusa ou mora, o credor poderá requerer ao juiz o desfazimento do ato à custa do devedor,
impondo-lhe ainda perdas e danos. Se impossível o desfazimento, há inadimplemento absoluto, extinguin-
do-se a obrigação com perdas e danos (CC, art. 825).

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

compreensão de que nem todo descumprimento de obrigação negativa acarreta


necessariamente inadimplemento absoluto, franqueando-se ao credor muitas ve-
zes pretender a execução específica da abstenção do devedor que ainda lhe inte-
resse, como nos casos de obrigações de não concorrência e exclusividade.58
Além dessas vicissitudes associadas ao agravamento do vínculo obrigacional,
a mora acarreta, como segunda ordem de consequências, a perpetuatio obligationis,
impedindo a liberação de quem nela se encontre até que haja a purgação da mora.
Purgar a mora equivale a debelar o inadimplemento relativo, fazendo cessar, assim, o
agravamento da dívida, com a assunção das perdas e danos e consectários da mora
até a data do efetivo pagamento pelo devedor moroso ou o recebimento da presta-
ção pelo credor refratário. A purgação pressupõe a preservação do interesse útil à
prestação, pois, do contrário, como anteriormente ressaltado, a mora daria lugar ao
inadimplemento absoluto, tornando inviável a sua cura. Pela mesma ordem de mo-
tivos, não será possível a purgação da mora se há cláusula resolutiva expressa, ou
termo essencial, que levariam diretamente à resolução.
Por outro lado, não se confunde a purga da mora com as hipóteses de extin-
ção da obrigação por meios diversos do pagamento, como nas hipóteses de nova-
ção ou renúncia à dívida, que eliminam os efeitos pretéritos e futuros da mora. Em
contrapartida, a purgação da mora produz efeitos somente para o futuro (ex nunc),
devendo-se oferecer, com a prestação, o ressarcimento dos prejuízos produzidos
pela execução inexata até a data da cura.
Sem purga da mora, seja pela inocorrência das providências necessárias a
debelá-la, seja porque há termo essencial ou porque as circunstâncias fáticas, le-
gais ou contratuais impedem a cura, tem-se caracterizado o inadimplemento abso-
luto. Nessa direção, o parágrafo único do art. 395 estabelece a diferença entre o
inadimplemento relativo e o absoluto. Na linguagem do dispositivo: “Se a presta-
ção, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a sa-
tisfação das perdas e danos”. Como se vê, por decorrer da perda do interesse útil à
prestação, autoriza-se o credor rejeitá-la, exigindo a satisfação das perdas e danos,
com possível efeito extintivo da relação contratual na qual está inserida (art. 475).
A matéria exige especial atenção do intérprete nos casos em que, ausente
termo essencial ou disposição contratual expressa, a persistência do atraso aca-
ba por atingir a confiança e o patrimônio do credor, ainda que persista seu interes-
se em receber a prestação. Trata-se de encontrar delicado equilíbrio entre, de um
lado, evitar o arbítrio do credor que pretende pôr fim ao contrato por atraso pouco
significativo, e, de outro lado, não aprisionar o credor ao vínculo com o devedor

58
Sobre o tema, entre outros, TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil:
obrigações. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. v. 2. p. 89-90.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

impontual que resiste a purgar a mora com presteza. Para debelar a incerteza des-
sa hipótese, o direito alemão59 prevê a prerrogativa do credor de estipular prazo
razoável para que o devedor purgue a sua mora (o chamado “prazo de cura” ou
“período de graça”, em tradução de Nachfrist), findo o qual, não realizada a pres-
tação, lhe é facultada a resolução extrajudicial do contrato.60
Para ambos os cenários – seja mora ou inadimplemento absoluto – podem
as partes precaverem-se com o recurso à cláusula penal. Trata-se de efeito asso-
ciado, necessariamente, à inexecução imputável ao devedor. De fato, o art. 408,
que inaugura o capítulo sobre cláusula penal do Código Civil, diferentemente da
codificação anterior, prevê expressamente que somente incorre na pena conven-
cional o devedor que não cumprir sua obrigação culposamente.61 Associou-se, de
forma essencial, o surgimento da obrigação prevista na multa convencional ao
inadimplemento da obrigação à qual ela acede. A expressão “culposamente” ado-
tada no aludido art. 408, assim como na redação do art. 399, acima examinada,

59
BGB, §323. “Rücktritt wegen nicht oder nicht vertragsgemäß erbrachter Leistung. (1) Erbringt bei einem
gegenseitigen Vertrag der Schuldner eine fällige Leistung nicht oder nicht vertragsgemäß, so kann der
Gläubiger, wenn er dem Schuldner erfolglos eine angemessene Frist zur Leistung oder Nacherfüllung
bestimmt hat, vom Vertrag zurücktreten. [...]”. Em tradução livre: “Resolução por incumprimento ou por
cumprimento não conforme com o contrato (1) Se, no caso de um contrato sinalagmático, o devedor não
cumprir ou não cumprir em conformidade com o contrato, o credor pode rescindir o contrato se tiver fixado
ao devedor, sem sucesso, um prazo razoável para o cumprimento ou cumprimento posterior”. Destaca-se
que, a partir da reforma, se não houver impossibilidade, a mora só permite a resolução se decorrido o prazo
fixado pelo credor para o cumprimento (EHMANN, Horst; SUSTSCHET, Holger. La reforma del BGB. Tradução
de Claudia López Díaz e Ute Salach. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2006. p. 55).
60
A figura foi incluída também em instrumentos internacionais, como a CISG, e é referida no direito italiano
como diffida ad adempiere. O direito francês parece ter tomado rumo similar com a recente reforma: CCf,
art. 1226 (modifié par Ordonnance nº2016-131 du 10 février 2016 – art. 2): “Le créancier peut, à ses
risques et périls, résoudre le contrat par voie de notification. Sauf urgence, il doit préalablement mettre
en demeure le débiteur défaillant de satisfaire à son engagement dans un délai raisonnable. La mise en
demeure mentionne expressément qu’à défaut pour le débiteur de satisfaire à son obligation, le créancier
sera en droit de résoudre le contrat. Lorsque l’inexécution persiste, le créancier notifie au débiteur la
résolution du contrat et les raisons qui la motivent. Le débiteur peut à tout moment saisir le juge pour
contester la résolution. Le créancier doit alors prouver la gravité de l’inexécution”. Em tradução livre: “O
credor pode, por sua conta e risco, rescindir o contrato mediante pré-aviso. Exceto em caso de urgência,
o credor deve notificar previamente o devedor em mora para que este cumpra a sua obrigação num prazo
razoável. A notificação deve indicar expressamente que, se o devedor não cumprir a sua obrigação, o
credor tem o direito de resolver o contrato. Se o incumprimento persistir, o credor notificará o devedor
da resolução do contrato e das razões que a motivam. O devedor pode, a qualquer momento, recorrer à
justiça para contestar a resolução. O credor deverá então provar a gravidade do incumprimento”. Afirma-
se, assim, que a reforma mudou o sistema pelo qual a resolução exigia decisão judicial: o credor vítima
do inadimplemento pode resolver o contrato com base não somente em cláusula resolutiva expressa,
mas também por notificação fundada em inexecução suficientemente grave, devendo, salvo em caso de
urgência, conceder ao devedor prazo razoável para purgar a mora (MALAURIE, Philippe; AYNÈS, Laurent.
Droit des obligation. 10. ed. Paris: L.G.D.J., 2018. p. 513). Sobre o tema, na experiência brasileira, cf.
SOUZA, Amanda Guimarães Cordeiro de. Período de graça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018).
61
CC, art. 408. “Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de
cumprir a obrigação ou se constitua em mora”.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

suscita dúvida quanto à sua adoção, de modo atécnico, no sentido de imputa-


bilidade (subjetiva ou objetiva), ou à opção deliberada do legislador em circuns-
crever a cláusula penal à hipótese de inadimplemento culposo (imputabilidade
subjetiva).62 Em sentido contrário, todavia, argumenta-se que a cláusula penal se
subordina à inexecução imputável (de modo subjetivo ou objetivo), aferida com a
constituição em mora, devendo ser afastado, para sua deflagração, o requisito
adicional da culpa, “em homenagem à coerência do sistema”.63
Em tal perspectiva, o problema da imputabilidade no âmbito da cláusula pe-
nal só parece suscitar dificuldade quando se trata de obrigação com múltiplos de-
vedores, em que nem todos agiram culposamente. Para evitar eventual incerteza,
o legislador encaminhou o problema conforme a natureza da obrigação principal
que ela garante. Se divisível, também a pena acessória deve ser fracionada, de
modo que somente possa ser exigida do devedor culpado, e proporcionalmente à
sua quota parte na dívida.64 Se indivisível a obrigação principal, entretanto, facul-
tou-se ao credor a opção entre exigir a pena integralmente do culpado ou propor-
cionalmente dos demais devedores, cabendo a estes o direito de regresso contra
o culpado.65
Não tratou o codificador especificamente da exigibilidade da cláusula penal
por descumprimento imputável a somente um dos devedores solidários. No proje-
to original, Clovis Bevilaqua havia inserido a referência à solidariedade no disposi-
tivo da cláusula penal. A referência foi retirada, o que foi aplaudido por João Luiz
Alves, sob o argumento de se evitar confusão conceitual, já que a solidariedade
era tratada em outros dispositivos. Bevilaqua, todavia, rebateu, entendendo que
a supressão é que causaria confusão. Apesar do silêncio do legislador, como ob-
servado, prevalece o entendimento de que, ante a solidariedade dos devedores, a
cláusula penal é exigível de qualquer um deles, mesmo dos não culpados. A inter-
pretação condiz com o já exposto raciocínio de que a função indenizatória não é da

62
Este último entendimento é sustentado por MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil.
Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2009. v. V. t. II. p. 634-
635.
63
TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2014. v. 1. p. 750. Na mesma direção, admite-se a previsão de cláusula penal também
para “hipóteses em que o inadimplemento independe de culpa, pois basta a constatação objetiva do
descumprimento da obrigação”, quando a expressão culposamente “deve ser havida como noção de mera
imputação” (BDINE JR., Hamid Charaf. Código Civil comentado. Coordenação de Cesar Peluso. 13. ed. São
Paulo: Manole, 2019. p. 413).
64
CC, art. 415. “Quando a obrigação for divisível, só incorre na pena o devedor ou o herdeiro do devedor que
a infringir, e proporcionalmente à sua parte na obrigação”.
65
CC, 414. “Sendo indivisível a obrigação, todos os devedores, caindo em falta um deles, incorrerão na
pena; mas esta só se poderá demandar integralmente do culpado, respondendo cada um dos outros so-
mente pela sua quota. Parágrafo único. Aos não culpados fica reservada a ação regressiva contra aquele
que deu causa à aplicação da pena”.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

essência da cláusula penal e que, diferentemente das perdas e danos, a obriga-


ção prevista pela cláusula penal foi risco determinado voluntariamente assumido
pelos demais codevedores.66
No que tange ao dano, contudo, o legislador repetiu o modelo anterior, limi-
tando-se a afirmar que para exigir a cláusula penal não é necessário que o credor
alegue prejuízo.67 A disposição ensejou a certa doutrina considerar que apenas
seria dispensada a prova de dano pelo credor; embora estivesse autorizado o de-
vedor, por outro lado, a eximir-se da pena comprovando a ausência de prejuízo do
credor em decorrência do inadimplemento. O debate aqui se mistura à controvér-
sia acerca da função da cláusula penal: para aqueles que a reputam essencial-
mente ou predominantemente mecanismo indenizatório, a comprovada ausência
de dano afastaria o cabimento desse instrumento ressarcitório.68
Entretanto, partindo-se da premissa de que a cláusula penal pode desempe-
nhar função indenizatória ou coercitiva, já se afasta a possibilidade de o dano, de
per si, interferir em sua exigibilidade. Não obstante, ainda que se esteja diante
de cláusula penal com função indenizatória, deve-se afastar o cabimento dessa
“exceção de ausência de dano”, tendo em vista que abriria espaço para a longa
e custosa discussão judicial sobre a extensão do dano, que a cláusula penal vi-
sava justamente a evitar. Parece haver aqui confusão entre a cláusula penal e a
denominada “cláusula de indenização” (liquidated damages clause, liquidazione
convenzionale del danno, clause de dommages-intérêts, pauschalierter Schaden-
sersatz), esta sim condicionada à existência de dano, já que tem por função so-
mente sua liquidação antecipada.69 Nesse sentido, já se afirmou que a cláusula

66
Conforme registrado por João Luiz Alves, o projeto final do Código Civil “firmou o princípio de que os
devedores não culpados só respondem pela sua parte proporcional no valor da cláusula penal”. Além
disso, “suprimiu também o texto a restritiva final do al. 1º do Projeto Clovis Bevilaqua, por desnecessária,
desde que, sendo solidária a obrigação da cláusula penal, será ela regida pelos dispositivos dos arts.
904 e seguintes” (ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil anotado.
Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia Editores-Livreiros, 1926). A incisiva resposta de Clovis merece trans-
crição: “A contravenção de um só, quando a obrigação é indivisível, determina a cominação da pena a
todos. Qualquer que seja a função da pena quando a obrigação indivisível se converte na indenização de
prejuízos, torna-se, em regra, divisível, porque a indeminização se fará, ordinariamente, em dinheiro ou
quantidade. Sendo divisível a obrigação de indemnizar, cada um dos co-devedores responde pela sua
quota, e, assim, cada um dos herdeiros. Mas, se a pena for indivisível, se consistir na perda de uma coisa
determinada, indivisível, todos os co-obrigados a devem integralmente. O mesmo se dirá, quando a pena
for estipulada com solidariedade. Por isso dizia o Projecto primitivo que, em regra, a pena só ao culpado
podia ser pedida integralmente, ressalvando o caso da indivisibilidade, e o da solidariedade. Pareceram
essas ressalvas ociosas a João Luiz Alves; mas a omissão delas é que poderia suscitar as dúvidas, que
ele imaginou, se a doutrina e a jurisprudência não completarem o dispositivo” (BEVILAQUA, Clovis. Código
Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Alves, 1934. v. IV. p. 77).
67
CC, art. 416, caput: “Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo”.
68
PINTO MONTEIRO, Antonio. Responsabilidade contratual: cláusula penal e comportamento abusivo do
credor. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 7, n. 26, 2004. p. 170.
69
SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022. p. 79.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

penal firma verdadeira “presunção absoluta de dano”.70 Corrobora esse entendi-


mento a previsão constante do parágrafo único do mesmo art. 416, segundo o
qual o credor não pode pretender indenização suplementar comprovando dano
superior à multa, se isso não tiver sido expressamente convencionado.71 Des-
se modo, enquanto de um lado a cláusula penal dispensa o credor de discutir e
comprovar prejuízo, de outro lado, limita o montante indenizatório que ele pode
pretender, já que, sem previsão contratual específica, não lhe seria franqueada a
possibilidade de indenização suplementar.

5 Releitura da execução por terceiro e do desfazimento


forçado nas obrigações de fazer e não fazer
Imputabilidade e dano colocam-se com especial destaque na disciplina dos
riscos das obrigações de fazer e de não fazer. Além da diversidade de efeitos as-
sociados à dicotomia entre a resolução decorrente de impossibilidade e a obri-
gação de indenizar ligada à imputabilidade do devedor (isto é, a projeção nos
contratos bilaterais da impossibilidade superveniente imputável ou não imputá-
vel), o codificador acrescentou dois remédios específicos: a execução por terceiro
nas obrigações de fazer e o desfazimento forçado nas obrigações de não fazer.
Na primeira hipótese, o art. 249 do Código Civil autoriza o credor, ante a mora ou
recusa do devedor, a contratar terceiro para executar a prestação à custa dele. Na
segunda hipótese, o art. 251 permite que o credor, realizada a conduta de que de-
veria o devedor se abster, exija o desfazimento pelo devedor, sob pena de também
poder contratar terceiro para desfazer à custa dele. Em ambos os casos, a con-
tratação do terceiro independe de prévia autorização judicial se houver urgência.
A admissão desses remédios insere-se historicamente no contexto de sig-
nificativa resistência à execução forçada dessas obrigações. A intangibilidade da
pessoa do devedor, cujo inadimplemento poderia atingir-lhe somente no patrimô-
nio, era levada a extremo de privar o credor de qualquer mecanismo coercitivo
que servisse a pressionar o devedor refratário à realização da conduta efetiva-
mente devida. Indisposto o devedor a fazer o que lhe incumbia, a solução res-
tringia-se ao pagamento de perdas e danos, sob pena de se reputar ferida sua

70
Sobre o tema, seja consentido remeter a TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos
sobre a cláusula penal a partir da superação da tese da dupla função. Revista Brasileira de Direito Civil,
Rio de Janeiro, v. 31, 2023. p. 363-364.
71
CC, art. 416. “[...] Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o
credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como
mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente”.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

liberdade individual: nemo potest cogi ad factum.72 A única hipótese em que se


admitia a execução específica consistia na adjudicação compulsória: negando-se o
promitente vendedor à (obrigação de fazer traduzida na celebração do contrato de
compra e venda para a) transferência do domínio, o diploma processual assegura-
va a substituição da sua vontade pela ordem judicial de adjudicação da proprieda-
de ao promitente comprador.73 A exceção vinha no esteio do significativo impacto
social das promessas de compra e venda de imóveis, cuja legislação específica se
contrapôs historicamente ao regime geral do Código Civil. Este, de fato, ao permi-
tir o arrependimento de qualquer das partes mediante o ressarcimento de perdas
e danos, conferia ao contratante com maior poder econômico relativa liberdade
para descumprir os compromissos quando surgissem oportunidades mais conve-
nientes.74
A resistência à execução forçada pelo próprio devedor, em homenagem à sua
liberdade individual, abria concessão a outro mecanismo de busca da satisfação
efetiva do credor com a obtenção da prestação que lhe foi prometida, consistente
na execução por terceiro.75 Trata-se de operação substitutiva, já que terceiro reali-
za para o credor a prestação devida, que incumbia ao devedor, razão pela qual se
justifica lhe transferir o custo econômico dessa substituição.

72
A regra encontrava-se expressamente prevista no Código Civil francês (CCf), art. 1142. “Toute obligation
de faire ou de ne pas faire se résout en dommages et intérêts en cas d’inexécution de la part du débiteur”
(em tradução livre: “Toda obrigação de fazer ou não fazer resolve-se em perdas e danos em caso de
inexecução por parte do devedor”) – mas desde o início do século passado é objeto de crítica na própria
doutrina francesa: “On voit qu’en définitive le législateur eût mieux fait de ne pas écrire la disposition
de l’art. 1142. Si on la prend à la lettre, on lui attribue une portée qui est incompatible avec le respect
dû aux conventions. Si on pénètre son esprit, on arrive à cette conclusion qu’elle est à peu près inutile,
car, pratiquement, elle se résume en cette constatation que le créancier doit se contenter de dommages-
intérêts quand il lui est impossible d’obtenir l’exécution en nature” (BAUDRY-LACANTINERIE, G.; BARDE,
L. Traité théorique et pratique de droit civil, XII, Des obligations. 3. ed. Paris: Sirey, 1906. t. I. p. 473
– em tradução livre: “Vemos que, definitivamente, o legislador teria feito melhor em não escrever o
disposto no art. 1142. Tomado ao pé da letra, atribui-se a ele um alcance incompatível com o respeito
devido às convenções. Penetrando em seu espírito, chega-se à conclusão de que ele é quase inútil, pois,
praticamente, se resume à observação de que o credor deve contentar-se com a indenização quando lhe
for impossível obter a prestação em espécie”).
73
CPC1973 (Lei nº 5.869/1973), art. 466-B. “Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não
cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma
sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado” (incluído pela Lei nº 11.232, de 2005).
74
Sobre o tema, seja consentido remeter a TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Qualificação e
disciplina do contrato preliminar no Código Civil brasileiro. In: BARBOSA, H.; SILVA, J. C. F. (Coord.). A
evolução do direito empresarial e obrigacional: 18 anos do Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2021.
v. 2. p. 28.
75
Afirmava Tito Fulgêncio: “Quer na primeira, quer na segunda hypothese não se attenta contra a regra –
nemo potest praecise cogi ad factum, em nenhuma ha coacção directa à pessôa do devedor para fazer;
na primeira, mandando fazer o trabalho por outro, arreda a pessôa do devedor, e obtem o cumprimento
perfeito da obrigação; na segunda, o constrangimento recae sobre os bens, não sobre a pessôa do
devedor” (FULGÊNCIO, Tito. Das modalidades das obrigações. In: LACERDA, Paulo de (Coord.). Manual do
Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: São José, 1927. v. X. p. 127).

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

A operacionalização da execução por terceiro, todavia, disciplinada pelo legis-


lador processual, tornou-se pouco eficaz para a satisfação do interesse do credor.
Com efeito, o CPC1973, em sua versão original, exigia a realização de verdadeira
licitação, com nomeação prévia de perito para avaliação e abertura de concorrên-
cia pública e, ainda assim, cumpria ao credor o adiantamento das custas ao ter-
ceiro.76 A Lei nº 11.382/2006 simplificou o processo, instituindo o procedimento
incorporado pelo CPC vigente, segundo o qual o credor adianta as quantias ao
terceiro conforme proposta que ele apresentar e que, ouvidas as partes, o juiz
houver aprovado.77
Em termos práticos, todavia, deve-se constatar que essa opção dispensa-
ria previsão específica, já que os gastos com a substituição da prestação não
cumprida já configurariam danos emergentes indenizáveis, compondo as perdas
e danos que seriam devidos pelo devedor inadimplente. Desse modo, o procedi-
mento apresentado pela previsão processual serve somente a dar maior seguran-
ça quanto à indenizabilidade dessas verbas, mas, se o credor não tiver condições
de arcar com os custos da substituição, a legislação não oferece amparo, salvo
se ainda lhe incumbir contraprestação ao devedor sobre a qual possa efetuar com-
pensação.78 Assim, mesmo com a simplificação do procedimento processual, em
comparação com os progressos relativos à execução específica, a execução por
terceiro persiste submetida à regulação de limitada utilidade prática.79

76
CPC1973, art. 634. “Se o fato puder ser prestado por terceiro, o juiz, a requerimento do credor, poderá
decidir que aquele o realize à custa do devedor. §1º O juiz nomeará um perito que avaliará o custo da
prestação do fato, mandando em seguida expedir editais de concorrência pública, com o prazo máximo de
trinta (30) dias. §2º As propostas serão acompanhadas de prova do depósito da importância, que o juiz
estabelecerá a título de caução. §3º No dia, lugar e hora designados, abertas as propostas, escolherá o
juiz a mais vantajosa. §4º Se o credor não exercer a preferência a que se refere o art. 637, o concorrente,
cuja proposta foi aceita, obrigar-se-á, dentro de cinco (5) dias, por termo nos autos, a prestar o fato sob
pena de perder a quantia caucionada. §5º Ao assinar o termo, o contratante fará nova caução de vinte
por cento (20%) sobre o valor do contrato. §6º No caso de descumprimento da obrigação assumida pelo
concorrente ou pelo contratante, a caução, referida nos §§4º e 5º, reverterá em benefício do credor. §7º
O exeqüente adiantará ao contratante as quantias estabelecidas na proposta aceita”. Nesse contexto,
destacava Humberto Theodoro Jr.: “Esse quadro normativo frustrava praticamente o direito de o credor
tomar a iniciativa de levar adiante a obra inadimplida pelo executado, tal como lhe faculta o direito material
(Código Civil, art. 249)” (THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 52. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019. v. III. §312 – recurso eletrônico).
77
CPC, art. 817. “Se a obrigação puder ser satisfeita por terceiro, é lícito ao juiz autorizar, a requerimento
do exequente, que aquele a satisfaça à custa do executado. Parágrafo único. O exequente adiantará as
quantias previstas na proposta que, ouvidas as partes, o juiz houver aprovado”.
78
Carvalho de Mendonça ilustrava com os exemplos do locatário que abate do aluguel os custos com a
remoção de árvore que fora prometida e não cumprida pelo locador e do dono da obra que desconta de
parcela ainda pendente da empreitada os gastos com parte da reforma prometida e não cumprida pelo
empreiteiro (MENDONÇA, Manoel Ignacio Carvalho de. Doutrina e prática das obrigações. 2. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1911. p. 214-215).
79
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. n. 227.2, recurso
eletrônico.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

O sistema brasileiro, ao menos no tocante ao direito material, aparentemen-


te continua a reproduzir modelo estrangeiro que não se encontra mais em vigor.
Com efeito, a inspiração do disposto no art. 249 do Código Civil parece residir
na legislação original francesa, que trazia disposição redigida de forma bastante
similar.80 Entretanto, em modificação operada em 199181 e consolidada pela re-
cente reforma pela qual passou o direito das obrigações francês, foi modificada a
disciplina da execução por terceiro com duas possibilidades. Permitiu-se, ao lado
da prerrogativa de o credor recorrer à execução por terceiro sem prévia autoriza-
ção judicial, arcando com os custos e pleiteando depois o ressarcimento contra
o devedor, a possibilidade de o credor igualmente, se os custos foram razoáveis,
requerer judicialmente, ab initio, a condenação do devedor a adiantar as custas
para a contratação do terceiro.82 A autorização judicial deixa de ser requisito para
a execução de terceiro, tornando-se necessária somente para o credor que pre-
tenda a condenação do devedor ao adiantamento dos valores exigidos pelo tercei-
ro.83 A medida adotada pela legislação francesa, mais eficiente que a literalidade

80
Previam originalmente os arts. 1143 e 1144 do CCf: art. 1143. “Néanmoins, le créancier a le droit de
demander que ce qui aurait été fait par contravention à l’engagement soit détruit; et il peut se faire
autoriser à le détruire aux dépens du débiteur, sans préjudice des dommages et intérêts s’il y a lieu”; art.
1144. “Le créancier peut aussi, en cas d’inexécution, être autorisé à faire exécuter lui-même l’obligation
aux dépens du débiteur”. Em tradução livre: “Art. 1143. Não obstante, o credor tem o direito de exigir
que seja destruído o que teria sido feito pelo descumprimento do compromisso; e poderá ser autorizado
a destruí-lo às expensas do devedor, sem prejuízo de indenização e juros, se houver. Art. 1.144. O credor
também pode, em caso de inadimplemento, ser autorizado a fazer ele mesmo cumprir a obrigação às
expensas do devedor”.
81
Loi nº 91-650 du 9 juillet 1991.
82
CCf, art. 1222. “Après mise en demeure, le créancier peut aussi, dans un délai et à un coût raisonnables,
faire exécuter lui-même l’obligation ou, sur autorisation préalable du juge, détruire ce qui a été fait en
violation de celle-ci. Il peut demander au débiteur le remboursement des sommes engagées à cette fin. Il
peut aussi demander en justice que le débiteur avance les sommes nécessaires à cette exécution ou à
cette destruction”. Em tradução livre: “Depois da constituição em mora, o credor poderá ainda, em prazo e
a custo razoáveis, executar ele próprio a obrigação ou, com prévia autorização do juiz, destruir o que tiver
feito em desacordo com ela. Pode pedir ao devedor o reembolso das quantias empenhadas para o efeito.
Pode ainda requerer judicialmente que o devedor adiante as quantias necessárias a esta execução ou a
esta destruição”.
83
Destacava Denis Mazeaud sobre o projeto de reforma: “[...] Dans le code actuel, le créancier d’une obligation
de faire peut, à condition d’obtenir l’autorisation préalable du juge, faire exécuter par un tiers l’obligation
souscrite par le débiteur défaillant, aux frais de ce dernier. L’ordonnance modifie très sensiblement le
mécanisme puisque, dans ce même cas de figure, le créancier insatisfait peut procéder de la même
façon, mais sans demander une autorisation préalable au juge. Aussi, la faculté de remplacement sera-
t-elle désormais unilatérale, du moins pour les obligations de faire” (MAZEAUD, Denis. Les sanctions de
inexécution. In: BROS, Sarah (Coord.). Les innovations de la réforme du droit des contrats. Paris: Institut
Universitaire Varenne, 2018. p. 92 – em tradução livre: “No código atual, o credor de obrigação de fazer
pode, desde que obtenha autorização prévia do juiz, mandar executar por terceiro a obrigação contraída
pelo devedor inadimplente, a expensas deste. A ordonnance modifica significativamente o mecanismo,
pois, nesse mesmo cenário, o credor insatisfeito pode proceder da mesma forma, mas sem solicitar
autorização prévia do juiz. Além disso, a opção de substituição passará a ser unilateral, pelo menos para
as obrigações de fazer”).

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

do nosso procedimento legislado, não se mostra, todavia, avessa ao ordenamen-


to brasileiro, sob a perspectiva da interpretação sistemática. Assim, em síntese,
poderia o credor realizar a execução por terceiro às suas expensas independen-
temente de prévia autorização judicial ou urgência, recorrendo ao Judiciário para
pretender do devedor o ressarcimento dos gastos com a contratação do terceiro,
ou poderia ainda recorrer previamente ao Judiciário para não somente obter a au-
torização para a execução por terceiro, mas principalmente para a condenação do
devedor a arcar ab initio com o custo da contratação do terceiro.84
Traçado esse quadro, pode-se retomar o mote dessa investigação, princi-
piando por avaliar se esses remédios pressupõem a caracterização de dano. A
execução por terceiro, no âmbito das obrigações de fazer, é costumeiramente tida
por forma de execução específica, que independe de caracterização de prejuízo ao
credor.85 Por exemplo, o médico que informa de manhã que não realizará no final
do dia a cirurgia para a qual foi contratado pode ser substituído por terceiro a tem-
po de evitar qualquer prejuízo ao paciente que o contratou.
O desfazimento forçado, todavia, embora possa também resultar em execu-
ção por terceiro, como destaca a similar redação do dispositivo legal, costuma ser
considerado forma de reparação in natura, já que, realizada a conduta de que pro-
metera o devedor se abster, estaria consumado o dano, servindo o desfazimento
do resultado material produzido como mecanismo de reparação desse dano.86 Na
doutrina francesa, entretanto, parece prevalecer o entendimento de que ele tam-
bém seria uma forma de execução, independente do dano, especialmente ante
sua configuração como opção do credor.87 Com efeito, partindo da premissa de

84
A despeito do silêncio do legislador, indica-se na doutrina processualista a conveniência de o magistrado,
após a aprovação da proposta de contratação do terceiro, antes de demandar ao credor o adiantamento
das quantias, intimar o devedor a realizar o pagamento em juízo do valor devido ao terceiro: MARINONI,
Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
p. 335; DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil. Execução. 7. ed. Salvador: JusPodivm,
2017. v. 5. p. 1050.
85
Na doutrina processualista, é comum encontrar a referência à execução por transformação (entre outros,
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. §58, recurso
eletrônico).
86
Entre outros, NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São
Paulo: Saraiva, [s.d.]. p. 405. Em sentido contrário, afirmava Tito Fulgêncio: “É direito de todo o credor
obter a execução in natura, o cumprimento exacto da obrigação, seja positiva, seja negativa. Na primeira, a
execução consiste na pratica do acto positivo que o devedor prometeu; na segunda, na pratica tambem do
acto prometido, mas, como este era uma abstenção e não foi praticada, a execução em natureza remata-
se no desfazimento do acto feito em contravenção a promessa” (FULGÊNCIO, Tito. Das modalidades das
obrigações. In: LACERDA, Paulo de (Coord.). Manual do Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: São José,
1927. v. X. p. 132).
87
CHONE-GRIMALDI, Anne-Sophie. Art. 1222. In: DOUVILLE, T. (Dir.). La réforme du droit des contrats.
Issy-les-Moulineaux: Gualino, 2016. p. 225. Afirmam Philippe Malaurie e Laurent Aynès: “C’est une
mesure d’exécution; elle s’impose même si aucun préjudice ne résulte de l’inexécution, sous réserve
que le coût de la mesure ne soit pas manifestement disproportionné à son intérêt pour le créancier qui

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

que o inadimplemento não configura, por si só, um dano, seria possível conceber
que a violação do dever de abstenção, mesmo gerando o resultado material a ser
desfeito, pode não configurar prejuízo atual ao credor. Basta imaginar o exemplo
recorrente do vizinho que constrói bloqueando a vista que prometera ao seu confi-
nante. Se o credor ainda estava construindo um edifício no seu terreno, a violação
da obrigação negativa pelo vizinho que bloqueia a vista ainda não chegou a preju-
dicá-lo, já que a obra ainda não está pronta. Todavia, encontra-se já legitimado a
pretender o desfazimento forçado, com base no descumprimento da obrigação de
não construir. Ou seja, tanto a execução por terceiro como o desfazimento forçado
parecem ser remédios ensejados imediatamente pelo inadimplemento, ainda que
não se tenha produzido dano ao credor.88
A imputabilidade do devedor, por outro lado, costuma ser tida como requisito
para essas medidas. Para o desfazimento forçado o legislador refere-se expres-
samente apenas à prática do ato cuja abstenção se esperava, mas se reconhece
que, se essa prática não lhe é imputável – como a imposição do fazer por fato do
príncipe – sequer poderá lhe ser imposta a obrigação de desfazer. Já no tocante à
execução por terceiro, o dispositivo faz expressa referência à recusa ou mora do
devedor, a sugerir que a imputabilidade do devedor seria requisito para a adoção
desse remédio.
A questão acaba por recair na fungibilidade ou infungibilidade da prestação.
Com efeito, a execução por terceiro é remédio tradicionalmente limitado à inexecu-
ção de obrigações de fazer fungíveis, embora a qualificação da obrigação quanto
à fungibilidade não seja elemento ontológico da sua estrutura, senão reflexo da
composição de interesses a que ela atende. Por esse motivo, a classificação exi-
ge a análise da obrigação sob perfil dinâmico e funcional. Dessa forma, é possível
que o transcorrer do tempo, especialmente se atrasado o cumprimento, permita
reputar fungível a obrigação originalmente infungível, em vista do interesse do
credor.89 Basta imaginar a peça teatral cuja abertura precisa ser postergada por

la réclame, comme en dispose l’article 1221 à titre général” (MALAURIE, Philippe; AYNÈS, Laurent. Droit
des obligation. 10. ed. Paris: L.G.D.J., 2018. p. 503 – em tradução livre: “É uma medida de execução;
ela se impõe mesmo se nenhum prejuízo resultar da inexecução, desde que o custo da medida não seja
manifestamente desproporcional ao seu interesse para o credor que a reclama, conforme previsto no
artigo 1221 de forma geral”).
88
Na doutrina processual, afirma Luiz Guilherme Marinoni: “a tutela que determina o desfazimento do que
não deveria ter sido feito faz valer a obrigação de não-fazer, estabelecendo o seu adimplemento. Quem
é obrigado a desfazer o que não deveria ter feito e obrigado a adimplir a obrigação de não-fazer e não a
reparar um dano” (MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008. p. 290).
89
A predominância do interesse do credor na avaliação de fungibilidade da prestação sobressai na disposição
portuguesa, segundo a qual a infungibilidade decorre de acordo entre as partes ou de prejuízo ao credor:
Código Civil português (CCp), art. 767º, 2. “O credor não pode, todavia, ser constrangido a receber de
terceiro a prestação, quando se tenha acordado expressamente em que esta deve ser feita pelo devedor,
ou quando a substituição o prejudique”.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

problema de saúde do ator principal, mas a demora no seu tratamento acaba por
fazer o diretor preferir contratar outro ator para protagonizar o espetáculo; ou o pa-
ciente que prefere adiar a cirurgia para fazê-la com seu médico de confiança, que
se viu impedido de chegar por problemas de transporte; e, posteriormente, opta
por outro médico ao perceber que o retorno do cirurgião anteriormente eleito le-
varia mais tempo do que imaginado. Nesses casos, a impossibilidade temporária
relativa à pessoa do devedor, que inviabilizava o cumprimento de forma absoluta e
inimputável em razão da infungibilidade, coloca-se sob nova qualificação por conta
do efeito da passagem do tempo sobre o interesse do credor, de modo a autorizar
no caso concreto o remédio da execução por terceiro.90

6 Fundamentos da distinção entre o regime das perdas e


danos e dos juros pela inexecução imputável a somente
um dos codevedores solidários
Os efeitos da inexecução imputável a apenas um dos codevedores solidários
colocam um dilema ao legislador. Por um lado, estender a responsabilidade a to-
dos pela culpa de um codevedor pode configurar injustiça significativa, agravando
a situação dos não culpados para além do encargo já assumido. Por outro lado,
restringir os efeitos ao culpado reduz sobremaneira a garantia do credor, que de-
veria ser resguardada pela solidariedade passiva. Ante essa dificuldade, o legis-
lador brasileiro adotou posição peculiar: enquanto a impossibilidade da prestação
por culpa de um devedor exonera os demais das perdas e danos, incumbindo-lhes
somente responsabilidade pelo equivalente (CC, art. 279),91 no tocante aos juros,
todos os devedores solidários são responsáveis perante o credor, sem prejuízo do
direito ao reembolso contra o culpado em ação regressiva (CC, art. 280).92
A distinção de regimes, estabelecida desde o Código Civil de 1916, pare-
ce sempre ter causado algum desconforto na doutrina. No que tange ao atual
art. 279 do Código Civil (art. 908 da legislação anterior), a mera distinção entre

90
Como explica Antunes Varela: “A fungibilidade da prestação interessa ainda à questão de saber quando é
que a impossibilidade relativa à pessoa do devedor importa, por equiparação à impossibilidade objectiva,
a extinção da obrigação (art. 791º). A equiparação só se dá quando o devedor se não possa fazer substituir
por terceiro no cumprimento da obrigação” (ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral.
10. ed. Coimbra: Almedina, 2000. v. I. p. 99).
91
CC, art. 279. “Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, subsiste para
todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado”. Para uma
análise do conceito de “equivalente”, v. NUNES DE SOUZA, Eduardo. O equivalente no direito das obriga-
ções: uma proposta hermenêutica. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 12, n. 1, p. 1-69, 2023.
92
CC, art. 280. “Todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta
somente contra um; mas o culpado responde aos outros pela obrigação acrescida”.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

a responsabilidade solidária pelo equivalente e a responsabilidade exclusiva do


devedor imputável pelas perdas e danos foi objeto de significativa controvérsia.
Destacava-se que, integrando ambos o interesse do credor prejudicado, não ha-
veria razão para a separação.93 Sua raiz costuma ser atribuída a possível contra-
dição entre textos romanos, com embates entre glosadores para conciliá-los, até
que a solução da separação teria sido determinada pela primeira vez no Código
Civil francês.94 Ao propósito, a distinção entre a responsabilidade pelo equivalente
(solidária) e pelas perdas e danos (exclusiva do devedor culpado) encontrava-se
na versão original do art. 1205 do Code95 (reproduzida também pelos códigos civis
italiano96 e português),97 em que foi objeto de significativa controvérsia. Ressaltou-se,
comumente, tratar-se de opção legislativa menos guiada pela lógica do que pela
equidade.98

93
Segundo Tito Fulgêncio: “O preço da coisa ou aestimatio rei, o equivalente do nosso texto, bem como o
damnum, perdas e damnos do texto, representam o interesse que o credor tinha na execução da obriga-
ção, e, portanto, para ser completamente representado esse interesse, cumpre que um e outros se ajun-
tem. Nada justifica a diversidade da solução para os dois elementos” (FULGÊNCIO, Tito. Das modalidades
das obrigações. In: LACERDA, Paulo de (Coord.). Manual do Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: São
José, 1927. v. X. p. 306).
94
Explica Carvalho de Mendonça: “Essa distinção entre o preço da cousa ou o equivalente da prestação e
indemnização de perdas e damnos, na solidariedade, é relativamente recente. [...] Tal disposição teve sua
origem histórica na tentativa de conciliação de textos romanos entre si contradictorios. Entendiam uns
que os effeitos da culpa dos correi debendi se estendia a todos: outros estabeleciam principio contrario.
Desde os glozadores até os precursores do Codigo Civil Francez, diversas tentativas foram feitas para
operar a conciliação e a ultima entrou no domínio da lei franceza” (MENDONÇA, Manoel Ignacio Carvalho
de. Doutrina e prática das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1911. p. 355-356).
95
CCf, art. 1205 (revogado). “Si la chose due a péri par la faute ou pendant la demeure de l’un ou de plusieurs
des débiteurs solidaires, les autres codébiteurs ne sont point déchargés de l’obligation de payer le prix de
la chose; mais ceux-ci ne sont point tenus des dommages et intérêts. Le créancier peut seulement répéter
les dommages et intérêts tant contre les débiteurs par la faute desquels la chose a péri, que contre ceux
qui étaient en demeure”. Em tradução livre: “Se a coisa devida tiver perecido por culpa ou durante a mora
de um ou mais dos devedores solidários, os outros codevedores não se eximem da obrigação de pagar
o preço da coisa; mas estes não são responsáveis ​​por perdas e danos. O credor só pode demandar as
perdas e danos tanto contra os devedores culpados pelo perecimento ou que estavam em mora”.
96
CCi, art. 1307. “(Inadempimento). Se l’adempimento dell’obbligazione è divenuto impossibile per
causa imputabile a uno o più condebitori, gli altri condebitori non sono liberati dall’obbligo solidale di
corrispondere il valore della prestazione dovuta. Il creditore può chiedere il risarcimento del danno ulteriore
al condebitore o a ciascuno dei condebitori inadempienti”. Em tradução livre: “(Inadimplemento). Se o
cumprimento da obrigação se tornar impossível por causa imputável a um ou mais codevedores, os outros
codevedores não se exoneram da obrigação solidária de pagar o valor da prestação devida. O credor pode
pedir a reparação dos danos ulteriores ao codevedor ou a cada um dos codevedores inadimplentes”.
97
CCp, art. 520º. “(Impossibilidade da prestação) Se a prestação se tornar impossível por facto imputável
a um dos devedores, todos eles são solidariamente responsáveis pelo seu valor; mas só o devedor a
quem o facto é imputável responde pela reparação dos danos que excedam esse valor, e, sendo vários, é
solidária a sua responsabilidade”.
98
Segundo Baudry-Lacantinerie e Barde, “Cette disposition est critiquée para beaucoup d’auteurs, et, nous
le reconnaissons, la distinction qu’elle établit ne peut, au point de vue de la logique, se justifier. [...]
Pourquoi la solution ne serait-elle pas la même pour les deux éléments? [...] Les rédacteurs du Code,
trouvant dans Pothier la distinction entre le prix de la chose périe et les dommages-intérêts, ont cru devoir
la reproduire. Telle est l’origine de la disposition de l’art. 1205. Beaucoup d’auteurs, nous l’avons dit,
considèrent cette disposition comme illogique. Mais si, au point de vue des principes, leur appréciation
est fondée, la décision du Code peut se justifier au point de vue de l’équité: Ne serait-il pas dur de faire

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

Talvez por conta das controvérsias, o dispositivo francês foi revogado pela
recente reforma das obrigações, instituindo-se regra geral segundo a qual todos
os devedores solidários respondem pelos efeitos da inexecução, ainda que, ao fi-
nal, nas relações internas, o encargo recaia somente sobre o culpado.99 Essa foi
a orientação também no novo Código Civil argentino100 e que já era a linha adotada
pelo direito espanhol,101 no qual se fala de forma geral de “comunicação da culpa”
em razão da solidariedade.102
A dificuldade se intensifica no ordenamento brasileiro justamente pela previ-
são do art. 280 do Código Civil (art. 909 da legislação anterior) de que os juros da
mora, ao contrário, podem ser exigidos de qualquer devedor solidário, ainda que o
atraso seja imputável a somente um deles. O Código Civil francês, em sua redação

retomber intégralement sur les débiteurs innocents les conséquences de la faute de leur codébiteur?”
(BAUDRY-LACANTINERIE, G.; BARDE, L. Traité théorique et pratique de droit civil, XII, Des obligations. 3. ed.
Paris: Sirey, 1906. t. I. p. 337-338 – em tradução livre: “Esta disposição é criticada por muitos autores e,
reconhecemos, a distinção que ela estabelece não pode, do ponto de vista da lógica, justificar-se. [...] Por que
a solução não seria a mesma para os dois elementos? [...] Os redatores do Código, encontrando em Pothier
a distinção entre o preço da coisa perecida e as perdas e danos, julgaram necessário reproduzi-la. Esta é
a origem da disposição do art. 1205. Muitos autores, como dissemos, consideram esta disposição ilógica.
Mas se, do ponto de vista dos princípios, a sua apreciação for fundamentada, a decisão do Código pode
justificar-se do ponto de vista da equidade: Não seria difícil impor inteiramente aos devedores inocentes as
consequências da culpa do seu codevedor”). No mesmo sentido, mais recentemente destacam os Mazeaud:
“Cette restriction a été inspirée aux rédacteurs du Code civil para des considérations d’équité; ils n’ont
pas voulu que les codébiteurs aient à supporter les conséquences d’une exécution tardive, alors qu’ils
n’avaient par été mis en demeure d’exécuter. Elle est, d’ailleurs, conforme a l’idée dégagée par Doumoulin:
la représentation ne doit pas avoir pour résultat d’augmenter la dette de chacun” (MAZEAUD, Henri et al.
Leçons de droit civil. Obligations: théorie générale. 9. ed. Paris: Montchrestien, 1998. v. 1. t. II. p. 1110 – em
tradução livre: “Essa restrição foi inspirada nos redatores do Código Civil por considerações de equidade;
eles não queriam que os codevedores tivessem que arcar com as consequências do cumprimento tardio,
quando não haviam sido notificados para cumprir. Coaduna-se, aliás, com a ideia expressa por Doumoulin:
a representação não deve resultar no aumento da dívida de cada um”).
99
CCf, art. 1319. “Les codébiteurs solidaires répondent solidairement de l’inexécution de l’obligation.
La charge en incombe à titre définitif à ceux auxquels l’inexécution est imputable”. Em tradução livre:
“Os devedores solidários respondem solidariamente pelo inadimplemento da obrigação. O ônus recai
definitivamente sobre aqueles a quem o inadimplemento é imputável”.
100
CCarg, art. 838. “Responsabilidad. La mora de uno de los deudores solidarios perjudica a los demás. Si
el cumplimiento se hace imposible por causas imputables a un codeudor, los demás responden por el
equivalente de la prestación debida y la indemnización de daños y perjuicios. Las consecuencias propias
del incumplimiento doloso de uno de los deudores no son soportadas por los otros”. Em tradução livre:
“Responsabilidade. A mora de um dos devedores solidários prejudica os demais. Se o cumprimento for
impossibilitado por fato imputável a um codevedor, os demais respondem pelo equivalente à prestação
devida e pela indenização dos danos e prejuízos. As consequências da violação dolosa de um dos
devedores não são suportadas pelos outros”.
101
CCe, art. 1147. “Si la cosa hubiese perecido o la prestación se hubiese hecho imposible sin culpa de los
deudores solidarios, la obligación quedará extinguida. Si hubiese mediado culpa de parte de cualquiera
de ellos, todos serán responsables, para con el acreedor, del precio y de la indemnización de daños y
abono de intereses, sin perjuicio de su acción contra el culpable o negligente”. Em tradução livre: “Se a
coisa pereceu ou a prestação se tornou impossível sem culpa dos devedores solidários, extingue-se a
obrigação. Se houve culpa de algum deles, todos responderão, perante o credor, pelo preço e indenização
por perdas e danos e abono de interesses, sem prejuízo da sua ação contra o culpado ou negligente”.
102
DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Sistema de derecho civil. 11. ed. Madrid: Tecnos, 2016. v. II. t. I. p. 122.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

anterior, também determinava que a demanda de juros em face do devedor atingia


todos os codevedores solidários, o que gerou objeções da doutrina, embora com
a modificação do regime das perdas e danos a aparente incoerência tenha sido
eliminada.103 O argumento principal a favor da distinção era que os juros morató-
rios são previsíveis ao tempo da contratação, não sendo propriamente acréscimo
à carga do devedor inocente.104 Além disso, sustentava-se que, se a perspectiva
de ter que arcar com os juros moratórios e só depois regredir contra o culpado for
inconveniente demais para o codevedor inocente, ele poderia evitar a imposição
dos juros arcando por conta própria com o adimplemento oportuno da dívida – em-
bora se afirme que esse argumento foi levantado a posteriori, já que os legislado-
res teriam feito escolha de política legislativa em favor do credor.105 Também na
doutrina brasileira é possível encontrar o argumento de que os juros moratórios

103
Trata-se do antigo art. 1207, atual art. 1314: “La demande d’intérêts formée contre l’un des débiteurs
solidaires fait courir les intérêts à l’égard de tous”. Em tradução livre: “A demanda de juros formulada
contra um dos devedores solidários faz correr juros ante todos”.
104
Tal é a justificativa de Clovis Bevilaqua, para quem “as perdas e danos, porém, já são um acréscimo à
obrigação estipulada. É justo que recaiam, comente, sobre aquele que lhe deu causa” (BEVILAQUA, Clovis.
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 11. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1958. v. IV, art.
908, p. 60).
105
Explicam Planiol e Ripert: “Le Code a attribué à la solidarité un effet nouveau qu’elle ne produisait pas dans
l’ancien droit. La demande d’intérêts formée contre l’un des codébiteurs les fait courir contre tous (art.
1207). Pothier décidait justement le contraire par application de l’idée de Dumoulin qu’il n’y a que celui
qui est en demeure qui soit tenu des dommages dus en raison de son retard; son opinion était suivi para
Bourjon et la plupart des autres. Les rédacteurs du Code ont ici abandonné l’opinion dominante pour suivre
une opinion à peu prés isolée émise par Henrys et approuvé para Bretonnier et par Ferrière. Les auteurs
modernes expliquent que cette solution est conforme à l’idée d’un mandat donné ad conservandum sed
non ad augendam obligationem. Ils disent que le cours des intérêts n’augmente pas la charge des autres
codébiteurs, car si celui d’entre eux qui a été poursuivi le premier avait payé aussitôt le créancier, les
intérêts couraient à son profit; dès lors qu’importe à ses codébiteurs de payer ces intérêts à lui ou au
créancier ? Si cette charge leur semble trop onéreuse, ils ont un moyen d’y mettre un terme en payant eux-
mêmes le créancier puisque la dette est échue. C’est une explication très ingénieuse mais à laquelle les
auteurs du Code n’ont certainement pas songé. Ils ont voulu tout simplement augmenter les avantages de
la solidarité en permettant au créancier d’obtenir par une poursuite unique le même résultat que par des
actions multiples” (PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Traité pratique de droit civil français – Obligations.
2. partie. 2. ed. Paris: L.G.D.J., 1952. t. VII. p. 457-458 – em tradução livre: “O Código deu à solidariedade
um novo efeito que não produzia na antiga lei. A demanda de juros feita contra um dos codevedores faz
com que estes corram contra todos (art. 1207). Pothier decidiu exatamente o contrário, aplicando a ideia
de Dumoulin de que somente aquele que está inadimplente é responsável pelos danos devidos em razão
de seu atraso; sua opinião foi seguida por Bourjon e pela maioria dos outros. Os redatores do Código
abandonaram aqui a opinião predominante para seguir uma opinião mais ou menos isolada expressa
por Henrys e aprovada por Bretonnier e por Ferrière. Autores modernos explicam que esta solução é
consistente com a ideia de um mandato dado ad conservandum sed non ad augendam bonds. Dizem
que o curso dos juros não aumenta o ônus dos demais codevedores, pois se aquele dentre eles que
foi demandado primeiro tivesse pago imediatamente ao credor, os juros correriam para seu benefício;
portanto, o que importa aos seus codevedores pagar esses juros a ele ou ao credor? Se essa cobrança
lhes parece muito onerosa, eles têm um meio de acabar com ela pagando eles mesmos ao credor, pois a
dívida é devida. Esta é uma explicação muito engenhosa, mas na qual os autores do Código certamente
não pensaram. Eles simplesmente queriam aumentar as vantagens da solidariedade, permitindo ao credor
obter por uma única ação o mesmo resultado que por múltiplas ações”).

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

poderiam ter sido evitados pelo codevedor solidário inocente, razão pela qual ele
responderia pelo acréscimo perante o credor.106 O debate foi permeado pela ideia
de que a solidariedade criaria sistema de representação recíproca, compreensão
que hoje é reputada “mais engenhosa do que precisa”.107
Prevaleceu, assim, na reforma do direito obrigacional francês, a responsabi-
lidade de todos pelos efeitos da inexecução, como observado.108 Pesou para a al-
teração legislativa a reiterada crítica à incoerência do regime das perdas e danos:
se o objetivo era reforçar a posição do credor, permitindo-lhe haver de qualquer
devedor os efeitos da inexecução, que seriam imputados, em última instância,
somente ao culpado, não se justificaria não permitir também demandar de qual-
quer deles o ressarcimento pelas perdas e danos.109 A crítica parte da premissa

106
FULGÊNCIO, Tito. Das modalidades das obrigações. In: LACERDA, Paulo de (Coord.). Manual do Código
Civil brasileiro. Rio de Janeiro: São José, 1927. v. X. p. 312; RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral
das obrigações. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1997 v. 2. p. 79.
107
MALAURIE, Philippe; AYNÈS, Laurent. Droit des obligation. 10. ed. Paris: L.G.D.J., 2018. p. 760.
108
MALAURIE, Philippe; AYNÈS, Laurent. Droit des obligation. 10. ed. Paris: L.G.D.J., 2018. p. 761.
109
Assim explicam Baudry-Lacantinerie e Barde: “Plusieurs auteurs pensent même qu’on peut justifier au point
de vue juridique la disposition de l’art. 1207, alors même qu’on fait dériver la représentation réciproque des
codébiteurs d’un mandat qu’ils sont réputés s’être donné ad pertuandam, non ad augendam obligationem.
Ils raisonnent ainsi: D’abord, du moment que le législateur règle à forfait les dommages-intérêts qui seront
dus pour le retard dans l’exécution des obligations de sommes d’argent, on peut dire que les débiteurs
solidaires ont consenti, par une clause pénale tacite, à devoir les intérêts par cela seul que ceux-ci auront
été demandés à l’un d’entre eux. Ainsi, dès le moment où nait l’obligation, elle comprend éventuellement
la dette d’intérêts. C’est, d’ailleurs, nécessaire pour que la solidarité atteigne son but, car ce but est de
permettre au créancier d’obtenir, en agissant contre un seul codébiteur, les mêmes résultats que s’il
agissant contre tous. Mais, à notre avis, la disposition de l’art. 1207 ne concorde pas avec celle de l’art.
1205. Les intérêts moratoires ne sont pas autre chose que des dommages-intérêts alloués à raison du
retard apporté à l’exécution de l’obligation. Dans le cas de l’art. 1205, les dommages-intérêts ne sont
pas à la charge des codébiteurs qui n’ont pas été mis en demeure. Logiquement, il devrait en être de
même dans l’hypothèse prévue para l’art. 1207. Si, dans le premier cas, le législateur s’est prononcé
comme il l’a fait, c’est parce que la demeure de l’un des coobligés ne doit pas augmenter l’obligation à
l’égard des autres. Le même motif devair le conduire à décider que le débiteur en demeure serait seul
tenu des intérêts moratoires. On dit que la disposition de l’art. 1207 est nécessaire pour que la solidarité
atteigne son but, qui est de permettre au créancier d’obtenir, en poursuivant un seul des codébiteurs, les
mêmes résultats que s’il agissait contre tous. Mais la disposition de l’art. 1205 suppose qu’en matière
de dommages-intérêts, le législateur n’a pas admis ce point de vue. Donc, si l’on rapproche l’une de
l’autre les dispositions des art. 1205 et 1207, on doit reconnaître qu’elles sont disparates” (BAUDRY-
LACANTINERIE, G.; BARDE, L. Traité théorique et pratique de droit civil, XII, Des obligations. 3. ed. Paris:
Sirey, 1906. t. I. p. 342-343 – em tradução livre: “Vários autores chegam a pensar que é possível justificar
do ponto de vista jurídico a previsão do art. 1.207, ainda que a representação recíproca dos codevedores
decorra de mandato que se presume terem-se dado ad pertuandam, e não ad augendam obligationem.
Assim raciocinam: Em primeiro lugar, desde que o legislador pague as indenizações que serão devidas
pela mora no cumprimento das obrigações de quantias em dinheiro, pode dizer-se que os devedores
solidários consentiram, por tácita sanção cláusula, a dever os juros pelo simples fato de estes terem sido
solicitados a um deles. Assim, a partir do momento em que surge a obrigação, esta pode incluir os juros da
dívida. Isto é, de resto, necessário para que a solidariedade alcance o seu fim, porque esse fim é permitir
ao credor obter, agindo contra um único codevedor, os mesmos resultados que teria se atuasse contra
todos. Mas, a nosso ver, o disposto no art. 1207 é incompatível com o do art. 1.205. Os juros de mora
nada mais são do que a indenização concedida pelo atraso no cumprimento da obrigação. No caso do art.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

de que, tanto as perdas e danos como os juros teriam papel indenizatório, o que
contrastaria com a distinção de regimes.
A perspectiva funcional mostra-se, com efeito, a mais apropriada para avalia-
ção da distinção normativa. Embora seja incontroversa a função essencialmente
indenizatória das perdas e danos, o mesmo não se pode afirmar no que tange aos
juros moratórios. Discute-se em doutrina se os juros moratórios servem somente
a indenizar o credor pela privação injustificada de sua prestação ou se desempe-
nhariam ainda papel coercitivo, de modo a compelir o devedor a cumprir e sancio-
nar eventual enriquecimento sem causa decorrente da retenção da prestação.110
Dessa forma, não sendo da essência dos juros moratórios a função indenizatória
própria das perdas e danos, a distinção de regime poderia justificar-se.
Essa abordagem permite igualmente compreender porque, mesmo sem ex-
pressa previsão legal, a doutrina brasileira costuma reconhecer que todos os de-
vedores solidários respondem pela cláusula penal, ainda que a inexecução seja
imputável somente a um deles.111 A cláusula penal, dessa forma, segue o mesmo
regime dos juros moratórios, em lugar do regime aplicável às perdas e danos, por-
que, ainda que possa vir a desempenhar função indenizatória, esta não é da sua es-
sência, já que o regime normativo aplicável à multa contratual no Brasil compreende
tanto as cláusulas com função indenizatória como aquelas com função coercitiva.

7 Projeções das vicissitudes da relação obrigacional sobre


o contrato sinalagmático: exceção de contrato não
cumprido e resolução
O inadimplemento absoluto da prestação, na doutrina brasileira recente,
tem propiciado certa sobreposição conceitual com o descumprimento do contra-
to, embora tais noções se diferenciem. A rigor, a extinção da relação obrigacional,

1.205, a indenização não é devida pelos devedores que não tenham sido inadimplentes. Logicamente,
o mesmo deveria ocorrer na hipótese prevista no art. 1.207. Se, no primeiro caso, o legislador assim se
pronunciou, é porque a residência de um dos coobrigados não deveria aumentar a obrigação em relação
aos demais. A mesma razão deveria levá-lo a decidir que o devedor faltoso seria o único responsável
pelos juros de mora. Diz-se que o disposto no art. 1.207 é necessário para que a solidariedade alcance
seu objetivo, que é permitir que o credor obtenha, processando apenas um dos codevedores, os mesmos
resultados como se estivesse agindo contra todos eles. Mas a disposição do art. 1205 assume que o
Parlamento não aceitou esta visão em danos. Portanto, se lermos juntas as disposições dos ss. 1205 e
1207, devemos reconhecer que são díspares”).
110
TEPEDINO, Gustavo; VIÉGAS, Francisco. Notas sobre o termo inicial dos juros de mora e o artigo 407 do
Código Civil. Scientia Iuris, Londrina, v. 21, n. 1, p. 59-60, mar. 2017.
111
Entre tantos, FULGÊNCIO, Tito. Das modalidades das obrigações. In: LACERDA, Paulo de (Coord.). Manual
do Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: São José, 1927. v. X. p. 308; SILVA PEREIRA, Caio Mário.
Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. v. II. p. 157.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

quando inserida em contrato sinalagmático, produzirá consequências específicas,


podendo resultar inclusive na extinção do contrato, sem, contudo, que ambas as
noções sejam equivalentes. Isto porque poderá haver inadimplemento absoluto
da prestação (ex vi art. 395, parágrafo único) sem que haja reflexo na extinção do
programa contratual.
De tal circunstância decorre que as repercussões da mora e do inadimple-
mento absoluto da prestação, por perda do interesse útil pelo credor – as vicis-
situdes decorrentes da mora, a execução específica e a pretensão ressarcitória
– guardam autonomia conceitual e não coincidem com os instrumentos oferecidos
ao contratante para a preservação, suspensão de efeitos e extinção do contrato por
inadimplemento imputável ao outro contratante. As diretrizes e reformas encontra-
das no direito europeu parecem enfatizar essa distinção, apartando a violação de
deveres obrigacionais da eventual resolução, que dependerá de elementos adicio-
nais, como a existência de cláusula resolutiva expressa, concessão de prazo sem
a purgação da mora ou o impacto do inadimplemento na causa do contrato (inadim-
plemento essencial, suficientemente grave).112 Imagine-se, a título ilustrativo, a
contratação de empreitada complexa, como a construção de usina hidrelétrica, em
que o empreiteiro pode vir a não cumprir oportunamente uma das obrigações que
lhe cabem (por exemplo, a instalação de torre de controle que seria útil, mas não
essencial), ao ponto de perder o dono da obra o interesse em que fosse realizada,
sem que isso implique a extinção do interesse na obra como um todo.
Além disso, enquanto os efeitos examinados se associam à imputabilidade
do devedor pela inexecução da obrigação – como as perdas e danos, os juros e o
agravamento da responsabilidade pela superveniente impossibilidade da presta-
ção –, os remédios tipicamente vinculados ao caráter sinalagmático do contrato
prescindem da imputabilidade, decorrendo da mera inexecução, como a resolu-
ção e a exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus).
Ao projetar-se para o plano contratual a inexecução da prestação, para além das
consequências sobre a relação obrigacional, autoriza-se o contratante a valer-­
se da exceção de contrato não cumprido (art. 476 do Código Civil),113 de modo
a suspender os efeitos de prestações sinalagmáticas. À invocação da exceptio
bastam a coetaneidade (ou simultaneidade) e a correspectividade (ou sinalag-
maticidade) entre a obrigação descumprida e aquela cujo cumprimento se pre-
tende reter, ou seja, que, além do descumprimento anterior da contraprestação
(“justificante”), ela esteja em nexo de reciprocidade com aquela obrigação que

112
Ilustrativamente, BGB, §§323 e 324, CCf, art. 1224 e ss.
113
Art. 476. “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode
exigir o implemento da do outro”.

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

se pretende reter.114 Consequentemente, não é a inexecução de qualquer obriga-


ção inserida em contrato sinalagmático que autoriza a invocação da exceção de
contrato não cumprido, mas somente daquela cujo cumprimento dava causa à
obrigação que se pretende não cumprir.115 Por outro lado, não é necessário que
o descumprimento dessa obrigação seja imputável ao seu devedor, visto que o
remédio se volta menos à tutela do crédito em si considerado e mais à proteção
do equilíbrio contratual materializado no sinalagma.116 Recuperando-se o exemplo
citado, a retenção da contraprestação pela torre de controle na usina pressuporia
demonstrar sua sinalagmaticidade, mas independeria de comprovação de que era
imputável o devedor pela demora na sua construção.
Da mesma forma, a inexecução definitiva da obrigação autorizará a resolu-
ção do contrato bilateral em que se insere, a depender não da imputabilidade do
devedor, mas de seu impacto sobre o programa contratual.117 Mesmo consolidado
o entendimento na experiência brasileira (ao contrário do caminho que vem se de-
senhando na legislação europeia) de que a impossibilidade do objeto levaria auto-
maticamente à extinção do negócio – invalidando-o se originária, resolvendo-o se
superveniente –, deve atentar o intérprete para o efeito da obrigação sobre o negó-
cio como um todo, distinguindo o objeto deste ante o objeto daquela. Se imputável
ao devedor a inexecução, além das já expostas prerrogativas que o inadimplemen-
to atribui ao credor, reconhece-se ao contratante inocente a faculdade de resolver
o contrato, conforme a falta dessa obrigação inquine o negócio como um todo.118

114
ROPPO, Vincenzo. Il contratto. Milano: Giuffré, 2001. p. 986.
115
Explica Pontes de Miranda: “[...] nem todas as dívidas e obrigações que se originam dos contratos bila-
terais são dívidas e obrigações bilaterais, em sentido estrito, isto é, em relação de reciprocidade. A con-
traprestação do locatário é o aluguel; porém não há sinalagma no dever de devolução do bem locado, ao
cessar a locação, nem na dívida do locatário por indenização de danos à coisa, ou na dívida do locador por
despesas feitas pelo locatário. A bilateralidade – prestação, contraprestação – faz ser bilateral o contrato;
mas o ser bilateral o contrato não implica que todas as dívidas e obrigações que dele se irradiam sejam
bilaterais” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson
Nery Junior e Rosa Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 206).
116
Destaca Miguel Maria de Serpa Lopes: “A circunstância de ter ou não havido culpa ou dolo por parte do
autor exceto, é indiferente, pois que o dolo ou a culpa não são elementos essenciais à sua arguição.
Tudo quanto se requer é o fato de ter o autor acionado a outra parte contratante sem, preliminarmente,
haver realizado a prestação que concomitantemente lhe cumpria efetuar” (SERPA LOPES, Miguel Maria de.
Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959. p. 284).
117
Tal perspectiva é desenvolvida por AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento
do devedor – Resolução. 2. ed. 2. tir. Rio de Janeiro: Aide, 2004, ao longo da obra, apresentando a
resolução como consequência de fato superveniente à celebração do contrato, com efeito extintivo sobre
a relação bilateral.
118
Tal o pensamento extraído de Pontes de Miranda, com as referências aos artigos do Código Civil anterior,
equivalentes aos preceitos atuais do Código Civil de 2002, assim redigido: “há, nos contratos bilaterais, a)
a pretensão à prestação devida mais a pretensão às perdas e danos pela mora (art. 956); b) a pretensão à
indenização total (falta da prestação mais perdas e danos pela mora), que o credor, se não tem interesse
na prestação (art. 956, parágrafo único, verbis ‘se tornar inútil ao credor’), pode preferir; ou, sempre, por
em alternativa a favor do devedor; c) exercível a seu libito, a pretensão à resolução do contrato bilateral

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

Oferece-se, então, ao contratante que não está em mora as providências in-


dicadas no art. 475 do Código Civil, com previsão normativa inovadora em relação
à codificação anterior, nos seguintes termos: “A parte lesada pelo inadimplemen-
to pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento,
cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”. Contra a in-
terpretação de que se abriria ao credor a alternativa entre a execução específica
ou a resolução, em moldes similares ao que ocorre no art. 410 relativo à cláusula
penal, afirma-se que o dispositivo tem por suporte fático já o inadimplemento ab-
soluto, de modo que a escolha do credor se daria entre exigir o equivalente pecuni-
ário da obrigação inadimplida (cumprindo a sua em reverso) ou resolver o contrato
ficando de todo exonerado.119
Deve-se ter atenção, todavia, para dois aspectos cruciais à compreensão da
controvérsia. Em primeiro lugar, para a aludida distinção efetuada pelo codificador
entre o plano obrigacional e aquele contratual, podendo-se, portanto, assim ler o
dispositivo do art. 475:

A parte lesada pelo inadimplemento absoluto da prestação pode pe-


dir a resolução do contrato, se não preferir exigir o cumprimento (da
obrigação definitivamente inadimplida, que se tornou impossível, por
seu equivalente), cabendo, em qualquer dos casos, indenização por
perdas e danos.

Em segundo lugar, para a perigosa associação em abstrato, e de forma geral,


entre a opção adotada pelo credor e a forma indenizatória cabível, ou seja, inte-
resse positivo ou negativo.120 Parece possível atribuir ao comando emanado pelo

(art. 1.092, parágrafo único)” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado.
Atualização de Nelson Nery Junior e Rosa Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. XXXIII. p. 261).
119
Tal era o pensamento de BESSONE, Darcy. Do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 117. A crítica
à sua concepção é atribuída a “dois equívocos que andam juntos: a confusão entre os suportes fáticos
que ensejam a execução específica e a resolução, e a questionável interpretação da expressão “preferir
exigir-lhe o cumprimento” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Execução pelo equivalente como alternativa
à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil,
Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018. p. 51-52).
120
Em crítica à associação, afirma Menezes Cordeiro: “A ideia de que, havendo resolução, não faria sentido
optar pelo interesse positivo ou do cumprimento... por se ter desistido do contrato é puramente formal
e conceitual. Com efeito, o incumprimento acarreta danos. Perante eles, há que prever uma indenização
integral. A pessoa que resolva o contrato apenas tenciona libertar-se da prestação principal que lhe in-
cumba: não pretende, minimamente, desistir da indenização a que tenha direito. A regra é, pois, sempre
a mesma, simples e justa: o incumprimento, que se presume culposo, obriga a indemnizar por todos os
danos causados. Ficarão envolvidos os danos negativos ou de confiança e danos positivos ou de cumpri-
mento, cabendo, caso a caso, verificar até onde vão uns e outros” (MENEZES CORDEIRO, Antonio. Tratado
de direito civil. Direito das obrigações – Introdução sistema e direito europeu – Dogmática geral. Coimbra:
Almedina, 2012. v. VI. p. 163).

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Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder

art. 475 espectro de incidência mais tímido que aquele que lhe tem sido atribuído,
ou seja, o dispositivo limita-se a estabelecer o direito potestativo à escolha, pelo
contratante, do mecanismo extintivo – resolutório ou com a execução pelo valor
equivalente à prestação inadimplida, sem que tivesse pretendido o codificador, no
mesmo preceito, definir, para cada uma das opções de extinção, as formas inde-
nizatórias pelo interesse positivo e negativo. Tal definição, muito provavelmente,
como tem se orientado a jurisprudência, subordina-se ao material probatório dis-
ponível no caso concreto, sendo induvidosamente mais fácil, e por isso mais fre-
quente, a comprovação dos interesses negativos do que dos interesses positivos
a que necessariamente faria jus o contratante com a extinção do contrato. Em par-
ticular, havendo previsão de cláusula penal compensatória, deve-se ter em vista o
cenário ao qual ela se destina (no mais das vezes subordinado à resolução), sob
pena de a sobreposição de planos conturbar os resultados obtidos, ensejando in-
quietante acumulação dos efeitos da execução integral do contrato com a respon-
sabilidade por sua extinção.

8 Apontamentos conclusivos
O aprofundamento setorizado nos efeitos da inexecução da obrigação não
pode prescindir do constante olhar do estudioso para o sistema como um todo,
de modo a assegurar harmonia e coerência nas escolhas legislativas e interpreta-
tivas. O sistema brasileiro relativo à patologia das relações obrigacionais parte da
distinção entre os efeitos decorrentes da inexecução da prestação e aqueles as-
sociados à imputabilidade do devedor, mesmo diante do alargamento desse nexo
de atribuição pelo processo de objetivação da responsabilidade civil. Nesta seara,
abordou-se a excludente de responsabilidade por caso fortuito, temperada pela in-
ternalização dos riscos intrínsecos à atividade do devedor, bem como a liberação
do devedor pela impossibilidade, conceito relativizado pela boa-fé para incorporar
a proporcionalidade dos esforços para o cumprimento da prestação.
Associados à imputabilidade do devedor, encontram-se os efeitos da mora,
na acepção peculiar empregada pelo legislador brasileiro, que compreende a exe-
cução inexata da obrigação. Nesse âmbito, a liberação da responsabilidade pela
prestação, a despeito da tumultuada redação do dispositivo legal, associa-se so-
mente à difícil prova da causa virtual, eis que se inimputável sequer estaria o cre-
dor em mora. Da mesma forma, a perda do interesse que converte a mora em
inadimplemento absoluto deve ser interpretada com atenção, de modo a equilibrar
o risco de extinção arbitrária da obrigação pelo credor em virtude de atraso pouco
significativo com a liberação do credor do vínculo com o devedor impontual que
resiste a purgar a mora.

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Inexecução das obrigações e suas vicissitudes: ensaio para a análise sistemática...

Entre os remédios especiais à mora, destacou-se a execução por terceiro


e o desfazimento forçado que, a despeito da recente simplificação processual,
persistem operacionalizados com limitada utilidade prática, exigindo do intérprete
interpretação dinâmica e funcional da própria categoria da fungibilidade. Ainda na
seara dos efeitos da mora, observou-se como o inadimplemento imputável a so-
mente um dos devedores solidários enseja distinção de tratamento entre perdas
e danos, juros e cláusula penal conforme sua função indenizatória ou coercitiva.
No tocante à multa contratual, destacou-se sua associação intrínseca à imputabi-
lidade do devedor, mas dissociada da discussão sobre o dano sofrido pelo credor.
Enfim, observou-se que as repercussões do inadimplemento da obrigação –
como as perdas e danos, os juros e o agravamento da responsabilidade pela su-
perveniente impossibilidade da prestação – guardam autonomia conceitual ante
os remédios tipicamente vinculados ao caráter sinalagmático do contrato, que
prescindem da imputabilidade, decorrendo da mera inexecução, como a resolução
e a exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus).

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Inexecução das obrigações e suas


vicissitudes: ensaio para a análise sistemática dos efeitos da fase patológica das
relações obrigacionais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte,
v. 32, n. 3, p. 159-200, jul./set. 2023. DOI: 10.33242/rbdc.2023.03.009.

Recebido em: 21.08.2023


Aprovado em: 22.08.2023

200 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 32, n. 3, p. 159-200, jul./set. 2023

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