Saltar para o conteúdo

Bildung

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Bildung (alemão: [ˈbɪldʊŋ] ouvir, formação, educação e cultura) refere-se à educação como processo que almeja a completude do indivíduo.[1] A gênese do conceito situa-se entre os anos de 1770 e 1830, na Alemanha, atrelada aos valores iluministas de universalidade, ao idealismo filosófico e pedagógico, à literatura alemã, ao neo-humanismo e ao romantismo.[2] Bildung é a essência de uma teoria da educação inerente ao processo histórico e à formação do povo alemão,[3] no entanto, constitui também uma recepção da paideia grega,[4] segundo Werner Jaeger[5] "a palavra alemã Bildung é a que designa de modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico". Essa preocupação com a ideia de educação é uma das características mais importantes da filosofia moderna alemã, que internalizou o tema da formação dos indivíduos e da cultura nacional.[6]

O conceito de Bildung surge no contexto de ascensão da burguesia, queda do feudalismo e dos regimes absolutistas europeus, a partir da Revolução Francesa. Diante disso, nota-se na estruturação do conceito os ideais de direito e liberdade, além da ênfase na capacidade racional do homem e na sua independência perante as leis naturais ou teológicas.[7] Assim, o homem enquadra-se como agente de transformação social, corroborando um ideal de humanidade - universalização -, em detrimento de uma visão particularizada do mundo.[8] Dessa forma, a partir do contexto oitocentista alemão, questiona-se a hierarquia social posta por um vínculo sanguíneo ou celestial e constrói-se a ideia de um indivíduo intelectualmente capaz de se formar integralmente, interna e externamente.[9] "Nessa nova perspectiva, repudia-se, consistentemente, como ideal formativo, o mero conhecimento instrumental ou “utilitário”."[10]

Durante os séculos XVI e XVII, o termo Bildung assume a forma de uma "ideia figurativa", ambígua, inserida por Jacob Böhme, que considera tanto a forma de uma imagem mental quanto de uma imagem objetiva.[7] Dessa teorização derivam duas vertentes de pensamento: a primeira articula-se entre razão e religião, sustentada pela ideia de uma forma interna inerente ao ser e instituída pela providência; a segunda liga-se à explicação dos processos biológicos, através da utilização objetiva e formal do conceito de Bildung, ou seja, funda-se na ideia de um impulso gerador "que explicaria a energia presente em todos os corpos".[11]

No século XVIII, concomitantemente às revoluções francesa e industrial na Inglaterra e na França, a Alemanha passa a adotar uma estratégia reformista como impulso de modernização social.[12] Diante disso, os filósofos iluministas tiveram participação ativa na defesa dos preceitos escolares regidos pelo Estado e não mais pela igreja, em que o currículo das instituições deveria garantir aos discentes o ensino de uma "boa moral", constituída em prol da sociedade.[13] A partir daí, o ensino religioso deixa de ser o modelo de formação central nas escolas de ensino fundamental de diversos reinos alemães não unificados, que adotaram princípios voltados à razão, à cidadania e aos parâmetros administrativos do Estado.[14]

Nesse contexto, a Prússia serviu de exemplo aos demais reinos da região teutônica sendo a primeira a estabelecer um sistema de ensino obrigatório. Em 1717, o rei Frederico Guilherme I promulga a lei de fiscalização da frequência escolar em apoio ao sistema prussiano.[14] Já em 1763, o rei Frederico II, o Grande, legitima tais transformações criando o Landschulreglement (Regulamento Geral paras as escolas do país), abrangendo, além da obrigatoriedade da frequência escolar, questões como o preparo e contratação de professores, elaboração de livros didáticos e inspeção escolar. Em 1794, promulga-se o Código Geral Prussiano (Allgemeines Landrecht), que regiu a fundação de universidades apenas sobre autorização oficial, dando respaldo financeiro e administrativo para que as instituições pudessem resolver problemas voltados ao âmbito acadêmico.[15]

Von Humboldt.

O conceito de Bildung assumiu diversos significados ao longo dos séculos[7], podendo-se referir à autodeterminação do homem baseada na razão; à reciprocidade do homem em relação ao mundo exterior, abstendo-se das particularidades em prol de uma perspectiva universal; e à busca pela virtude do conhecimento.[8]

Entre a pluralidade de significados do conceito, o termo geralmente está ligado à ideia de formação, educação e cultura. Educação e cultura possuem palavras com correspondentes específicos na língua alemã, respectivamente, Erziehung e Kultur. Destaca-se que a educação (Erziehung) subentende a educação formal, enquanto Bildung estende seu significado ao processo educativo, ou seja, a ação de educar um indivíduo.[16] Diante disso, certos autores adotam o termo "formação cultural" quando se referem à Bildung, dando ênfase ao processo educativo que compreende diversas áreas do conhecimento científico e social humano. W.H. Bruford fala na "tradição alemã do cultivo de si".[7] Assim, a formação cultural abrange a complexidade da formação integral do homem, estabelecendo conexões com a arte, a ética e a cultura,[10] ou seja, "o ideal de um indivíduo ou de uma sociedade que apenas cresce na medida em que “cultiva” a si mesmo(a)".[17] Diante disso, no início do século XIX o termo foi associado a parâmetros espirituais, políticos e filosóficos do iluminismo, ainda que não sustentado por ele em sua totalidade.[18]

Os conceitos de Bildung e Kultur foram tratados pelos filósofos iluministas diante um contexto de destinação para a espécie humana. A definição dos termos buscava o cumprimento desse destino e por isso estes foram condicionados ao caráter político que envolvia o problema da educação, ou seja, o caráter individual e cultural da formação se voltou para a constituição de princípios em prol da cidadania.[19] Dessa forma, as faculdades individuais do homem e seu processo de formação estariam diretamente ligados à destinação última do ser, que compreenderia o caráter político e social da coletividade.[20] A finalidade última do ser seria a realização de seu desenvolvimento pleno, ou seja, a Bildung. E a sociedade seria o meio no qual tal objetivo se concretizaria. Dessa forma, dissociam-se os conceitos de sociedade e humanidade, em que esta não se postula como a antítese do indivíduo, mas como sua realização final, sua elevação para um patamar existencial superior.[21]

Nesse contexto, destaca-se a figura de Wilhelm von Humboldt, que trabalhou com o ideal de uma reforma educacional na Alemanha que possuísse bases teóricas e uma regulamentação oficial.[22] Para Humboldt, a reforma do papel do Estado na educação seria a premissa básica para a reforma pedagógica.[7] Assim sendo, o apoio estatal sobre o desenvolvimento individual da população promoveria a lealdade do cidadão em relação a si mesmo e ao Estado.[23] Diante disso, em seu período como Conselheiro Privado e Diretor da Secção para o Culto e a Instrução Pública do Ministério do Interior da Prússia, Humboldt iniciou o processo de reformas educacionais que resultaram em parâmetros reconhecidos em toda Europa de seu tempo.[24] Entre os feitos efetivados se identificam as bases de uma escola humanista; a implantação de uma docência com formação especial, universitária e não apenas teológica, além de um processo seletivo mais rigoroso. Aí impulsiona-se também um currículo clássico e padronizado, influenciado pelo neo-humanismo, que oferece maior espaço à língua e literatura gregas, assim como um desenvolvimento mais completo e equilibrado da juventude, dando mais atenção às formas estéticas do que aos ditames filológicos.[25] Este plano educacional efetivou-se com a criação da Universidade de Berlim, em 1810, que consolidou os ideais de liberdade de pesquisa e docência, tanto em plano educacional quanto em relação ao Estado.[26]

A ampliação da atividade espiritual do homem operada por Humboldt sugere, assim, a entrada do campo metafísico como parte do viés estrutural da Bildung. Tal princípio é imprevisível e incompreensível ao intelecto humano, agindo como princípio gerador da autonomia do indivíduo.[27]

O paralelo instituído por pensadores como Kant e Blumenbach, por exemplo, entre o desenvolvimento espiritual e natural do indivíduo, passou, através das iniciativas de Humboldt, a ser identificado na Bildung como processos ativos e concomitantes.[28]

No século XIX, Nietzsche criticou a degradação do conceito de Bildung em sinônimo de cultura geral e instrumento de distinção da burguesia culta alemã, além da aliança espúria entre Estado e cultura do período bismarckiano.[29] No século XX, Adorno e Horkheimer desconstroem os ideais iluministas em relação à sua perspectiva sobre unidade e universalidade, demonstrando as capacidades coercitivas da razão e desmistificando sua pretensão libertadora.[30] A crítica decorre por causa da idealização exagerada sobre o indivíduo e sua impossibilidade de compreender o mundo em toda sua pluralidade.[2]

Referências

  1. Flickinger, p. 432.
  2. a b Möllmann 2011, p. 6.
  3. Nicolau 2016, p. 386.
  4. Zatti, Vicente; Pagotto-Euzebio, Marcos Sidnei (2022). «Educação como processo de formação humana: uma revisão em filosofia da educação ante a premência da utilidade». Portal de Livros Abertos da USP. p. 85. Consultado em 3 de abril de 2022 
  5. JAEGER, Werner (2003). Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. p. 13 
  6. Britto 2010, p. 1.
  7. a b c d e Alves 2019.
  8. a b Möllmann 2011.
  9. Nicolau 2016, p. 389.
  10. a b Nicolau 2016, p. 390.
  11. Britto 2010, p. 3-4.
  12. Nicolau 2016, p. 392.
  13. Nicolau 2016, p. 392-393.
  14. a b Nicolau 2016, p. 394.
  15. Nicolau, p. 395.
  16. Nicolau 2016, p. 386-387.
  17. Nicolau 2016, p. 388.
  18. Nicolau 2016, p. 391.
  19. Britto 2010, p. 5-6.
  20. Britto 2010, p. 6.
  21. Britto 2010, p. 10.
  22. Nicolau 2016, p. 388-389.
  23. Nicoulau 2016, p. 400.
  24. Nicolau 2016, p. 397-398.
  25. Nicolau 2016, p. 398-399.
  26. Nicolau 2016, p. 399.
  27. Britto 2010, p. 11.
  28. Britto 2010, p. 8.
  29. Alves 2018.
  30. Flickinger, p. 431.
  • Gadamer, H.G. (1990). Wahrheit und Methode. Tübingen: Mohr 
  • JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • Möllmann, A.D. Stephan (2011). O Legado da Bildung. (Tese). Expediente: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 
  • Nipperdey, Thomas (1998). Deutsche Geschichte 1800-1866. München: Beck. ISBN 9783406093548 
  • ZATTI, Vicente; PAGOTTO-EUZEBIO, Marcos Sidnei. Educação como processo de formação humana: uma revisão em filosofia da educação ante a premência da utilidade. São Paulo: FEUSP, 2022. DOI: https://doi.org/10.11606/9786587047294
pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy