0 Vol 6 Completo
0 Vol 6 Completo
!
"#! ;4)3
!
! % >? % H% " / % %8 >? "
8 = %" 8 5 8 C% : %
(% # 8 " 8 8 " " 8 % 3
#" 8 = % % " "
8 8% >? 8 " >; 3 I 3%3 ! B 8 H
8 " "H/ "%H? % 8 8 % >?3
! " ? " / !% ! B
2J# $28 " >; 3 I 3%3
" 8 / "% ; < " " B "
K 5 % % % LMF 8 K " 5"%
" %" 8 " " " K %N:M8 :% 3
1% >? % %/ '5 " % ' =
" ! #8 B 8 " 8" ": 8
%" 3 # 8"' B% 8
%" >@ / " B = %8 " "?
% " %" = = % " 8"
= 8 >?3
>? % >@ / H"% '/% ? % %
" 1!3
&
'()*+,--
O
.$ E
$/0$1 $2$ DF
( " P
$ 1%304313415670. DQ
1.8
0*9:0; 31 LO
10<3
"
030; $410= NE
)
31"#*=%%. ME
5 '
ARTICLES
BOOK REVIEW
.$
Resumo
Uma abordagem e memória de bom humor sobre assuntos sérios, anterior à consciência de
genocídio recrudescido sobre populações indígenas brasileiras. Único etnomusicólogo numa
mesa-redonda composta de antropólogos, dois dos quais antropólogos de música, todos com
larga vivência com populações indígenas, o autor prefere rever a Etnomusicologia do período de
sua formação, na UCLA, no final dos anos Setenta, não pelo que fez ou tem feito, mas para
encetar discussões na abertura de um importante evento.
Palavras-chave: Etnomusicologia brasileira; Etnomusicologia e Antropologia da Música;
Etnomusicologia na UCLA, 1976-1981; Transcrição; Bimusicalidade; World music; Índios
Brasileiros; Arqueologia musical; Etnomusicologia amazônica.
Abstract
This is an approach and memory in a good mood over serious issues, previous to the author’s
awareness of increased genocide upon Brazilian Indian populations. Single ethnomusicologist in
a round table composed of anthropologists, two of whom anthropologists of music, all with
extensive experience with indigenous peoples, he prefers to review the ethnomusicology of his
formative period at UCLA, at the end the seventies, not for what he did or has done, but to
further discussions in the opening of an important event.
Keywords: Brazilian Ethnomusicology; Ethnomusicology and Anthropology of Music;
Ethnomusicology at UCLA, 1976-1981; Transcription; Bimusicality; World music; Brazilian
Indians; Musical archeology; Amazonian Ethnomusicology
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 11
paraenses, a agradecer, tenho obrigações com uma disciplina que ajudei a implantar na
universidade brasileira, e com o programa indispensável que ora se implementa no Pará.
De outro, adverti sobre minha inadequação e sugeri substitutos. Por formação, estou
mais para etnomusicólogo do que para antropólogo de música. Minha Antropologia
veio “na raça”, como se diz. Não é que não tenha sido incentivada na UCLA, mas seria
a de um autodidata, e sem o trabalho de campo que presencialmente a legitimasse. E
agora, além dos erros e inadequação, vou-me contradizendo, logo estarei dizendo que
não aceito uma separação entre Etnomusicologia e Antropologia da Música.
Claro que não é para discutir minha vida ou opiniões que estou aqui. No entanto,
suponho que é pela memória e experiência que possa contribuir. Não passo de um elo
numa cadeia. Produto da UCLA, onde já não conheci Mantle Hood, nem Charles
Seeger, vivi entretanto à sombra deles.
Vivi também entre melógrafos, num laboratório de transcrição regido por Nazir
Jairazbhoy (1927-2009). Charles Seeger havia-se inspirado na Linguística e em seus
equipamentos de laboratório para gerar um melógrafo: gravadores, filtros, medidores de
características sonoras. Passando por um programa de computador, sons viravam
gráficos sobre papel milimetrado, em si uma notação de outra ordem. Logo obsoletos,
ou quebrados, não sei, permitiriam que um segundo de som correspondesse a um metro
de papel, com mil detalhes, contanto que esses sons não fossem simultâneos. Isso, creio,
ainda viria depois.
Viver entre melógrafos, não é bem verdade, portanto. O que conheci estava sendo
aprimorado às instâncias de Nazir, sendo Phil Harland, um dos veteranos de Etno de
Mantle Hood, ora meu colega, o programador. Já tinha um PhD em Física, ou algo
parecido. Imensamente competente, como Ann Briegleb [Schuursma], esta no Arquivo
de Etnomusicologia, buscavam ambos um doutorado.
Imerso na música do Norte da Índia e suas afins, sempre um guru, seria difícil para
Nazir se interessar em gravações de folclore baiano que Hildegardes Vianna
generosamente cantava e gravava para mim. Já idosa, ela “desafinava”, em termos.
Habituado aos microtons e ciclos complexos de até 16 pulsos, o que Nazir ganhava em
transcrições descritivas, minuciosas e “exatas” das musiquinhas que lhe levava,
perdíamos na apreensão de um sistema musical que, como nativo, seu estudante já
compartilhava. Ele próprio constatava disparidades grandes no confronto entre a teoria
da música indiana e a sua prática que não correspondiam.
Há muito o que discutir e tem sido discutido a respeito da objetividade e subjetividade
da própria audição; da apreensão de sons portadores de significado numa multiplicidade
e detalhes de natureza acústica, sem a ajuda êmica do nativo.
Os estudiosos de altas culturas musicais (não gosto do termo) podem se ocupar apenas
com música e até caberia uma musicologia histórica: notações, teorias explícitas, entre
esses fatores. Para todos (eles e os estudiosos da música ocidental acadêmica), o
enfoque principal de uma ciência musical é o homem, através de sua música. Na
Etnomusicologia isto não precisa ser discutido.
Não é inútil recapitularmos rapidamente a base do mal-estar entre Merriam e Mantle
Hood, para que nos descartemos dela. Basicamente foi um confronto relativo entre
abordagens. Duas trilhas separadas, essencialmente, eram antepostas para uma
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 12
etnografia musical: uma privilegiando sons; outra, comportamentos. Ora, mais do que
uma opção, isso seria matéria de dosagem e de uma metodologia mais adequada a esta
ou àquela cultura musical. Não me parecem opções para uma Etnomusicologia
Brasileira.
Anthony Seeger (1977) nos ajuda muito ao distinguir claramente quatro questões: duas
antropológicas, duas musicológicas. Resumidamente: o que eles estão fazendo, por que
fazem o que fazem, de um lado; que sistema musical é este, como este sistema se
compara com o meu, de outro. Tenho-o plagiado desavergonhadamente, até mesmo na
definição de objetivos do doutorado em música da UFBA. Não creio que nenhum de
nós queiramos uma Antropologia de Música sem música, nem uma Musicologia sem
homem. Tony não colocou um “ou” entre seus dois pares de questões;
consequentemente, devemos por um “e” entre elas, salvo melhor juízo, sem traí-lo.
Tive como um impacto maior na Etnomusicologia que aprendia, já maduro e bloqueado,
as lições de J. H. Kwabena Nketia (n. 1921), mestre sem igual, dos maiores que tive.
Kobla Ladzekpo era o lado diretamente musical de meus estudos de música africana.
Pensava seriamente que esse seria meu campo de trabalho, o da música de derivação
africana na Bahia. Aproveitei tudo o que pude numa sabática que Merriam passou na
UCLA, já devo ter dito. A divergência com Mantle Hood, já ausente, ainda dividia os
campos. Merriam esteve no Departamento de Antropologia. No Programa de
Etnomusicologia, que me lembre, esteve uma vez, como conferencista. Abriu-nos as
portas para o trabalho de John Blacking ao qual indicava toda vez que lhe pedimos
ajuda. Sua “open house” quase diária também nos abria portas, na casa em que morou,
do outro lado da rua. As conversas entre ele e Nketia compensavam pelas que não se
desenvolviam em nosso próprio Programa.
Ora, se foi Robert M. Stevenson quem me orientou com disciplina férrea, régua e
compasso, gigantesca experiência de musicólogo voltado para a música ibérica e ibero-
americana, foi também ele quem me encaminhou para a Etnomusicologia e, nesta, me
fez um brasilianista. Não era muito do caráter colonialista que a Antropologia e a
Etnomusicologia tiveram, os nativos estudarem sua própria cultura. Presenciei, num
debate pós-conferência de Blacking, num encontro da SEM em Los Angeles, em torno
de 1983, Akin Euba (1935-2008), compositor, professor e musicólogo nigeriano,
irritado dizer: “Você não entendeu nada; está tudo errado...”. Regionalismos,
nacionalismos, internacionalismos são também calhas previsíveis nos estudos musicais.
A inclusão dos índios em seus próprios estudos é essencial.
Produto também da Juilliard, a Etnomusicologia tirou a arrogância que devo ter tido, e
me ensinou a humildade: o não-saber e a incerteza. Já havia deixado o racionalismo da
Engenharia para trás e torcido os artelhos dentro dos sapatos, ao contato das ciências
sociais, na própria Juilliard. Nunca me senti tão humilhado e aprendi tanto, quanto nos
conjuntos etnomusicológicos a que a UCLA nos obrigava, sem crédito e com conceito.
Há um equívoco, certamente, na questão da bi-musicalidade. Houve sem dúvida
exageros quando nos faziam tocar a música do outro em público, sem a competência
privativa dos nativos. Talvez isso fosse possível para uns poucos. Não era, entretanto,
um conservatório de música exótica, como se disse, mas um procedimento pedagógico
de antecipação, sob controle, do trabalho de campo a ser realizado fora.
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 13
Também a salientar era o contato com as música do mundo a que éramos obrigados.
Isso também foi parte do pacote de Mantle Hood. Robert E. Brown (1927-2005) cunhou
o termo “World Music”. Foi o primeiro TA (teacher’s assistant) de Hood na UCLA, em
1954, quando enveredou pela Etnomsicologia, recebendo seu doutorado eventualmente
com uma dissertação sobre música ìndiana. Cunhasse ou não o termo, já não se pode
buscar generalizações sem conhecimento de outras culturas musicais. Do ponto de vista
curricular, estipulamos, na UFBA, seminários em culturas musicais contrastantes e
culturas musicais afinas.
Voltando à razão de estar aqui, além das afetivas, não é uma delas justificar Mantle
Hood, ou sua corrente. Transijo pela informação e por medo. Numa mesa-redonda em
que atuarão expoentes da reflexão e do trabalho com e entre os indígenas, Rafael
Bastos, Anthony Seeger e Glenn Shepard Jr., antropólogos ilustres os três, servirei
quando muito para contraste, homem infelizmente de gabinete que sou.
Trouxe aqui 26 exemplares de minha dissertação de doutorado para distribuir. É de
1961, já tem cinquenta anos. Nunca permiti que fosse publicada. Ela é uma introdução à
Etnomusicologia Brasileira que não foi escrita para brasileiros, o que dificulta a
tradução, até já tentada. Devo a publicação em fac-símile a Pablo Sotuyo Blanco. De
certa forma é uma arqueologia da música no Brasil, recuando milênios, buscando
instrumentos achados em sambaquis, assim como em tesos funerários de Marajó e entre
as cerâmicas de Santarém. Chega à primeira Exposição de Anthropologia de 1882, no
Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que foi um retrato dos estudos sobre o índio, ao fim
do Segundo Reinado, sob uma ótica de inferioridade racial deplorável. E. Deleau
preferiu rimar com Gobineau, cujo Essai sur l'inégalité des races humaines teve edição
completa em 1855. Teorias de eugenia ainda viriam e culminariam na hecatombe
nazista e genocídio de judeus.
Ao capítulo da Organologia indígena, seguem-se os dos cronistas, missionários,
naturalistas, visitantes, a partir da Carta de Caminha, o primeiro documento escrito da
Etnomusicologia Brasileira. Os sincretismos logo estão presentes em alguns desses
relatos. Confesso que só agora, por ter de vir aqui, estou começando a relê-la e assim
tomar conhecimento de homenagens que não agradeci e não mereci, na publicação de
Pablo.
Estudei música indígena, que me parece ser o vetor principal, não único, evidentemente,
para o programa de Etnomusicologia na UFPA que já nasce consolidado. Não fiz,
entretanto, o indispensável trabalho de campo que me credenciaria para estar aqui
presente. Além dos problemas sem resposta da Etnomusicologia – os 31 magistralmente
levantados por Bruno Nettl—estarão alguns de natureza política, particularmente
árduos.
Não posso sequer testemunhar sobre o relativo descaso em que os estudos sobre as
culturas musicais indígenas podem ainda estar. Muito menos ainda fazer uma
apreciação justa de sua música. Não somente a imagem do índio, como minoria, tem
passado historicamente por altos e baixos (qual não passa?), mas as próprias disciplinas
que o estudam mudam de cor. Os estudos das culturas afro-brasileiras, que vinham
sendo despertados entre brasileiros desde Nina Rodrigues, no início do século passado,
germinaram nos anos 30 do referido século (Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Edison
Carneiro, entre outros), inclusive pela realização de congressos. Substituíram, por assim
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 14
dizer, o foco de naturalistas e antropólogos sobre as culturas indígenas que parece ter
predominado antes da Segunda Guerra Mundial.
É de se perguntar quanto ainda existe, ou o que resta do extraordinário laboratório que
Merriam concebeu em sua dissertação de doutorado, sob a orientação de Herskovitz
(Boas ao longe). Viria a repudiá-la. Em 1951 ainda era um estudo comparativo que
chegava a uma conclusão de parentesco (origem comum) pela análise Kolinskiana de
amostras do Brasil, do Caribe e da África Ocidental, à base de transcrições de caráter
generalista de gravações feitas na Bahia por Herskovitz. Para ele, o encontro do europeu
com o índio, nestas praias, constituía um laboratório irreplicável em que o homem se
encontrava com ele próprio depois de mais de dez mil anos de separação.
No mínimo, tem sido um encontro assimétrico. É bem possível que, no momento em
que colocou suas mãos num machado de ferro, o índio tenha dado um primeiro passo
para graves alterações de sua cultura, não necessariamente extinção, como tem ocorrido.
Evidentemente, culturas não podem ir para o congelador: todas mudam.
O compromisso do programa de Etnomusicologia Amazônica, que aqui se desenvolve,
terá de enfrentar problemas éticos muito sérios, inclusive políticos e, quiçá, de
segurança, trabalhar para manter a identidade das culturas, tanto quanto possível, e
ainda assim conduzir o índio à sua cidadania plena como brasileiros. Até na Bahia, o
etnomusicólogo necessita funcionar como a Santíssima Trindade: um só deus, com três
cabeças: uma para a cultura do outro (neutra); outra para sua cultura (valorativa) e ainda
a de guardião de heranças do passado.
O que tem o computador a ver com o índio?
Estou voltando às brincadeiras do início. Dentes! Nas operações, que vertiginosamente
mudam a cada dia, cada vez mais depressa, os idosos, como eu, perdem o fôlego. Se não
são “velhos” (não confundam), tentam acompanha-las, se é que podem. Constatarão
facilmente que – ao longo da mudança tecnológica tornada um fim em si mesma, rumo
ao nada ou ao vazio – esse dedo da mão de um virtuose da internet, mestre dos recursos
eletrônicos para a pesquisa, traz num flash milhares de informações, até mesmo acesso a
obras que nunca pudemos ler, neste nosso Brasil de bibliotecas sistematicamente
desamparadas.
Esplendor e sufoco, ao mesmo tempo: como filtrar os excessos? Ainda perguntas sem
respostas. Poderiam os métodos analíticos em desenvolvimento para os estudos do
ciberespaço serem úteis para a Etnomusicologia do índio? Em reverso, poderiam os
nossos indígenas nos ensinar ainda uma correlação entre natureza e homem (ecologia)
em que a tecnologia seja apenas mediadora? Pareço estar repetindo a velha história do
ovo e da galinha.
Filosofemos um pouco: compartilhar informação de toda ordem é a palavra do dia. Mas
essa expressão é também inadequada já que éons, eras, séculos, anos, dias, horas,
segundos, nanossegundos fazem parte de uma escala do tempo tendente para um zero,
este sem dimensão, inexistente. Caixinhas dentro de caixinhas, num eixo de unidades,
do infinito macro (aparentemente ilimitado), ao infinito micro (surpreendentemente
limitado, ao que a Física das partículas subatômicas indica).
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 15
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 16
VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 17
Samuel Araújo
Resumo
Os muitos fóruns de discussão pública, no Brasil e em outras partes do mundo, que hoje tratam
direta ou indiretamente de música filtram fontes variadas e influentes entre si no bazar global de
práticas e ideias. Discursos artísticos, midiáticos, marqueteiros, acadêmicos e políticos dos mais
variados matizes se interferem em ritmo exponencial, ora se estranhando, ora se fundindo, e
dando margem a desde apreciações otimistas de sua diversidade às mais pessimistas projeções
do que seria seu caráter errante. Entre os augúrios de criativa polifonia e o espectro sombrio da
cacofonia, este ensaio se apoia tanto em referentes autobiográficos quanto acadêmicos,
procurando contribuir à discussão sobre a singularidade e impacto da etnomusicologia no
recente debate público sobre a música e seus fazeres no Brasil.
Palavras-chave: Etnomusicologia; Pesquisa-ação participativa; Políticas Públicas.
Abstract
The many public forums in Brazil and world over which currently deal either directly or
indirectly with music draw from varied and mutually influencing sources in the global bazaar of
practices and ideas. Artistic, mediated, market-aimed, academic and political discourses from a
wide spectrum of viewpoints intersect each other in exponential rhythms, either repelling or
melting with one another, opening expectations which range from optimistic appreciations of
this diversity to the worst pessimistic projections of its erring character. In between cheerful
hopes of creative polyphony and the somber specter of cacophony, this essay draws upon
autobiographical as well as academic referents attempting to address the singularity and impact
of ethnomusicology in recent debates on music and music-making in Brazil.
Keywords: Ethnomusicology; Participatory Action-Research; Public Policy
Introdução
Os muitos fóruns de discussão pública, no Brasil e em outras partes do mundo, que hoje
tratam direta ou indiretamente de música filtram fontes variadas e influentes entre si no
bazar global de práticas e ideias. Discursos artísticos, midiáticos, marqueteiros,
acadêmicos e políticos dos mais variados matizes se interferem em ritmo exponencial,
ora se estranhando, ora se fundindo, e dando margem a desde apreciações otimistas de
sua diversidade às mais pessimistas projeções do que seria seu caráter errante.
Entre os augúrios de criativa polifonia e o espectro sombrio da cacofonia, o que teria a
oferecer um campo de conhecimento como legado crítico, e não como mais um nicho
estéril de auto-reprodução, mas efetiva contribuição ao debate? Que vetores, se é que
ainda seria possível os localizar, singularizariam tal campo em meio à autocrítica
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 18
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 19
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 20
No Brasil, mas de resto pelo mundo afora, são hoje muitas as áreas da esfera pública, no
sentido habermasiano da palavra, que tomam a música como ponto de inflexão
importante. Além de sua óbvia e histórica presença na pauta dos debates sobre cultura,
educação, mídia ou entretenimento, realizados em fóruns como jornais, revistas,
programação radiofônica e televisiva, simpósios e congressos, e mais recentemente
chats, blogs e sites, a música tem sido cada vez mais tratada como vetor pertinente à
formulação de políticas e à gestão pública em diversas áreas anteriormente vistas como
não tão próximas ou mesmo distantes, como economia, turismo, variadas concepções de
direito (humanos, autorais, culturais), segurança pública, saúde e promoção do bem-
estar. Tal quadro, certamente integrado à progressiva aparição e naturalização do que
George Yudice (2006) denominou “cultura como recurso”, isto é como ferramenta de
ação social e não mais exclusivamente como expressão de subjetividades
excepcionalmente dotadas de conhecimento, sensibilidade e, em certos casos, técnica,
faz com que se amplie e diversifique consideravelmente o espectro de sujeitos e
discursos que reivindicam pertinência para falar de música. Tal concepção envolve,
assim, algo muito além de posições mais sedimentadas no tempo e no espaço dos
regimes de propriedade privada, que valorizam sua associação ora como projeção de
imanência do belo (ver TERRA, 2010), ora com padrões e valores estéticos ou culturais
socialmente construídos e, em determinadas conjunturas, expresso como criação de
determinados produtos (por exemplo, música vocal e instrumental, performances,
gravações), por autores individuais, em isolamento ou em colaboração, reconhecidos
como seus proprietários.
Amplificadas por uma miríade de tecnologias mais e mais onipresentes em nossas vidas
nos quatro cantos do mundo, múltiplas vozes se fazem ouvir acerca do que venha a ser
música e de como deveria ser acionada e gerida no dia-a-dia, vozes que se apropriam
reciprocamente uma das outras, produzindo simultaneidades, em que ora se pode
perceber um sentido relativamente concorde, polifônico, ora uma confusa e desfibrada
cacofonia. Assinale-se, a tempo, que tal conjuntura que, denomino sócio-acústica, vem
sendo objeto de autocrítica no campo da etnomusicologia tanto no Brasil, como
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 21
Iniciando esta discussão por seu aspecto mais óbvio, ressalto que a relação entre
pesquisa acadêmica e gestão pública é via de mão dupla, compreendendo desde
complexas desconstruções e reelaborações teóricas de iniciativas concretas de
formuladores e gestores de políticas públicas a tentativas mais ou menos bem sucedidas
de apropriação prática ou instrumentalizadora, por gestores públicos, de concepções de
mundo moldadas por pensamento ideal, mas não garantidamente crítico. Tal relação
deve ser compreendida, portanto, como objeto de um extenso debate público, colocando
em jogo os limites da participação social, ou, em outras palavras, do jogo democrático.
Se esse debate é frequentemente realizado de forma indireta, sem que os agentes
situados em cada um dos pólos, pesquisadores e gestores, tenham necessariamente
ciência de sua interrelação, muitas vezes se produz de forma direta, envolvendo relações
pontuais como a atuação do acadêmico em consultoria, prestação de serviços ou em
determinados fóruns de governança. Outra possibilidade, quiçá a potencialmente mais
conflituosa de todas, ocorre quando o pesquisador acadêmico passa a integrar a gestão
pública, mormente quando aquele não possui vínculos partidários anteriores, que o pré-
alinhariam, ao menos em tese, a pontos programáticos orientadores da respectiva gestão.
Baseado simultaneamente em experiência extensa em pesquisa ação-participativa em
áreas urbanas populares do Rio de Janeiro (Bairro Maré, morros do Salgueiro e da
Formiga) e em breve passagem (primeiro semestre de 2009) pela gestão municipal da
cultura na mesma cidade, ambas com foco na área de música, comentarei aqui os
potenciais e desafios à integração do trabalho acadêmico à função de gestão pública,
tomando como eixo o aprofundamento do processo democrático e a qualificação
contínua do debate público sobre as políticas públicas. Para tal, tomarei como
referências iniciais alguns dos pontos cardeais da virada epistêmica das humanidades
intensificada nas últimas décadas do século XX, de modo a empreender um breve
estudo de caso em torno do assim chamado Segundo Turno Cultural, ação conjunta
entre as gestões municipais respectivas da educação e da cultura na cidade do Rio de
Janeiro em prol da implantação de atividades escolares em tempo integral nas escolas
públicas de ensino fundamental. Examinarei, assim, a maneira simultaneamente errática
e reveladora como as discussões do programa público se desenvolveram desde o início
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 22
Não obstante haver hoje, entre as disciplinas etnográficas, considerável consenso quanto
à necessidade de superação de certa “normalidade” em seu modus operandi, assentada
de fato em relações de assimetria de poder e dominação, entendo não haver tanta clareza
quanto a suas implicações para os estudos empíricos, notadamente os de caráter
etnográfico, em que ainda prevalecem noções como prestígio da autoria individual,
controle exclusivo do pesquisador acadêmico de objetivos, referenciais, métodos, tempo
e formas de divulgação do trabalho de pesquisa, assim como ênfase no caráter “neutro”
do conhecimento, ou sua relação distanciada, “desinteressada”, em relação a suas
eventuais aplicações.
Procurando dar resposta à altura a essa forte tendência à reprodução de modelos
etnográficos que reforçam a reificação da autoridade acadêmica, equipes do Laboratório
de Etnomusicologia da UFRJ (doravante LE-UFRJ), em seu trabalho de pesquisa-ação
participativa na Maré, Rio de Janeiro, têm atuado como mediadoras dos respectivos
processos de formação de grupos de pesquisa entre moradores das populações locais, a
partir da ideia de se analisar a música como possível eixo de discussões sobre aspectos
da vida social a ela relacionados, como os vãos e desvãos da política em seus diversos
âmbitos, formas de sociabilidade, o mundo do trabalho, ou a hierarquização de
diferenças sob critérios os mais diversos (raça, gênero, idade, opção sexual, origem
regional e outras). Assentados em princípios dialógicos encontrados no legado
pedagógico de Paulo Freire (1970), tais processos levaram pouco a pouco ao
amadurecimento de questões de interesse mais premente dos moradores participantes
dos grupos de pesquisa (cerca de 70 em sete anos), redundando em formulação pelos
mesmos de questões de pesquisa, definição de estratégias para responder às mesmas,
atividades de documentação acerca do impacto da música na vida social local e a
correspondente formação de acervos multimídia de documentação. Essas atividades, em
tempo, dariam ensejo a apresentações públicas dos resultados de pesquisa em fóruns
acadêmicos e extra-acadêmicos, e um número crescente de publicações, em geral,
coletivas, chegando a obter ressonância em certos âmbitos da academia, da população-
alvo da própria área pesquisada, da esfera política e dos movimentos sociais.
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 23
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 24
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 25
ensino municipal, com autonomia em relação à gestão central, que, como visto acima, a
considerou dispensável, senão perigosa, como política de abrangência mais geral.
Contornados alguns percalços, as atividades progrediram, e, aproximando-se o final do
ano letivo, foram solicitadas aos participantes ideias acerca do produto final de cada
uma, que poderia, caso assim o decidissem, ser apresentado em evento de encerramento
no pátio de entrada da escola, com participação de todos os segmentos da escola e dos
responsáveis pelos alunos. Tendo passado por uma formação introdutória à geração e
edição de imagem em vídeo durante a oficina, as duas turmas decidiram pela realização
de um vídeo-documentário sobre as perguntas que, segundo os participantes, ecoaram
em suas mentes durante todo o semestre (que é música, quem, o que e porque se ouve),
mas para este fim, feitas a seus colegas, professores, a diretora inclusive, e funcionários
técnico-administrativos da escola.
A atividade de encerramento do ano letivo, perante um pátio repleto de assistentes,
compreendeu exposição de trabalhos realizados em diferentes disciplinas, em geral
expostos em suportes de cartolina afixados às paredes, e apresentações de outras
oficinas de contraturno, como canto coral e capoeira. A exibição do vídeo-documentário
da “oficina de música” surpreendeu a todos, como ficou explícito principalmente pela
reação festiva e estridente dos alunos à aparição no mesmo de alguns de seus colegas,
ora como âncoras do documentário, ora como entrevistadores, ou às respostas de seus
“velhos desconhecidos”, companheiros de comunidade escolar (professores, técnico-
administrativos e alunos), alguns dos quais falando pela primeira vez diante daquele
público, naquele espaço, sobre algo visto quiçá como irrelevante, desnecessário ou
mesmo impróprio à rotina escolar.
O sucesso relativo dessa primeira experiência – na contramão, como reportado acima,
dos prognósticos contrários da titular da pasta da educação, que me levaram, em última
instância, a sair da gestão pública – levou a uma reedição da oficina, para uma só turma,
durante o segundo semestre de 2010, que também resultaria em proposta de vídeo-
documentário. Desta feita, seguindo a pista de uma das discussões que mais motivaram
os participantes dessa segunda edição, foi escolhido como tema o impacto de um grupo
musical pop de muito sucesso entre adolescentes, e da adoção de determinados aspectos
visuais de sua imagem pública por jovens da escola e da Maré. No processo de
realização de entrevistas entre os alunos, passou-se do que os próprios proponentes
acreditavam ser um documentário sobre o referido grupo musical a um exame de ampla
gama de questões sobre a experiência de jovens moradores de favela, como preconceito,
violência, etnicidade, diversidade e, não necessariamente em ordem de prioridade,
relações com a música e a dança.
Considerações finais?
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 26
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 27
ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Samuel-Araujo.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 28
Resumo
O quinto encontro da ABET instigou discussões gerais sobre os modos de pensar e fazer a
pesquisa etnomusicológica, com vistas nas perspectivas teóricas e metodológicas que envolvem
a produção científica na área como um todo. Este artigo traz para o centro dessas discussões as
pesquisas sobre a brincadeira dos cocos na Paraíba, refletindo sobre questões que permeiam as
relações entre pesquisador, pesquisado e instituições responsáveis por políticas públicas
culturais. Destaca o dinamismo dos brincantes enquanto resposta às dificuldades sociais,
econômicas e políticas enfrentadas na manutenção da tradição dos cocos.
Palavras-chave: brincadeira dos cocos; música tradicional da Paraíba; políticas públicas
culturais; cultura popular.
Abstract
The fifth conference of Brazilian Association for Ethnomusicology (ABET) has exposed many
ways of thinking and doing ethnomusicological research considering methodological and
theoretical perspectives which involve the scientific production on this area as a whole. This
paper brings to the center of these discussions the brincadeira dos cocos in Paraiba as well as it
ponders on questions which come across the relations between researcher, subject and
institutions whose responsibility extends to cultural public politics. It also highlights the
coquistas dynamics as a response to social economical and political difficulties faced in the
safeguarding of the Cocos tradition.
Keywords: Brincadeira dos cocos; traditional music of Paraiba; cultural public politics; popular
culture.
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 29
sociais em questões tantas que podem envolver direitos humanos, educação, elaboração
de leis e projetos culturais, entre outras, nas quais, em casos não raros, nos tornamos
interlocutores dos grupos pesquisados.
Esta realidade experimentada por etnomusicólogos, nos diversos contextos geográficos,
denota uma trajetória de reflexões e participações em propostas multi e
interdisciplinares que marcam a história da disciplina. Como observou Béhague, “a
interdisciplinaridade [que] era, desde o princípio, o elemento primordial da própria
constituição da etnomusicologia, passou a uma fase de evidente maturescência” (2005,
p. 47). A visão interdisciplinar na etnomusicologia possibilita a construção de um
conhecimento contextual conectado com as demandas científicas do nosso tempo, e
contribui para uma indispensável visão de transcendência e continuidade nos processos
de pesquisa, mormente no que diz respeito aos resultados destes na vida dos grupos
sociais estudados.
Nesta perspectiva, fazer pesquisa dentro de uma visão ampliada e enriquecida pelos
diversos saberes, constituiu-se em condição imprescindível para ultrapassarmos os
limites do pensar de cunho exclusivamente teórico e passarmos aos desafios de uma
postura participativa, presente e socialmente comprometida. Loughran (2008, p.52)
define a “etnomusicologia aplicada como uma abordagem filosófica para o estudo da
música na cultura com a responsabilidade e justiça social como princípios”. Desta
forma, enquanto etnomusicólogos/pesquisadores, procuramos dar respostas razoáveis
aos constantes questionamentos que nos fazemos bem como àqueles que nos chegam da
realidade circundante. São perguntas de cunho subjetivo e objetivo que nos colocam
diante da provocação apresentada por Bobbio (1997, p. 97) quando diz: o intelectual age
com base na ética da pura intenção ou com base na ética da responsabilidade?
Refletindo sobre as vantagens e desvantagens da pesquisa de campo de longa duração,
Seeger observa que
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 30
pela percepção de uma oralidade constituída de nomes, rostos, vozes, perfis, gestos,
opiniões, lugares, sentimentos, enredos, músicas e danças. Ele e sua equipe reuniram
ciência e humanidade em um ambiente de pesquisa marcado pelo estigma da não
sistematicidade. Esse modo de sentir e agir na experiência da pesquisa vai se somar ao
pensar e fazer científicos assumidos por Mário de Andrade, como podemos verificar no
seu pensamento expresso na introdução da obra inacabada “Na Pancada do Ganzá”.
Em 1964, o folclorista Altimar Pimentel publicou a obra “O coco praieiro: uma dança
de umbigada”, com 2ª edição em 1978 e nova publicação em 2004. Nela o autor
descreve a brincadeira dos cocos no município de Cabedelo, discute as possíveis
origens, apresenta transcrições de letras e músicas, apresenta seus interlocutores e os
principais brincantes da época. Pimentel iniciou suas pesquisas sobre os cocos da
Paraíba quando trabalhava como conferente no porto da cidade de Cabedelo. Ao
observar o movimento dos trabalhadores ele escreveu:
Ainda, na década de 1970, foram feitos alguns levantamentos sobre a existência dos
cocos na Paraíba, sob a coordenação de professores ligados ao Núcleo de Pesquisa e
Documentação da Cultura Popular - NUPPO/UFPB (AYALA; AYALA, 2000 p. 27) .
Uma publicação mais recente, a obra “Cocos, Alegria e Devoção”, organizada por
Maria Ignez Ayala e Marcos Ayala, publicada em 2000, constitui-se em abrangente
registro científico sobre os cocos da Paraíba, resultante de pesquisas de caráter multi e
interdisciplinar, realizadas durante a década de 1990. Entre as muitas contribuições
desta obra, está a preocupação por parte dos pesquisadores de não apenas descrever e
registrar a brincadeira dos cocos no contexto paraibano, mas trazer para o centro das
discussões acadêmicas a situação socioeconômica dos brincantes, os problemas
relacionados à moradia e uso da terra, a desagregação entre grupos de dançadores, os
preconceitos e as condições mais gerais da manifestação no período da pesquisa. Diante
dos problemas constatados, os autores foram objetivos ao afirmar que, “sem as garantias
mínimas de cidadania, é muito difícil ter autonomia para desenvolver atividades
culturais independentemente de interferências de grupos de poder – proprietários rurais
e políticos” (2000, p. 36).
Uma vez fundamentada nas ideias de continuidade e transcendência, a obra de AYALA
e AYALA tem influenciado trabalhos científicos sobre os cocos da Paraíba em
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 31
pesquisas desenvolvidas por acadêmicos das diferentes áreas, tais como, a antropologia,
comunicação, educação, letras, etnomusicologia, entre outras; além disso, o corpo de
informações resultante das pesquisas documentadas na obra acima citada constituiu-se
em dados imprescindíveis para a concretização do “projeto Inventário dos Cocos como
Patrimônio Imaterial Brasileiro”, citado adiante.
Com os programas de políticas públicas para a cultura e, sem dúvidas, o acesso mais
fácil ao registro das manifestações populares, existe hoje uma quantidade significativa
de documentos sobre os cocos em CDs e DVDs, em geral, com produção intermediada
por músicos, pesquisadores e agentes culturais. Os trabalhos de grupos e cantadores
individuais podem ser encontrados também na internet, em geral, com vídeos e fotos
postados a partir de apresentações em eventos públicos. Fato relevante na discussão
atual sobre os cocos foi o Encontro de Cocos do Nordeste, em dezembro 2009, em João
Pessoa, que reuniu grupos de cantadores e dançadores de várias cidades da região
visando à apresentação, compartilhamento e discussão das condições de “trabalho” nas
comunidades onde vivem.
A partir desse evento e com base na visão de uma realidade urbana complexa e rica de
manifestações culturais e musicais, em 2009, criamos o Núcleo de Estudos em
Perfomance e Estética Musical, como parte de um projeto mais amplo de pesquisa da
área de Etnomusicologia do PPGM/UFPB. A participação no citado Encontro foi
fundamental para o início dos contatos com os cantadores e dançadores, no sentido de
conhecermos melhor suas atividades, ideias, planos e condições de vida atuais. O núcleo
desenvolve pesquisa com foco no trabalho de músicos da cultura popular da Paraíba, a
exemplo de estudos sobre a cantadora Vó Mera (SANTOS, 2010), o cantador Mestre
Jove (SANTOS, 2011) e o músico Baixinho do Pandeiro (2012). Também procura
estimular o diálogo entre a academia e os grupos populares, promovendo oficinas e
palestras ministradas por mestres.
O estudo dos cocos é uma experiência empolgante! O conhecimento sobre os seus
personagens, ritmos, danças, melodias, letras, histórias, significados, entre outros
aspectos, é de total interesse da pesquisa realizada pelo Núcleo. No entanto, o estudo
dessa expressão hoje, na Paraíba, passa inevitavelmente pela problemática questão
“acre-doce” das políticas públicas voltadas para a cultura popular. É evidente que os
cocos, assim como as manifestações populares em geral, são mantidos tradicionalmente
pelos seus fazedores e por mantenedores tantos que atuam em seu favor: pessoas da
comunidade, instituições religiosas, escolas, prefeituras, ONGs, entre outros. Interessa-
nos então refletir sobre a situação sociocultural dos cantadores e dançadores na Paraíba
frente às políticas públicas implantadas nesta última década.
Para esta discussão, tomaremos como recorte o depoimento de cinco mestres
paraibanos, todos com grupos formalizados através de registro na Subsecretaria
Estadual de Cultura da Paraíba e /ou nas Subsecretarias de seus municípios e inseridos,
de algum modo, em programas de políticas públicas. São eles Dona Teca de Cabedelo,
Dona Edith de Caiana dos Crioulos (Alagoa Grande), Dona Lenira do Novo Quilombo
de Gurugi (Conde), Vó Mera de João Pessoa e Mestre Jove de Forte Velho (Santa Rita).
Os depoimentos das três primeiras mestras, citados a seguir, foram recolhidos a partir
das discussões realizadas por ocasião do I Encontro de Cocos do Nordeste, e
corroboram as falas de Vó Mera e Mestre Jove, registradas em encontros individuais e
sistemáticos, realizados nestes últimos dois anos.
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 32
[...] tem pessoas que convidam o grupo pra brincar e acerta o transporte; a gente se
arruma, dizendo [eles] que o carro chega às 5h. Então, todo mundo trabalha no
campo, perde meio dia, porque o roçado às vezes é longe, perde meio dia pra vim
pra casa, pra esperar o transporte [...]; a gente sai às 8h da noite com a cara
mexendo, e o transporte não vai apanhar o grupo. Isso, os componentes do grupo
vêm em cima de mim, [...] perguntando, cadê? fazendo a gente ficar bestando e a
gente ficar com a cara de tacho mesmo, porque a gente não tem o que responder
pra eles (depoimento gravado em DVD).
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 33
binômio, políticas públicas e gestão dos bens públicos. Em 2004, durante o II ENABET,
Samuel Araújo trouxe para a mesa de debates preocupações que surgiram a partir de
uma leitura atenta de um discurso do então ministro da cultura, Gilberto Gil, proferido
em outubro daquele ano. Entre outros aspectos, Araújo chamava a atenção para a
Se, por um lado, o país é referência pela formulação e pela implementação deste
modelo de política, por outro, considera-se um grande desafio a efetivação do
processo junto às esferas estadual e municipal. A dimensão territorial, a
complexidade das articulações burocrático-legais e o ainda incipiente investimento
em capacitação na gestão pública configuram-se como obstáculos à normatização
do direito de salvaguardar o conjunto de conhecimentos tradicionais, a oralidade,
os saberes e as manifestações artísticas da população brasileira e para ela como um
todo (DEFOURNY, 2008, p. 7).
eu não tinha nem zabumba, eu não tinha nada. Quando fiquei responsável [pelo
grupo], nem a zabumba eu tinha condições de comprar com meu salário, mas eu
corri atrás, corri atrás, olha, é porque eu sou muito teimosa, quando eu quero uma
coisa, eu vou atrás mesmo. Então eu consegui dois zabumbas; hoje, graças a Deus,
o meu grupo já é registrado federalmente, são trinta e três pessoas no grupo
(depoimento gravado em DVD, op.cit.).
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 34
Muitas respostas surgem dos próprios grupos e pessoas estudadas, uma vez que eles não
pararam no tempo para esperar soluções para os seus problemas. Os conflitos entre
coquistas e gestores das políticas públicas existem e se dão em meio às ações
continuadas destes grupos, principalmente aquelas voltadas para manutenção da
brincadeira dos cocos nos eventos próprios das suas comunidades, não deixando de
atender convites daqui e dali, agarrando todas as oportunidades que lhes aparecem. Aos
estudiosos cabe a participação para além da pesquisa em si, como também concluem os
autores do texto acima citado.
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 35
À guisa de conclusão, os cocos da Paraíba, nas suas diversas formas, são cantados no
labor cotidiano, nos momentos de lazer, aniversários, como canção de ninar, nas festas
comunitárias, nos rituais religiosos, a exemplo das novenas, do toré e do culto da
jurema. Estão presentes em trilhas sonoras, nos corais, nas bandas de pífano, no
carnaval, nos programas de rádio, nas escolas. Situações estas que perpassam e ao
mesmo tempo exigem atuações eficazes nas políticas públicas.
Referências Bibliográficas
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 36
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 37
Discografia
AYALA Maria Ignez Novais; AYALA, Marcos. (Orgs.) Cocos, alegria e devoção.
Natal: EDUFRN, 2000. 1 CD. (encarte).
CAIANA DOS CRIOULOS. Ciranda, coco de roda e outros cantos. Projeto Memória
Musical da Paraíba, vol. 1. Produção de Socorro Lira, S.l.:S.n., 2003. 1 CD.
CAJU E CASTANHA. Vindo lá da lagoa. S.l.:Trama, 2000.
CHICO ANTÔNIO. No balanço do Ganzá. Itaú Cultural, 1998. Coleção Itaú Cultural,
Acervo FUNARTE de Música Brasileira, 57.
GRUPO FOLCLÓRICO. Coco de roda e ciranda Mestre Benedito. Cabedelo: Produção
e direção artística de Tadeu Patrício, 2007. 1 CD.
MANÉ DE BIA [Manoel Mariano da Silva] Com o coco eu desafio o mundo: cocos
aboios e outros poemas. Organização e pesquisa de Maria Ignez Ayala. João Pessoa:
Meio do Mundo/ Campina Grande: Bagagem, 2009.
DESENCOSTA DA PAREDE. O canto-dança da comunidade de Caiana dos Crioulos,
em Alagoa Grande. Projeto Memória Musical da Paraíba. Vol.3. Produção de Socorro
Lira S.l:.Sn, 2007. 1 CD.
VÓ MERA. Vó Mera e seus netinhos. João Pessoa: DECOM/UFPB, 2007. 1 CD.
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 38
http://brincantesnaparaiba.blogspot.com.br/2011/07/seu-dada-cacique-da-aldeia-
cumaru.html. Acesso em 26 de março de 2012.
http://www.vozesdemestres.com/profile/HenriqueSampaio. Acesso em 26 de março de
2012.
http://professortadeupatricio.blogspot.com.br/p/discografia.html. Acesso em 26 de
março de 2012.
http://www.socorrolira.com.br/projetos_interna.php?id=25. Acesso em 26 de março de
2012.
http://www.youtube.com/watch?v=alHfRR-xApU. Acesso em 26 de março de 2012.
http://www.youtube.com/watch?v=iOibdbrM378. Acesso em 26 de março de 2012.
http://www.youtube.com/watch?v=YQfOFaJvn6o. Acesso em 26 de março de 2012.
http://www.buscamp3gratis.net/ouvir/NGbZ7RutgLw/ciranda-e-coco-de-roda-odete-de-
pilar-paraibapb. Acesso em 26 de março de 2012.
SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 39
Liliam Barros
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar a produção etnomusicológica no Pará, focalizando as
pesquisas atuais. Oferece breve histórico institucional relacionado à produção de dissertações e
teses de doutorado na região, culminando com um esboço interpretativo de tais produções.
Palavras-Chave: Produção etnomusicológica no Pará; pesquisas atuais; histórico institucional;
dissertações e teses.
Abstract
This article aims to present the ethnomusicological production in Pará state focusing on current
researches. It offers a brief institutional history related to the production of dissertations and
doctoral theses in the region, culminating with an interpretative outline of such production.
Keywords: Ethnomusicological production in Pará; current researches; institutional history;
dissertations and doctoral theses.
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 40
para as pesquisas sobre música no Pará. Outros autores como Lühning (2004) e
Travassos (2005) apontaram os estudos sobre culturas musicais locais como precursores
de pesquisas etnomusicológicas na Bahia e no Brasil, respectivamente.
Etnomusicologia no Pará
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 41
2
INRC Marajó; Tocando a Memória – Rabeca.
3
A Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional foi
criada por ocasião do Seminário “Saber Local/Interesse Global: Propriedade intelectual,
biodiversidade e conhecimento tradicional na Amazônia”, realizado pelo Museu Paraense
Emílio Goeldi e Centro Universitário do Pará – CESUPA em 10,11 e 12 de setembro de
2003.
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 42
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 43
Ainda que a Amazônia tenha sido uma das quatro prioridades estratégicas do Plano de
Ação em C, T&I para o Desenvolvimento Nacional -2007/2010 (MCT, 2010), observa-
se oferta tímida de ações focalizando a pesquisa em música e maiores projeções em
temas como sustentabilidade, desenvolvimento e afins. Neste sentido, o acesso a este
fomento dá-se através do tangenciamento entre a pesquisa em música e as outras
temáticas. Por outro lado, o crescimento da quantidade de bolsas de mestrado,
doutorado e pós-doutorado tem oportunizado o desenvolvimento de estudos na região.
Verifica-se expressiva expectativa de formação de mestres e doutores em música por
conta do programa de qualificação docente financiado pela CAPES/SETEC, do qual
resultará em mais três teses de doutorado em etnomusicologia, totalizando um
contingente de 6 doutores na área, sendo 5 (cinco) da UFPA e 1 (uma) da UEPA. Tais
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 44
Referências bibliográficas
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 45
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 46
BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 47
Glaura Lucas
Resumo
Trata-se de uma reflexão sobre os modos de fazer o trabalho de campo, quando o estudo
etnomusicológico inclui a perspectiva da pesquisa-ação participativa. O foco são as relações
humanas, bem mais intensas e dialógicas nesse tipo de pesquisa, realçando a importância de se
considerarem eventuais mal-entendidos nas interações que evidenciam maior distanciamento
cultural entre as partes, buscando formas de minimizá-los. Os exemplos abordados emergem de
um processo de pesquisa em andamento, tendo como parceiras a Comunidade Negra dos
Arturos, situada em Contagem, Minas Gerais, e a Associação Cultural Arautos do Gueto, com
sede no Morro das Pedras, em Belo Horizonte. A partir da discussão sobre esses exemplos,
tecem-se finalmente algumas considerações sobre as implicações, para os cursos de graduação e
pós-graduação, da busca crescente dos alunos por essa modalidade de pesquisa compartilhada.
Palavras-chave: Trabalho de campo; pesquisa-ação participativa; Comunidade Negra dos
Arturos; Associação Cultural Arautos do Gueto; cursos de graduação e pós-graduação
Abstract
This paper aims at discussing ways of developing fieldwork, when the ethnomusicological study
is carried out according to the perspectives of a participatory action research. It focuses on the
human relations, which become more intense and dialogical in this type of research. The
importance of considering occasional misunderstandings throughout the process is highlighted,
especially when there is a greater cultural gap between researcher and the people whose music
is being researched, and forms of reducing them are discussed. The examples approached
emerge from a research in progress, which is being developed together with Comunidade Negra
dos Arturos (Black Community of Arturos), located in Contagem, Minas Gerais, Brazil, and the
Associação Cultural Arautos do Gueto (Arautos do Gueto Cultural Association), which is
situated in Morro das Pedras, in Belo Horizonte, Minas Gerais. The text ends with some
considerations about the consequences, for higher education, of an increasing interest in this
mode of shared research, by students.
1
Este texto é uma ampliação do que foi apresentado no V Encontro Nacional da Associação
Brasileira de Etnomusicologia, no Painel intitulado Modos de fazer etnomusicologia: o que
estamos construindo para o futuro? Agradeço à Presidente da ABET, Maria Elizabeth
Lucas, à diretoria da ABET e à comissão organizadora do VENABET, o convite para
participação nesse Painel. Sou grata também a José Alberto Salgado e Silva pelo convite
para a publicação deste texto. Meus agradecimentos se estendem aos dois pareceristas
anônimos por suas valiosas contribuições ao texto.
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 48
2
Para o antropólogo Wyatt MacGaffey (1986), ‘diálogo de surdos’ exprime uma situação de
mútua incompreensão numa interação social marcada por distanciamento cultural entre as
partes. Essa expressão foi usada primeiramente por Albert Doutreloux para se referir às
relações entre colonizadores e colonizados, “marcadas por uma profunda ambiguidade”, no
Mayombe (Doutreloux, 1967: 261). Prefiro, no entanto, me referir a esse tipo de
comunicação, em que se destaca a mútua incompreensão dos suportes conceituais e
perceptivos que embasam os discursos e demais interações, como diálogos de mal-
entendidos.
3
Samuel Araújo, por exemplo, propõe a expressão ‘trabalho acústico’, que nos ajuda a
desconstruir os condicionamentos colados ao termo música no uso dominante, vendo-a assim
como uma prática que origina-se do “processo abstrato de se trabalhar o tempo
acusticamente” (Araújo, 1992: 217, tradução minha).
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 49
relações assimétricas de poder, determinadas que são por condições sociais e políticas
desiguais entre pesquisador e pesquisados4.
Nas últimas décadas do século XX, os modos de representação etnográfica herdados das
relações colonialistas passaram a ser questionados mais fortemente e, portanto, também
a autoridade etnográfica, entendida não apenas sob a ótica da desigualdade entre as
partes, independentemente do grau de distanciamento cultural entre elas, mas também,
conforme aponta José Reginaldo Santos Gonçalves,
4
Ver Vincenzo Cambria (2008) para uma reflexão interessante sobre essas interações sob a
ótica da noção de ‘diálogo’.
5
Ver, por exemplo, Araújo, S. (2004), Araújo, S. et al (2006, 2007), Cambria, V. (2004).
Exemplos de, e reflexões sobre processos compartilhados de pesquisa e ação participativa
encontram-se também em Lucas, G. (2006), Marques, F. (2008), e Tugny R. (2009a e
2009b).
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 50
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 51
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 52
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 53
7
Os resultados de sua pesquisa foram apresentados no VENABET (Ver Aredes, 2011).
8
Dentre os resultados, estão também um texto final escrito a várias mãos e a construção
coletiva de um blog contendo registros desse processo
(http://arturosfilhosdezambi.blogspot.com/). O documentário continua em processo de
produção.
9
As reflexões em torno dos objetivos da pesquisa mais ampla incluem discussões acerca das
diferentes interpretações das noções de memória, tradição e história. Essas discussões, no
entanto, extrapolam os objetivos desta apresentação sobre as ações compartilhadas com os
grupos parceiros da pesquisa.
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 54
Essa é uma etapa tradicional da Festa da Abolição 10, que acontece no adro da igreja,
com a participação de representantes de vários setores da sociedade, dentre eles o(a)
prefeito(a), vereadores, membros da igreja, reis e rainhas do Reinado, várias guardas e o
público em geral. Sendo realizada em espaço de grande visibilidade, essa etapa era alvo
dos mais frequentes de interferência externa. Membros da Prefeitura, interessados no
potencial turístico do evento, além de artistas e intelectuais vinham pressionando a
comunidade a modificarem essa encenação, considerada ingênua tanto esteticamente
quanto em seu conteúdo. Com efeito, o questionamento em torno dos símbolos oficiais,
como a figura da princesa Isabel e o ‘13 de maio’, só mais recentemente vem
repercutindo entre os Arturos, principalmente os das gerações mais jovens, quanto à
concepção dos significados da festa. Em seus discursos públicos, esses jovens realçam a
importância do evento como espaço de denúncia contra a discriminação racial e de
reivindicação de condições de vida mais dignas para a população negra, por exemplo.
Por outro lado, para os mais velhos, o mais importante é a homenagem que prestam a
seus antepassados que viveram a escravidão, e aos fatos mítico-históricos que
conformam, juntamente com a memória dos relatos dos familiares que os antecederam,
o imaginário de suas origens, daquilo que os leva a serem congadeiros no mundo de
hoje. Importante nesse sentido é o entendimento de que houve a ação de Nossa Senhora
do Rosário e dos antepassados sobre a Princesa Isabel para a assinatura da lei áurea.
Portanto, os mais velhos não abrem mão do modelo a que estão habituados: “Certo ou
errado, é assim que a gente sempre fez”, nos revelou o capitão regente de Contagem,
Seu Antônio Maria da Silva. Dessa forma, a cada ano, diferentes atores e atrizes
propunham novos diálogos e representações, mais “politicamente corretos” e mais
saborosos às exigências estéticas de parte do público. Porém, acabavam por entrar no
esquecimento, não sendo mantidos para o ano seguinte, seja por não se apresentarem
significativos e portanto passíveis de serem incluídos no conjunto de etapas do evento
tradicional, seja pelo caráter passageiro da atuação desses agentes externos junto à
comunidade. Até que os próprios Filhos de Zambi criaram uma versão contestando o
papel da Princesa Isabel, em projeto desenvolvido com o Grupo Trama de teatro,
atuante em Belo Horizonte, o que despertou o interesse de muitos na Comunidade, dada
a sua relevância no movimento da tradição.
Trata-se portanto de uma questão bastante delicada, na medida em que evidencia
tensões relativas às diferenças de sentido e de concepção entre gerações, o que no
entanto é algo normalmente verificável na vivência de várias tradições culturais ao
longo de seu tempo histórico. Neste caso específico, os líderes administrativos da
Comunidade dos Arturos convidaram algumas pessoas da irmandade e outras com longa
vivência nos processos comunitários, para juntos avaliarem a inclusão da nova proposta
de encenação da escravidão e da assinatura da Lei Áurea, e seu impacto no ritual como
10
A Festa da Abolição (ou da Libertação) é realizada pelos Arturos há muitos anos, como
forma de rememoração da abolição da escravatura no país. Antigamente, tratava-se de
celebração interna, em que os Arturos, reunidos nas guardas, hasteavam mastros em honra
aos antepassados escravizados. Embora os mastros ainda sejam hasteados anualmente no dia
13 de maio, a festa assumiu grandes proporções a partir da década de 1970, quando passou a
ser patrocinada pela Prefeitura Municipal de Contagem. Em função da importância e do
papel do antepassado na experiência espiritual dos congadeiros, essa festa, embora a
princípio de caráter cívico, carrega sentidos espirituais profundos para eles. Ver Lucas (2005,
p. 192-195).
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 55
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 56
Num contexto de pesquisa assim, desafios e situações inéditas decorrentes dos diálogos
entre modos distintos de pensar e de fazer não são incomuns. Por vezes, o(a)
pesquisador(a) é convidado(a) a aprender a operar com categorias teóricas e
metodológicas nem sempre familiares, sob a ótica acadêmica, e conter impulsos de
impor métodos naturalizados pelo condicionamento de sua própria formação e
concepção.
Num primeiro exemplo, ambas as demandas revelaram uma necessidade dos grupos de
se engajarem com ações e procedimentos mais próximos das atuações profissionais
formais de transmissão de conhecimento, tais como organizar oficinas e sistematizar a
metodologia de ensino. Entretanto, nos dois casos, o processo de formalização das
dinâmicas de ensino-aprendizagem realçou a importância para eles da manutenção e
reprodução de métodos e critérios de transmissão mais próprios da oralidade, mais
globais e inter-relacionados. Para os Arturos, por exemplo, não faz sentido uma oficina
de percussão isolada da de dança, ou ensinar separadamente os instrumentos da Folia de
Reis, nos convidando a um exercício criativo na montagem das oficinas e na preparação
dos professores externos, mais habituados ao hábito da fragmentação nos processos de
ensino-aprendizagem. Já em relação aos Arautos do Gueto, o tocar bem depende de um
sentimento de auto-estima e auto-confiança que é conscientemente estimulado pelos
professores do projeto através de uma atitude de respeito, afeto e interesse por cada
aluno individualmente, se tornando esses, elementos fundamentais no âmbito da
metodologia de construção da aprendizagem musical.
Além dessas questões que evidenciam uma visão holística dos contextos em que as
músicas se inserem e da relação dessa visão com os processos de transmissão de
conhecimentos próprios da oralidade, um outro fator importante que emerge
constantemente diz respeito especificamente à comunidade dos Arturos, em função da
especificidade dos modos de ser e de pensar provenientes da herança ancestral, que se
projeta nos modos de fazer e assim sobre a pesquisa em geral. Tudo que realizam e
promovem em prol da comunidade está calcado na experiência da conexão com os
antepassados, no papel fundamental do tambor nesse processo, e na compreensão da
intervenção dos antepassados e de Nossa Senhora do Rosário no cotidiano e no futuro
do grupo familiar. Assim, a percepção que têm da própria presença desta pesquisadora
junto à comunidade, se dá a partir dessa concepção, metaforicamente traduzida como
mais uma conta do rosário, uma imagem que também remete a relações coletivas menos
hierarquizadas, e a um conjunto de inter-relações, das quais os antepassados também
participam. A importância fundamental dessa noção e dessa experiência observa-se no
fato de que todas as reuniões para esses e outros projetos, e também certos cursos,
acontecem dentro da capela, sob os olhares e auxílio dos antepassados cujos retratos
estão pendurados no altar junto às imagens dos santos. Entremeados às discussões
verificam-se atos individuais de fé, como beijar o terço dependurado do altar e fazer o
sinal da cruz, e/ou orações individuais ou coletivas no início e no fim dos trabalhos.
Essa concepção portanto permeia todo e qualquer processo de ação e de pesquisa
conjunta, constituindo a principal referência teórica a orientar seus resultados. Realça
ainda a delicadeza das relações e a grande responsabilidade de todos com as
conseqüências das ações que serão implementadas com sua contribuição.
A partir dessas reflexões, gostaria de finalizar tecendo algumas considerações sobre o
processo de pesquisa de campo compartilhado, pensando nas implicações para os cursos
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 57
Referências Bibliográficas
ARAÚJO Jr., Samuel Mello. Acoustic labor in the timing of everyday life: a critical
contribution to the history of samba in Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Urbana,
Illinois, 1992.
__________. Samba, coexistência e academia: questões para uma pesquisa em
andamento. Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para
o Estudo da Música Popular (IASPM). Rio de Janeiro, 2004. Disponível em
http://www.hist.puc.cl/iaspm/rio/Anais2004%20(PDF)/SamuelAraujo.pdf.
ARAÚJO, S. et alli. Música e políticas públicas para a juventude: por uma nova
concepção de pesquisa musical. Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM), p.216-219, Brasília, 2006a.
______________. Conflict and violence as theoretical tools in present-day
ethnomusicology: notes on a dialogic ethnography of sound practices in Rio de Janeiro.
Ethnomusicology, 50(2), p. 287-313, 2006b.
AREDES, Rubens de O. Siginificados e identidade negra na música e arte dos grupos
Arautos do Gueto e Filhos de Zambi. V Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET). Anais. Belém, 2011.
CAMBRIA, Vincenzo. Etnomusicologia aplicada e “pesquisa ação participativa”:
reflexões teóricas iniciais para uma experiência de pesquisa comunitária no Rio de
Janeiro. Anais do V Congresso Latino-americano da Associação Internacional do
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 58
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 59
Resumo
O texto foi base de apresentação em painel do V Encontro Nacional da ABET. Partindo de uma
enquete por correio eletrônico com professores de etnomusicologia em universidades
brasileiras, apresenta dois quadros com listagem de temas e disciplinas presentes em suas
práticas docentes, para então focalizar um dos núcleos temáticos nas respostas: a etnografia. A
prática etnográfica é abordada aqui em suas relações com a literatura – destacando-se algumas
possibilidades da descrição como discurso, e também questões de participação e representação
em situações de diálogo. O autor argumenta que uma conscientização dos recursos e dos
condicionamentos em diversas modalidades de linguagem verbal – bem como a exploração
sistemática dos limites e possibilidades de escrita durante uma pesquisa – constituem processos
importantes de aprendizagem e formação, com efeitos que vão além do campo disciplinar e
incidem sobre a comunicação de conhecimentos em geral e sobre outras formas de ação em
sociedade.
Palavras-chave: Etnografia como literatura; variedades de descrição; variedades de diálogo.
Abstract
This article served as platform to a presentation at the V National Meeting of ABET. Starting
from an e-mail survey with Brazilian university professors of ethnomusicology, it presents two
lists of themes and disciplines involved in their teaching practices. The article then proceeds to
discuss one of the central points appearing in responses: ethnography. This is examined here in
relation to the ample field of literature – emphasizing some possibilities of description as
discourse, as well as matters of participation and representation in dialogue. The author argues
that an awareness of the resources and conditions in various modalities of verbal discourse – as
well as the systematic exploration of limits and possibilities of writing while doing research –
constitute relevant processes of education, whose effects transcend the disciplinary field of
ethnomusicology and reach out to practices of knowledge communication in general, and other
forms of social action.
Keywords: Ethnography as literature; varieties of description; varieties of dialogue.
Introdução
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 60
Com materiais das respostas, editei dois quadros em forma de lista, que exponho
rapidamente como panorama de um vasto campo de atuação. São quadros que revelam
uma complexidade já conhecida para os mais experientes – e impossível de abordar em
detalhe numa palestra de aproximadamente trinta minutos. No entanto, sempre se pode
encontrar valor em vistas panorâmicas: elas costumam reapresentar, em nova
organização, pontos que tendem à fluidez ou dispersão, e até podem recolocar ou fazer
surgir algum problema diante do olhar. Ao abrir com este panorama, levo em conta
também que me dirijo a um bom número de estudantes que começam a firmar um
vínculo com a etnomusicologia – e no intuito de apoiar essa aproximação, endereço
especialmente a elas e eles as considerações a seguir.
Após a edição das listas, foi preciso delimitar um núcleo temático: escolhi refletir sobre
etnografia e literatura, pensando certos usos da linguagem na prática de
etnomusicologia, e apontando de passagem certas relações com outros conteúdos
listados. Com isso, proponho principalmente aos estudantes e interessados alguns
parâmetros para análise de leituras e para experimentação com a descrição e o diálogo
na construção de textos.
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 61
significação
ritual
arte
cultura
comunicação
conhecimento
performance
estética
oralidade e memória
etnografia
pesquisa de campo
metodologia
teoria
análise
processos de ensino-aprendizagem
processos locais e alternativos de transmissão de saberes musicais
propriedade, patrimônio
identidade
cidadania
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 62
antropologia
sociologia
filosofia
história
teoria política
geografia social
história cultural
musicologia, coreologia, acústica musical, história da música
estudos de música popular
estudos de folclore
literatura
estudos culturais
lingüística
filosofia da linguagem
psicologia
psicologia da música
psicologia social
Como se vê, mesmo pela amostra parcial (outros colegas com atividade destacada não
participaram desta mini-enquete), é vasto o universo de conteúdos mobilizados no
trabalho com etnomusicologia, e entre os itens listados são muitas as conexões que se
podem lembrar e também problematizar. E essa vista panorâmica pode ser útil
especialmente num momento em que estudantes universitários de Música têm mostrado
interesse crescente pela etnomusicologia (ver ARAÚJO; SILVA, 2011).
Obviamente, foi necessário delimitar um setor no grande círculo das respostas, e o
ponto que escolhi foi a etnografia, mais especificamente tendo em mente a introdução à
sua prática por meio de estudos na universidade. A partir daí, logo se visualizam
relações entre etnografia e outros pontos apresentados, incluindo: as várias artes,
conhecimento, pesquisa de campo, metodologia, teoria, análise, performance,
aprendizagem, transmissão. E recorrendo à lista de disciplinas (quadro 2), tocaremos ao
longo do texto no potencial da prática da etnografia para a formação, ou educação, de
seus praticantes – com ela se pode exercer uma consciência histórica, uma disposição
antropológica e filosófica, e um contato bastante compromissado com a produção
humana de literatura em geral, já que o pesquisador-etnógrafo passa a tomar parte nessa
produção.
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 63
Portanto uma leitura analítica do corpus etnográfico, como a faz James Clifford nos
ensaios reunidos em A Experiência Etnográfica – cujo subtítulo, por sinal, é
“Antropologia e Literatura no séc. XX” –, ou inspirada em textos de crítica literária, é
instrumental para o processo coletivo e continuado de elaborar etnografias.
Textos etnográficos podem vestir determinada moda literária ou remeter a “clássicos”, e
de alguma maneira sempre revelam opção estética e postura política, mais ou menos
articuladas. Talvez a mais abrangente das tendências recentes seja aquela em que o
autor ou autora analisa as próprias condições de produção de seu texto, efetuando um
exercício de reflexividade. Essa mirada crítica sobre os modos de pensar e construir
discursos – em nosso caso, tipicamente a respeito de uma prática musical – pode
investigar tanto as condicionantes do tipo “fatores sociais” como as convenções
discursivas e literárias que estruturam a escrita. Assim, importa entender como
colonialismo, pós-colonialismo, hegemonia cultural e feminismo, por exemplo,
induzem determinadas inflexões no tratamento de determinada matéria; e importa
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 64
Variedades de descrição
Podemos dizer, grosso modo, que as descrições variam ao longo de um contínuo entre
uma firme intenção de objetividade e uma grande presença de subjetividade.
Como instrumento de sua proposta para “uma prática etnográfica mais poderosa para os
etnomusicólogos”, Deborah Wong (2007) aponta a “etnografia performativa”, em que
se pode notar a descrição objetiva misturando-se com comentários, comparações e
julgamentos da observadora. Trata-se de nome novo para uma prática literária que não
começou de agora, e que permeia os relatos de viajantes e cientistas do séc. XIX, por
exemplo. Do ponto de vista da leitura, talvez um dos atrativos nos primeiros contatos
com esses relatos e com etnografias em geral seja mesmo a presença de expressividade
e subjetividade nos textos. Em relação mais direta com nossa disciplina, um autor
comentado por seu estilo, entre muitas outras contribuições, é Mário de Andrade. Peço
licença para citar parte de uma resenha que preparei, durante curso com a profª
Elizabeth Travassos, comentando dois textos dele – “O Samba rural paulista” e “Música
de feitiçaria no Brasil”:
Quando Mário de Andrade escreve, uma das coisas que logo se vê é a mistura de
estilos literários. Ele quer ser científico, e percorre o caminho laboriosamente, em
dissertação carregada de citações e mostras de erudição em campos diversos como
História, Mitologia e Religião, até que em certa altura o texto faz uma curva
inesperada e de repente o leitor se encontra em plena narrativa personalizada,
romanceada, farta mesmo de lirismo, onde o autor se permite liberdades como a
ironia e as exclamações, parece até que dosando as proporções para que o discurso
não se torne entediante – e pela variação de caráter mantenha o público (e o próprio
autor?) interessado. (…)
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 65
E conclui:
Quanto mais explícitos somos em nossos esforços para evocar a experiência, mais
perto podemos chegar de comunicar aquela experiência e o que ela possa
significar. (KISLIUK, 1997, p. 38)
Para evocar a experiência, a autora recorre à escrita em versos, contando com a síntese e
a licença sintática que essa forma permite, a fim de apresentar situações em que a
intuição e as sensações têm papel importante durante a pesquisa em campo. Mas ela se
mantém atenta aos problemas de uma representação subjetivista e propõe um critério de
auto-limitação:
(...)
Leve tráfego.
Não muitas pessoas no café.
Sol pálido saindo por entre as nuvens. Faz frio.
As pessoas: de modo geral, sós, introspectivas. Às vezes em casais. Duas mães
jovens com suas filhas pequenas: meninas, de dois ou três anos; poucos turistas.
Capas de chuva compridas, um bocado de jaquetas e camisas do exército
(americano) (...) (BECKER, 1998, p. 78)
E continua, longamente. Com este exemplo, Becker sugere que uma tal representação
descritiva da realidade talvez não seja algo a descartar, uma espécie “ultrapassada”.
Podemos também evocar técnicas e conceitos como as sequências em tempo real na
cinematografia, ou a percepção subjetiva da duração, na filosofia de Bergson. Mesmo
reconhecendo que uma descrição “pura” não existe, que o olhar seleciona e que portanto
reflete um ponto de vista, Becker pondera que
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 66
interpretação é um problema real que todo aquele que descreve o mundo social tem
que resolver ou acomodar. (BECKER, 1998, p. 79)
Variedades de diálogo
A partir de uma análise feita por Gadamer sobre os escritos de Platão, Burbules aponta
que o diálogo, embora aparentando uma forma genérica, pode dispor orientações
diferentes, umas mais afeitas do que outras ao intercâmbio de idéias e à parceria efetiva
entre os sujeitos que dialogam.
Burbules exemplifica com as diversas situações configuradas nos diálogos socráticos.
Há situações em que Sócrates propõe debate: “pergunte e responda cada um de uma
vez, como Górgias e eu fizemos, e refute-me e seja refutado”; outras em que interroga o
interlocutor com o fim de obter mais informação sobre suas crenças; outras em que
conduz um questionamento com o propósito de levar o parceiro a uma posição auto-
contraditória, causando confusão e perplexidade como preparação para a exposição de
alguma nova idéia; outras ainda em que temos na verdade um monólogo disfarçado.
Ele aponta também a variedade de diálogo como conversa, que, sem visar um objetivo
particular, sem método ou programação, como simples bate-papo, pode resultar em
muito pouco; mas pode às vezes revelar alguma “gema brilhante de insight” ou então,
mesmo sem um ganho cognitivo perceptível, pode ajudar a
estabelecer uma base de conforto e confiança mútua entre parceiros para formas
mais difíceis e ameaçadoras de intercâmbio sem que percam a paciência com o
processo ou um com o outro. (BURBULES, 1990, p. 129)
O autor enumera ainda outras variantes do diálogo socrático, sendo que uma delas
parece se aproximar mais de objetivos etnográficos contemporâneos, e que ele chama de
diálogo para a compreensão. Entramos nesse tipo de diálogo não para desafiar ou
convencer, mas para aprender sobre o outro.
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 67
Considerações finais
implicações éticas e políticas – desde o seu menor raio de alcance, ou seja, para quem
participa diretamente dela ou acompanha seus desdobramentos.
Considera-se também que a dimensão estética de um relato etnográfico – sua
organização formal, as muitas decisões de composição – não se exclui da dimensão
metodológica, balizando-se igualmente por preocupações com a validade de um
conhecimento construído e com a sua comunicação. Se reconhecemos que uma
produção etnográfica existe para ser lida, avaliada e debatida – e que a formação de
pesquisadores em etnomusicologia se dá em contato com praticantes de músicas, com
os pares de áreas acadêmicas e com interesses públicos – pode-se ver aí uma
continuidade entre a elaboração formal, a expressividade e as preocupações éticas e
políticas.
É portanto necessário examinarmos constantemente nossos modos de pensar a
etnomusicologia, e outra questão se coloca: quais instrumentos e abordagens são úteis a
esse exame? Aqui, considerando algumas tendências recentes em matéria de construção
etnográfica, destaquei a experimentação literária e o exercício da reflexividade. Sugeri
que o engajamento na experiência de leitura e escrita – talvez encarada um tanto
“burocraticamente” por muitos estudantes músicos – é uma das abordagens
fundamentais: mediante análise de estilo e uma compreensão das condições mais gerais
em que um texto se produz, é possível ver possibilidades e consequências distintas na
representação de uma realidade, e a partir daí escrever com um repertório de técnicas
discursivas, inclusive recombinando-as, sintetizando-as em estilo próprio.
São muitas as possibilidades da descrição, por exemplo. O sentido fotográfico de Perec,
a narrativa autoral e desabrida de Mário de Andrade, a estruturação em formas
alternativas, como tentou Kisliuk – essas e outras maneiras podem ser mobilizadas na
dosagem que se julgar necessária entre a objetividade e a interpretação, como diz
Becker.
Nas constantes trocas interdisciplinares que marcam nossa área, a contribuição de uma
análise filosófica como a de Gadamer sobre as variedades do diálogo – e sua
transposição para o contexto da educação, por Burbules – converge para a tendência
reflexiva em etnografia. Examinando os diálogos que ocorrem em sala de aula ou
durante o trabalho de campo, seria possível notar neles diferentes modos de se
constituir, e com isso reforçar a análise crítica e autocrítica tanto da atuação docente
como do trabalho de campo e da composição etnográfica. E a própria representação
escrita do que ocorre nos diálogos poderia ser objeto de maior atenção e efeito.
Tratamos aqui de recursos disponíveis desde o início das práticas de pesquisa. E estas
sugestões de exploração formal e de uma maior transparência da subjetividade em
experiências etnográficas não propõem facilitações. Pelo contrário, lidar com
parâmetros menos institucionalizados leva-nos a deliberar mais vezes sobre o que fazer,
e como fazer – e a buscar justificativas e critérios, como vimos na sugestão de Kisliuk.
Como em qualquer atividade intelectual, continuam a existir expectativas – dos pares,
do público interessado – quanto ao rigor do que é exposto como projeto, processo ou
resultado de pesquisa.
Tentando resumir o que está em discussão: uma conscientização dos recursos e dos
condicionamentos em diversas modalidades de linguagem verbal, bem como a
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 69
Referências bibliográficas
SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 70
Resenha de livro
MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 71
A parte 1, intitulada “Music in War” é composta por dois artigos que abordam o papel
da música na perpetuação e na resolução do conflito, a partir de conflitos em territórios
europeus pós-soviéticos, no Kosovo e no Azerbaijão. Jane Sugarman, em “Kosova Calls
for Peace: Song, Myth, and War in na Age of Global Media” analisa o papel que
músicos e produtores musicais albaneses tiveram na diáspora albanesa, durante os
conflitos militares no Kosovo. A autora conclui que “(…) music would seem to have far
more effective in promoting the war in Kosova than it has been in promoting postwar
peace” (Sugarman 2010: 40). No segundo artigo da primeira parte, “Musical Enactment
of Conflict and Compromise in Azerbaijan”, Inna Naroditskaya debruça-se sobre um
conflito étnico na região do Qaraba (região situada no centro do Azerbeijão) que
envolve o Azerbaijão, a Arménia e a antiga União Soviética, a partir da análise de um
evento musical como um interpretação do conflito. Tal como Naroditskaya afirma, o
“Mugham” representa nas três obras discutidas e analisadas neste artigo, a síntese da
afirmação social Azeri e a dicotomia entre passado e presente, o global e o local que
emergiram a partir do conflito de Qaraba e do consequente reconhecimento do
Azerbaijão, “(…) essential to a nation’s identity” (Naroditskaya 2012: 63).
“Music across Boundaries” é o título da segunda parte deste livro na qual Keith Howard
e David Cooper refletem sobre o poder da música para unir e para afastar territórios
divididos em dois contextos pós-coloniais distintos. O primeiro refere-se à Coreia do
Norte e Coreia do Sul. Em “Music across DMZ”, Howard questiona de que forma a
música pode desempenhar um papel na reunificação pacífica na península da Coreia.
Com uma contextualização inicial sobre a história da Coreia e da sua divisão em dois
estados, em 1945, o artigo é desenvolvido a partir da análise de dois eventos
performativos. O uso da sigla DMZ1 no título deste artigo como símbolo de uma
barreira teoricamente intransponível, acaba por ser desconstruído através da música que,
segundo o autor, assume um papel de esperança e de um eventual acordo,
aparentemente impossível, entre os dois estados. David Cooper escreve o segundo
artigo desta secção, “Fife and Fiddle: Protestants and Traditional Music in Northern
Ireland”, no qual aborda a música nas comunidades divididas na Irlanda do Norte e
mostra como a música incita o conflito entre fações rivais. Com uma visão pouco
confiante sobre o poder da música na promoção da paz, o autor apresenta uma pesquisa
comparativa na qual analisa os repertórios de dois grupos de músicos, um grupo de
músicos católicos e um grupo de músicos protestantes, que tal como Cooper afirma
“(…) seem to have largely shared a common repertoire that incorporated material
ostensibly from Irish and Scottish sources” (Cooper 2012: 103).
Anthony Seeger e Adelaida Reyes são os pesquisadores que contribuem para a terceira
parte do “Music and Conflict”, denominada “Music after Displacement”, na qual
investigam formas diferenciadas de usar a música em conflito em comunidades
deslocadas. Seeger convida-nos a partilhar aspetos da sua pesquisa com os Índios Suyá,
ao analisar a função da música na resolução de conflitos sobre a posse territorial, na
região do Mato Grosso - Brasil. Com o olhar colocado na interseção do universo
musical nas relações entre os Suyá e a sociedade brasileira, o investigador mostra como
toda esta constelação de elementos é importante para equilibrar tensões étnicas e para
promover o diálogo intercultural no que diz respeito às questões de desapropriação e
migração forçada. Em “Assimetrical Relations: Conflict and Music as Human
1
Zona Desmilitarizada. Na coreia esta faixa de segurança tem aproximadamente quatro
quilômetros de largura e duzentos e cinquenta quilômetros de comprimento.
MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 72
MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 73
MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 74
Resenha de livro
TUGNY, Rosângela Pereira et al. Yãmĩyxop Xũnĩm yõg Kutex xi ãgtux xi hemex yõg
Kutex/Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex. Rio de Janeiro: Azougue,
2009a. (Acompanham 2 DVDs)
TUGNY, Rosângela Pereira et al. Mõgmõka yõg Kutex xi ãgtux/ Cantos e Histórias do
gavião-espírito. Rio de Janeiro: Azougue, 2009b. (Acompanha 1 DVD)
Izomar Lacerda
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 75
O conjunto dos dois livros e três DVDs de áudio-imagens resenhados aqui é fruto de um
longo projeto de pesquisa coordenado por Rosângela Pereira de Tugny 1, dentro de uma
perspectiva de produção de conhecimento compartilhado, realizado por músicos,
narradores, escritores e ilustradores maxakali (nome genérico dos autodenominados
tikmũ’ũn2) de duas terras indígenas, Terra Indígena (T.I.) do Pradinho e T. I. de Água
Boa, ambas situadas no nordeste de Minas Gerais. Os trabalhos envolveram o registro,
transcrição, tradução e publicação de um expressivo corpus de cantos ritualísticos,
reunindo: 269 cantos, gravados em áudio in loco e traduzidos em Maxakali e em
português; um extenso número de pictografias, exegeses e narrativas míticas, elaborados
pelos próprios indígenas; além de textos de autoria de Tugny sobre o conjunto do
material.
A importância deste trabalho se dá na medida em que consegue reunir e apresentar um
número expressivo de material do corpus mito-poético-pictórico-musical de rituais
Tikmũ’ũn e se debruçar de forma exaustiva sobre esta parte significativa de um
complexo sociocosmológico rico e desconhecido do público geral. As possibilidades de
trabalhos futuros que se abrem a partir desse empreendimento são riquíssimas devido ao
caráter inovador, tanto temático como analítico e metodológico. Ao se propor levar a
sério um trabalho de “tradução”, dentro de uma perspectiva colaborativa e
compartilhada entre pesquisador e indígenas3, isto implica em repensar questões
sensíveis e importantes de ordem teórica, epistemológica, política e ética para o trabalho
de pesquisa.
Os livros são divididos em: apresentação; breve narrativa sobre a história dos espíritos
xũnĩm/morcego-espírito (Livro 1) e mõgmõka/gavião-espírito (Livro 2); primeiro
caderno de imagens; traduções dos cantos em maxakali e em português; segundo
caderno de imagens; exegese dos cantos; notas e histórias sobre os termos não-
traduzidos; bestiário; breve texto sobre a ortografia da língua maxakali; notas e
bibliografias; índice das imagens, dos cantos e dos DVDs.
1
Doutora em Música e Musicologia pela Université François Rabelais (1996). Realizou pós-
doutorado no Programa de Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (2007).
Atualmente é professora do Departamento de Teoria Geral da Música da UFMG e
pesquisadora do CNPq. Coordenou projetos no Acervo Curt Lange da UFMG e criou o
Laboratório de Etnomusicologia da UFMG.
2
Os Tikmũ’ũn são povos indígenas falantes da língua Maxakali, que pertence ao tronco
linguístico Macro-Gê. São em torno de 1500 indivíduos que se dividem em quatro terras
indígenas localizadas ao nordeste de Minas Gerais: T.I. do Pradinho; T.I. de Água Boa; T.I.
Aldeia Verde e T.I. Cachoeirinha.
3
Trabalhos com este caráter parecem ser uma tendência positiva nos rumos editoriais
brasileiros, haja vista a publicação recente de livros como: CESARINO, Pedro de Niemeyer.
ONISKA: Poética do Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2011,
423pp; MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do “Mbaraka”: música, dança e
xamanismo Guarani. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 304 p. (Inclui
um CD); e MENEZES BASTOS, Rafael J. de. A Festa da Jaguatirica: Uma Partitura
Crítico-Interpretativa. (no prelo).
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 76
4
Vale destacar este aspecto especificamente rico de continuidade e transformação
intersemiótico dos rituais.
5
O ensaio de apresentação de autoria de Tugny tem filiação teórica clara ao “perspectivismo
ameríndio” na concepção de Eduardo Viveiros de Castro, onde são caras as noções de
transformação, tradução e equívoco. EVC parafraseia Walter Benjamim ao afirmar que
traduzir é sempre um ato de traição. Neste sentido, a tradução é deformadora e subversiva do
dispositivo conceitual, tanto original quando do tradutor. “O perspectivismo ameríndio é
uma doutrina do equívoco, é dizer, da alteridade referencial entre conceitos homônimos; o
equívoco aparece ali como o modo de comunicação por excelência entre diferentes posições
perspectivas” (Viveiros de Castro, Eduardo B. Métaphysiques Cannibales: Lignes
d’anthropologie post-structurale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009: 54)
(tradução minha).
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 77
7
Vale ressaltar que os yãmĩyxop não são entidades singulares, mas agrupamentos. Os xũnĩn,
portanto, são como bandos – múltiplos corpos e qualidades -, mas quando se fazem presentes
na aldeia, vêm como koxux (imagens) e não como corpos.
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 78
8
As gravações do espírito-morcego foram realizadas em dois momentos, primeiramente em
outubro de 2003, captadas durante o dia, na Aldeia Vila Nova da T.I. do Pradinho, e depois
em março de 2004, captadas à noite, na Aldeia Bom Jesus da T.I. do Pradinho.
9
Esta concomitância sonora de cantos xũnĩm e do hemex podem ser ouvidos a partir das duas
últimas faixas do DVD1 (2009a). No fim do canto 93, mãmxeka xop (traduzido por “peixes
grandes” na tradução da letra na página 243, e como “piabinha” no índice final do DVD, ao
que parece ser um erro de digitação), ouve-se a introdução dos assobios. Mas é no final do
canto 94, mãnkoxox kutok (“filhotes de traíra”) que o som grave do hemex se faz presente,
concomitantemente ao xũnĩm, juntamente com o aumento gradativo dos assobios,
onomatopeias, e sonoridades mais agudas das yãmĩyhex, sem dizer da interessante
participação de um cão latindo com vigor. Na sequência dos cantos os aspectos do hemex
vão se estabelecendo como centrais.
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 79
O canto do hemex vem acompanhado das sonoridades dos demais yãmĩyxop, yãmĩy10 e
yamĩyhex11, estas últimas sempre perseguidas pelos ĩmhup. Esta congregação de cantos-
espíritos repercute acusticamente numa profusão intensa de sonoridades distintas. Ouve-
se o som em tom grave do hemex, contrastado pelas vocalizações agudas dos múltiplos
yãmĩyhex, conjuntamente aos sons de gritos, injúrias e clamores dos ĩmhup - que estão
sempre buscando relações com as yãmĩyhex -, além de flautas, assobios e onomatopeias.
Como bem sinaliza Tugny, diferenciando os cantos xũnĩm do hemex, o primeiro aponta
para os deslocamentos do morcego-voador, e o segundo para a congregação dos povos-
espíritos na aldeia. Para a promoção deste encontro profícuo, o papel do mĩmãnãm –
“pau de religião” – seria o de, ao ser afetado pelas sonoridades, fazer chegá-las até os
povos alhures, numa espécie de “auto-falante cósmico”. Mas este procedimento de
afetação pelo som-imagem é o mesmo modo pelo qual os corpos dos tikmũ’ũn se
tornam pura vibração, abrindo-se às multiplicidades tornando-se corpos-afetos.
10
Possuem grupos, mas não possuem agências animais ou corpos multiplicados, como os
yãmĩyxop. Vêm para as aldeias como “imagens-vozes” (koxuk).
11
São de certa forma o feminino de yãmĩy, mas têm especificidades outras, sendo fundamentais
nos processos de cura.
12
“Espiritado” se refere a qualidade de assumir múltiplas perspectivas, abrir-se a novas
possibilidades de acontecimentos. Esta capacidade pode ser nata ou adquirida pelos cantos,
pela ingestão de carne de um parente morto ou a inalação da fumaça, mas também no estado
de paptox, de “ver mais longe”.
13
No decorrer do ritual são recorrentes momentos de doação de alimentos aos espíritos. Os
cantos que dão início ao ritual dentro do kuxex não foram gravados. As gravações realizadas
e editadas no livro foram realizadas em outubro de 2003 na Aldeia do Gilmar, na T.I. de
Água Boa.
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 80
cantos se intensifica em euforia, sendo marcantes os gritos e assobios dos gaviões 14. Na
audição das gravações são identificáveis momentos limiares da chegada dos espíritos-
imagens à aldeia, como no canto mõgmõka pet yũpi (“mõgmõka vê sua casa”), onde se
ouvem a participação das crianças em estado eufóricos. Mas a euforia segue até o canto
olilião, onde xokanitnãg (um yãmĩyhex) lembra ao fim do canto, “vamos embora”. A
sequência ainda conta com todo o processo de doação de comida para os espíritos-
gavião e a execução de longos “cantos-listas” antes da efetivação da partida dos
espíritos, mas o que é significativo é a presença da nostalgia e da saudade 15
interrompendo o fluxo da euforia. O conjunto de cantos chamados “cantos-listas” são
procedimentos mnemônicos realizados pelos yãmĩyxop como formas de revitalização do
espírito e das vozes, mas, sobretudo, como técnica de desenvolvimento da memória.
Nestes são listadas inúmeras espécies de arvores, animais, raízes, corpos, espíritos,
procedimento que sugere uma prática que revitaliza a sociocosmologia tikmũ’ũn. Mas a
ênfase geral do corpus musical está mobilizada para o vínculo de parentesco e a
presentificação do sentimento da saudade. É um refazer do caminho de volta do
ancestral e de sua transformação em gavião e posterior partida em novos voos.
Na experimentação de escuta do corpus de cantos do mõgmõka e acompanhamento das
traduções e pictografias dos cantos-imagens, tem-se a noção da fecundidade das
operações de repetições e diferenciações que o sistema articula. A estrutura que se
apresenta aponta sempre para graus de variações e transformações, repetições que
implicam diferenciações, movimentos de tempo-espaço. Esta dinâmica se dá na medida
da proliferação de sujeitos enunciadores, que têm duração de deslocamentos tempo-
espaciais diferenciados. O mesmo dito, será outro tempo. Repetição e diferença. Tudo
se passa como se o sistema buscasse uma estética musical de evitação da
uniformidade16.
O anúncio da saudade através das vozes dos pássaros acionados pelo corpus dos cantos,
proporciona a expressão reforçada e deslocada do lamento nostálgico a outras vozes
enunciadoras. Assim como se faz com os laços de parentesco, dissolvidos e reativados
em outros lugares, a saudade aciona processos de diferenciação, tornando os integrantes
do sócius, distantes e diferentes, ainda que com um passado comum de fundo. É neste
sentido que trabalha os cantos do mõgmõka, capturando “os afetos não-humanos, a
potencialidade dos seus corpos, o que permite entre as diferentes corporalidades sua
continuidade” (Tugny, 2009b: 36). A gravação do último canto do mõgmõka, o ãtãm
(“João-porca”), traduz de forma singular o sentimento estético da saudade, numa longa
despedida permeada de lamento. Aqui se ouve a distância sendo articulada numa
dinâmica da espacialidade onde o canto vai se afastando, até sumir ao fim do mõgmõka.
14
Gavião resume uma gama de outros pássaros que estão juntos, como uma multiplicidade
constitutiva.
15
Há aqui certa aproximação da ideia de nostalgia (oniska) na poética xamanística marubo,
conforme apresentada por Cesarino (2011).
16
Menezes Bastos (no prelo) apresenta de forma consistente e precursora, as relações de
homologias nos planos sequenciais do ritual do Yawari entre os Kamayurá, como
explicitações por excelência de processos de repetições e diferenças.
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 81
A título de conclusão, remarco o valor inegável dos livros-DVDs, que repousam sua
densidade de conteúdo, significativamente, na própria matéria etnográfica, numa opção
de narrativa que põe no plano discursivo nativo o principal foco reflexivo. A exposição
e disposição dos cantos-imagens e narrativas, em conjunto com a tradução e as
gravações, trazem em si potência conceitual, que não pode ser resumida (e aqui
confesso a dificuldade de se fazer esta resenha), pois sua eficácia argumentativa
depende dos atos de ler-ouvir-olhar, que por si só, são uma experiência com o
pensamento e conhecimento tikmũ’ũn. A fenda aberta neste emaranhado conceitual que
são os mundos ameríndios, através de um esforço de abordagem virtuosa dos aspectos
da mito-poética-pictórica-musical xamânica, possibilita um amplo e fecundo caminho
para novos estudos e aprofundamentos, envolvendo, por exemplo, a questão da dança
neste complexo multissemiótico. O encontro entre os yãmĩyxop e demais espíritos e
seres com os tikmũ’ũn (maxakali) não são apenas estabelecimentos de comunicação
entre âmbitos diferentes (humanos/não-humanos) mas eventos de afetação mútua que
aponta para a formação de coletivos-devir, constituição de alianças e parentesco.
Deixar-se afetar pelo complexo dos cantos-espíritos tikmũ’ũn é um modo de
experimentar intensivamente a alteridade.
Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.