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The document discusses the relationship between music and culture, highlighting how music influences and reflects cultural identity. It emphasizes the role of music in social interactions and its significance in various cultural practices. The text also explores the impact of music on emotional expression and community bonding.

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Música e Cultura

 

   
 

         





       


   

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SUMMARY
Vol. 6, 2011

Letter from the Editors (in Portuguese) 8

Letter from the Editors (in English) 9

ARTICLES

A roundtable at the first meeting of the Brazilian Association for 10


Ethnomusicology in Belém
Manuel Veiga

Ethnomusicology and public debate on music in Brazil: polyphony or 17


cacophony?
Samuel Araújo

Ways of thinking, ways of doing research in brincadeira dos cocos, Paraíba 28


Eurides de Souza Santos

Aspects of music research in Pará 39


Liliam Barros

Fieldwork in participatory action-research: reflections on the ongoing 47


experience with the Comunidade Negra dos Arturos and the Associação
Cultural Arautos do Gueto, in Minas Gerais
Glaura Lucas

Notes on description, dialogue and ethnography 59


José Alberto Salgado e Silva

BOOK REVIEW

O’CONNELL, John Morgan e CASTELO-BRANCO, Salwa El-Shawan. Music 70


and Conflict. Urbana, Chicago e Springfield: University of Illinois Press, 2010.

by Ana Flávia Miguel.


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Música e Cultura, vol. 6 10

Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em


Belém
Manuel Veiga

Resumo
Uma abordagem e memória de bom humor sobre assuntos sérios, anterior à consciência de
genocídio recrudescido sobre populações indígenas brasileiras. Único etnomusicólogo numa
mesa-redonda composta de antropólogos, dois dos quais antropólogos de música, todos com
larga vivência com populações indígenas, o autor prefere rever a Etnomusicologia do período de
sua formação, na UCLA, no final dos anos Setenta, não pelo que fez ou tem feito, mas para
encetar discussões na abertura de um importante evento.
Palavras-chave: Etnomusicologia brasileira; Etnomusicologia e Antropologia da Música;
Etnomusicologia na UCLA, 1976-1981; Transcrição; Bimusicalidade; World music; Índios
Brasileiros; Arqueologia musical; Etnomusicologia amazônica.

Abstract
This is an approach and memory in a good mood over serious issues, previous to the author’s
awareness of increased genocide upon Brazilian Indian populations. Single ethnomusicologist in
a round table composed of anthropologists, two of whom anthropologists of music, all with
extensive experience with indigenous peoples, he prefers to review the ethnomusicology of his
formative period at UCLA, at the end the seventies, not for what he did or has done, but to
further discussions in the opening of an important event.
Keywords: Brazilian Ethnomusicology; Ethnomusicology and Anthropology of Music;
Ethnomusicology at UCLA, 1976-1981; Transcription; Bimusicality; World music; Brazilian
Indians; Musical archeology; Amazonian Ethnomusicology

Há um momento em que o medo do improviso supera o perfeccionismo e limita a


procrastinação. Tem-se de parar de remoer perguntas e colocar respostas num papel.
Meu primeiro erro: não deve ser papel, mas teclado, monitor, CPU de algum tipo de
computador. Nem tem de ser teclado: Luciano Caroso, aqui presente, prefere escorregar
um dedo, da mão direita, sobre um retangulozinho caprichoso de notebook, sem “rato”
algum. Nem tem de ser PC, nem notebook, mas alguma coisa com dente azul,
“Bluetooth”, subsidiando “ai-qualquer-coisas” (Pod, Phone, Pad, Tunes) às vezes.
Dentes, numa mesa-redonda sobre a Etnomusicologia do índio no Pará? Segundo erro:
mais importantes do que as respostas são as questões. As mais imediatas: quem sou e
por que é que estou aqui?
Ao tempo em que agradeço aos Drs. Paulo Amaral, Sonia Chada Garcia e Liliam
Barros, para citar apenas os de Belém e da UFPA, devo esclarecer que o convite para
participar deste evento, particularmente desta mesa-redonda me criou dilemas. De
minha parte, tinha de aceita-lo de bom grado: além da tradicional generosidade dos

VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 11

paraenses, a agradecer, tenho obrigações com uma disciplina que ajudei a implantar na
universidade brasileira, e com o programa indispensável que ora se implementa no Pará.
De outro, adverti sobre minha inadequação e sugeri substitutos. Por formação, estou
mais para etnomusicólogo do que para antropólogo de música. Minha Antropologia
veio “na raça”, como se diz. Não é que não tenha sido incentivada na UCLA, mas seria
a de um autodidata, e sem o trabalho de campo que presencialmente a legitimasse. E
agora, além dos erros e inadequação, vou-me contradizendo, logo estarei dizendo que
não aceito uma separação entre Etnomusicologia e Antropologia da Música.
Claro que não é para discutir minha vida ou opiniões que estou aqui. No entanto,
suponho que é pela memória e experiência que possa contribuir. Não passo de um elo
numa cadeia. Produto da UCLA, onde já não conheci Mantle Hood, nem Charles
Seeger, vivi entretanto à sombra deles.
Vivi também entre melógrafos, num laboratório de transcrição regido por Nazir
Jairazbhoy (1927-2009). Charles Seeger havia-se inspirado na Linguística e em seus
equipamentos de laboratório para gerar um melógrafo: gravadores, filtros, medidores de
características sonoras. Passando por um programa de computador, sons viravam
gráficos sobre papel milimetrado, em si uma notação de outra ordem. Logo obsoletos,
ou quebrados, não sei, permitiriam que um segundo de som correspondesse a um metro
de papel, com mil detalhes, contanto que esses sons não fossem simultâneos. Isso, creio,
ainda viria depois.
Viver entre melógrafos, não é bem verdade, portanto. O que conheci estava sendo
aprimorado às instâncias de Nazir, sendo Phil Harland, um dos veteranos de Etno de
Mantle Hood, ora meu colega, o programador. Já tinha um PhD em Física, ou algo
parecido. Imensamente competente, como Ann Briegleb [Schuursma], esta no Arquivo
de Etnomusicologia, buscavam ambos um doutorado.
Imerso na música do Norte da Índia e suas afins, sempre um guru, seria difícil para
Nazir se interessar em gravações de folclore baiano que Hildegardes Vianna
generosamente cantava e gravava para mim. Já idosa, ela “desafinava”, em termos.
Habituado aos microtons e ciclos complexos de até 16 pulsos, o que Nazir ganhava em
transcrições descritivas, minuciosas e “exatas” das musiquinhas que lhe levava,
perdíamos na apreensão de um sistema musical que, como nativo, seu estudante já
compartilhava. Ele próprio constatava disparidades grandes no confronto entre a teoria
da música indiana e a sua prática que não correspondiam.
Há muito o que discutir e tem sido discutido a respeito da objetividade e subjetividade
da própria audição; da apreensão de sons portadores de significado numa multiplicidade
e detalhes de natureza acústica, sem a ajuda êmica do nativo.
Os estudiosos de altas culturas musicais (não gosto do termo) podem se ocupar apenas
com música e até caberia uma musicologia histórica: notações, teorias explícitas, entre
esses fatores. Para todos (eles e os estudiosos da música ocidental acadêmica), o
enfoque principal de uma ciência musical é o homem, através de sua música. Na
Etnomusicologia isto não precisa ser discutido.
Não é inútil recapitularmos rapidamente a base do mal-estar entre Merriam e Mantle
Hood, para que nos descartemos dela. Basicamente foi um confronto relativo entre
abordagens. Duas trilhas separadas, essencialmente, eram antepostas para uma

VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 12

etnografia musical: uma privilegiando sons; outra, comportamentos. Ora, mais do que
uma opção, isso seria matéria de dosagem e de uma metodologia mais adequada a esta
ou àquela cultura musical. Não me parecem opções para uma Etnomusicologia
Brasileira.
Anthony Seeger (1977) nos ajuda muito ao distinguir claramente quatro questões: duas
antropológicas, duas musicológicas. Resumidamente: o que eles estão fazendo, por que
fazem o que fazem, de um lado; que sistema musical é este, como este sistema se
compara com o meu, de outro. Tenho-o plagiado desavergonhadamente, até mesmo na
definição de objetivos do doutorado em música da UFBA. Não creio que nenhum de
nós queiramos uma Antropologia de Música sem música, nem uma Musicologia sem
homem. Tony não colocou um “ou” entre seus dois pares de questões;
consequentemente, devemos por um “e” entre elas, salvo melhor juízo, sem traí-lo.
Tive como um impacto maior na Etnomusicologia que aprendia, já maduro e bloqueado,
as lições de J. H. Kwabena Nketia (n. 1921), mestre sem igual, dos maiores que tive.
Kobla Ladzekpo era o lado diretamente musical de meus estudos de música africana.
Pensava seriamente que esse seria meu campo de trabalho, o da música de derivação
africana na Bahia. Aproveitei tudo o que pude numa sabática que Merriam passou na
UCLA, já devo ter dito. A divergência com Mantle Hood, já ausente, ainda dividia os
campos. Merriam esteve no Departamento de Antropologia. No Programa de
Etnomusicologia, que me lembre, esteve uma vez, como conferencista. Abriu-nos as
portas para o trabalho de John Blacking ao qual indicava toda vez que lhe pedimos
ajuda. Sua “open house” quase diária também nos abria portas, na casa em que morou,
do outro lado da rua. As conversas entre ele e Nketia compensavam pelas que não se
desenvolviam em nosso próprio Programa.
Ora, se foi Robert M. Stevenson quem me orientou com disciplina férrea, régua e
compasso, gigantesca experiência de musicólogo voltado para a música ibérica e ibero-
americana, foi também ele quem me encaminhou para a Etnomusicologia e, nesta, me
fez um brasilianista. Não era muito do caráter colonialista que a Antropologia e a
Etnomusicologia tiveram, os nativos estudarem sua própria cultura. Presenciei, num
debate pós-conferência de Blacking, num encontro da SEM em Los Angeles, em torno
de 1983, Akin Euba (1935-2008), compositor, professor e musicólogo nigeriano,
irritado dizer: “Você não entendeu nada; está tudo errado...”. Regionalismos,
nacionalismos, internacionalismos são também calhas previsíveis nos estudos musicais.
A inclusão dos índios em seus próprios estudos é essencial.
Produto também da Juilliard, a Etnomusicologia tirou a arrogância que devo ter tido, e
me ensinou a humildade: o não-saber e a incerteza. Já havia deixado o racionalismo da
Engenharia para trás e torcido os artelhos dentro dos sapatos, ao contato das ciências
sociais, na própria Juilliard. Nunca me senti tão humilhado e aprendi tanto, quanto nos
conjuntos etnomusicológicos a que a UCLA nos obrigava, sem crédito e com conceito.
Há um equívoco, certamente, na questão da bi-musicalidade. Houve sem dúvida
exageros quando nos faziam tocar a música do outro em público, sem a competência
privativa dos nativos. Talvez isso fosse possível para uns poucos. Não era, entretanto,
um conservatório de música exótica, como se disse, mas um procedimento pedagógico
de antecipação, sob controle, do trabalho de campo a ser realizado fora.

VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 13

Também a salientar era o contato com as música do mundo a que éramos obrigados.
Isso também foi parte do pacote de Mantle Hood. Robert E. Brown (1927-2005) cunhou
o termo “World Music”. Foi o primeiro TA (teacher’s assistant) de Hood na UCLA, em
1954, quando enveredou pela Etnomsicologia, recebendo seu doutorado eventualmente
com uma dissertação sobre música ìndiana. Cunhasse ou não o termo, já não se pode
buscar generalizações sem conhecimento de outras culturas musicais. Do ponto de vista
curricular, estipulamos, na UFBA, seminários em culturas musicais contrastantes e
culturas musicais afinas.
Voltando à razão de estar aqui, além das afetivas, não é uma delas justificar Mantle
Hood, ou sua corrente. Transijo pela informação e por medo. Numa mesa-redonda em
que atuarão expoentes da reflexão e do trabalho com e entre os indígenas, Rafael
Bastos, Anthony Seeger e Glenn Shepard Jr., antropólogos ilustres os três, servirei
quando muito para contraste, homem infelizmente de gabinete que sou.
Trouxe aqui 26 exemplares de minha dissertação de doutorado para distribuir. É de
1961, já tem cinquenta anos. Nunca permiti que fosse publicada. Ela é uma introdução à
Etnomusicologia Brasileira que não foi escrita para brasileiros, o que dificulta a
tradução, até já tentada. Devo a publicação em fac-símile a Pablo Sotuyo Blanco. De
certa forma é uma arqueologia da música no Brasil, recuando milênios, buscando
instrumentos achados em sambaquis, assim como em tesos funerários de Marajó e entre
as cerâmicas de Santarém. Chega à primeira Exposição de Anthropologia de 1882, no
Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que foi um retrato dos estudos sobre o índio, ao fim
do Segundo Reinado, sob uma ótica de inferioridade racial deplorável. E. Deleau
preferiu rimar com Gobineau, cujo Essai sur l'inégalité des races humaines teve edição
completa em 1855. Teorias de eugenia ainda viriam e culminariam na hecatombe
nazista e genocídio de judeus.
Ao capítulo da Organologia indígena, seguem-se os dos cronistas, missionários,
naturalistas, visitantes, a partir da Carta de Caminha, o primeiro documento escrito da
Etnomusicologia Brasileira. Os sincretismos logo estão presentes em alguns desses
relatos. Confesso que só agora, por ter de vir aqui, estou começando a relê-la e assim
tomar conhecimento de homenagens que não agradeci e não mereci, na publicação de
Pablo.
Estudei música indígena, que me parece ser o vetor principal, não único, evidentemente,
para o programa de Etnomusicologia na UFPA que já nasce consolidado. Não fiz,
entretanto, o indispensável trabalho de campo que me credenciaria para estar aqui
presente. Além dos problemas sem resposta da Etnomusicologia – os 31 magistralmente
levantados por Bruno Nettl—estarão alguns de natureza política, particularmente
árduos.
Não posso sequer testemunhar sobre o relativo descaso em que os estudos sobre as
culturas musicais indígenas podem ainda estar. Muito menos ainda fazer uma
apreciação justa de sua música. Não somente a imagem do índio, como minoria, tem
passado historicamente por altos e baixos (qual não passa?), mas as próprias disciplinas
que o estudam mudam de cor. Os estudos das culturas afro-brasileiras, que vinham
sendo despertados entre brasileiros desde Nina Rodrigues, no início do século passado,
germinaram nos anos 30 do referido século (Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Edison
Carneiro, entre outros), inclusive pela realização de congressos. Substituíram, por assim

VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 14

dizer, o foco de naturalistas e antropólogos sobre as culturas indígenas que parece ter
predominado antes da Segunda Guerra Mundial.
É de se perguntar quanto ainda existe, ou o que resta do extraordinário laboratório que
Merriam concebeu em sua dissertação de doutorado, sob a orientação de Herskovitz
(Boas ao longe). Viria a repudiá-la. Em 1951 ainda era um estudo comparativo que
chegava a uma conclusão de parentesco (origem comum) pela análise Kolinskiana de
amostras do Brasil, do Caribe e da África Ocidental, à base de transcrições de caráter
generalista de gravações feitas na Bahia por Herskovitz. Para ele, o encontro do europeu
com o índio, nestas praias, constituía um laboratório irreplicável em que o homem se
encontrava com ele próprio depois de mais de dez mil anos de separação.
No mínimo, tem sido um encontro assimétrico. É bem possível que, no momento em
que colocou suas mãos num machado de ferro, o índio tenha dado um primeiro passo
para graves alterações de sua cultura, não necessariamente extinção, como tem ocorrido.
Evidentemente, culturas não podem ir para o congelador: todas mudam.
O compromisso do programa de Etnomusicologia Amazônica, que aqui se desenvolve,
terá de enfrentar problemas éticos muito sérios, inclusive políticos e, quiçá, de
segurança, trabalhar para manter a identidade das culturas, tanto quanto possível, e
ainda assim conduzir o índio à sua cidadania plena como brasileiros. Até na Bahia, o
etnomusicólogo necessita funcionar como a Santíssima Trindade: um só deus, com três
cabeças: uma para a cultura do outro (neutra); outra para sua cultura (valorativa) e ainda
a de guardião de heranças do passado.
O que tem o computador a ver com o índio?
Estou voltando às brincadeiras do início. Dentes! Nas operações, que vertiginosamente
mudam a cada dia, cada vez mais depressa, os idosos, como eu, perdem o fôlego. Se não
são “velhos” (não confundam), tentam acompanha-las, se é que podem. Constatarão
facilmente que – ao longo da mudança tecnológica tornada um fim em si mesma, rumo
ao nada ou ao vazio – esse dedo da mão de um virtuose da internet, mestre dos recursos
eletrônicos para a pesquisa, traz num flash milhares de informações, até mesmo acesso a
obras que nunca pudemos ler, neste nosso Brasil de bibliotecas sistematicamente
desamparadas.
Esplendor e sufoco, ao mesmo tempo: como filtrar os excessos? Ainda perguntas sem
respostas. Poderiam os métodos analíticos em desenvolvimento para os estudos do
ciberespaço serem úteis para a Etnomusicologia do índio? Em reverso, poderiam os
nossos indígenas nos ensinar ainda uma correlação entre natureza e homem (ecologia)
em que a tecnologia seja apenas mediadora? Pareço estar repetindo a velha história do
ovo e da galinha.
Filosofemos um pouco: compartilhar informação de toda ordem é a palavra do dia. Mas
essa expressão é também inadequada já que éons, eras, séculos, anos, dias, horas,
segundos, nanossegundos fazem parte de uma escala do tempo tendente para um zero,
este sem dimensão, inexistente. Caixinhas dentro de caixinhas, num eixo de unidades,
do infinito macro (aparentemente ilimitado), ao infinito micro (surpreendentemente
limitado, ao que a Física das partículas subatômicas indica).

VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Manuel-Veiga.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 15

Nossas tentativas de apreensão de significados continuam a partir de uma motivação


sobre um determinado recorte no tempo e no espaço que nos pareça interessante
(dimensão, substância, impacto), à qual acrescentamos uma pitada de informação
(conhecimento anterior) que nos permita observar e assim compreendê-lo um pouco
melhor (conhecimento novo). Se isso ocorre, a motivação se renova e o ciclo recomeça.
A percepção é assim um passo de parafuso que percorremos vida afora e que se
aprofunda; não é a mera audição (a despeito dos iPods) que nosso tempo de vida e as
condições ao nosso redor sempre pioram.
Como se mede o tempo? Parece-me que por comparação com os diversos ciclos dos
astros do universo, translações, rotações, fenômenos físicos de oscilações periódicas e
recorrência; com os ciclos da vida, inclusive a degradação de carbono radioativo em
organismos, cara a arqueólogos e paleontólogos, entre outras tentativas de datação. Há
também um tempo psicológico que se qualifica, mas não se mede.
Música é uma medida do tempo, dos tempos talvez deva se dizer. Tem a capacidade de
deixar de ser música, seja o que música seja, e se tornar “ruído”, seja também o que
seja, no momento em que nos é imposta. É muito mais que um fenômeno acústico e
fisiológico, para ser psicológico, social, cultural e o que mais seja. Parece uma
linguagem, o que provavelmente é, com um significado em si mesma, embora signo não
consumado e uma espécie de rede de arrastão, parcial ou total, do seu contexto.
Estágios sucessivos de coleta e de análise são necessários, embora insuficientes. Entram
aqui questões de positivismo e de holismo, de objetividade e de subjetivismo, além das
eternas questões do etnocentrismo, um mecanismo de defesa das culturas que precisa
ser controlado pelo observador. Precisamos trabalhar com fatos sem os retalharmos.
Algo muito importante sempre nos escapa e o todo é mais do que a soma das partes.
A análise musical, como é definida, embora indispensável, se contém nos limites de
uma Física da música. Outras análises são indispensáveis para o etnomusicólogo: a dos
comportamentos, a dos conceitos e suas interligações. Passaríamos, à proporção que
incluímos unidades cada vez mais abrangentes, no já referido eixo, de estágios de mera
descrição, para o de interpretação (interpretação das interpretações de Geertz?) e,
suprema e inalcançável esperança, o da explicação.
Devo a Peter Crossley-Holland, um dos mestres de maior cultura musical que tive, no
primeiro de seus Seminários de Etnomusicologia dos quais participei, que música se
relaciona com todas as disciplinas do saber humano. Daí a necessidade de modelos para
estuda-la em sua complexidade. Nossos detratores, cartolas de algum tipo, gostam de
nos pensar confusos, o que sem dúvida podemos ser, mas na realidade invertem os
termos: confundem eles complexidade com simplismo, além de boa dose de preguiça. O
discurso dos musicólogos é necessariamente uma polifonia de mil vozes. Como trazê-lo
a termo, sem sermos simplistas?
O tempo zerado da Etnomusicologia, revelador de estruturas, estas consequências de
processos (variação no tempo, história, por exemplo) não existe, é uma mera abstração
matemática, como o ponto, na geometria. Seria algo, no tempo, uma referência que
deixa de ser no átimo em que se torna. Assim sendo, só há passado e futuro. Qualquer
recorte que façamos, na escala do tempo, ou do espaço, é uma ruptura arbitrária de um
contínuo em que permanência e mudança inseparavelmente convivem.

VEIGA, Manuel. Uma Mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura, vol. 6, p. 8-14, 2011. Disponível em
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Este zero semovente é uma divisória peculiar: de um lado teríamos jovens a


envelhecerem; de outro os idosos. Para os primeiros, tudo é futuro, embora já tenham
contribuições de mérito, como Sônia Chada Garcia e Liliam Barros, para citar duas
paraenses que me passaram pelas mãos de professor. Para os últimos, idosos,
caminhando de costas para um tempo fechado, há o passado.
Há um meio-de-campo como este aqui, de ilustres antropólogos desta mesa, entre
outros. Gostaria de lembrar Gerard Béhague, a quem devemos tanto e que se foi tão
cedo: foi uma influência para mim e um construtor da pós-graduação no Brasil e na
Bahia. De minha parte, na extrema dos idosos aqui presentes, desmentindo a velhice
inevitável, permanece uma preocupação enorme com o futuro de todos, em geral, e da
disciplina, em particular que ajudei a implantar na universidade brasileira (1981). Se
puder, ainda quero revê-la na perspectiva desses vinte anos em que a pesquisa e a pós-
graduação em música se consolidaram.
Essa consolidação partiu da periferia (Paraíba, Bahia, Rio Grande do Sul). Evitávamos
as distorções da indústria cultural nos maiores centros, para alcança-los mais tarde. Ora
parece imperativo avaliar a Etnomusicologia Brasileira não através de uma análise de
seus cursos, nem tanto pelos produtos tampouco, mas pela própria disciplina, buscando
os consensos.
Não seria sem interesse fincar algumas estacas nesse processo: revisitar a postura de
Guido Adler, tratando música como as ciências naturais, em 1885. Rever o que Charles
Seeger indica sobre a América Latina em 1946. Revisitar Guilherme de Melo não pelas
informações que tirei dele, mas como musicólogo que não levei a sério, como devia,
mesmo que provinciano. Sua concepção da música indígena parece a de um receptáculo
oculto de “influências” que, evolucionista e positivistamente desembocaram na música
brasileira, na modinha de que tanto se orgulhou. Algo, em 1908, não muito diferente da
controvertida identidade nacional criada, à italiana, por Carlos Gomes; aquele mesmo
que preferiu Belém como abrigo, no fim da vida. Temos de pensar também com a
cabeça da moçada da tecnocultura.
Não cumpri o mandado que Robert M. Stevenson me confiou. Queria que criasse um
Instituto Latino-americano de Etnomusicologia. Já havia o que Isabel Aretz havia
transferido da Argentina para a Venezuela.
Enfim, a própria disciplina está em mudança. Que será a Etnomusicologia paraense e
amazônica?
Esta é a pergunta principal, que deixo aberta.

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Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil


Hoje: Polifonia ou Cacofonia?

Samuel Araújo

Resumo
Os muitos fóruns de discussão pública, no Brasil e em outras partes do mundo, que hoje tratam
direta ou indiretamente de música filtram fontes variadas e influentes entre si no bazar global de
práticas e ideias. Discursos artísticos, midiáticos, marqueteiros, acadêmicos e políticos dos mais
variados matizes se interferem em ritmo exponencial, ora se estranhando, ora se fundindo, e
dando margem a desde apreciações otimistas de sua diversidade às mais pessimistas projeções
do que seria seu caráter errante. Entre os augúrios de criativa polifonia e o espectro sombrio da
cacofonia, este ensaio se apoia tanto em referentes autobiográficos quanto acadêmicos,
procurando contribuir à discussão sobre a singularidade e impacto da etnomusicologia no
recente debate público sobre a música e seus fazeres no Brasil.
Palavras-chave: Etnomusicologia; Pesquisa-ação participativa; Políticas Públicas.

Abstract
The many public forums in Brazil and world over which currently deal either directly or
indirectly with music draw from varied and mutually influencing sources in the global bazaar of
practices and ideas. Artistic, mediated, market-aimed, academic and political discourses from a
wide spectrum of viewpoints intersect each other in exponential rhythms, either repelling or
melting with one another, opening expectations which range from optimistic appreciations of
this diversity to the worst pessimistic projections of its erring character. In between cheerful
hopes of creative polyphony and the somber specter of cacophony, this essay draws upon
autobiographical as well as academic referents attempting to address the singularity and impact
of ethnomusicology in recent debates on music and music-making in Brazil.
Keywords: Ethnomusicology; Participatory Action-Research; Public Policy

Introdução

Os muitos fóruns de discussão pública, no Brasil e em outras partes do mundo, que hoje
tratam direta ou indiretamente de música filtram fontes variadas e influentes entre si no
bazar global de práticas e ideias. Discursos artísticos, midiáticos, marqueteiros,
acadêmicos e políticos dos mais variados matizes se interferem em ritmo exponencial,
ora se estranhando, ora se fundindo, e dando margem a desde apreciações otimistas de
sua diversidade às mais pessimistas projeções do que seria seu caráter errante.
Entre os augúrios de criativa polifonia e o espectro sombrio da cacofonia, o que teria a
oferecer um campo de conhecimento como legado crítico, e não como mais um nicho
estéril de auto-reprodução, mas efetiva contribuição ao debate? Que vetores, se é que
ainda seria possível os localizar, singularizariam tal campo em meio à autocrítica

ARAÚJO, Samuel. Etnomusicologia e Debate Público sobre a Música no Brasil Hoje: Polifonia ou Cacofonia?. Música e Cultura, vol. 6, p. 15-2, 2011.
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Música e Cultura, vol. 6 18

demolidora dos marcos epistemológicos e disciplinares tradicionais? Que questões o


animariam?
Em caráter ensaístico, apoiado tanto em aspectos autobiográficos quanto em uma
apreciação de aspectos atuais do campo acadêmico e da esfera pública, procuro
contribuir à discussão sobre a singularidade e impacto da etnomusicologia no recente
debate público sobre a música no Brasil a partir de sua relativa consolidação
institucional nas últimas três décadas, ressaltando a interseção de temas como a relação
entre âmbitos da produção musical e cultural, as políticas públicas em diversas áreas e a
dinâmica dos conflitos societários em diversas escalas, retomando iniciativas anteriores
no âmbito da ABET (ver mesas-redondas e temáticas gerais ou de GTs dos encontros
nacionais e regionais).

Etnomusicologia como formação discursiva

Meu conhecimento inicial da existência de um campo de conhecimento denominado


“etnomusicologia” deu-se por volta de 1982. Seguindo informação de Carlos Galvão,
colega docente no curso de Licenciatura em Educação Artística-Habilitação Música da
Universidade Federal da Paraíba, cheguei a um livro de curioso título, The
ethnomusicologist, de Mantle Hood (1971), numa época em que o termo
“etnomusicologia” ainda soava um tanto novo, quiçá exótico ou pretensioso, no meio
musical brasileiro. Na época militando em partido político ainda clandestino, em que
pese o clima de crescente otimismo em relação à redemocratização do país, das
conversas iniciais com Galvão acerca da etnomusicologia, ficou-me a impressão de
haver um campo de saber sobre a música com grande potencial para integrar o que, até
então, eu via como aspectos empiricamente justapostos de minha vivência, o músico e o
militante político. Explico: o militante encontrava dificuldades em articular
teoricamente os ideais e práticas de transformação social que lhe pareciam urgentes ao
trabalho do músico sobre matéria sonora. Essa articulação se me revelava mais
perceptível em letras de canções (por exemplo, “de protesto”), que em termos das
sonoridades; já o músico, embora buscasse estudar e apreender de modo sistemático
processos populares de composição e interpretação, e, sob influência direta de Guerra-
Peixe, de quem fora aluno, os integrar a processos assimilados em outros contextos, não
conseguia entender mais claramente o que havia de político no fazer musical, a não ser
quando inserido em atos de outra natureza, como comícios e manifestações públicas de
crítica ao status quo, ou seja, ações com característica mais obviamente política. Lendo,
porém, o livro The ethnomusicologist, sobreveio certa decepção, pois o mesmo pareceu-
me distante de uma abordagem que pudesse fundamentar intervenções mais politizadas
no debate público sobre as relações entre música e sociedade, em outras palavras, que
fossem além do que já se fazia: por exemplo, determinadas letras de canções, com
caráter crítico ou mesmo panfletário, ou a justaposição de sonoridades musicais a
manifestações políticas, sonoridades essas muitas vezes absolutamente não-relacionadas
ou mesmo contraditórias à própria natureza ou contexto de tais eventos. No entanto,
percebi que o livro era inequivocamente um libelo pelo respeito e estudo de tradições
musicais de povos do assim chamado Terceiro Mundo, embora com ênfase, a meu ver,
em algo que merecia mais problematização: nomeadamente a complexidade dos
aspectos sonoros das tradições ali destacadas (por exemplo, polifonias percussivas

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africanas ou práticas instrumentais javanesas e balinesas), implicando, muito sutilmente,


reconhecer-se o privilégio de um pesquisador-ouvinte ideal, com formação acadêmico-
musical universitária de estilo ocidental (o próprio Mantle Hood sendo oboísta de
formação). Para Hood, esse ouvinte ideal deveria mesclar conhecimento, sensibilidade e
mesmo competência como músico em ao menos dois sistemas musicais contrastantes
(bi-musicalidade), e também em análises laboratoriais que conferissem objetividade
científica à descrição e, por conseguinte, à explicação dos fenômenos sonoros
socialmente produzidos. Sua consequência política, segundo já avaliava na época, não
iria além da legitimação do músico acadêmico formado segundo os padrões
institucionalmente validados no Ocidente industrializado como fiel da balança entre o
que, em música, seria significativo ou insignificante, refinado ou banal, em outras
palavras, o bem e o mal.
Para alguém interessado, tanto àquela época quanto hoje, em requalificar continuamente
o debate público por meio de processos autocríticos de construção de conhecimento,
tudo isso parecia ainda frustrante, embora reconhecesse sua enorme abertura, de certo
modo também política, em relação à apreciação da diversidade humana, se comparado
aos enfoques etnocêntricos e classistas ainda hoje predominantes no debate público
sobre a música no Brasil, e particularmente ao papel conservador, por vezes, aniquilador
de diferenças, que tais perspectivas insistem em desempenhar no já penoso processo de
redemocratização do país.
Outras leituras, porém, se sucederam, mostrando-me que, já na década de 60, e
principalmente a partir do início dos anos 70, o campo da etnomusicologia, sob
hegemonia norte-americana, se deixava impactar por uma literatura de viés mais
antropológico, tendo como referência seminal outro livro, até mais antigo que The
ethnomusicologist. Falo aqui, obviamente, do clássico The anthropology of music, de
Alan Merriam (1964), lançando as bases de um olhar antropológico para o universo da
significação sonora, a partir de suas relações de pertinência ou refração com o conjunto
da cultura. Tal abordagem, de cunho científico-social, embora não dispensasse de todo a
análise laboratorial voltada à descrição fenomenológica pretensamente objetiva, parecia
abrir mais espaço a uma interrogação política das práticas musicais e, por assim dizer, à
interrogação musical das práticas políticas, isto é, como práticas políticas eram
estimuladas ou sutilmente reforçadas por meio de práticas musicais e vice-versa.
Em 1984, candidatei-me a uma bolsa de mestrado em etnomusicologia, iniciado em
1985 e concluído em 1987, sob orientação de David Stigberg, no Departamento de
Musicologia da Escola de Música da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign,
onde eventualmente concluí também o doutoramento, na mesma área, em 1992, sob
orientação de Bruno Nettl. Durante esse percurso, e em meio ao contraste mais amplo
entre abordagens de ênfase mais antropológica ou musicológica, já antecipado pelas
leituras anteriores já citadas, familiarizei-me mais com a base interdisciplinar,
comparativa e intercultural daquele campo de estudos, bem como pude conhecer as
exegeses históricas existentes de sua delimitação no conjunto de saberes sobre matéria
musical, com ênfase quase absoluta em contribuições germânicas e anglo-saxônicas,
assim como procurei assimilar o incandescente debate interdisciplinar fundado na
autocrítica das relações coloniais à base de disciplinas de base etnográfica, que
começava a se difundir nos EUA a partir de meados dos anos 80, marcadamente após a

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publicação de Writing culture (CLIFFORD; MARCUS, 1986) e Anthropology as


cultural critique (MARCUS; FISCHER, 1986).
O que sugiro aqui, com essa digressão autobiográfica, creio ser próprio a campos de
conhecimento com algo singular e substancial a dizer: como típico de uma formação
discursiva, tal qual expresso por Michel Foucault (1987) em sua Arqueologia do saber,
um campo relevante de produção de conhecimento envolve embates, alianças e
mediações legitimadas eventualmente até mesmo pelas partes antagônicas, consciente
ou inconscientemente. Assim, sem que meu trajeto particular seja o único possível no
campo da etnomusicologia a partir da segunda metade dos anos 80, evidencia o
potencial deste campo em tornar mais clara a contribuição que a produção de
conhecimento acadêmico sobre a música, realizada sob marcos autocríticos, gerados e
renovados em permanente debate público, pode trazer não somente à compreensão dos
processos de significação de base sonora, mas também à discussão mais ampla sobre as
relações sociais em diferentes contextos.

Música e esfera pública no Brasil

No Brasil, mas de resto pelo mundo afora, são hoje muitas as áreas da esfera pública, no
sentido habermasiano da palavra, que tomam a música como ponto de inflexão
importante. Além de sua óbvia e histórica presença na pauta dos debates sobre cultura,
educação, mídia ou entretenimento, realizados em fóruns como jornais, revistas,
programação radiofônica e televisiva, simpósios e congressos, e mais recentemente
chats, blogs e sites, a música tem sido cada vez mais tratada como vetor pertinente à
formulação de políticas e à gestão pública em diversas áreas anteriormente vistas como
não tão próximas ou mesmo distantes, como economia, turismo, variadas concepções de
direito (humanos, autorais, culturais), segurança pública, saúde e promoção do bem-
estar. Tal quadro, certamente integrado à progressiva aparição e naturalização do que
George Yudice (2006) denominou “cultura como recurso”, isto é como ferramenta de
ação social e não mais exclusivamente como expressão de subjetividades
excepcionalmente dotadas de conhecimento, sensibilidade e, em certos casos, técnica,
faz com que se amplie e diversifique consideravelmente o espectro de sujeitos e
discursos que reivindicam pertinência para falar de música. Tal concepção envolve,
assim, algo muito além de posições mais sedimentadas no tempo e no espaço dos
regimes de propriedade privada, que valorizam sua associação ora como projeção de
imanência do belo (ver TERRA, 2010), ora com padrões e valores estéticos ou culturais
socialmente construídos e, em determinadas conjunturas, expresso como criação de
determinados produtos (por exemplo, música vocal e instrumental, performances,
gravações), por autores individuais, em isolamento ou em colaboração, reconhecidos
como seus proprietários.
Amplificadas por uma miríade de tecnologias mais e mais onipresentes em nossas vidas
nos quatro cantos do mundo, múltiplas vozes se fazem ouvir acerca do que venha a ser
música e de como deveria ser acionada e gerida no dia-a-dia, vozes que se apropriam
reciprocamente uma das outras, produzindo simultaneidades, em que ora se pode
perceber um sentido relativamente concorde, polifônico, ora uma confusa e desfibrada
cacofonia. Assinale-se, a tempo, que tal conjuntura que, denomino sócio-acústica, vem
sendo objeto de autocrítica no campo da etnomusicologia tanto no Brasil, como

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encontrado no relatório final do I ERABET-SE, quanto no exterior, a exemplo da


Seeger Lecture, evento central do Encontro Anual da Sociedade de Etnomusicologia dos
EUA, em 2007, proferida pelo folclorista e gestor cultural Bill Ivey (2009), esta
conclamando a etnomusicologia do século XXI a investir na integração dos diversos
níveis da educação, fomentando fluxos de conhecimento entre universidade e ensino
básico, bem como dirigir crescente atenção ao lugar da diversidade musical em políticas
públicas.
A partir de um estudo de caso a ser exposto em seguida, proponho que a
etnomusicologia, entendida não meramente como instância de auto-reprodução, mas
como referência de uma contínua requalificação do debate público sobre as relações
sociais, possa desempenhar um papel particular na mediação entre interesses e
referenciais muitas vezes antagônicos e desiguais.

Etnomusicologia e gestão pública: um estudo de caso

Iniciando esta discussão por seu aspecto mais óbvio, ressalto que a relação entre
pesquisa acadêmica e gestão pública é via de mão dupla, compreendendo desde
complexas desconstruções e reelaborações teóricas de iniciativas concretas de
formuladores e gestores de políticas públicas a tentativas mais ou menos bem sucedidas
de apropriação prática ou instrumentalizadora, por gestores públicos, de concepções de
mundo moldadas por pensamento ideal, mas não garantidamente crítico. Tal relação
deve ser compreendida, portanto, como objeto de um extenso debate público, colocando
em jogo os limites da participação social, ou, em outras palavras, do jogo democrático.
Se esse debate é frequentemente realizado de forma indireta, sem que os agentes
situados em cada um dos pólos, pesquisadores e gestores, tenham necessariamente
ciência de sua interrelação, muitas vezes se produz de forma direta, envolvendo relações
pontuais como a atuação do acadêmico em consultoria, prestação de serviços ou em
determinados fóruns de governança. Outra possibilidade, quiçá a potencialmente mais
conflituosa de todas, ocorre quando o pesquisador acadêmico passa a integrar a gestão
pública, mormente quando aquele não possui vínculos partidários anteriores, que o pré-
alinhariam, ao menos em tese, a pontos programáticos orientadores da respectiva gestão.
Baseado simultaneamente em experiência extensa em pesquisa ação-participativa em
áreas urbanas populares do Rio de Janeiro (Bairro Maré, morros do Salgueiro e da
Formiga) e em breve passagem (primeiro semestre de 2009) pela gestão municipal da
cultura na mesma cidade, ambas com foco na área de música, comentarei aqui os
potenciais e desafios à integração do trabalho acadêmico à função de gestão pública,
tomando como eixo o aprofundamento do processo democrático e a qualificação
contínua do debate público sobre as políticas públicas. Para tal, tomarei como
referências iniciais alguns dos pontos cardeais da virada epistêmica das humanidades
intensificada nas últimas décadas do século XX, de modo a empreender um breve
estudo de caso em torno do assim chamado Segundo Turno Cultural, ação conjunta
entre as gestões municipais respectivas da educação e da cultura na cidade do Rio de
Janeiro em prol da implantação de atividades escolares em tempo integral nas escolas
públicas de ensino fundamental. Examinarei, assim, a maneira simultaneamente errática
e reveladora como as discussões do programa público se desenvolveram desde o início

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Música e Cultura, vol. 6 22

da gestão em 2009, passando por um comentário sobre seus resultados em escola


específica de ensino fundamental. A partir dos mesmos referenciais críticos, analisarei,
por fim, os caminhos e os resultados de um trabalho de pesquisa-ação conduzido no
segundo semestre do mesmo ano, na mesma escola, por uma equipe acadêmica,
coordenada pelo autor, já desvinculado da gestão municipal, equipe essa composta por
universitários e alunos de ensino médio participantes de um projeto de pesquisa e
extensão.

Virada epistêmica nas humanidades e suas implicações

Não obstante haver hoje, entre as disciplinas etnográficas, considerável consenso quanto
à necessidade de superação de certa “normalidade” em seu modus operandi, assentada
de fato em relações de assimetria de poder e dominação, entendo não haver tanta clareza
quanto a suas implicações para os estudos empíricos, notadamente os de caráter
etnográfico, em que ainda prevalecem noções como prestígio da autoria individual,
controle exclusivo do pesquisador acadêmico de objetivos, referenciais, métodos, tempo
e formas de divulgação do trabalho de pesquisa, assim como ênfase no caráter “neutro”
do conhecimento, ou sua relação distanciada, “desinteressada”, em relação a suas
eventuais aplicações.
Procurando dar resposta à altura a essa forte tendência à reprodução de modelos
etnográficos que reforçam a reificação da autoridade acadêmica, equipes do Laboratório
de Etnomusicologia da UFRJ (doravante LE-UFRJ), em seu trabalho de pesquisa-ação
participativa na Maré, Rio de Janeiro, têm atuado como mediadoras dos respectivos
processos de formação de grupos de pesquisa entre moradores das populações locais, a
partir da ideia de se analisar a música como possível eixo de discussões sobre aspectos
da vida social a ela relacionados, como os vãos e desvãos da política em seus diversos
âmbitos, formas de sociabilidade, o mundo do trabalho, ou a hierarquização de
diferenças sob critérios os mais diversos (raça, gênero, idade, opção sexual, origem
regional e outras). Assentados em princípios dialógicos encontrados no legado
pedagógico de Paulo Freire (1970), tais processos levaram pouco a pouco ao
amadurecimento de questões de interesse mais premente dos moradores participantes
dos grupos de pesquisa (cerca de 70 em sete anos), redundando em formulação pelos
mesmos de questões de pesquisa, definição de estratégias para responder às mesmas,
atividades de documentação acerca do impacto da música na vida social local e a
correspondente formação de acervos multimídia de documentação. Essas atividades, em
tempo, dariam ensejo a apresentações públicas dos resultados de pesquisa em fóruns
acadêmicos e extra-acadêmicos, e um número crescente de publicações, em geral,
coletivas, chegando a obter ressonância em certos âmbitos da academia, da população-
alvo da própria área pesquisada, da esfera política e dos movimentos sociais.

O acadêmico na gestão; uma etnografia da relação público-privado

O convite à nossa participação na gestão municipal da cultura, formulado, ao final de


2008, pela então futura titular da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) da cidade do
Rio de Janeiro, Jandira Feghali, relacionou-se em grande medida a esses antecedentes.

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Entre as propostas de gestão por ela apresentadas, julguei de maior interesse a de


integração de ações com a Secretaria Municipal de Educação (SME), com vistas ao
oferecimento de oficinas culturais no segundo tempo escolar, como parte de um
programa de tempo integral a ser desenvolvido em 150 escolas localizadas nas áreas de
mais baixo IDH da cidade. O referido programa, que previa também a participação da
Secretaria Municipal de Esporte e Lazer nas atividades de contraturno, foi objeto do
primeiro decreto do novo prefeito, assinado no dia de sua posse, em 1º de janeiro de
2009, e estabelecendo um prazo de noventa dias para sua implantação.
Como Gerente de Música da SMC, participei de uma equipe mista de técnicos das
secretarias envolvidas para formulação das idéias orientadoras dessa ação conjunta,
procurando incluir, na medida do possível, os princípios e métodos afins aos projetos de
pesquisa-ação participativa anteriormente desenvolvidos, com relativo sucesso, através
da universidade. Após uma sucessão de reuniões em que se observava frequência não
uniforme de determinados participantes, encontros esses com foco bastante disperso,
parecendo longe de avançar rumo a qualquer consenso, duas informações caíram como
bomba sobre esse já confuso quadro: 1- outro grupo da SME, sem participação da SMC,
estaria trabalhando sobre o mesmo propósito, ou seja, atividades de contraturno; 2- as
respectivas direções das escolas já teriam enviado no ano anterior ao Programa Mais
Educação, do Ministério da Educação, seus respectivos cardápios de atividades para o
contraturno, utilizando, portanto, um expediente de financiamento criado em 2007, que
confere às direções de escolas a capacidade de escolher tais atividades, em geral
contratadas, por procedimento de tentativa e erro, a ONGs e “oficineiros” avulsos
(pessoa física supostamente capacitada a conduzir as atividades). Isso foi, obviamente, a
gota d’água para que se convocasse com urgência uma reunião conjunta de todos os
âmbitos de governo envolvidos, educação, cultura, e esportes e lazer, sob a coordenação
dos respectivos secretários municipais. A trajetória e afiliação partidária de cada um
destes últimos certamente denotava com exemplaridade não apenas a colcha de retalhos
política responsável pelo êxito na renhida batalha eleitoral de 2008, mas, ainda mais
intensamente, a enorme dificuldade de afinação de perspectivas programáticas e de
gestão. Os princípios de autonomia discutidos por Paulo Freire e seus desdobramentos
em atividades de formação de seres autoconscientes e comprometidos, divisores de água
entre horizontes políticos incompatíveis, nitidamente passavam muito distantes das
discussões, bastante pautadas por ênfase na terceirização de atribuições do Estado a
organizações não-governamentais, algumas das quais presentes a reuniões teoricamente
internas ao governo, a convite formulado por gestores municipais, evidenciando a
naturalização de relações promíscuas entre público e privado que vinham de gestões
municipais anteriores.
Em determinado momento desses encaminhamentos tortuosos, e constatando o grau de
dificuldade, para não dizer impossibilidade, de se embutir um mínimo de conteúdo auto-
reflexivo em programa escolar de grande alcance, solicitei à Secretária de Cultura uma
intermediação junto à Secretária de Educação, para que se pudesse fazer ao menos uma
reunião mais reservada à participação de quadros de governo, para exposição e
apreciação mais detalhada dos projetos de pesquisa-ação desenvolvidos pelo LE-UFRJ,
seus pilares paulofreireanos e, em especial seus resultados. Tal reunião, de fato ocorrida,
contando com a presença das duas secretárias, se revelaria o ponto final em qualquer
expectativa de reversão de um processo de diluição do potencial de se deslanchar um
programa mais articulado de atividades culturais reflexivas no contraturno escolar,

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Música e Cultura, vol. 6 24

desmanche esse culminado pela reação impermeável da titular da pasta da educação,


alegando já ter visto muitas propostas “em tese reflexivas, encobrirem proselitismo”.
Pedido de exoneração a caminho, fim da etnografia de gestão, regresso à gestão de
etnografias.

A volta “por baixo”; políticas públicas focais em sinergia

Regressando à universidade, retomei com intensidade o trabalho de pesquisa-ação no


Bairro Maré. A breve experiência na Prefeitura havia demonstrado a urgência de
iniciativas que promovessem auto-reflexão entre produtores de cultura, difícil via de
requalificação do debate político sobre a gestão municipal.
Numa das duas reuniões semanais com o coletivo de pesquisadores no projeto
desenvolvido pelo LE-UFRJ em dependências do Centro de Estudos e Ações Solidárias
da Maré, e à base do conhecimento obtido durante a participação na gestão pública,
aventamos a possibilidade de oferecimento, a uma escola municipal local, de atividades
de contraturno semelhantes às desenvolvidas regularmente pelos integrantes do coletivo
em questão, basicamente envolvendo formação dialógica em pesquisa musical,
documentação e publicação de produtos reflexivos em diferentes formatos (mapas,
textos, vídeos etc.). Uma das pesquisadoras do grupo, aluna de graduação em Pedagogia
da UFRJ e moradora local, com dois filhos matriculados em uma das escolas públicas lá
sediadas – sugestivamente, uma das 150 Escolas do Amanhã, programa piloto de tempo
integral escolar da Prefeitura já mencionado – se encarregou dos contatos iniciais com a
respectiva direção. A um aceno positivo desta, elaboramos coletivamente uma proposta
bem aberta de intervenção, apresentada oportunamente em uma reunião com a diretora e
a presença de um bom número de participantes do coletivo de pesquisa, estudantes
universitários e do ensino médio. Ela consistia de dois encontros semanais por turma
(três turmas de 9ª série, com participação voluntária), cada um com noventa minutos de
duração, que partiriam, assim como o projeto inicial do LE-UFRJ na Maré em 2004, de
perguntas aparentemente simples como “o que é música para você”, “o que você ouve”,
“por que” etc., para se chegar pouco a pouco a reflexões coletivas mais aprofundadas
sobre a relação da música com outros aspectos da vida social.
Após uma discussão versando exclusivamente sobre os detalhes de execução, como os
seus possíveis locais, infraestrutura e horários, a proposta inicial foi aceita e a oficina
iniciada ao final de agosto do mesmo ano. Alguns aspectos, porém, se revelariam um
tanto problemáticos durante a execução propriamente dita da oficina, como a divulgação
insuficiente em função de seu início tardio em relação ao andamento do semestre letivo,
a frequente mudança de espaços, ou a inexistência de professor específico de música na
escola, gerando, por um tempo, certa ambiguidade quanto à possibilidade, a tempo
dissipada, de a oficina ser contabilizada simultaneamente como aula efetiva de música,
e não exclusivamente como atividade de contraturno. Materializava-se, assim, o que
antecipávamos como a viabilidade de, mesmo em meio aos muitos percalços
decorrentes de práticas comuns anteriores, atreladas a relações tendencialmente
promíscuas entre público e privado já assimiladas como habitus escolar (BOURDIEU;
PASSERON, 1975), dar início a uma integração qualitativamente diferenciada de ações
entre atividades culturais e educacionais com sentido reflexivo, e, significativamente, tal
ocorria em uma das Escolas do Amanhã, programa piloto de turno integral na rede de

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ensino municipal, com autonomia em relação à gestão central, que, como visto acima, a
considerou dispensável, senão perigosa, como política de abrangência mais geral.
Contornados alguns percalços, as atividades progrediram, e, aproximando-se o final do
ano letivo, foram solicitadas aos participantes ideias acerca do produto final de cada
uma, que poderia, caso assim o decidissem, ser apresentado em evento de encerramento
no pátio de entrada da escola, com participação de todos os segmentos da escola e dos
responsáveis pelos alunos. Tendo passado por uma formação introdutória à geração e
edição de imagem em vídeo durante a oficina, as duas turmas decidiram pela realização
de um vídeo-documentário sobre as perguntas que, segundo os participantes, ecoaram
em suas mentes durante todo o semestre (que é música, quem, o que e porque se ouve),
mas para este fim, feitas a seus colegas, professores, a diretora inclusive, e funcionários
técnico-administrativos da escola.
A atividade de encerramento do ano letivo, perante um pátio repleto de assistentes,
compreendeu exposição de trabalhos realizados em diferentes disciplinas, em geral
expostos em suportes de cartolina afixados às paredes, e apresentações de outras
oficinas de contraturno, como canto coral e capoeira. A exibição do vídeo-documentário
da “oficina de música” surpreendeu a todos, como ficou explícito principalmente pela
reação festiva e estridente dos alunos à aparição no mesmo de alguns de seus colegas,
ora como âncoras do documentário, ora como entrevistadores, ou às respostas de seus
“velhos desconhecidos”, companheiros de comunidade escolar (professores, técnico-
administrativos e alunos), alguns dos quais falando pela primeira vez diante daquele
público, naquele espaço, sobre algo visto quiçá como irrelevante, desnecessário ou
mesmo impróprio à rotina escolar.
O sucesso relativo dessa primeira experiência – na contramão, como reportado acima,
dos prognósticos contrários da titular da pasta da educação, que me levaram, em última
instância, a sair da gestão pública – levou a uma reedição da oficina, para uma só turma,
durante o segundo semestre de 2010, que também resultaria em proposta de vídeo-
documentário. Desta feita, seguindo a pista de uma das discussões que mais motivaram
os participantes dessa segunda edição, foi escolhido como tema o impacto de um grupo
musical pop de muito sucesso entre adolescentes, e da adoção de determinados aspectos
visuais de sua imagem pública por jovens da escola e da Maré. No processo de
realização de entrevistas entre os alunos, passou-se do que os próprios proponentes
acreditavam ser um documentário sobre o referido grupo musical a um exame de ampla
gama de questões sobre a experiência de jovens moradores de favela, como preconceito,
violência, etnicidade, diversidade e, não necessariamente em ordem de prioridade,
relações com a música e a dança.

Considerações finais?

Em 2011, propusemos à direção da escola entregar, para os arquivos da mesma, cópias


dos três vídeos realizados até então, aproveitando a ocasião para atendermos um de
nossos objetivos iniciais, até então não cumprido, qual seja, estabelecer um diálogo com
os professores acerca de nossa atividade em contraturno. Tal ocorreu pela primeira vez
em reunião do conselho de classe, numa manhã de abril de 2011. Presentes quase todos
os docentes e um bom número dos participantes do coletivo de pesquisa de moradores

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da Maré, fizemos uma introdução explicando verbalmente a natureza e os resultados


gerais do trabalho, passando em seguida à exibição dos vídeos, antecedendo uma
discussão sobre tudo ali exposto. Após a projeção, seguida de palmas calorosas, a
discussão abordou questões como a qualidade do trabalho realizado pelos alunos da 9ª
série participantes e o conteúdo das diversas falas, mas, acima de tudo, a perplexidade
dos professores com a desenvoltura de alunos considerados “introvertidos”, ou mesmo
“problemáticos”. Uma professora observou que o esforço que os docentes têm que fazer
para dar conta de seus respectivos programas pode não deixar espaço a interlocuções
mais detidas com os anseios e necessidades de seus alunos, e menos ainda com os que
apresentam comportamentos percebidos como problemáticos, ao que outra comentou
brevemente que algumas vezes os conteúdos programáticos eram de tão pouca
importância, logo seguida por outra colega, que ressaltou a relação por ela percebida
entre o que, quanto e como os alunos falavam e faziam no vídeo com a capacidade de
seus interlocutores, ministrantes da oficina, de tão somente se dispor a ouvir.
Durante toda a discussão, por cerca de uma hora, era-me impossível deixar de pensar na
trágica ironia de não ter logrado algo semelhante em cargo de gestão pública,
presumivelmente com mais influência sobre o mesmíssimo programa que me permitia,
enquanto acadêmico com referência na etnomusicologia e seu legado polifônico,
mediador de saberes, que aqui tentei apresentar como singular ao debate público
contemporâneo sobre a música, resultados tão alvissareiros em termos de articulação
entre políticas públicas, desde as voltadas à melhoria de índices educacionais no ensino
fundamental às de fomento à pesquisa acadêmica, de integração entre os diversos níveis
do sistema educacional público, colocando em cheque certos discursos imobilistas de
manutenção do fosso entre ensino público básico e superior, de formação reflexiva de
novos sujeitos de conhecimento, tema caro à virada epistêmica das humanidades acima
aludida, e, ainda mais significativamente, de aprofundamento do processo democrático
nos mais diversos âmbitos. Em empreitada como essa, nenhuma pertinência ou
relevância é garantida de antemão a qualquer campo de saber, exigindo um repensar
contínuo, não raro contundente, de seus pressupostos, e exposição crescente de seus
pretensos resultados.

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Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a


Brincadeira dos Cocos na Paraíba

Eurides de Souza Santos

Resumo
O quinto encontro da ABET instigou discussões gerais sobre os modos de pensar e fazer a
pesquisa etnomusicológica, com vistas nas perspectivas teóricas e metodológicas que envolvem
a produção científica na área como um todo. Este artigo traz para o centro dessas discussões as
pesquisas sobre a brincadeira dos cocos na Paraíba, refletindo sobre questões que permeiam as
relações entre pesquisador, pesquisado e instituições responsáveis por políticas públicas
culturais. Destaca o dinamismo dos brincantes enquanto resposta às dificuldades sociais,
econômicas e políticas enfrentadas na manutenção da tradição dos cocos.
Palavras-chave: brincadeira dos cocos; música tradicional da Paraíba; políticas públicas
culturais; cultura popular.

Abstract
The fifth conference of Brazilian Association for Ethnomusicology (ABET) has exposed many
ways of thinking and doing ethnomusicological research considering methodological and
theoretical perspectives which involve the scientific production on this area as a whole. This
paper brings to the center of these discussions the brincadeira dos cocos in Paraiba as well as it
ponders on questions which come across the relations between researcher, subject and
institutions whose responsibility extends to cultural public politics. It also highlights the
coquistas dynamics as a response to social economical and political difficulties faced in the
safeguarding of the Cocos tradition.
Keywords: Brincadeira dos cocos; traditional music of Paraiba; cultural public politics; popular
culture.

Cinco encontros da Associação Brasileira de Etnomusicologia (2002-2011) e cinco anos


da criação do mestrado em Etnomusicologia na UFPB (2006-2011). Dois renovos da
realidade do estudo musical no Brasil que, a exemplo da própria disciplina, marcam
presença nos seus espaços de atuação desde os primeiros passos, causando muitas vezes
surpresas, desconfortos e/ou esperanças. Oportuno se faz destacar os esforços de um
conjunto de profissionais e estudantes que têm se aliado na construção de um saber
interdisciplinar, contínuo e aberto à pluralidade e complexidade dos fenômenos
musicais e culturais, em meio aos constantes entraves do cotidiano da vida acadêmica.
As experiências do dia a dia na instituição e na sociedade mais ampla nos fazem viver a
etnomusicologia como sendo “um estado de espírito” que nos faz acreditar na mudança,
no novo, enquanto defendemos tradições. Além de estudar músicas, somos
constantemente intimados, por razões subjetivas ou objetivas, a participar das demandas

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sociais em questões tantas que podem envolver direitos humanos, educação, elaboração
de leis e projetos culturais, entre outras, nas quais, em casos não raros, nos tornamos
interlocutores dos grupos pesquisados.
Esta realidade experimentada por etnomusicólogos, nos diversos contextos geográficos,
denota uma trajetória de reflexões e participações em propostas multi e
interdisciplinares que marcam a história da disciplina. Como observou Béhague, “a
interdisciplinaridade [que] era, desde o princípio, o elemento primordial da própria
constituição da etnomusicologia, passou a uma fase de evidente maturescência” (2005,
p. 47). A visão interdisciplinar na etnomusicologia possibilita a construção de um
conhecimento contextual conectado com as demandas científicas do nosso tempo, e
contribui para uma indispensável visão de transcendência e continuidade nos processos
de pesquisa, mormente no que diz respeito aos resultados destes na vida dos grupos
sociais estudados.
Nesta perspectiva, fazer pesquisa dentro de uma visão ampliada e enriquecida pelos
diversos saberes, constituiu-se em condição imprescindível para ultrapassarmos os
limites do pensar de cunho exclusivamente teórico e passarmos aos desafios de uma
postura participativa, presente e socialmente comprometida. Loughran (2008, p.52)
define a “etnomusicologia aplicada como uma abordagem filosófica para o estudo da
música na cultura com a responsabilidade e justiça social como princípios”. Desta
forma, enquanto etnomusicólogos/pesquisadores, procuramos dar respostas razoáveis
aos constantes questionamentos que nos fazemos bem como àqueles que nos chegam da
realidade circundante. São perguntas de cunho subjetivo e objetivo que nos colocam
diante da provocação apresentada por Bobbio (1997, p. 97) quando diz: o intelectual age
com base na ética da pura intenção ou com base na ética da responsabilidade?
Refletindo sobre as vantagens e desvantagens da pesquisa de campo de longa duração,
Seeger observa que

Cada vez mais, indivíduos e comunidades com as quais os pesquisadores trabalham


exigem que o pesquisador se envolva em algum projeto de interesse da
comunidade. Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores sentem-se moralmente
obrigados a assitir aqueles que consideram estar em situação de necessidade
(SEEGER, 2008, p. 6).

Importante fator impulsionador dessa etnomusicologia participativa no Brasil, nestes


últimos anos, têm sido as discussões sobre as políticas públicas para a cultura e seus
aprofundamentos nas reflexões sobre ética na pesquisa, como tem sido evidenciado nos
trabalhos de Araújo (2005; 2006), Lucas (2001; 2006), Lühning (2006; 2011), Sandroni
(2005; 2010), Seeger (1987; 2008), entre outros. No entanto, muito do que temos hoje
como fonte para entendermos as culturas que estudamos na contemporaneidade e nos
aproximarmos da realidade sociocultural dos seus fazedores vem da atitude
interdisciplinar e participativa de estudiosos das manifestações populares, muitos deles,
folcloristas. O estudo dos cocos nos serve de exemplo.
O registro sistemático dos cocos na Paraíba tem seu marco histórico no trabalho de
Mário de Andrade entre 1928-1929 e das Missões de Pesquisas Folclóricas em 1938,
cujos resultados vêm a ser publicados em 1984, na obra “Os cocos”, organizada por
Oneyda Alvarenga. O caráter inovador do trabalho de Mário de Andrade foi pautado

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36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
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pela percepção de uma oralidade constituída de nomes, rostos, vozes, perfis, gestos,
opiniões, lugares, sentimentos, enredos, músicas e danças. Ele e sua equipe reuniram
ciência e humanidade em um ambiente de pesquisa marcado pelo estigma da não
sistematicidade. Esse modo de sentir e agir na experiência da pesquisa vai se somar ao
pensar e fazer científicos assumidos por Mário de Andrade, como podemos verificar no
seu pensamento expresso na introdução da obra inacabada “Na Pancada do Ganzá”.

Este não é um livro de ciência, evidentemente, é um livro de amor. Estarão sempre


muito enganados os que vierem buscar nele a sistemática dos fatos musicais e
poéticos do Nordeste. [...] O que vale aqui é a documentação que o povo do
Nordeste me forneceu. Procurei recolher esses documentos, da maneira, essa sim,
mais cuidadosa, mais científica. Segui, na colheita folclórica, todos os conselhos e
processos indicados pelos folcloristas bons. Ouvi o povo, aceitei o povo, não
colaborei com o povo enquanto ele se revelava. (ANDRADE, 2002, p. 387-388).

Em 1964, o folclorista Altimar Pimentel publicou a obra “O coco praieiro: uma dança
de umbigada”, com 2ª edição em 1978 e nova publicação em 2004. Nela o autor
descreve a brincadeira dos cocos no município de Cabedelo, discute as possíveis
origens, apresenta transcrições de letras e músicas, apresenta seus interlocutores e os
principais brincantes da época. Pimentel iniciou suas pesquisas sobre os cocos da
Paraíba quando trabalhava como conferente no porto da cidade de Cabedelo. Ao
observar o movimento dos trabalhadores ele escreveu:

Cantavam cocos enquanto conduziam as mercadorias para dentro do armazém ou


as atavam no estropo [...]. Os cantos ouvidos no cais me encantaram. Quis saber
deles, o que eram, o seu significado, e assim, nos meus vinte anos de idade,
completados naqueles trabalhos, iniciei-me nos mistérios da sabença popular. Fui
ouvi-los em suas casas, compareci às festas, gravei contos e cantos, vi danças em
noites sem fim, fiz amizades que ainda guardo [...] (PIMENTEL, 2004, p. 27-28).

Ainda, na década de 1970, foram feitos alguns levantamentos sobre a existência dos
cocos na Paraíba, sob a coordenação de professores ligados ao Núcleo de Pesquisa e
Documentação da Cultura Popular - NUPPO/UFPB (AYALA; AYALA, 2000 p. 27) .
Uma publicação mais recente, a obra “Cocos, Alegria e Devoção”, organizada por
Maria Ignez Ayala e Marcos Ayala, publicada em 2000, constitui-se em abrangente
registro científico sobre os cocos da Paraíba, resultante de pesquisas de caráter multi e
interdisciplinar, realizadas durante a década de 1990. Entre as muitas contribuições
desta obra, está a preocupação por parte dos pesquisadores de não apenas descrever e
registrar a brincadeira dos cocos no contexto paraibano, mas trazer para o centro das
discussões acadêmicas a situação socioeconômica dos brincantes, os problemas
relacionados à moradia e uso da terra, a desagregação entre grupos de dançadores, os
preconceitos e as condições mais gerais da manifestação no período da pesquisa. Diante
dos problemas constatados, os autores foram objetivos ao afirmar que, “sem as garantias
mínimas de cidadania, é muito difícil ter autonomia para desenvolver atividades
culturais independentemente de interferências de grupos de poder – proprietários rurais
e políticos” (2000, p. 36).
Uma vez fundamentada nas ideias de continuidade e transcendência, a obra de AYALA
e AYALA tem influenciado trabalhos científicos sobre os cocos da Paraíba em

SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
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pesquisas desenvolvidas por acadêmicos das diferentes áreas, tais como, a antropologia,
comunicação, educação, letras, etnomusicologia, entre outras; além disso, o corpo de
informações resultante das pesquisas documentadas na obra acima citada constituiu-se
em dados imprescindíveis para a concretização do “projeto Inventário dos Cocos como
Patrimônio Imaterial Brasileiro”, citado adiante.
Com os programas de políticas públicas para a cultura e, sem dúvidas, o acesso mais
fácil ao registro das manifestações populares, existe hoje uma quantidade significativa
de documentos sobre os cocos em CDs e DVDs, em geral, com produção intermediada
por músicos, pesquisadores e agentes culturais. Os trabalhos de grupos e cantadores
individuais podem ser encontrados também na internet, em geral, com vídeos e fotos
postados a partir de apresentações em eventos públicos. Fato relevante na discussão
atual sobre os cocos foi o Encontro de Cocos do Nordeste, em dezembro 2009, em João
Pessoa, que reuniu grupos de cantadores e dançadores de várias cidades da região
visando à apresentação, compartilhamento e discussão das condições de “trabalho” nas
comunidades onde vivem.
A partir desse evento e com base na visão de uma realidade urbana complexa e rica de
manifestações culturais e musicais, em 2009, criamos o Núcleo de Estudos em
Perfomance e Estética Musical, como parte de um projeto mais amplo de pesquisa da
área de Etnomusicologia do PPGM/UFPB. A participação no citado Encontro foi
fundamental para o início dos contatos com os cantadores e dançadores, no sentido de
conhecermos melhor suas atividades, ideias, planos e condições de vida atuais. O núcleo
desenvolve pesquisa com foco no trabalho de músicos da cultura popular da Paraíba, a
exemplo de estudos sobre a cantadora Vó Mera (SANTOS, 2010), o cantador Mestre
Jove (SANTOS, 2011) e o músico Baixinho do Pandeiro (2012). Também procura
estimular o diálogo entre a academia e os grupos populares, promovendo oficinas e
palestras ministradas por mestres.
O estudo dos cocos é uma experiência empolgante! O conhecimento sobre os seus
personagens, ritmos, danças, melodias, letras, histórias, significados, entre outros
aspectos, é de total interesse da pesquisa realizada pelo Núcleo. No entanto, o estudo
dessa expressão hoje, na Paraíba, passa inevitavelmente pela problemática questão
“acre-doce” das políticas públicas voltadas para a cultura popular. É evidente que os
cocos, assim como as manifestações populares em geral, são mantidos tradicionalmente
pelos seus fazedores e por mantenedores tantos que atuam em seu favor: pessoas da
comunidade, instituições religiosas, escolas, prefeituras, ONGs, entre outros. Interessa-
nos então refletir sobre a situação sociocultural dos cantadores e dançadores na Paraíba
frente às políticas públicas implantadas nesta última década.
Para esta discussão, tomaremos como recorte o depoimento de cinco mestres
paraibanos, todos com grupos formalizados através de registro na Subsecretaria
Estadual de Cultura da Paraíba e /ou nas Subsecretarias de seus municípios e inseridos,
de algum modo, em programas de políticas públicas. São eles Dona Teca de Cabedelo,
Dona Edith de Caiana dos Crioulos (Alagoa Grande), Dona Lenira do Novo Quilombo
de Gurugi (Conde), Vó Mera de João Pessoa e Mestre Jove de Forte Velho (Santa Rita).
Os depoimentos das três primeiras mestras, citados a seguir, foram recolhidos a partir
das discussões realizadas por ocasião do I Encontro de Cocos do Nordeste, e
corroboram as falas de Vó Mera e Mestre Jove, registradas em encontros individuais e
sistemáticos, realizados nestes últimos dois anos.

SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
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Mesmo tomando por base os depoimentos apresentados no citado Encontro, vale


ressaltar que as narrativas refletem, de forma generalizada, as relações entre os grupos
de cocos paraibanos e as instituições estaduais e municipais – em especial no que diz
respeito ao contato aproximado entre os representantes de ambas as partes – quando
buscam entendimentos sobre apresentações nos eventos do calendário de atividades
culturais realizadas em âmbitos estadual e municipal.
Considerando o dinamismo da brincadeira dos cocos, visível para aqueles que
acompanham tal manifestação na Paraíba, e por meio dos depoimentos, é possível
afirmar que a possibilidade de maior circulação e participação na agenda cultural do
Estado representa hoje a maior conquista no âmbito das políticas públicas. No entanto,
essa conquista por si não constitui fator de viabilização, transformação ou
desenvolvimento no status socioeconômico destes grupos e pouco tem contribuído para
“o exercício pleno da cidadania”, como rezam os princípios do Plano Nacional de
Cultura (PNC). Problemas pontuais são observados a partir das demandas para as
apresentações em palco, bem como para os deslocamentos (circulação e intercâmbio).
Entre as demandas estão a falta de recurso para compra de roupas; a falta de
equipamentos de som, nem sempre existentes nos lugares de apresentação, a exemplo
das escolas; a falta de recursos para compra e conserto de instrumentos musicais; a
dificuldade de se conseguir transporte e, na maioria dos depoimentos, o descaso com o
cumprimento de horário, quando o transporte é adquirido através de órgãos públicos,
chegando a atrasar uma manhã, uma tarde; o não cumprimento de prazo ou não
pagamento de cachês; o não acesso ou dificuldade de diálogo com autoridades. Somado
a estas questões está o clientelismo que tem caracterizado as relações entre grupos de
cultura popular e gestores das administrações locais. A fala de Dona Edith de Caiana
dos Crioulos reflete alguns destes aspectos, quando ela diz:

eu sou cirandeira, canto ciranda, coco de roda, sou a coordenadora da ciranda lá da


Caiana dos Crioulos, já tenho me apresentado em diversos lugares, e a minha
dificuldade é a de todos aqui: eu não tenho muito apoio de prefeitura, as roupas da
gente, a gente compra com o nosso suor do nosso rosto, [...], são dezesseis
mulheres, o grupo todo são vinte e três; aí, às vezes, a gente pede o carro na
prefeitura, é uma grande dificuldade para arrumar o carro [...] (depoimento gravado
em DVD).

Sobre os mesmos problemas, Dona Lenira do Novo Quilombo do Gurugi, no município


do Conde, disse o seguinte:

[...] tem pessoas que convidam o grupo pra brincar e acerta o transporte; a gente se
arruma, dizendo [eles] que o carro chega às 5h. Então, todo mundo trabalha no
campo, perde meio dia, porque o roçado às vezes é longe, perde meio dia pra vim
pra casa, pra esperar o transporte [...]; a gente sai às 8h da noite com a cara
mexendo, e o transporte não vai apanhar o grupo. Isso, os componentes do grupo
vêm em cima de mim, [...] perguntando, cadê? fazendo a gente ficar bestando e a
gente ficar com a cara de tacho mesmo, porque a gente não tem o que responder
pra eles (depoimento gravado em DVD).

O entendimento da situação atual dos cantadores e dançadores de cocos, inseridos nos


programas governamentais, implica a compreensão das relações que envolvem o

SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 33

binômio, políticas públicas e gestão dos bens públicos. Em 2004, durante o II ENABET,
Samuel Araújo trouxe para a mesa de debates preocupações que surgiram a partir de
uma leitura atenta de um discurso do então ministro da cultura, Gilberto Gil, proferido
em outubro daquele ano. Entre outros aspectos, Araújo chamava a atenção para a

“a ideia de cidadania como a que se deve proporcionar o acesso, tendo como


instrumento ‘facilitador’ o poder público e desconsiderando o papel de uma práxis
eventualmente desestabilizadora da própria noção do que seja um poder público”
(2005, p. 72).

Desde o seu nascedouro em organismos internacionais até chegar aos destinatários, as


políticas públicas destoam entre os ruídos das hierarquias, os entraves das burocracias e
as idiossincrasias que envolvem as relações de proximidade. No texto de apresentação
do relatório Patrimônio Imaterial no Brasil: legislação e políticas estaduais, o
representante da UNESCO no Brasil, Vincent Defourny, afirma que

Se, por um lado, o país é referência pela formulação e pela implementação deste
modelo de política, por outro, considera-se um grande desafio a efetivação do
processo junto às esferas estadual e municipal. A dimensão territorial, a
complexidade das articulações burocrático-legais e o ainda incipiente investimento
em capacitação na gestão pública configuram-se como obstáculos à normatização
do direito de salvaguardar o conjunto de conhecimentos tradicionais, a oralidade,
os saberes e as manifestações artísticas da população brasileira e para ela como um
todo (DEFOURNY, 2008, p. 7).

Na tentativa de corresponder às exigências dos financiamentos públicos, muitos


cantadores, intermediados ou não, têm se lançado na problemática tarefa de registro, até
que possam declarar com orgulho: “o meu grupo é registrado”, como reforça Dona Teca
do Coco, do município de Cabedelo.

eu não tinha nem zabumba, eu não tinha nada. Quando fiquei responsável [pelo
grupo], nem a zabumba eu tinha condições de comprar com meu salário, mas eu
corri atrás, corri atrás, olha, é porque eu sou muito teimosa, quando eu quero uma
coisa, eu vou atrás mesmo. Então eu consegui dois zabumbas; hoje, graças a Deus,
o meu grupo já é registrado federalmente, são trinta e três pessoas no grupo
(depoimento gravado em DVD, op.cit.).

Seguindo a corrida para a consecução de recursos, os brincantes descobrem que as


dificuldades com o registro e concorrência nos editais são apenas alguns dos passos de
um caminho muito longo que eles ainda têm que trilhar. Depois de atravessar a via
crucis do entendimento e cumprimento das exigências da legislação, deparam-se com a
inviabilidade da práxis administrativa pública local. As dificuldades de acesso
democrático aos recursos destinados aos bens culturais refletem as contradições no
gerenciamento dos bens e serviços no âmbito do poder público em seus diversos níveis.
Por outro lado, em alguns casos, situações de miséria ou condições mínimas de
cidadania tendem a confundir os escassos recursos para o desenvolvimento cultural com
as necessidades básicas de sobrevivência.
Mas, o que a Etnomusicologia tem a ver com isso? E de que forma esta realidade
“extramuros universitários” afeta a Etnomusicologia na Paraíba? Evidentemente, não há

SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 34

uma resposta definitiva para estes problemas. A presença do pesquisador, que é


constantemente convocado a participar de discussões, elaborações e análises de
propostas de leis e projetos culturais, pode ser fundamental neste aspecto. Em muitos
momentos, quando os pesquisados não dispõem de instrumentos para dar conta da
realidade burocrático institucional da cultura, o papel do pesquisador pode ser valoroso
para suas vidas, desde que o compromisso ético-científico seja priorizado.
Um fato corrente entre pesquisadores tem sido a ocupação de cargos públicos no campo
da cultura. Esta constatação não constitui regra muito menos solução apontada para as
questões aqui discutidas, mas, seja por candidatura ou a convite (em geral, com maior
ocorrência), esse tem sido um caminho verificável, pelo qual alguns pesquisadores
encontram saídas para uma participação mais eficaz e com possibilidade de alcançar
resultados que se aproximam mais das necessidades observadas no diálogo com seus
interlocutores do campo. Temos como exemplo, os autores, acima citados, que
realizaram pesquisas sobre os cocos na Paraíba, Mário de Andrade, Altimar Pimentel e
Maria Ignez Ayala e exerceram cargos públicos na área da cultura.
Entre os importantes avanços alcançados pelos fazedores da cultura na Paraíba, (agentes
de cultura, pesquisadores, gestores públicos) podemos destacar a concessão de 24 títulos
de mestres das artes, dentro do número possível de trinta concessões, como está na lei
“Canhoto da Paraíba”, aprovada em 2004. Entre os já beneficiados, estão as Ceguinhas
de Campina Grande (Maroca, Poroca e Indaiá), Benedito do Rojão, Teca de Cabedelo,
Mousinho e Caximbim, Mané de Bia, Zabé da Loca e Baixinho do Pandeiro. Todos
estes cantadores de coco.
No texto intitulado “Considerações sobre a importância do Inventário dos Cocos do
NE”, anexado ao relatório da primeira fase, enviado ao IPHAN, os autores comentam:

Os cocos do Nordeste são hoje um gênero em plena vitalidade, cantado, dançado e


apreciado por muita gente, gente velha, gente adulta e gente bem moça. Trata-se de
uma tradição musical muito rica, que também merece ser mais bem conhecida e
valorizada por todos nós. Por outro lado, devemos lembrar que o tratamento
dispensado à cultura oral varia bastante nesta grande região, principalmente quando
se trata de comunidades tradicionais, negras, indígenas, existentes na periferia das
cidades e em áreas rurais. São pouquíssimos os cantadores e dançadores existentes
em comunidades tradicionais que ganham evidência. Raras exceções em meio a
inúmeros que continuam sem acesso aos bens mínimos, necessários à cidadania
(AYALA; AYALA; SANDRONI, 2009, p.16).

Muitas respostas surgem dos próprios grupos e pessoas estudadas, uma vez que eles não
pararam no tempo para esperar soluções para os seus problemas. Os conflitos entre
coquistas e gestores das políticas públicas existem e se dão em meio às ações
continuadas destes grupos, principalmente aquelas voltadas para manutenção da
brincadeira dos cocos nos eventos próprios das suas comunidades, não deixando de
atender convites daqui e dali, agarrando todas as oportunidades que lhes aparecem. Aos
estudiosos cabe a participação para além da pesquisa em si, como também concluem os
autores do texto acima citado.

Ter-se-á, por um lado, o Inventário dos Cocos do Nordeste pronto, o que é


fundamental para a obtenção do registro desta forma de expressão. Por outro lado,

SANTOS, Eurides de Souza. Modos de Pensar, Modos de Fazer na Pesquisa sobre a Brincadeira dos Cocos na Paraíba. Música e Cultura, vol. 6, p. 26-
36, 2011. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Eurides-Santos.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 35

teremos condições de avaliar quais comunidades precisam de um plano de


salvaguarda que lhes garanta não só a continuidade da forma de expressão que lhes
dá identidade cultural, mas que possa servir como um instrumento para dar mais
visibilidade e condições de inclusão através da cultura comunitária de tradição oral
(Idem. Ibidem).

À guisa de conclusão, os cocos da Paraíba, nas suas diversas formas, são cantados no
labor cotidiano, nos momentos de lazer, aniversários, como canção de ninar, nas festas
comunitárias, nos rituais religiosos, a exemplo das novenas, do toré e do culto da
jurema. Estão presentes em trilhas sonoras, nos corais, nas bandas de pífano, no
carnaval, nos programas de rádio, nas escolas. Situações estas que perpassam e ao
mesmo tempo exigem atuações eficazes nas políticas públicas.

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Acervo FUNARTE de Música Brasileira, 57.
GRUPO FOLCLÓRICO. Coco de roda e ciranda Mestre Benedito. Cabedelo: Produção
e direção artística de Tadeu Patrício, 2007. 1 CD.
MANÉ DE BIA [Manoel Mariano da Silva] Com o coco eu desafio o mundo: cocos
aboios e outros poemas. Organização e pesquisa de Maria Ignez Ayala. João Pessoa:
Meio do Mundo/ Campina Grande: Bagagem, 2009.
DESENCOSTA DA PAREDE. O canto-dança da comunidade de Caiana dos Crioulos,
em Alagoa Grande. Projeto Memória Musical da Paraíba. Vol.3. Produção de Socorro
Lira S.l:.Sn, 2007. 1 CD.
VÓ MERA. Vó Mera e seus netinhos. João Pessoa: DECOM/UFPB, 2007. 1 CD.

Documentários (filmes e vídeos)

A PESSOA É PARA O QUE NASCE. Direção de Roberto Berliner, 84 min, 2004. 1


DVD.
A BRINCADEIRA DOS COCOS. Direção de Elisa Cabral e Argumento e pesquisa de
Maria Ignez Novais Ayala, 1997. (Vídeo gravado em SVHS e VHS/NTSC).
CHICO ANTÔNIO - o herói com caráter. Direção de Eduardo Escorel, 35mm, cor, 40
min, 1983.
EU TIRO O COURO DO DANÇADOR – Coco de tebei. Argumento e pesquisa de
Gustavo Vilar, 2008. (DVD)
GRUPO FOLCLÓRICO. Coco de roda e ciranda Mestre Benedito. Produção e direção
artística de Tadeu Patrício. Cabedelo: S.n., 2007. ( DVD).

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Música e Cultura, vol. 6 39

Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará

Liliam Barros

Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar a produção etnomusicológica no Pará, focalizando as
pesquisas atuais. Oferece breve histórico institucional relacionado à produção de dissertações e
teses de doutorado na região, culminando com um esboço interpretativo de tais produções.
Palavras-Chave: Produção etnomusicológica no Pará; pesquisas atuais; histórico institucional;
dissertações e teses.

Abstract
This article aims to present the ethnomusicological production in Pará state focusing on current
researches. It offers a brief institutional history related to the production of dissertations and
doctoral theses in the region, culminating with an interpretative outline of such production.
Keywords: Ethnomusicological production in Pará; current researches; institutional history;
dissertations and doctoral theses.

Poesia, literatura e música no Pará

Este texto pretende discorrer sobre pontos importantes do processo de produção de


conhecimento sobre música no Pará, considerando-se alguns caminhos percorridos ao
longo do século XX e XXI. Trata-se de um olhar pontual, com a intenção de apresentar
o que se produz em etnomusicologia atualmente no Pará1.
Inicialmente destaca-se a presença de fontes literárias com informações sobre aspectos
da cultura musical paraense de regiões como Marajó, descritas em obras de Dalcídio
Jurandir (2008), João Vianna, Padre Giovanni Gallo; do oeste do Pará e baixo
amazonas, com as obras de Inglês de Souza (2004); e com a poesia de Bruno de
Menezes (1993), que interpreta a cultura paraense do cenário urbano de Belém,
notadamente, além de Benedito Monteiro (1975) e Eneida de Moraes com o seu
belíssimo Aruanda e Banho de Cheiro, entre muitos outros.
Estudiosos da cultura musical paraense e da produção artística paraense como Nunes
Pereira (que se debruçou sobre a Amazônia como um todo), Bruno de Menezes,
Armando Bordallo e seu estudo sobre a cultura bragantina, Benedito Nunes e João de
Jesus Paes Loureiro com suas reflexões sobre filosofia e arte, correspondem a um outro
segmento de geração de conhecimento sobre cultura musical paraense. Neste cenário,
deve-se ressaltar a atuação de Vicente Salles, que recebeu o título de Doutor Honoris
Causa em 2011. Estes estudos formam uma base cuja herança continua contribuindo
1
Agradeço a Sônia Chada e a Paulo Murilo Guerreiro do Amaral pela revisão e diálogos sobre
este artigo.

BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 40

para as pesquisas sobre música no Pará. Outros autores como Lühning (2004) e
Travassos (2005) apontaram os estudos sobre culturas musicais locais como precursores
de pesquisas etnomusicológicas na Bahia e no Brasil, respectivamente.

O ensino de música e a pesquisa no Pará

As instituições de ensino de música de Belém como o centenário Instituto Estadual


Carlos Gomes (IECG) e a Escola de Música da UFPA (EMUFPA) foram geradas com
vocação para a performance.
Assim como o Instituto Estadual Carlos Gomes, a Escola de Música da UFPA tem
como objetivo a formação de músicos em nível técnico, e seus professores integram o
programa de qualificação docente descrito em itens abaixo, com produção científica
ativa na área de etnomusicologia.

Incremento da produção científica sobre música paraense

A partir da criação do Curso de Educação Artística na então Faculdade de Educação do


Pará da Fundação Educacional do Pará em 1989 (FEP), hoje Universidade Estadual do
Pará (UEPA), teve início a produção de trabalhos de conclusão de curso voltados para a
cultura musical paraense. Tal produção também teve continuidade a partir da criação do
Curso de Educação Artística Habilitação em Música da Universidade Federal do Pará
(UFPA), em 1991 (VIEIRA, 2009).
Outras ações voltadas à qualificação docente oportunizadas pela UEPA e pela UFPA, a
exemplo das Especializações em Arte-Educação [2002] e Fundamentos da Criação
Musical [2008-2009], respectivamente; ainda pela UEPA, da Especialização em Ensino
das Artes na Educação Básica [2004] e do Mestrado Interinstitucional (Minter) com as
Universidades de São Paulo (USP) e Federal do Pará (UFPA); e por fim, do Doutorado
Interinstitucional (Dinter) e Minter da UFPA com a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), iniciado em 2008, contribuíram significativamente para o incremento da
pesquisa em música no Pará. Tais esforços compreendem um plano de qualificação
docente para o Pará.

Etnomusicologia no Pará

A Etnomusicologia está presente no cenário das pesquisas em música no Pará,


principalmente, nos Grupos de Pesquisa das Universidades Estadual e Federal do Pará,
respectivamente, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Música – GEPEM, o recém-criado
Grupo de Estudos sobre Música na Amazônia – GEMAM e o Grupo de Pesquisa
Música e Identidade na Amazônia – GPMIA. No âmbito da pós-graduação, ocorreu em
2001 um MINTER entre a UEPA, a UFPA e a Universidade de São Paulo (USP), dentro
de um planejamento local de qualificação docente. Dessas dissertações, três renderam
trabalhos voltados para a área da etnomusicologia, com trabalhos sobre Cordões de
Pássaros (SILVA, 2003), o choro no Pará (MORAES, 2003) e o carimbó de Algodoal
(BLANCO, 2003). Paralelamente, pesquisadores não-vinculados a instituições também

BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 41

realizavam suas dissertações de mestrado e teses de doutorado na área de


Etnomusicologia com trabalhos sobre música indígena no Alto Rio Negro (BARROS,
2003, 2006), o carimbó urbano de Belém e o brega paraense (AMARAL, 2003, 2009), e
os espaços de apresentação do boi-bumbá em Belém (LAGO, 2006).
No âmbito da UFPA, o GPMIA só veio a ser criado no ano de 2007, congregando
diversos pesquisadores da área de Etnomusicologia, ligados ao MINTER e DINTER
UFPA/UFBA, cujas teses e dissertações também estão voltadas para a área de
Etnomusicologia. Pode-se dizer que, num espaço de pouco mais de sete anos, as
pesquisas na área têm se intensificado, o que pode ser comprovado nos artigos
apresentados nos anais da ABET. Tais pesquisas têm buscado, principalmente, a
compreensão da diversidade de práticas musicais paraenses, situando-se em regiões
diferenciadas como o Nordeste Paraense, a zona Bragantina e Marajoara, além da área
urbana da cidade de Belém, bem como em outras regiões da Amazônia, a exemplo do
Alto Rio Negro. Á exceção do Alto Rio Negro, no Estado do Amazonas, as demais
áreas onde ocorreram investigações etnomusicológicas ficam próximas à capital do
Estado.
Pesquisas realizadas junto a órgãos públicos de fomento como o Instituto de Artes do
Pará e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN também
envolveram tais pesquisadores e geraram trabalhos de cunho etnomusicológico nas
zonas Marajoara e Bragantina2. Tais trabalhos oportunizaram inventário de repertórios
musicais da Marujada de Bragança, bem como um panorama do conhecimento de
confecção e execução da rabeca, instrumento deveras importante para esta manifestação
cultural (MORAES et al, 2005); e a compreensão do processo de transmissão musical
das folias de São Sebastião, em Cachoeira do Arari, Marajó (BARROS; ABUFAIAD,
2008).
Ações e seminários realizados em torno da temática da proteção dos conhecimentos
tradicionais vêm mobilizando instituições de pesquisa da Amazônia como o Museu
Paraense Emílio Goeldi, o Instituto de Pesquisas da Amazônia – INPA, a Universidade
federal do Pará através do Setor de Propriedade Intelectual, vinculado à pró-reitoria de
pesquisa e outras, a aprofundarem discussões e ações em conjunto com as sociedades
tradicionais da Amazônia através da Rede Norte de Propriedade Intelectual,
Biodiversidade e Conhecimento Tradicional (Belas, Moreira e Barros, 2003), criada em
20033, cujas temáticas estão aqui e acolá tangenciando o campo da música. O seminário
ocorrido em 2004, intitulado “Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural: proteção
dos conhecimentos e das expressões culturais tradicionais”, contou, inclusive, com uma
mesa composta por etnomusicólogos que discutiram temas relacionados com
propriedade intelectual, direitos autorais, acervos, gravações e outros. Tais seminários
têm rendidos publicações anuais frutos destas discussões (BELAS; MOREIRA;
BARROS, 2003; B.BARROS et al, 2003 MOREIRA et al, 2004).

2
INRC Marajó; Tocando a Memória – Rabeca.

3
A Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional foi
criada por ocasião do Seminário “Saber Local/Interesse Global: Propriedade intelectual,
biodiversidade e conhecimento tradicional na Amazônia”, realizado pelo Museu Paraense
Emílio Goeldi e Centro Universitário do Pará – CESUPA em 10,11 e 12 de setembro de
2003.

BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 42

Os Grupos de Pesquisa acima citados têm atuado no sentido de promover a dinamização


das produções etnomusicológicas atuais através de encontros, tais como os Fóruns de
Pesquisa em Arte, realizados anualmente pelo Instituto de Ciências da Arte da UFPA
(ICA/UFPA), já na sua quinta edição, os Encontros de Arte da UFPA
(ENARTE/UFPA), realizados pela Escola de Música da UFPA (EMUFPA), que
abrigam em seu bojo o Seminário de Pesquisa em Música. Os grupos de pesquisa vêm
consolidando seminários internos e em parcerias a exemplo do I Seminário de Pesquisa
do GPMIA, ocorrido em 2009, e do I Colóquio Amazônico de Etnomusicologia,
ocorrido em 2011. Apesar de sua pequena abrangência (na comparação com eventos de
porte regional/nacional), tais iniciativas representam um panorama da produção local
em Etnomusicologia.
A pesquisa em música no Pará se verifica, também, com projetos em outras áreas como
Educação Musical, Musicologia Histórica, Composição e Performance Musical,
fomentadas pelo MINTER E DINTER CAPES/SETEC já mencionados anteriormente,
além do Curso de Especialização em Processo de Criação Artística, ofertado pelo
Instituto de Ciências da Arte em 2008 com 25 vagas. Anteriormente, em 2005, havia
sido ofertado pela UEPA o Curso de Especialização em Educação, de onde emergiu
mais uma pesquisa na área de Etnomusicologia (BARBOSA e SOUZA, 2005 ).
Por fim, foi aprovado em 2008 o Programa de Pós-Graduação em Artes, inaugurando o
primeiro Mestrado em Artes na Amazônia, que congrega três linguagens artísticas –
Artes Visuais, Artes Cênicas e Música – e apresenta as linhas de pesquisa Artes
Contemporâneas e Transmissão, Criação e Recepção nas Artes. A área de concentração
Música está ligada à última linha de pesquisa e, no momento, admite projetos nas áreas
de Educação Musical e Etnomusicologia (em razão do perfil de seu corpo docente). Em
2011 foram defendidas 22 dissertações de mestrado no PPGARTES/ICA, dentre elas, 4
na sub-área música e 2 em etnomusicologia (LUZ, 2011; MONTEIRO, 2011). Neste
ano foi defendida a dissertação de (MONTEIRO, 2010), no âmbito do MINTER, que
aborda aspectos da identidade musical do Carimbó de Salinópolis, Nordeste do Pará.
Em 2011 foi defendida uma tese sobre os impactos de uma ação institucional na prática
musical da Marujada em Bragança, interior do Pará (RAIOL, 2011), oriunda do
DINTER UFPA/UFBA. Na área da pesquisa em música indígena na Amazônia, Gabbay
(2011) buscou compreender os contextos de apresentação do repertório de ahãdeakü na
cidade de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, com um olhar multiétnico do cenário
urbano desta cidade cuja população é majoritariamente indígena.
Observa-se um movimento em busca da compreensão das práticas musicais locais, com
90% dos estudos voltados para tais temáticas e, de certa forma, engajada com os loci
culturais observados, procurando contribuir a partir de suas demandas, mas certamente
de interesse global ou pelo menos nacional.
Num esforço de compreensão dos caminhos trilhados neste cenário de pesquisas em
etnomusicologia no Pará, e correndo o risco de incorrer em reducionismos, os pontos
abaixo são ressaltados:
a) A maioria dos trabalhos demonstra interesse nas etnografias musicais sobre a
diversidade musical paraense, buscando compreender os sentidos das práticas
musicais observadas, a partir de diálogos interdisciplinares com antropologia;

BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 43

b) Abordagens acerca das tecnologias, urbanidades e inovações, buscando discutir


trânsitos e dinâmicas de práticas musicais em situações de transformações e
utilização de novos canais de difusão, transmissão, criação e recepção musical;
c) Trabalhos voltados para a discussão sobre a preservação/proteção do patrimônio
imaterial e ações institucionais, incorporados a ações implementadas pelas
comunidades interessadas em inventários e políticas de fortalecimento de suas
práticas musicais. Observa-se um cenário já mencionado por Tiago Oliveira
Pinto (2008) como tendência da etnomusicologia no Brasil;
d) Trabalhos voltados para a música indígena na Amazônia, estando estes
preocupados com aspectos da identidade e etnicidade e a ligação entre mito e
música. Tais trabalhos têm procurado dialogar com a literatura da área sobre as
Terras Baixas da América do Sul (ver BASTOS, 2007) e tem dialogado com a
literatura da etnologia amazônica. Os primeiros trabalhos estavam voltados para
a abordagem da identidade indígena no cenário musical da cidade de São
Gabriel da Cachoeira. Contudo, a produção etnomusicológica sobre música
indígena no Pará ainda deve ser considerada tímida, ante à necessidade e
demanda dos povos indígenas da região.
Importante destacar que a disciplina etnomusicologia no Pará vem se construindo no
âmbito dos cursos de graduação e pós-graduação em música em artes. Os trabalhos
resultantes apresentam amparos teórico-metodológicos fundamentados nas orientações
etnomusicológicas dialógicas com a etnomusicologia norte-americana (TRAVASSOS,
2005), ressaltando a afinidade com a idéia da antropologia da música. Contudo, há o
esforço em construir argumentações que aglutinem os conceitos sobre música e “as
sociabilidades, visões de mundo e rituais”, em consonância com o que Elizabeth
Travassos comenta em seu artigo sobre a etnomusicologia no Brasil (2005, pg 7).
No quadro geral apresentado, ressalta-se a grande lacuna nos estudos sobre música de
herança africana, marcadamente as relacionadas com a religiosidade. Exceção feita à
gravação de CDs organizados pela antropóloga Anaíza Virgulino em cooperação com o
etnomusicólogo Mário Brasil (Universidade de Brasília), editados pela Secretaria de
Cultura do Pará e aos trabalhos de Lago (2006) e Monteiro (2010).

Diagnóstico dos grupos de pesquisa e da produção científica

Ainda que a Amazônia tenha sido uma das quatro prioridades estratégicas do Plano de
Ação em C, T&I para o Desenvolvimento Nacional -2007/2010 (MCT, 2010), observa-
se oferta tímida de ações focalizando a pesquisa em música e maiores projeções em
temas como sustentabilidade, desenvolvimento e afins. Neste sentido, o acesso a este
fomento dá-se através do tangenciamento entre a pesquisa em música e as outras
temáticas. Por outro lado, o crescimento da quantidade de bolsas de mestrado,
doutorado e pós-doutorado tem oportunizado o desenvolvimento de estudos na região.
Verifica-se expressiva expectativa de formação de mestres e doutores em música por
conta do programa de qualificação docente financiado pela CAPES/SETEC, do qual
resultará em mais três teses de doutorado em etnomusicologia, totalizando um
contingente de 6 doutores na área, sendo 5 (cinco) da UFPA e 1 (uma) da UEPA. Tais

BARROS, Liliam. Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará. Música e Cultura, vol. 6, p. 37-44, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Liliam-Barros.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 44

recursos humanos atuarão na Escola de Música da UFPA, nos cursos técnicos em


música e na Licenciatura Plena em Música, além da possibilidade de atuação no
Programa de Pós-Graduação em Artes.

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Música e Cultura, vol. 6 47

O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa:


Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a
Comunidade Negra dos Arturos e a Associação Cultural
Arautos do Gueto em Minas Gerais1

Glaura Lucas

Resumo
Trata-se de uma reflexão sobre os modos de fazer o trabalho de campo, quando o estudo
etnomusicológico inclui a perspectiva da pesquisa-ação participativa. O foco são as relações
humanas, bem mais intensas e dialógicas nesse tipo de pesquisa, realçando a importância de se
considerarem eventuais mal-entendidos nas interações que evidenciam maior distanciamento
cultural entre as partes, buscando formas de minimizá-los. Os exemplos abordados emergem de
um processo de pesquisa em andamento, tendo como parceiras a Comunidade Negra dos
Arturos, situada em Contagem, Minas Gerais, e a Associação Cultural Arautos do Gueto, com
sede no Morro das Pedras, em Belo Horizonte. A partir da discussão sobre esses exemplos,
tecem-se finalmente algumas considerações sobre as implicações, para os cursos de graduação e
pós-graduação, da busca crescente dos alunos por essa modalidade de pesquisa compartilhada.
Palavras-chave: Trabalho de campo; pesquisa-ação participativa; Comunidade Negra dos
Arturos; Associação Cultural Arautos do Gueto; cursos de graduação e pós-graduação

Abstract
This paper aims at discussing ways of developing fieldwork, when the ethnomusicological study
is carried out according to the perspectives of a participatory action research. It focuses on the
human relations, which become more intense and dialogical in this type of research. The
importance of considering occasional misunderstandings throughout the process is highlighted,
especially when there is a greater cultural gap between researcher and the people whose music
is being researched, and forms of reducing them are discussed. The examples approached
emerge from a research in progress, which is being developed together with Comunidade Negra
dos Arturos (Black Community of Arturos), located in Contagem, Minas Gerais, Brazil, and the
Associação Cultural Arautos do Gueto (Arautos do Gueto Cultural Association), which is
situated in Morro das Pedras, in Belo Horizonte, Minas Gerais. The text ends with some
considerations about the consequences, for higher education, of an increasing interest in this
mode of shared research, by students.

1
Este texto é uma ampliação do que foi apresentado no V Encontro Nacional da Associação
Brasileira de Etnomusicologia, no Painel intitulado Modos de fazer etnomusicologia: o que
estamos construindo para o futuro? Agradeço à Presidente da ABET, Maria Elizabeth
Lucas, à diretoria da ABET e à comissão organizadora do VENABET, o convite para
participação nesse Painel. Sou grata também a José Alberto Salgado e Silva pelo convite
para a publicação deste texto. Meus agradecimentos se estendem aos dois pareceristas
anônimos por suas valiosas contribuições ao texto.

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 48

Keywords: Fieldwork; participatory action-research; Comunidade Negra dos Arturos;


Associação Cultural Arautos do Gueto; undergraduate and graduate courses

O Painel “Modos de fazer etnomusicologia: o que estamos construindo para o futuro?”,


no V Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia, nos convidou a refletir
sobre tendências e desafios na condução da pesquisa etnomusicológica na atualidade, e
assim vislumbrar as implicações futuras das ações presentes, com suas concepções e
intenções subjacentes. Neste sentido, nossa reflexão se volta para os modos de se fazer o
trabalho de campo, quando o processo inclui a perspectiva da pesquisa-ação
participativa. O foco são as relações humanas, que se tornam bem mais intensas e
dialógicas nesse tipo de pesquisa, e sobre a importância de se considerarem possíveis
“diálogos de surdos”2, ou de mal-entendidos, nas interações que evidenciam um
distanciamento cultural, buscando formas de minimizá-los. Essas reflexões emergiram
dos desafios enfrentados em uma pesquisa em andamento que venho desenvolvendo
junto à Escola de Música da UFMG, a qual tem como parceiras a Comunidade Negra
dos Arturos, situada em Contagem, e a Associação Cultural Arautos do Gueto, com sede
no Morro das Pedras em Belo Horizonte.
Assim como a etnomusicologia contribuiu para a conscientização na academia da
diversidade da noção de música, evidenciando a pluralidade de contornos conceituais
culturalmente construídos em torno dessa noção 3, também a etnomusicologia se percebe
plural, dada a variedade de abordagens, de finalidades, de métodos de pesquisa e
perspectivas analíticas que se desenvolveram e se desdobram atualmente no âmbito de
seu campo de estudos. Dessa forma, são múltiplos também os modos com que se
desenvolveram as interações sociais específicas entre o(a) pesquisador(a) e participantes
da prática musical estudada, desde que a etnografia tornou-se método fundamental de
pesquisa. Diálogos interculturais e interpessoais, construídos nas interações em campo,
sempre estiveram na base da pesquisa interpretativa, a qualidade de seus resultados
estando condicionada à sensibilidade do pesquisador de aproximar-se das concepções e
percepções locais sobre a música em foco e sua prática. Embora esse processo de
pesquisa produza impactos em ambas as partes dessas relações, por vezes levando a
uma mútua aprendizagem, ele não obstante sempre deixa transparecer a distância entre
as partes envolvidas, no que diz respeito aos objetivos e motivações para a participação,
e também aos benefícios gerados pelo processo, uma vez que se constróem a partir de

2
Para o antropólogo Wyatt MacGaffey (1986), ‘diálogo de surdos’ exprime uma situação de
mútua incompreensão numa interação social marcada por distanciamento cultural entre as
partes. Essa expressão foi usada primeiramente por Albert Doutreloux para se referir às
relações entre colonizadores e colonizados, “marcadas por uma profunda ambiguidade”, no
Mayombe (Doutreloux, 1967: 261). Prefiro, no entanto, me referir a esse tipo de
comunicação, em que se destaca a mútua incompreensão dos suportes conceituais e
perceptivos que embasam os discursos e demais interações, como diálogos de mal-
entendidos.

3
Samuel Araújo, por exemplo, propõe a expressão ‘trabalho acústico’, que nos ajuda a
desconstruir os condicionamentos colados ao termo música no uso dominante, vendo-a assim
como uma prática que origina-se do “processo abstrato de se trabalhar o tempo
acusticamente” (Araújo, 1992: 217, tradução minha).

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 49

relações assimétricas de poder, determinadas que são por condições sociais e políticas
desiguais entre pesquisador e pesquisados4.
Nas últimas décadas do século XX, os modos de representação etnográfica herdados das
relações colonialistas passaram a ser questionados mais fortemente e, portanto, também
a autoridade etnográfica, entendida não apenas sob a ótica da desigualdade entre as
partes, independentemente do grau de distanciamento cultural entre elas, mas também,
conforme aponta José Reginaldo Santos Gonçalves,

.. no sentido de se pensarem as estratégias retóricas pelas quais o “autor” (...)


constrói a sua presença (ou ausência) no texto, assegurando em termos
epistemológicos (mas também,(...) em termos de poder) a legitimidade do seu
discurso sobre aquele contexto social e cultural a ser representado. (GONÇALVES,
2008, p. 13)

No âmbito da etnomusicologia, respostas a esses questionamentos incluem o


fortalecimento da etnomusicologia aplicada e da perspectiva da pesquisa ação e da
pesquisa participativa:

Etnomusicologia aplicada é a abordagem guiada pelos princípios da


responsabilidade social, a qual ultrapassa a meta acadêmica usual de alargamento e
aprofundamento da compreensão e do conhecimento, indo na direção da solução de
problemas concretos e na direção de se trabalhar tanto dentro quanto além dos
contextos acadêmicos típicos. (HARRISON; MACKINLAY; PETTAN, 2010, p. 1,
tradução minha)

[Pesquisa-ação e pesquisa participativa] têm em comum o propósito de permitir ou


de facilitar experiências e a construção de conhecimentos compartilhados entre
pesquisadores e membros ou atores implicados na situação observada, na qual,
conjuntamente, são identificados problemas e propostas soluções ou ações de
diversos tipos e alcance, respeitando critérios éticos aceitos pelas partes
interessadas. (THIOLLENT, 2008, p. 189).

A importância desse tipo de abordagem vem se destacando na etnomusicologia


brasileira na última década, a partir dos projetos pioneiros desenvolvidos pelo
Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ, sob coordenação de Samuel Araújo (projetos
‘Música, Memória e Sociabilidade na Maré: um estudo etnomusicológico colaborativo
em uma comunidade do Rio de Janeiro’ e ‘Gerações do Samba nas Comunidades da
Formiga e Salgueiro: uma Proposta de Pesquisa em Etnomusicologia Aplicada’), cujos
resultados variados vêm inspirando a disseminação da perspectiva do trabalho
compartilhado pelo país5.

4
Ver Vincenzo Cambria (2008) para uma reflexão interessante sobre essas interações sob a
ótica da noção de ‘diálogo’.

5
Ver, por exemplo, Araújo, S. (2004), Araújo, S. et al (2006, 2007), Cambria, V. (2004).
Exemplos de, e reflexões sobre processos compartilhados de pesquisa e ação participativa
encontram-se também em Lucas, G. (2006), Marques, F. (2008), e Tugny R. (2009a e
2009b).

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 50

Dentre as ações possíveis para essas modalidades de pesquisa, podemos citar as de


alcance mais amplo, como a participação do pesquisador na formulação de políticas
públicas; na organização de arquivos e museus; em projetos pedagógicos; na condução
do registro e inventário de tradições culturais, e também as de impacto mais localizado,
como a sua atuação na defesa do patrimônio musical de grupos específicos, e na
concretização de projetos de interesse comunitário.
A especificidade de tais modalidades de pesquisa e a maneira como são conduzidas
contribuem ainda mais para a diversificação da prática etnomusicológica, na medida em
que seu percurso:
1) busca conciliar modos de pensar e de fazer acadêmicos com modos de pensar e
de fazer praticados pelo grupo com o qual se desenvolve a pesquisa;
2) se abre para a possibilidade de gerar resultados e produtos variados, e outras
formas de intervenção social, para além do geralmente esperado texto escrito
(confecção de cds e dvds, realização de eventos, desenvolvimento de projetos
educacionais, implementação de centro de memória e organização de acervos
documentais, etc.); e
3) embora também se construa a partir da especificidade das interações sociais
entre o(a) pesquisador(a) e os demais participantes do grupo, essas envolvem,
além da qualidade dos intercâmbios e aprendizados mútuos, as muitas variáveis
do processo de definição dessa relação. Tais intercâmbios podem se tornar tão
mais intensos quando o diálogo desvela formas distintas de concepção e
percepção não apenas da noção de música e do contexto de sua prática, como
também – em função da ação compartilhada – dos próprios modos de fazer e dos
modos de pensar que os norteiam.
Sobre essa questão, Samuel Araújo observa:

Durante uma pesquisa participativa é de se esperar que tanto as questões quanto o


foco das ações possam mudar à medida que novas interpretações sobre aspectos
significativos da prática musical vão emergindo, o que torna esse tipo de pesquisa
simultaneamente mais dinâmico e desafiador. (ARAÚJO, 2004, p. 2)

Gostaria então de compartilhar algumas reflexões e inquietações em torno da


experiência de pesquisa que inclui a perspectiva da pesquisa aplicada e de ação
participativa com dois grupos de práticas sócio-musicais distintas, atuantes na Região
Metropolitana de Belo Horizonte.
Um é a Comunidade Negra dos Arturos, agrupamento familiar situado em
Contagem/MG, reconhecido pelo conjunto de tradições culturais que mantém e recria,
enraizadas na experiência de seus antepassados, como o Reinado (Congado), a Folia de
Reis, a Festa da Abolição, o Batuque, a Festa de Capina (esta, já bem menos frequente),
além de um conjunto de práticas tradicionais cotidianas, como a culinária, a benzeção e
o uso de ervas medicinais6. Sendo o festejar e a performance elementos fundamentais da
6
Uma experiência anterior de pesquisa ação-participativa com os Arturos se deu no processo
de realização coletiva do cd-livro contendo parte do patrimônio musical do Reinado
(Congado) praticado pela comunidade (Lucas, G. e Luz, J. B. (coords.), 2006). Mesmo

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 51

dinâmica de vivências e relações da comunidade, novos eventos também vão sendo


promovidos, alguns se incorporando ao calendário da comunidade, como as festas
juninas altamente elaboradas, e outros propostos mais esporadicamente, como o auto
das pastorinhas, por exemplo.
Como parte desse movimento, criou-se há uns vinte anos um grupo formado por
adolescentes e jovens da comunidade, que trabalham a música, a dança e o teatro
artisticamente, com vistas ao espetáculo. Esse grupo veio a se chamar Filhos de Zambi,
e vem cumprindo funções muito importantes para a engrenagem que mantém a proteção
e a continuidade das tradições da família. Utilizando aqui a distinção elaborada por
Thomas Turino (2008), o grupo satisfaz a vontade dos jovens de se engajarem em
performances para apresentação pública, em palco, ao mesmo tempo em que fortalece
os sentidos de pertencimento à família, motivando o seu empenho para com as
performances participativas de interesse comunitário. Os Arturos em geral percebem
muito bem essa distinção, ao contrário de muitos visitantes provenientes dos mais
variados setores sociais, que tendem a projetar uma visão naturalizada e unívoca de
música sobre suas práticas, visão esta que a percebe apenas como entretenimento,
voltada para apresentação para um público. E exatamente por se alinhar ao tipo de
prática musical mais dominante fora da comunidade, a do entretenimento, o grupo
Filhos de Zambi é oferecido às demandas externas de participação dos Arturos em
apresentações sem cunho religioso, se tornando assim um escudo para as práticas
musicais consideradas sagradas.
O outro grupo é a Associação Cultural Arautos do Gueto, projeto artístico, educacional
e de ação social criado em 1996 por moradores do Morro das Pedras, aglomerado de
favelas situado na região oeste de Belo Horizonte. O projeto, com sede no próprio
Morro, é voltado para crianças, adolescentes e jovens habitantes do aglomerado, tendo a
música e a dança como eixos principais. A Associação criou vários grupos – de dança,
de percussão mirim, de percussão dos jovens, e a banda show. A identidade musical dos
grupos, tema recorrente das reuniões da coordenação, parte das conexões que têm com
gêneros contemporâneos que projetam alguma forma de identidade negra, incluindo
contudo expressões de elementos menos conscientes construídos culturalmente ao longo
da história de vida deles no ambiente do Morro.
Arturos e Arautos são colaboradores no projeto de pesquisa mais amplo que venho
desenvolvendo intitulado: “Memória e Reconstrução de Significados em Práticas
Musicais de Negros na Região Metropolitana de Belo Horizonte”. O projeto visa
compreender como grupos tradicionais recriam significados e revigoram valores em
suas práticas a partir da maneira como articulam a memória e as demandas atuais e
como grupos recém-constituídos expressam, incorporam e projetam sentidos
contemporâneos de identidade étnica a partir de sua prática musical. Embora tenha
como parceiros principais os Arturos, em especial os Filhos de Zambi, e os Arautos, a
pesquisa pretende um olhar mais amplo, buscando identificar e relacionar elementos
sonoros e os modos de fazer, de conduzir socialmente a música no tempo, em vários
depois de ter desenvolvido pesquisas de mestrado e doutorado sobre o Reinado desse grupo
(Lucas, G. 2002 e 2005), as quais buscaram uma interação intensa com vários participantes e
a inclusão criteriosa de suas vozes no texto final, o processo dialógico para a realização
coletiva do cd-livro configurou-se como um contexto especialmente mais rico, revelador e
extremamente gratificante de aprendizagem e de atuação.

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 52

ambientes musicais afrodescendentes ou que de alguma forma evocam uma associação


identitária com referenciais culturais de matriz africana. A pesquisa almeja, como
desdobramento, levantar subsídios para contribuir para a elaboração de projetos
pedagógicos voltados ao cumprimento combinado das leis 11.769, que torna obrigatório
o ensino de música na educação básica e a 10.639, atualizada como 11.645 que obriga a
inclusão da temática de história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial
da rede de ensino. Ressalto que esse é um interesse que vem também sendo considerado
por ambos os grupos.
A história de dezesseis anos de relacionamento contínuo com os Arturos e de quatorze
anos com os Arautos, nos proporciona uma condição privilegiada de observação daquilo
que se constitui como valor e significância no trato da memória e nos processos de
produção de sentido em suas músicas ao longo dos anos, ao mesmo tempo em que
favorece conciliar os objetivos gerais dessa pesquisa ao atendimento de demandas locais
variadas, sejam aquelas vindas a partir de eventuais necessidades específicas dos
grupos, sejam as feitas em resposta à minha proposta de que a pesquisa assumisse o
formato de pesquisa ação-participativa. Dessa forma, essas iniciativas incluem desde
intervenções mais pontuais enquanto uma aplicação social do conhecimento
etnomusicológico e acadêmico em geral, até processos mais extensos e elaborados de
pesquisa co-participativa. Importante ressaltar que o reconhecimento dessas iniciativas
como pesquisa aplicada ou de ação participativa é obviamente da pesquisadora, que
reflete com os grupos sobre essas denominações. No entanto, elas guardam afinidades
com os modos de fazer dos grupos, para os quais a soma de competências e de opiniões
e a construção dialógica de conhecimentos para a realização coletiva de algo relevante
para o bem comum se configuram como atitude e prática tradicionalmente
significativas.
Da parte dos Arautos do Gueto, o interesse exposto foi o de que os auxiliássemos na
sistematização da metodologia de ensino-aprendizagem que os professores dessa
Associação desenvolveram ao longo desses anos de trabalho. Tendo sido elaborada a
partir das especificidades do contexto, essa metodologia é considerada por eles eficiente
em vários sentidos, na medida em que parte de uma concepção de música ampliada, que
percebe seus significados sociais e culturais como indissociados do som. Defendem,
assim, a qualidade da metodologia, não apenas do ponto de vista do desenvolvimento da
competência técnico-artística musical desejada, como também na formação mais global
das qualidades humanas de auto-confiança, auto-estima, respeito, solidariedade,
companheirismo, dentre outras. Entende-se que a combinação dessas estratégias de
trabalho favorece o desenvolvimento dos sentidos de sociabilidade fundamentais tanto à
prática musical coletiva, quanto às relações interpessoais cotidianas, consequentemente
auxiliando os participantes em sua busca de suas necessidades e na administração de
seus conflitos sociais. O intuito de um dos principais líderes do projeto – José Antônio
Inácio – é o de que as ideias e métodos do grupo fossem organizados para facilitar a
formação de multiplicadores do projeto, e também promover uma divulgação mais
ampla na sociedade, sobretudo para projetos afins, que possam se beneficiar da
experiência deles.
Já do lado dos Arturos, uma demanda expressa pelos atuais integrantes dos Filhos de
Zambi foi a realização conjunta de um documentário sobre a história do próprio grupo,
versando sobre os trabalhos desenvolvidos desde gerações anteriores junto ao grupo.

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 53

Para tanto, os participantes se engajariam em procedimentos de pesquisa da memória


específica desse grupo, através de levantamento, organização e análise documental e de
entrevistas, buscando entender ainda as relações das atuações dos Filhos de Zambi com
o conjunto de práticas promovidas pela comunidade em geral, confrontando igualmente
as opiniões de diferentes gerações da comunidade sobre a atuação do grupo e suas
funções.
As ações desencadeadas por essas demandas contaram com a atuação de dois alunos de
Iniciação Científica. O primeiro deles, Rubens de Oliveira Aredes, participou de aulas,
ensaios e reuniões junto aos Arautos, tendo sido gerado um resultado inicial parcial em
20107, o qual Rubens continua a desenvolver, hoje como aluno do mestrado da Escola
de Música da UFMG. Com relação aos Arturos, Rubens concorreu por iniciativa própria
e foi vencedor de uma Bolsa Funarte de Produção Crítica em Culturas Populares e
Tradicionais/2010, com o projeto “Filhos de Zambi: uma nova estratégia de reprodução
dos valores e significados tradicionais na Comunidade Negra dos Arturos em
Contagem”. Como caminho para sua execução, o aluno sugeriu à comunidade atender à
demanda deles, proporcionando condições para a realização do documentário, com isso
seguindo a trilha da construção conjunta e compartilhada de conhecimentos da ação
participativa. Para tanto, foi oferecido, com recursos do prêmio, um curso de cinema,
incluindo treinamento em filmagem, elaboração de roteiro, edição, etc. e foram
adquiridos os equipamentos necessários. Após essa etapa, nós conduzimos juntos com
um sub-grupo dos Filhos de Zambi o processo de pesquisa gerado pelas demandas do
projeto do documentário8.
Paralelamente à execução dessas duas metas acordadas com as comunidades, outras
demandas vindas dos Arturos, que se caracterizam mais proximamente com a aplicação
de conhecimentos na resolução conjunta de necessidades da comunidade, de um jeito ou
de outro se agregam à pesquisa, na medida em que potencialmente iluminam as
reflexões sobre o trato com a memória e a reelaboração de suas tradições, movimentos
estes que permeiam os próprios sentidos de existência da comunidade e daquilo que
fazem, que sentem, como fazem, porque fazem, etc.. Essas demandas tratam de
iniciativas que representam algum grau de transformação às tradições, devendo portanto
ser analisadas no jogo de forças que impulsiona a memória prospectivamente 9. Dentre
elas, destaco:
e) A avaliação da nova encenação da libertação dos escravos na Festa da Abolição.

7
Os resultados de sua pesquisa foram apresentados no VENABET (Ver Aredes, 2011).

8
Dentre os resultados, estão também um texto final escrito a várias mãos e a construção
coletiva de um blog contendo registros desse processo
(http://arturosfilhosdezambi.blogspot.com/). O documentário continua em processo de
produção.

9
As reflexões em torno dos objetivos da pesquisa mais ampla incluem discussões acerca das
diferentes interpretações das noções de memória, tradição e história. Essas discussões, no
entanto, extrapolam os objetivos desta apresentação sobre as ações compartilhadas com os
grupos parceiros da pesquisa.

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Essa é uma etapa tradicional da Festa da Abolição 10, que acontece no adro da igreja,
com a participação de representantes de vários setores da sociedade, dentre eles o(a)
prefeito(a), vereadores, membros da igreja, reis e rainhas do Reinado, várias guardas e o
público em geral. Sendo realizada em espaço de grande visibilidade, essa etapa era alvo
dos mais frequentes de interferência externa. Membros da Prefeitura, interessados no
potencial turístico do evento, além de artistas e intelectuais vinham pressionando a
comunidade a modificarem essa encenação, considerada ingênua tanto esteticamente
quanto em seu conteúdo. Com efeito, o questionamento em torno dos símbolos oficiais,
como a figura da princesa Isabel e o ‘13 de maio’, só mais recentemente vem
repercutindo entre os Arturos, principalmente os das gerações mais jovens, quanto à
concepção dos significados da festa. Em seus discursos públicos, esses jovens realçam a
importância do evento como espaço de denúncia contra a discriminação racial e de
reivindicação de condições de vida mais dignas para a população negra, por exemplo.
Por outro lado, para os mais velhos, o mais importante é a homenagem que prestam a
seus antepassados que viveram a escravidão, e aos fatos mítico-históricos que
conformam, juntamente com a memória dos relatos dos familiares que os antecederam,
o imaginário de suas origens, daquilo que os leva a serem congadeiros no mundo de
hoje. Importante nesse sentido é o entendimento de que houve a ação de Nossa Senhora
do Rosário e dos antepassados sobre a Princesa Isabel para a assinatura da lei áurea.
Portanto, os mais velhos não abrem mão do modelo a que estão habituados: “Certo ou
errado, é assim que a gente sempre fez”, nos revelou o capitão regente de Contagem,
Seu Antônio Maria da Silva. Dessa forma, a cada ano, diferentes atores e atrizes
propunham novos diálogos e representações, mais “politicamente corretos” e mais
saborosos às exigências estéticas de parte do público. Porém, acabavam por entrar no
esquecimento, não sendo mantidos para o ano seguinte, seja por não se apresentarem
significativos e portanto passíveis de serem incluídos no conjunto de etapas do evento
tradicional, seja pelo caráter passageiro da atuação desses agentes externos junto à
comunidade. Até que os próprios Filhos de Zambi criaram uma versão contestando o
papel da Princesa Isabel, em projeto desenvolvido com o Grupo Trama de teatro,
atuante em Belo Horizonte, o que despertou o interesse de muitos na Comunidade, dada
a sua relevância no movimento da tradição.
Trata-se portanto de uma questão bastante delicada, na medida em que evidencia
tensões relativas às diferenças de sentido e de concepção entre gerações, o que no
entanto é algo normalmente verificável na vivência de várias tradições culturais ao
longo de seu tempo histórico. Neste caso específico, os líderes administrativos da
Comunidade dos Arturos convidaram algumas pessoas da irmandade e outras com longa
vivência nos processos comunitários, para juntos avaliarem a inclusão da nova proposta
de encenação da escravidão e da assinatura da Lei Áurea, e seu impacto no ritual como
10
A Festa da Abolição (ou da Libertação) é realizada pelos Arturos há muitos anos, como
forma de rememoração da abolição da escravatura no país. Antigamente, tratava-se de
celebração interna, em que os Arturos, reunidos nas guardas, hasteavam mastros em honra
aos antepassados escravizados. Embora os mastros ainda sejam hasteados anualmente no dia
13 de maio, a festa assumiu grandes proporções a partir da década de 1970, quando passou a
ser patrocinada pela Prefeitura Municipal de Contagem. Em função da importância e do
papel do antepassado na experiência espiritual dos congadeiros, essa festa, embora a
princípio de caráter cívico, carrega sentidos espirituais profundos para eles. Ver Lucas (2005,
p. 192-195).

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dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
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um todo. As discussões coletivas passaram pela revisão historiográfica, porém sem se


desvincular da história oral, dos mitos que circulam ali e que fundamentam os sentidos
da memória que ainda se revigoram para várias gerações da comunidade. A força desse
sentimento pode ser percebida na fala do Seu Antônio, ao preparar as moças e rapazes
representando os escravos na festa, incluindo os Filhos de Zambi, para saírem para as
ruas: “Vocês estão aqui hoje, vestidos assim, para emprestar a sua matéria para nossos
antepassados participarem e serem homenageados”. As diferenças entre as gerações
quanto à hierarquia dos valores, entre as forças da continuidade e da mudança em
relação aos conteúdos da Festa, ficam bem evidentes quando observa-se que a bandeira
com a estampa da Princesa segue sendo erguida no mastro nos atos inaugurais da Festa,
e no dia seguinte, a encenação dos jovens, de ares bastante cômicos, desconstrói a
imagem da Princesa, até mesmo ridicularizando-a;
b) A participação como curadora de oficinas do projeto ‘Preservação das raízes
do Pai Arthur’.
Elaborado coletivamente, esse projeto foi viabilizado pela lei federal de incentivo à
cultura, através da Eletrobrás, e teve como objetivo principal a transmissão e circulação
de saberes tradicionais sobretudo para as novas gerações, considerando-se que a
comunidade hoje, com mais de 500 integrantes, percebe a necessidade de outros
recursos de transmissão para além daqueles processos próprios do que se entende
generalizadamente por oralidade. No entanto, o projeto inclui também oficinas voltadas
para a ampliação dos horizontes de conhecimento sobretudo dos jovens, a partir da
vontade deles. Foram oferecidas oficinas destinadas à construção de tambores e gungas,
para os jovens Arturos e outras comunidades congadeiras; à capacitação dos Filhos de
Zambi em linguagens artísticas da dança e da percussão de matriz afro não
experimentadas através das tradições da comunidade; a aprender a tocar os instrumentos
da Folia de Reis (violão, cavaquinho e sanfona) e seu repertório – esta voltada mais
exclusivamente para membros dos Arturos; ao aprendizado da culinária típica das
festas, e ao aprendizado da confecção de vestimentas típicas das tradições.
Analisando então o processo como um todo, a pesquisa vem se desenvolvendo por meio
de uma metodologia que combina procedimentos de investigação tradicionais com os
próprios da pesquisa ação participativa, agregando ramificações, e ao mesmo tempo
criando uma rede de conexões, assumindo assim, ela própria, um formato que a meu ver
muito se assemelha à maneira holística e inter-conectada como essas comunidades
pensam, sentem e realizam suas músicas. Em outras palavras, da mesma maneira que as
músicas que eles produzem se vêem intimamente relacionadas a um conjunto de saberes
que guiam o jeito de ser e de viver desses grupos, a própria pesquisa, e seus métodos,
também vão se delineando nessas correlações, se abrindo para esse entendimento, ao
tecer uma teia de objetivos que se fertilizam mutuamente e se estabelecem um tanto
quanto imprevisivelmente. Por exemplo, tanto o trabalho com os Arautos, de
organização da metodologia de ensino deles, quanto as discussões em torno de como
montar as oficinas com os Arturos, nos proporcionam dialogar sobre aquilo em seus
processos de transmissão cultural que priorizam enquanto concepções, conteúdos
musicais e métodos significativos a serem passados para outros e perpetuados, nos
fornecendo subsídios para a reflexão sobre memória e construção de significados.

LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões sobre uma Experiência em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
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Música e Cultura, vol. 6 56

Num contexto de pesquisa assim, desafios e situações inéditas decorrentes dos diálogos
entre modos distintos de pensar e de fazer não são incomuns. Por vezes, o(a)
pesquisador(a) é convidado(a) a aprender a operar com categorias teóricas e
metodológicas nem sempre familiares, sob a ótica acadêmica, e conter impulsos de
impor métodos naturalizados pelo condicionamento de sua própria formação e
concepção.
Num primeiro exemplo, ambas as demandas revelaram uma necessidade dos grupos de
se engajarem com ações e procedimentos mais próximos das atuações profissionais
formais de transmissão de conhecimento, tais como organizar oficinas e sistematizar a
metodologia de ensino. Entretanto, nos dois casos, o processo de formalização das
dinâmicas de ensino-aprendizagem realçou a importância para eles da manutenção e
reprodução de métodos e critérios de transmissão mais próprios da oralidade, mais
globais e inter-relacionados. Para os Arturos, por exemplo, não faz sentido uma oficina
de percussão isolada da de dança, ou ensinar separadamente os instrumentos da Folia de
Reis, nos convidando a um exercício criativo na montagem das oficinas e na preparação
dos professores externos, mais habituados ao hábito da fragmentação nos processos de
ensino-aprendizagem. Já em relação aos Arautos do Gueto, o tocar bem depende de um
sentimento de auto-estima e auto-confiança que é conscientemente estimulado pelos
professores do projeto através de uma atitude de respeito, afeto e interesse por cada
aluno individualmente, se tornando esses, elementos fundamentais no âmbito da
metodologia de construção da aprendizagem musical.
Além dessas questões que evidenciam uma visão holística dos contextos em que as
músicas se inserem e da relação dessa visão com os processos de transmissão de
conhecimentos próprios da oralidade, um outro fator importante que emerge
constantemente diz respeito especificamente à comunidade dos Arturos, em função da
especificidade dos modos de ser e de pensar provenientes da herança ancestral, que se
projeta nos modos de fazer e assim sobre a pesquisa em geral. Tudo que realizam e
promovem em prol da comunidade está calcado na experiência da conexão com os
antepassados, no papel fundamental do tambor nesse processo, e na compreensão da
intervenção dos antepassados e de Nossa Senhora do Rosário no cotidiano e no futuro
do grupo familiar. Assim, a percepção que têm da própria presença desta pesquisadora
junto à comunidade, se dá a partir dessa concepção, metaforicamente traduzida como
mais uma conta do rosário, uma imagem que também remete a relações coletivas menos
hierarquizadas, e a um conjunto de inter-relações, das quais os antepassados também
participam. A importância fundamental dessa noção e dessa experiência observa-se no
fato de que todas as reuniões para esses e outros projetos, e também certos cursos,
acontecem dentro da capela, sob os olhares e auxílio dos antepassados cujos retratos
estão pendurados no altar junto às imagens dos santos. Entremeados às discussões
verificam-se atos individuais de fé, como beijar o terço dependurado do altar e fazer o
sinal da cruz, e/ou orações individuais ou coletivas no início e no fim dos trabalhos.
Essa concepção portanto permeia todo e qualquer processo de ação e de pesquisa
conjunta, constituindo a principal referência teórica a orientar seus resultados. Realça
ainda a delicadeza das relações e a grande responsabilidade de todos com as
conseqüências das ações que serão implementadas com sua contribuição.
A partir dessas reflexões, gostaria de finalizar tecendo algumas considerações sobre o
processo de pesquisa de campo compartilhado, pensando nas implicações para os cursos

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dos Arturos e a Associação Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Música e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponível em
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Música e Cultura, vol. 6 57

de graduação e pós-graduação do interesse crescente dos alunos pela pesquisa ação-


participativa, relativamente à formação desses futuros etnomusicólogos, no que se refere
ao ‘corpo a corpo’ no campo, sobretudo quando este envolve um maior distanciamento
cultural.
Para o pesquisador, ou aluno-pesquisador, a experiência compartilhada se apresenta
como potencialmente bem mais rica e complexa em termos de interação social, em se
comparando com modelos mais tradicionais da pesquisa interpretativa. No entanto, esse
diálogo vai ser tão mais profundo, quanto mais atento o pesquisador estiver para a
qualidade das habilidades interpessoais nesse relacionamento. Analogamente às
conexões estabelecidas pelos Arautos para o sucesso no processo de ensino-
aprendizagem, realço igualmente a importância de se discutirem intensamente com os
alunos-pesquisadores as questões de ética e de respeito, sempre fundamentais; de se
desenvolverem as habilidades interpessoais e interculturais que partem de uma
ampliação da escuta e do olhar, e de se atentar para que contenham o impulso de um
julgamento ou interpretação imediata e precipitada, baseados nos condicionamentos
culturais naturalizados do pesquisador. Acredito que, dessa forma, estarão mais aptos a
ouvir e a atuar com os grupos com que se constroem conhecimentos, reconhecendo
eventuais diferenças conceituais e perceptivas e identificando os modos de pensar que
se configuram como categorias analíticas próprias, para possibilitar enfim trocas e
diálogos de entendimentos mútuos.

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Música e Cultura, vol. 6 59

Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia

José Alberto Salgado e Silva

Resumo
O texto foi base de apresentação em painel do V Encontro Nacional da ABET. Partindo de uma
enquete por correio eletrônico com professores de etnomusicologia em universidades
brasileiras, apresenta dois quadros com listagem de temas e disciplinas presentes em suas
práticas docentes, para então focalizar um dos núcleos temáticos nas respostas: a etnografia. A
prática etnográfica é abordada aqui em suas relações com a literatura – destacando-se algumas
possibilidades da descrição como discurso, e também questões de participação e representação
em situações de diálogo. O autor argumenta que uma conscientização dos recursos e dos
condicionamentos em diversas modalidades de linguagem verbal – bem como a exploração
sistemática dos limites e possibilidades de escrita durante uma pesquisa – constituem processos
importantes de aprendizagem e formação, com efeitos que vão além do campo disciplinar e
incidem sobre a comunicação de conhecimentos em geral e sobre outras formas de ação em
sociedade.
Palavras-chave: Etnografia como literatura; variedades de descrição; variedades de diálogo.

Abstract
This article served as platform to a presentation at the V National Meeting of ABET. Starting
from an e-mail survey with Brazilian university professors of ethnomusicology, it presents two
lists of themes and disciplines involved in their teaching practices. The article then proceeds to
discuss one of the central points appearing in responses: ethnography. This is examined here in
relation to the ample field of literature – emphasizing some possibilities of description as
discourse, as well as matters of participation and representation in dialogue. The author argues
that an awareness of the resources and conditions in various modalities of verbal discourse – as
well as the systematic exploration of limits and possibilities of writing while doing research –
constitute relevant processes of education, whose effects transcend the disciplinary field of
ethnomusicology and reach out to practices of knowledge communication in general, and other
forms of social action.
Keywords: Ethnography as literature; varieties of description; varieties of dialogue.

Introdução

A fim de preparar um texto para o painel "Modos de pensar: interfaces na construção de


saberes na Etnomusicologia", no V Encontro Nacional da ABET, quis tomar como
ponto de partida as indicações de alguns colegas sobre os saberes com que estamos
lidando na docência e na pesquisa. Por correio eletrônico, enviei duas questões: 1)
Quais são os pontos de contato entre etnomusicologia e outras disciplinas?; 2) Quais são
essas outras disciplinas com que operamos?

SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 60

Com materiais das respostas, editei dois quadros em forma de lista, que exponho
rapidamente como panorama de um vasto campo de atuação. São quadros que revelam
uma complexidade já conhecida para os mais experientes – e impossível de abordar em
detalhe numa palestra de aproximadamente trinta minutos. No entanto, sempre se pode
encontrar valor em vistas panorâmicas: elas costumam reapresentar, em nova
organização, pontos que tendem à fluidez ou dispersão, e até podem recolocar ou fazer
surgir algum problema diante do olhar. Ao abrir com este panorama, levo em conta
também que me dirijo a um bom número de estudantes que começam a firmar um
vínculo com a etnomusicologia – e no intuito de apoiar essa aproximação, endereço
especialmente a elas e eles as considerações a seguir.
Após a edição das listas, foi preciso delimitar um núcleo temático: escolhi refletir sobre
etnografia e literatura, pensando certos usos da linguagem na prática de
etnomusicologia, e apontando de passagem certas relações com outros conteúdos
listados. Com isso, proponho principalmente aos estudantes e interessados alguns
parâmetros para análise de leituras e para experimentação com a descrição e o diálogo
na construção de textos.

As respostas de professores que trabalham com etnomusicologia

Ao indicar os saberes mobilizados na atividade de docência e pesquisa, as respostas


trouxeram grande amplitude de conteúdos. Suprimindo recorrências e sintetizando
alguns pontos muito semelhantes (p. ex., “significado” e “significação”), chegamos aos
quadros a seguir (ver Quadro 1 e Quadro 2), cuja edição é apenas uma das ordenações
possíveis. A leitura dos quadros convida, aliás, a imaginarmos outras arrumações e a
fazer ligações entre pontos que ficaram distanciados graficamente.

SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 61

significação
ritual
arte
cultura
comunicação
conhecimento

performance
estética
oralidade e memória

sociedade e formas expressivas


mídia e indústria cultural
música popular
globalização
folclore

música, teatro, cinema, artes visuais


política, gestão pública
periodismo

etnografia
pesquisa de campo
metodologia
teoria
análise

processos de ensino-aprendizagem
processos locais e alternativos de transmissão de saberes musicais

propriedade, patrimônio
identidade
cidadania

Quadro 1: Pontos de contato entre etnomusicologia e outras disciplinas

SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
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Música e Cultura, vol. 6 62

antropologia
sociologia
filosofia
história
teoria política
geografia social
história cultural
musicologia, coreologia, acústica musical, história da música
estudos de música popular
estudos de folclore

literatura
estudos culturais
lingüística
filosofia da linguagem

psicologia
psicologia da música
psicologia social

sociologia da música e da educação musical


educação
educação musical

Quadro 2: Disciplinas que participam da construção de conhecimentos em


etnomusicologia

Como se vê, mesmo pela amostra parcial (outros colegas com atividade destacada não
participaram desta mini-enquete), é vasto o universo de conteúdos mobilizados no
trabalho com etnomusicologia, e entre os itens listados são muitas as conexões que se
podem lembrar e também problematizar. E essa vista panorâmica pode ser útil
especialmente num momento em que estudantes universitários de Música têm mostrado
interesse crescente pela etnomusicologia (ver ARAÚJO; SILVA, 2011).
Obviamente, foi necessário delimitar um setor no grande círculo das respostas, e o
ponto que escolhi foi a etnografia, mais especificamente tendo em mente a introdução à
sua prática por meio de estudos na universidade. A partir daí, logo se visualizam
relações entre etnografia e outros pontos apresentados, incluindo: as várias artes,
conhecimento, pesquisa de campo, metodologia, teoria, análise, performance,
aprendizagem, transmissão. E recorrendo à lista de disciplinas (quadro 2), tocaremos ao
longo do texto no potencial da prática da etnografia para a formação, ou educação, de
seus praticantes – com ela se pode exercer uma consciência histórica, uma disposição
antropológica e filosófica, e um contato bastante compromissado com a produção
humana de literatura em geral, já que o pesquisador-etnógrafo passa a tomar parte nessa
produção.

SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
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A etnografia como modalidade de literatura

Na introdução de Shadows in the Field, Cooley e Barz (1997) usam frequentemente a


palavra “experimental” para qualificar a prática contemporânea da etnomusicologia, que
segundo eles é “uma disciplina inerentemente interdisciplinar, aparentemente num
estado perpétuo de experimentação, que ganha força de uma diversidade e pluralidade
de abordagens” (COOLEY; BARZ, 1997, p. 3). A publicação de Shadows in the Field
tem sido relevante para o campo etnomusicológico (como atesta sua reedição dez anos
depois) em vários níveis, mas sobretudo no que concerne à reflexão crítica sobre: a) as
relações estabelecidas entre os sujeitos durante e após o trabalho de campo; e b) a
produção de uma escrita sobre essa experiência social e os efeitos dessa produção.
Também entre nós, brasileiros, esse caráter experimental da disciplina se manifesta,
como demonstra a vastidão de assuntos declarados e outros ainda que podemos
imaginar a partir deles, nos quadros acima. As respostas mostram que, em estudos do
fenômeno musical, estamos mobilizando saberes e recursos para além da fronteira
“etno”, assim como mobilizamos saberes e recursos em estudos que enfocam objetos
para além do sonoro/musical. Na condução de um curso universitário ligado à
etnomusicologia, muito logicamente podemos pensar como uma colega:

Tento explorar sempre novas possibilidades, seja incorporando novos temas e


problemas apresentados pela literatura recente, seja relendo trabalhos consagrados,
canônicos ou mesmo aqueles que saíram de "moda", foram esquecidos...

Ora, como pano-de-fundo dessas explorações e desse experimentalismo temos a prática


histórica de apresentar os resultados de pesquisas em relatos mais ou menos extensos,
de feitio largamente narrativo, sempre abertos à expressão subjetiva. Considerada num
corpus amplo que atravessa as ciências sociais e abrange campos como os estudos
culturais e os estudos em educação, citados no quadro acima, a etnografia é gênero de
literatura que, em muitos momentos, se afasta do relatório positivista e se aproxima da
filosofia, da poesia, do relato de viagem, da composição musical.

Portanto uma leitura analítica do corpus etnográfico, como a faz James Clifford nos
ensaios reunidos em A Experiência Etnográfica – cujo subtítulo, por sinal, é
“Antropologia e Literatura no séc. XX” –, ou inspirada em textos de crítica literária, é
instrumental para o processo coletivo e continuado de elaborar etnografias.
Textos etnográficos podem vestir determinada moda literária ou remeter a “clássicos”, e
de alguma maneira sempre revelam opção estética e postura política, mais ou menos
articuladas. Talvez a mais abrangente das tendências recentes seja aquela em que o
autor ou autora analisa as próprias condições de produção de seu texto, efetuando um
exercício de reflexividade. Essa mirada crítica sobre os modos de pensar e construir
discursos – em nosso caso, tipicamente a respeito de uma prática musical – pode
investigar tanto as condicionantes do tipo “fatores sociais” como as convenções
discursivas e literárias que estruturam a escrita. Assim, importa entender como
colonialismo, pós-colonialismo, hegemonia cultural e feminismo, por exemplo,
induzem determinadas inflexões no tratamento de determinada matéria; e importa

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entender também como certas articulações formais – variedades de descrição e


variedades de diálogo, por exemplo – podem influir no tratamento da mesma matéria.

Variedades de descrição

Podemos dizer, grosso modo, que as descrições variam ao longo de um contínuo entre
uma firme intenção de objetividade e uma grande presença de subjetividade.
Como instrumento de sua proposta para “uma prática etnográfica mais poderosa para os
etnomusicólogos”, Deborah Wong (2007) aponta a “etnografia performativa”, em que
se pode notar a descrição objetiva misturando-se com comentários, comparações e
julgamentos da observadora. Trata-se de nome novo para uma prática literária que não
começou de agora, e que permeia os relatos de viajantes e cientistas do séc. XIX, por
exemplo. Do ponto de vista da leitura, talvez um dos atrativos nos primeiros contatos
com esses relatos e com etnografias em geral seja mesmo a presença de expressividade
e subjetividade nos textos. Em relação mais direta com nossa disciplina, um autor
comentado por seu estilo, entre muitas outras contribuições, é Mário de Andrade. Peço
licença para citar parte de uma resenha que preparei, durante curso com a profª
Elizabeth Travassos, comentando dois textos dele – “O Samba rural paulista” e “Música
de feitiçaria no Brasil”:

Quando Mário de Andrade escreve, uma das coisas que logo se vê é a mistura de
estilos literários. Ele quer ser científico, e percorre o caminho laboriosamente, em
dissertação carregada de citações e mostras de erudição em campos diversos como
História, Mitologia e Religião, até que em certa altura o texto faz uma curva
inesperada e de repente o leitor se encontra em plena narrativa personalizada,
romanceada, farta mesmo de lirismo, onde o autor se permite liberdades como a
ironia e as exclamações, parece até que dosando as proporções para que o discurso
não se torne entediante – e pela variação de caráter mantenha o público (e o próprio
autor?) interessado. (…)

É notável o hibridismo, o contraponto de duas ou mais vertentes do pensamento,


reveladas na leitura de "Música de Feitiçaria no Brasil". Como que espelhando a
impossibilidade de uma "pureza" monolítica em seu objeto de estudo, o autor oscila
entre os gêneros, (…), entre o procedimento acadêmico e a inspiração poética.
Mário tenta como observador acompanhar o espírito dos "estudos científicos de
folclore" (…). Mas o mesmo Mário vai "fechar o corpo" através do catimbó, em
cerimônia "disparatada, mescla de sinceridade e charlatanice, ridícula, religiosa, cômica,
dramática, enervante, repugnante, comoventíssima, tudo misturado". E diz que vai por
"simples curiosidade etnográfica", mas durante o ritual sente transformações físicas, "ao
mesmo tempo que gradativamente me abandonavam as forças de reação intelectual".
Também para outra autora em Shadows in the Field, Michelle Kisliuk (1997), a
subjetividade não será subtraída do texto, já que a construção deste envolve uma série
de decisões autorais:

Ao escrever sobre experiência de campo queremos chegar tão perto quanto


possível de uma verdade, mas a evocação implica selecionar entre experiências e

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Música e Cultura, vol. 6 65

escolher entre uma variedade de maneiras de as representar. Quando nos movemos


para além de um estilo de escrita objetivista, as fronteiras entre ficção e não ficção
podem se tornar difusas. Esta indefinição não quer dizer que estamos agora
escrevendo ‘ficção’, mas sim que o constructo da ‘não-ficção’ começou a ruir junto
com o modelo objetivista.

E conclui:

Quanto mais explícitos somos em nossos esforços para evocar a experiência, mais
perto podemos chegar de comunicar aquela experiência e o que ela possa
significar. (KISLIUK, 1997, p. 38)

Para evocar a experiência, a autora recorre à escrita em versos, contando com a síntese e
a licença sintática que essa forma permite, a fim de apresentar situações em que a
intuição e as sensações têm papel importante durante a pesquisa em campo. Mas ela se
mantém atenta aos problemas de uma representação subjetivista e propõe um critério de
auto-limitação:

Críticos da etnografia reflexiva frequentemente apontam o pecado da auto-


indulgência como a falha fatal de tais esforços. (…) A maioria dos antropólogos e
outros etnógrafos não foram treinados para distinguir entre autoindulgência e
experiência etnograficamente relevante, e portanto têm prejudicado a si mesmos e a
seus leitores. O modo de distinguir, eu sugiro, é nos perguntarmos se uma
experiência nos transformou de modo a afetar (...) como víamos, reagíamos a, ou
interpretávamos o material etnográfico (...) (KISLIUK, 1997, p. 39)

Consideremos agora uma outra variedade. Howard Becker reconta a experiência do


romancista francês Georges Perec, em 1978, como um modelo de descrição objetiva.
Perec gravou uma narrativa do que via, sentado em um café parisiense, o olhar
funcionando quase como câmera fotográfica:

(...)
Leve tráfego.
Não muitas pessoas no café.
Sol pálido saindo por entre as nuvens. Faz frio.
As pessoas: de modo geral, sós, introspectivas. Às vezes em casais. Duas mães
jovens com suas filhas pequenas: meninas, de dois ou três anos; poucos turistas.
Capas de chuva compridas, um bocado de jaquetas e camisas do exército
(americano) (...) (BECKER, 1998, p. 78)

E continua, longamente. Com este exemplo, Becker sugere que uma tal representação
descritiva da realidade talvez não seja algo a descartar, uma espécie “ultrapassada”.
Podemos também evocar técnicas e conceitos como as sequências em tempo real na
cinematografia, ou a percepção subjetiva da duração, na filosofia de Bergson. Mesmo
reconhecendo que uma descrição “pura” não existe, que o olhar seleciona e que portanto
reflete um ponto de vista, Becker pondera que

Cientistas sociais (...) normalmente esperam receber interpretações naquilo que


lêem, e se apoiar nelas naquilo que escrevem. (...) Mas talvez essas interpretações
não sejam tão necessárias quanto pensamos. Podemos obter muito de observações
mais simples, menos analisadas. A proporção apropriada de descrição para

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interpretação é um problema real que todo aquele que descreve o mundo social tem
que resolver ou acomodar. (BECKER, 1998, p. 79)

Uma análise de texto mediante o emprego de categorias mais ou menos internas ao


campo das ciências sociais e da etnomusicologia faz interface com outras áreas
apontadas do quadro 2, onde igualmente se investigam as qualidades da escritura. Quero
mostrar a seguir como o filósofo da educação Nicholas Burbules, examina as
variedades de diálogo (BURBULES, 1990), de maneira potencialmente útil a uma
prática reflexiva e auto-crítica – sobre os modos de interagir durante uma pesquisa de
campo e também sobre os modos de representar essa interação numa etnografia.

Variedades de diálogo

A partir de uma análise feita por Gadamer sobre os escritos de Platão, Burbules aponta
que o diálogo, embora aparentando uma forma genérica, pode dispor orientações
diferentes, umas mais afeitas do que outras ao intercâmbio de idéias e à parceria efetiva
entre os sujeitos que dialogam.
Burbules exemplifica com as diversas situações configuradas nos diálogos socráticos.
Há situações em que Sócrates propõe debate: “pergunte e responda cada um de uma
vez, como Górgias e eu fizemos, e refute-me e seja refutado”; outras em que interroga o
interlocutor com o fim de obter mais informação sobre suas crenças; outras em que
conduz um questionamento com o propósito de levar o parceiro a uma posição auto-
contraditória, causando confusão e perplexidade como preparação para a exposição de
alguma nova idéia; outras ainda em que temos na verdade um monólogo disfarçado.
Ele aponta também a variedade de diálogo como conversa, que, sem visar um objetivo
particular, sem método ou programação, como simples bate-papo, pode resultar em
muito pouco; mas pode às vezes revelar alguma “gema brilhante de insight” ou então,
mesmo sem um ganho cognitivo perceptível, pode ajudar a

estabelecer uma base de conforto e confiança mútua entre parceiros para formas
mais difíceis e ameaçadoras de intercâmbio sem que percam a paciência com o
processo ou um com o outro. (BURBULES, 1990, p. 129)

O autor enumera ainda outras variantes do diálogo socrático, sendo que uma delas
parece se aproximar mais de objetivos etnográficos contemporâneos, e que ele chama de
diálogo para a compreensão. Entramos nesse tipo de diálogo não para desafiar ou
convencer, mas para aprender sobre o outro.

(…) este requer um esforço consciente para suspender nossas sensibilidades


críticas em prol de uma conexão interpessoal: o que quer que eu pense a respeito,
por que esta pessoa olha para as coisas desse jeito, e o que a levou a essa visão?
(BURBULES, 1990, p. 126)

Pode-se notar que, em trabalho de campo, praticamos mais de um desses tipos de


diálogo e transitamos entre eles, às vezes levados, outras conduzindo mais ou menos a
interlocução. Para considerar a variedade dos diálogos em relação com pesquisas

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etnográficas recentes, faço a seguir breve menção ao trabalho de dois pesquisadores-


mestrandos na EM-UFRJ.
Em sua pesquisa com jovens pagodeiros de Londrina, Júlio Erthal facilita a organização
de um conjunto, de seus ensaios e apresentações. Nos ensaios, que acontecem numa
escola, ele tem evitado intencionalmente a postura de professor, embora os participantes
tendam a tratá-lo assim. Ele procura ouvir mais do que dizer, evita ensinar, e fomenta
uma auto-gestão do conjunto, a fim de entender como lidam com aquela música. Será
interessante observar como e em que medida esse diálogo, em que os estudantes são
instados a decidir alguns caminhos da pesquisa, virá representado no relatório final.
Em outra pesquisa, Leonardo Rugero firma uma relação de aprendizagem com um
mestre paraibano da sanfona de oito-baixos, mas essa interlocução só se firma após um
período de recusa, em que o mestre parece testar a determinação do candidato a
aprendiz. Uma vez iniciado, o intercâmbio logo adquire o caráter de compromisso
mútuo, mediado pelo trabalho técnico no instrumento – e o relato etnográfico, ao
retratar as conversas com o mestre sanfoneiro, mostra um tom respeitoso, quase
reverente, ao mesmo tempo em que não se esquiva de expor divergências e dúvidas.
Uma outra variedade – digamos, amplificada – do diálogo foi apontada por James
Clifford (1998, cap. I), ao considerar a metáfora da polifonia usada por Bakhtin,
contrapondo o discurso que emana de uma única fonte, autoridade única, com o
entrelaçamento de discursos diferentes e presentes em determinado cenário.
Aproveitando-se a conexão que o termo oferece com a construção musical, a metáfora
já se tornou bastante conhecida entre nós, quando representamos em etnografias as
“vozes” de sujeitos que expressam visões distintas num mesmo contexto de prática
musical (ver SILVA, 2005).
Cabe notar que, na maior parte das vezes, a representação de diálogos ocorridos em
campo é feita de modo indireto, como narrativa editada pelo pesquisador. São mais
raros os casos em que encontramos uma reprodução dessas conversações – seja como
transcrição literal a partir de uma gravação, seja como reconstrução baseada na
memória do pesquisador ou de um grupo de participantes. Dessa reconstrução, quero
lembrar dois exemplos que considero bem-sucedidos por sua vivacidade: um, no livro
de Luciana Prass (2004), com trechos que reencenam interlocuções importantes para o
trabalho de campo; outro, no capítulo em que Murray Schafer (1991) reconstitui a
“trajetória de pensamento” em grupo, durante uma exploração conceitual com alunos
em sala de aula. Mesmo entendendo que essa reconstrução de diálogos também
corresponda a uma edição – e dependa de o pesquisador evitar distorções, como em
qualquer outro momento de um relatório –, seu efeito chama a atenção pela
expressividade e revelação de atitudes, processos cognitivos e relações sociais durante
uma pesquisa.

Considerações finais

Os artigos em Shadows in the Field e os ensaios de A Experiência Etnográfica fazem


parte de um conjunto de leituras que levam a pensar as relações entre sujeitos durante e
após o trabalho de campo, assim como fazem pensar a escrita que vai representar essa
experiência social. Sugerem que toda essa produção de pesquisa e escrita tem
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Música e Cultura, vol. 6 68

implicações éticas e políticas – desde o seu menor raio de alcance, ou seja, para quem
participa diretamente dela ou acompanha seus desdobramentos.
Considera-se também que a dimensão estética de um relato etnográfico – sua
organização formal, as muitas decisões de composição – não se exclui da dimensão
metodológica, balizando-se igualmente por preocupações com a validade de um
conhecimento construído e com a sua comunicação. Se reconhecemos que uma
produção etnográfica existe para ser lida, avaliada e debatida – e que a formação de
pesquisadores em etnomusicologia se dá em contato com praticantes de músicas, com
os pares de áreas acadêmicas e com interesses públicos – pode-se ver aí uma
continuidade entre a elaboração formal, a expressividade e as preocupações éticas e
políticas.
É portanto necessário examinarmos constantemente nossos modos de pensar a
etnomusicologia, e outra questão se coloca: quais instrumentos e abordagens são úteis a
esse exame? Aqui, considerando algumas tendências recentes em matéria de construção
etnográfica, destaquei a experimentação literária e o exercício da reflexividade. Sugeri
que o engajamento na experiência de leitura e escrita – talvez encarada um tanto
“burocraticamente” por muitos estudantes músicos – é uma das abordagens
fundamentais: mediante análise de estilo e uma compreensão das condições mais gerais
em que um texto se produz, é possível ver possibilidades e consequências distintas na
representação de uma realidade, e a partir daí escrever com um repertório de técnicas
discursivas, inclusive recombinando-as, sintetizando-as em estilo próprio.
São muitas as possibilidades da descrição, por exemplo. O sentido fotográfico de Perec,
a narrativa autoral e desabrida de Mário de Andrade, a estruturação em formas
alternativas, como tentou Kisliuk – essas e outras maneiras podem ser mobilizadas na
dosagem que se julgar necessária entre a objetividade e a interpretação, como diz
Becker.
Nas constantes trocas interdisciplinares que marcam nossa área, a contribuição de uma
análise filosófica como a de Gadamer sobre as variedades do diálogo – e sua
transposição para o contexto da educação, por Burbules – converge para a tendência
reflexiva em etnografia. Examinando os diálogos que ocorrem em sala de aula ou
durante o trabalho de campo, seria possível notar neles diferentes modos de se
constituir, e com isso reforçar a análise crítica e autocrítica tanto da atuação docente
como do trabalho de campo e da composição etnográfica. E a própria representação
escrita do que ocorre nos diálogos poderia ser objeto de maior atenção e efeito.
Tratamos aqui de recursos disponíveis desde o início das práticas de pesquisa. E estas
sugestões de exploração formal e de uma maior transparência da subjetividade em
experiências etnográficas não propõem facilitações. Pelo contrário, lidar com
parâmetros menos institucionalizados leva-nos a deliberar mais vezes sobre o que fazer,
e como fazer – e a buscar justificativas e critérios, como vimos na sugestão de Kisliuk.
Como em qualquer atividade intelectual, continuam a existir expectativas – dos pares,
do público interessado – quanto ao rigor do que é exposto como projeto, processo ou
resultado de pesquisa.
Tentando resumir o que está em discussão: uma conscientização dos recursos e dos
condicionamentos em diversas modalidades de linguagem verbal, bem como a

SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
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Música e Cultura, vol. 6 69

exploração sistemática dos limites e possibilidades de escrita durante uma pesquisa –


constituem processos importantes de aprendizagem e formação, indo além do campo
disciplinar e chegando à atuação social. Aludindo à resposta de uma colega à enquete,
estes processos podem ser “pensados mais amplamente como processos de
aprofundamento cultural, identitário”. Trata-se, em nosso caso, da formação de uma
identidade de pesquisadores – e as reflexões apresentadas propõem uma vivência de
“pesquisa” não apenas como meio de avanço em carreiras individuais, mas também
como experiência ética e estética capaz de potencializar as ações com os sujeitos de
práticas sonoras e com os colegas de universidade, dentro e além da etnomusicologia.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Samuel; SILVA, José Alberto Salgado e. “Musical knowledge, transmission


and worldviews: Ethnomusicological perspectives from Rio de Janeiro, Brazil”. In: The
Word of Music. Berlim: VWB-Verlag fur Wissenschaft und Bildung, vol. 51, n.3, 2011,
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live fieldwork! Introduction” In: BARZ, Gregory F. & COOLEY, Timothy J. (eds.)
Shadows in the Field – New Perspectives for Fieldwork in Ethnomusicology. New
York: Oxford, 1997.
BECKER, Howard. Tricks of the Trade – How to think about your research while
you’re doing it. Chicago: The Univ. of Chicago Press, 1998.
BURBULES, Nicholas. “Varieties of Educational Dialogue”. In: The Journal of the
American Society for Philosophy of Education, 1990.
CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfica – Antropologia e Literatura no séc. XX.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
CLIFFORD, James & MARCUS, George E. (eds.) Writing Culture – The Poetics and
Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
KISLIUK, Michelle. “(Un)Doing Fieldwork: Sharing songs, sharing lives”. In: BARZ,
Gregory F. & COOLEY, Timothy J. (eds.) Shadows in the Field – New Perspectives for
Fieldwork in Ethnomusicology. New York: Oxford, 1997.
PRASS, Luciana. Saberes Musicais em uma Bateria de Escola de Samba – uma
etnografia entre os Bambas da Orgia. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2004.
WONG, Deborah. “Moving: from performance to performative ethnography and back
again”. In: BARZ, Gregory F. & COOLEY, Timothy J. (eds.) Shadows in the Field –
New Perspectives for Fieldwork in Ethnomusicology. New York: Oxford, 2008 (2ª ed.)
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
SILVA, José Alberto Salgado e. Construindo a profissão musical: uma etnografia entre
estudantes universitários de Música (Tese de doutoramento, Programa de Pós-
Graduação em Música). Rio de Janeiro, UNIRIO, 2005.

SALGADO E SILVA, José Alberto. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, vol. 6, p. 57-68, 2011. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Jose-Alberto.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 70

Resenha de livro

O'CONNELL, John Morgan; CASTELO-BRANCO, Salwa El-Shawan. Music and


Conflict. Urbana, Chicago e Springfield: University of Illinois Press, 2010.

Ana Flávia Miguel

“Music and Conflict” é um livro que analisa, do ponto de vista etnomusicológico, o


papel da música na compreensão do conflito e na sua resolução. Editado pelos
conceituados etnomusicólogos John Morgan O’Connell, leitor de Etnomusicologia e
diretor do Programa de Pós-Graduação em Etnomusicologia da Universidade de Cardiff
(País de Gales), e por Salwa El-Shawan Castelo-Branco, professora de Etnomusicologia
e presidente do Instituto de Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa
(Portugal), a obra tem a carimbo da editora da Universidade de Illinois (EUA) e reúne
reflexões de um conjunto de conceituados investigadores oriundos de diversos pontos
do planeta.
A introdução “An ethnomusicological approach to Music and Conflict”, escrita por
O’Connell, é construída a partir da análise do olhar Tolstoiano sobre o conflito em
“Guerra e Paz”. É através de uma análise sobre a música, o conflito, a etnomusicologia
e as relações entre as mesmas que o autor desenvolve esta reflexão. O carácter
polissémico e a natureza paradoxal do conflito são apontados por O’Connell que
considera o conceito teoricamente difícil de definir. Chama ainda a atenção para o facto
de o debate académico sobre o tema raramente mostrar que a definição de conflito é
relativa porque depende de fatores culturais e que necessita de uma análise etnográfica.
É desta forma que o estudo do conflito em Etnomusicologia se apresenta como um
valioso contributo neste domínio. Finalmente, esclarece que a obra está estruturada para
realçar uma posição etnomusicológica com uma divisão em seis partes nas quais são
analisadas distintas características da música e conflito em diferentes níveis e tipos de
conflito.

MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 71

A parte 1, intitulada “Music in War” é composta por dois artigos que abordam o papel
da música na perpetuação e na resolução do conflito, a partir de conflitos em territórios
europeus pós-soviéticos, no Kosovo e no Azerbaijão. Jane Sugarman, em “Kosova Calls
for Peace: Song, Myth, and War in na Age of Global Media” analisa o papel que
músicos e produtores musicais albaneses tiveram na diáspora albanesa, durante os
conflitos militares no Kosovo. A autora conclui que “(…) music would seem to have far
more effective in promoting the war in Kosova than it has been in promoting postwar
peace” (Sugarman 2010: 40). No segundo artigo da primeira parte, “Musical Enactment
of Conflict and Compromise in Azerbaijan”, Inna Naroditskaya debruça-se sobre um
conflito étnico na região do Qaraba (região situada no centro do Azerbeijão) que
envolve o Azerbaijão, a Arménia e a antiga União Soviética, a partir da análise de um
evento musical como um interpretação do conflito. Tal como Naroditskaya afirma, o
“Mugham” representa nas três obras discutidas e analisadas neste artigo, a síntese da
afirmação social Azeri e a dicotomia entre passado e presente, o global e o local que
emergiram a partir do conflito de Qaraba e do consequente reconhecimento do
Azerbaijão, “(…) essential to a nation’s identity” (Naroditskaya 2012: 63).
“Music across Boundaries” é o título da segunda parte deste livro na qual Keith Howard
e David Cooper refletem sobre o poder da música para unir e para afastar territórios
divididos em dois contextos pós-coloniais distintos. O primeiro refere-se à Coreia do
Norte e Coreia do Sul. Em “Music across DMZ”, Howard questiona de que forma a
música pode desempenhar um papel na reunificação pacífica na península da Coreia.
Com uma contextualização inicial sobre a história da Coreia e da sua divisão em dois
estados, em 1945, o artigo é desenvolvido a partir da análise de dois eventos
performativos. O uso da sigla DMZ1 no título deste artigo como símbolo de uma
barreira teoricamente intransponível, acaba por ser desconstruído através da música que,
segundo o autor, assume um papel de esperança e de um eventual acordo,
aparentemente impossível, entre os dois estados. David Cooper escreve o segundo
artigo desta secção, “Fife and Fiddle: Protestants and Traditional Music in Northern
Ireland”, no qual aborda a música nas comunidades divididas na Irlanda do Norte e
mostra como a música incita o conflito entre fações rivais. Com uma visão pouco
confiante sobre o poder da música na promoção da paz, o autor apresenta uma pesquisa
comparativa na qual analisa os repertórios de dois grupos de músicos, um grupo de
músicos católicos e um grupo de músicos protestantes, que tal como Cooper afirma
“(…) seem to have largely shared a common repertoire that incorporated material
ostensibly from Irish and Scottish sources” (Cooper 2012: 103).
Anthony Seeger e Adelaida Reyes são os pesquisadores que contribuem para a terceira
parte do “Music and Conflict”, denominada “Music after Displacement”, na qual
investigam formas diferenciadas de usar a música em conflito em comunidades
deslocadas. Seeger convida-nos a partilhar aspetos da sua pesquisa com os Índios Suyá,
ao analisar a função da música na resolução de conflitos sobre a posse territorial, na
região do Mato Grosso - Brasil. Com o olhar colocado na interseção do universo
musical nas relações entre os Suyá e a sociedade brasileira, o investigador mostra como
toda esta constelação de elementos é importante para equilibrar tensões étnicas e para
promover o diálogo intercultural no que diz respeito às questões de desapropriação e
migração forçada. Em “Assimetrical Relations: Conflict and Music as Human
1
Zona Desmilitarizada. Na coreia esta faixa de segurança tem aproximadamente quatro
quilômetros de largura e duzentos e cinquenta quilômetros de comprimento.

MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 72

Response”, a pesquisadora Adelaida Reyes debruça-se sobre a dinâmica social entre


refugiados e entre refugiados e instituições (sendo esta última relação caracterizada por
uma abismal assimetria de poder) para compreender o papel da música neste complexo
sistema. Com um enfoque em refugiados sudaneses no Uganda e a partir do pressuposto
de que “(…) the life-altering events surrounding forced migration and affecting whole
culture groups inevitably find their way into expressive culture (…)” (Reyes 2010: 127)
Reyes acredita que a música desempenha um papel relevante em situações como o
conflito, na quais a liberdade de expressão pode ser colocada em causa. Este artigo
constitui um valioso contributo para o estudo do papel da música e conflito,
acrescentando que a música pode revelar ações surpreendentes de solidariedade entre
inimigos ou pode potenciar o conflito entre aliados.
Na quarta parte deste volume, “Music and Ideology” é abordado o papel da música e
ideologia em situações de conflito. Os investigadores William Beeman e Anne
Rasmussen escrevem dois artigos que nos conduzem ao mundo islâmico e a questões
como a censura musical. O primeiro autor mostra como no mundo persa grupos
individuais negoceiam as fronteiras de proibição de práticas musicais através de valores
religiosos. Neste artigo denominado “Music at the Margins: Performance and Ideology
in the Persianate World”, Beeman descreve os estilos musicais que são aprovados ou
não pela censura musical e as estratégias que produtores e consumidores musicais
utilizam para validade determinadas “músicas”. A classificação da música como “não
música”, com o objetivo de validar a sua performance, é uma das estratégias utilizadas
nas práticas religiosas. Outros exemplos musicais relacionados com a censura são
descritos, tais como a referência específica ao género musical ta’ziyeh que conseguiu
sobreviver ao longo dos anos apesar de ser muitas vezes questionado. Beeman conclui
com uma mensagem na qual a imprevisibilidade de alteração clara de opiniões, no que
diz respeito às fronteiras de repressão, não parece alterar a criatividade de construção de
estratégicas alternativas para a efetivação da performance de determinados géneros
musicais: “As islamic sensibilities continue to move in a more conservative direction,
music in the Persianate world will certainly face more challenges in the future”
(Beeman 2010: 152). Anne Rasmussen é a autora de “Performing Religious Politics:
Islamic Musical Arts in Indonesia”, uma reflexão com enfoque em dois estilos musicais
diferentes, na Indonésia, na qual mostra como cada um destes estilos representa uma
conceção diferente da identidade indonésia. A relevância desta “dissonância ideológica”
está no poder que ambas têm para atribuir significados distintos ao nível simbólico e
prático.
O tema que dá título à quinta parte deste livro, “Music in Application” anuncia a
mudança de paradigma no que diz respeito ao tipo de metodologia usada, a
etnomusicologia aplicada. Em “Music in War, Music for Peace: Experiences in Apllied
Ethnomusicology”, Svanibor Pettan desenvolve o seu trabalho na antiga Jugoslávia e
apresenta dois projetos, o projeto “Azra” e o projeto “Kosovo Roma”, moldados por
práticas da etnomusicologia aplicada. Com a premissa de que o conhecimento deve ser
usado pelo investigador para a melhoria da condição humana em contextos de guerra, o
autor explica que os dois projetos partilham uma característica importante: “(…) both
concern the consequences of the wars” (Pettan 2010: 191). O estudo que Britta Sweers
apresenta aborda o uso da música contra o fascismo (criado por neonazis radicais) num
conflito local na Alemanha. Com várias referências a Pettan, a autora afirma que a
sucesso do trabalho aplicado depende e requer múltiplos níveis de envolvimento com as

MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 73

comunidades, os media e as instituições de proveniência dos etnomusicólogos. A


partilha da sua experiência de colaboração com organizações civis constitui um
excelente ponto de partida para outros trabalhos semelhantes.
“Music as Conflict” intitula a última parte desta obra. O artigo “Sound Praxis: Music,
Politics, and Violence in Brasil”, de Samuel Araújo e do grupo Musicultura revela e
propõe uma abordagem distinta do estudo da música e violência bem como do estudo da
música, da cultura e da sociedade em geral. O grupo Musicultura é um grupo
constituído por jovens estudantes, moradores no conjunto de favelas da Maré, no Rio de
Janeiro. Este local constitui, também, o universo de estudo dos
pesquisadores/pesquisados que desde 2004 atuam em colaboração com o
etnomusicólogo Samuel Araújo. A abordagem colaborativa e dialógica usada pelo
grupo com base na pedagogia freiriana constituem os pilares fundamentais através dos
quais os autores colocam em questão hierarquias estabelecidas e propõem uma
produção do conhecimento partilhada com a comunidade, de que este artigo é um
brilhante exemplo. É através desta proposta, que requere um “engajamento político
consciente”, que movimentos sociais poderão construir novos paradigmas do
conhecimento que rompam radicalmente com os “(…) modes of «conventional»
ethnography conducted in the colonial world” (Araújo 2010: 230). Com a mudança de
foco para a América do Norte, Stephen Blum finaliza este conjunto de artigos com
“Musical Enactment of Attitudes Toward Conflict in the United States”. O autor analisa
obras de compositores afro-americanos para compreender o papel da música na
identificação do conflito e na imaginação da resolução do conflito. A este respeito,
mostra como obras musicais codificam diferenças culturais e como confrontando o
conflito através da música, com o questionamento de relações dominantes de poder, os
contextos musicais podem despontar uma ações políticas.
Por último, Salwa Castelo-Branco encerra esta obra com um epílogo em forma de alerta
e de desafio: a necessidade de “(…) rethinking our research paradigms and the ways we
conceive our mission as researchers, teachers, musicians, and critical citizens” (Castelo-
Branco 2010: 252). Este desafio, que é simultaneamente otimista e motivador, encontra
algumas respostas nos diversos textos que “Music and Conflict” nos oferece e que
contribuem construtivamente para uma Etnomusicologia do conflito e sobretudo para
uma Etnomusicologia do futuro, na qual o posicionamento e engajamento do
investigador no conflito e na sua resolução pode desempenhar um papel fundamental.
Concluo com a certeza de que a escolha feita pelos editores deste livro vem ajudar a
colmatar um domínio ainda pouco explorado nos estudos etnomusicológicos. A
variedade de propostas, de enfoques, de olhares e de modos de ação apresentada
refletem a complexidade do estudo etnomusicológico sobre a música e conflito mas
também contribui brilhantemente para a construção de novas “(…) perspectives on the
relationship between sound and society and a framework for the public engagement of
ethnomusicologists in conflict resolution as mediators and advocates” (Castelo-Branco
2010: 252).

MIGUEL, Ana Flávia. Resenha de livro: Music and Conflict. Música e Cultura, vol. 6, 2011, p. 68-71. Disponível em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Music-Conflict.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 74

Resenha de livro

TUGNY, Rosângela Pereira et al. Yãmĩyxop Xũnĩm yõg Kutex xi ãgtux xi hemex yõg
Kutex/Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex. Rio de Janeiro: Azougue,
2009a. (Acompanham 2 DVDs)

TUGNY, Rosângela Pereira et al. Mõgmõka yõg Kutex xi ãgtux/ Cantos e Histórias do
gavião-espírito. Rio de Janeiro: Azougue, 2009b. (Acompanha 1 DVD)

Izomar Lacerda

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 75

O conjunto dos dois livros e três DVDs de áudio-imagens resenhados aqui é fruto de um
longo projeto de pesquisa coordenado por Rosângela Pereira de Tugny 1, dentro de uma
perspectiva de produção de conhecimento compartilhado, realizado por músicos,
narradores, escritores e ilustradores maxakali (nome genérico dos autodenominados
tikmũ’ũn2) de duas terras indígenas, Terra Indígena (T.I.) do Pradinho e T. I. de Água
Boa, ambas situadas no nordeste de Minas Gerais. Os trabalhos envolveram o registro,
transcrição, tradução e publicação de um expressivo corpus de cantos ritualísticos,
reunindo: 269 cantos, gravados em áudio in loco e traduzidos em Maxakali e em
português; um extenso número de pictografias, exegeses e narrativas míticas, elaborados
pelos próprios indígenas; além de textos de autoria de Tugny sobre o conjunto do
material.
A importância deste trabalho se dá na medida em que consegue reunir e apresentar um
número expressivo de material do corpus mito-poético-pictórico-musical de rituais
Tikmũ’ũn e se debruçar de forma exaustiva sobre esta parte significativa de um
complexo sociocosmológico rico e desconhecido do público geral. As possibilidades de
trabalhos futuros que se abrem a partir desse empreendimento são riquíssimas devido ao
caráter inovador, tanto temático como analítico e metodológico. Ao se propor levar a
sério um trabalho de “tradução”, dentro de uma perspectiva colaborativa e
compartilhada entre pesquisador e indígenas3, isto implica em repensar questões
sensíveis e importantes de ordem teórica, epistemológica, política e ética para o trabalho
de pesquisa.
Os livros são divididos em: apresentação; breve narrativa sobre a história dos espíritos
xũnĩm/morcego-espírito (Livro 1) e mõgmõka/gavião-espírito (Livro 2); primeiro
caderno de imagens; traduções dos cantos em maxakali e em português; segundo
caderno de imagens; exegese dos cantos; notas e histórias sobre os termos não-
traduzidos; bestiário; breve texto sobre a ortografia da língua maxakali; notas e
bibliografias; índice das imagens, dos cantos e dos DVDs.

1
Doutora em Música e Musicologia pela Université François Rabelais (1996). Realizou pós-
doutorado no Programa de Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (2007).
Atualmente é professora do Departamento de Teoria Geral da Música da UFMG e
pesquisadora do CNPq. Coordenou projetos no Acervo Curt Lange da UFMG e criou o
Laboratório de Etnomusicologia da UFMG.

2
Os Tikmũ’ũn são povos indígenas falantes da língua Maxakali, que pertence ao tronco
linguístico Macro-Gê. São em torno de 1500 indivíduos que se dividem em quatro terras
indígenas localizadas ao nordeste de Minas Gerais: T.I. do Pradinho; T.I. de Água Boa; T.I.
Aldeia Verde e T.I. Cachoeirinha.

3
Trabalhos com este caráter parecem ser uma tendência positiva nos rumos editoriais
brasileiros, haja vista a publicação recente de livros como: CESARINO, Pedro de Niemeyer.
ONISKA: Poética do Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2011,
423pp; MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do “Mbaraka”: música, dança e
xamanismo Guarani. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 304 p. (Inclui
um CD); e MENEZES BASTOS, Rafael J. de. A Festa da Jaguatirica: Uma Partitura
Crítico-Interpretativa. (no prelo).

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 76

Resenhar este trabalho foi um desafio. A riqueza e complexidade de seu conteúdo


compilado nos dois volumes impuseram-me a necessidade de adentrar intensamente no
mundo Tikmũ’ũn e de seus aliados povos-espíritos e demais seres. Isto se deu na medida
em que a tarefa demandou um acompanhamento minucioso dos cantos em horas de
escuta (os DVDs contam com quase 15 horas de gravações de áudio), conjuntamente
com o deslocamento do olhar buscando seguir as demais traduções/transcrições relativas
aos cantos, sobretudo as narrativas e imagens-cantos, estas entendidas como
presentificações pictográficas dos cantos.
O tema central da obra são os cantos dos povos-espíritos (ou povos-imagens) – os
yãmĩyxop e outros seres – que ao visitarem os Tikmũ’ũn, ensinam-lhes este repertório
mito-poético-pictórico-musical4, a partir do qual se constroem as relações
sociocosmológicas do universo indígena em questão. Ponto chave da socialidade
Tikmũ’ũn, o estabelecimento de relações com estes povos, aponta para o caráter não
essencialista do pensamento Tikmũ’ũn, que para além de um mundo e de coisas
ontologicamente reificadas, tem seu conhecimento pautado pelo âmbito relacional que
implica na atenção à multiplicidade. Conhecer o mundo – essencialmente como
variação – é proliferar multiplicidades e experimentar perspectivas5.
O ensaio que apresenta a obra, escrito por Tugny, é basicamente o mesmo para os dois
livros, apenas diferenciando nas partes finais em que a autora comenta sobre os espíritos
específicos tratados em cada livro: yãmĩyxop xũnĩm e hemex (2009a) e yãmĩyxop
mõgmõka (2009b). O texto traz informações essenciais para um contexto geral sobre os
Tikmũ’ũn, além de situar de forma analítica alguns dos aspectos conceituais do universo
sociocosmológico do grupo, o que potencializa e dá subsídios a uma escuta-visão mais
aprimorada do restante das obras. Tugny descreve o processo de contato dos Tikmũ’ũn
com os brancos como marcado pelo quase extermínio deste grupo. Vários eventos
dramáticos como a ocupação mineradora, a presença de desbravadores, missionários,
frentes de expansão, acabaram com os territórios do grupo e minoraram suas
possibilidades de sustento e de vida, numa situação de dificuldades históricas que
correspondem as realidades da grande maioria das populações indígenas brasileiras. No
entanto, a autora chama a atenção de que a permanência e vitalidade dos que se
autodenominam Tikmũ’ũn hoje, não pode ser entendida como por muito tempo o foi:
como uma totalidade social estanque – tribo, povo -, avaliada pelo óculo de uma
historiografia linear e unívoca, da graduação de “resistência cultural”. Pelo contrário, as
origens dos povos Tikmũ’ũn contam com elaborações históricas de uma complexa rede

4
Vale destacar este aspecto especificamente rico de continuidade e transformação
intersemiótico dos rituais.

5
O ensaio de apresentação de autoria de Tugny tem filiação teórica clara ao “perspectivismo
ameríndio” na concepção de Eduardo Viveiros de Castro, onde são caras as noções de
transformação, tradução e equívoco. EVC parafraseia Walter Benjamim ao afirmar que
traduzir é sempre um ato de traição. Neste sentido, a tradução é deformadora e subversiva do
dispositivo conceitual, tanto original quando do tradutor. “O perspectivismo ameríndio é
uma doutrina do equívoco, é dizer, da alteridade referencial entre conceitos homônimos; o
equívoco aparece ali como o modo de comunicação por excelência entre diferentes posições
perspectivas” (Viveiros de Castro, Eduardo B. Métaphysiques Cannibales: Lignes
d’anthropologie post-structurale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009: 54)
(tradução minha).

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 77

de relações, encontros, alianças, guerras e trocas permeadas por uma infinidade de


povos e seres, sendo os “brancos” mais um termo nessa rede, com os quais também se
buscam alianças e relações, ou seja, “nós” somos apenas mais um entre vários termos de
alteridade6.
Nesta gama de contatos é que se dão os encontros com os povos-espíritos yãmĩyxop, que
trazem e transmitem aos tikmũ’ũn os seus cantos, com especificidades de acordo com os
enunciadores e seus regimes de enunciação, nas diversas situações que envolvem
processos de cura, parentesco, diplomacias, festas e guerras. De acordo com Tugny,
registram-se dez conjuntos de cantos: xũnĩm, mõgmõka, koatkuphi, putuxop, kõmãyxop,
tatakox, ãmãxux, po’op, yãmĩy, yãmĩyhex. No entanto, para se compreender a
potencialidade das relações com os povos-espíritos, é preciso percebê-los enquanto
materialidades, pura imagem e canto, acontecimentos no tempo e espaço. Seus cantos
portanto não são virtualidades, mas efetivos e intensos modos de experimentar,
conhecer, trocar e se relacionar com “outros”. Portanto, “música” – termo que
comumente não há correspondente nas línguas ameríndias – tratar-se-ia de formas de
multiplicação de relações com mundos, e não tentativas de elaborações formais de
intenções de sínteses. Nestes termos, o complexo mito-poético-pictórico-musical a que
se referem os tikmũ’ũn em suas relações com os povos-espíritos, não é reflexo da
“cultura”, mas potência de sua invenção e transformação. Os repertórios sonoro-
musicais, como pivô do complexo ritualístico-pictográfico, ao invés de narrar ou
representar visões, são antes de tudo experiências visionárias elas próprias,
acontecimentos, percursos, corpos, imagens e trajetos percorridos simultaneamente por
uma multiplicidade de sujeitos enunciadores. Mais que visões, os cantos-imagens são
“capturas de forças”.

Yãmĩyxop Xũnĩm e seu hemex – a aliança com o “morcego-espírito”, os cantos e o


mĩmãnãm

A glosa tikmũ’ũn, xũnĩm se refere ao “morcego-espírito”. Este yãmĩyxop xũnĩm7 mantém


uma relação de aliança com os tikmũ’ũn, vindo a suas aldeias trazendo os seus cantos-
imagens, e o mĩmãnãm (“pau de religião”, artefato que é hasteado no centro da aldeia e
marca a presença do xũnĩm), elementos imprescindíveis e poderosos em processos
xamânicos de cura. A especificidade do xũnĩm é seu caráter viajante que, ao narrar seus
voos e trajetos, traz ao xamã tikmũ’ũn por ele afetado, uma dissolução da configuração
da pessoa tikmũ’ũn na multiplicidade de corpos/povos/eventos, abrindo a experiência do
xamã a novas configurações. Portanto, ao ouvir e acompanhar as gravações do xũnĩm, o
que sobressai como experimentação é o deslocamento, expresso na longa série de
“viagens-transformações” nas visões e experiências do morcego voador. O que melhor
6
Inclusive o “Estado” – que também deve ser pensado de modo desessencializado - deve ser
entendido como um termo nesta rede. Isto aponta minha discordância com Tugny quando
afirma que “esses povos recusam sistematicamente as estruturas consensuais controladas
pelo Estado”. Antes que uma recusa, poderia ser mais uma relação, ainda que com
implicações específicas.

7
Vale ressaltar que os yãmĩyxop não são entidades singulares, mas agrupamentos. Os xũnĩn,
portanto, são como bandos – múltiplos corpos e qualidades -, mas quando se fazem presentes
na aldeia, vêm como koxux (imagens) e não como corpos.

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 78

explicita o caráter de especificidade dos cantos xũnĩm é a multiplicação de devires, um


movimento de tornar-se outros numa viagem disjuntiva. Ao experienciar os cantos-
imagens do xũnĩm, os tikmũ’ũn conseguem notar a multiplicação de enunciadores
desencadeados no ritual, percebendo através de uma sensibilidade acústica minuciosa as
variações mínimas, quase imperceptíveis à audição comum, mas que ali são plenos de
imagens e operadores de sentido.
Minha experiência de ouvir as gravações8 e acompanhar as transcrições das letras, indo
e vindo nas ilustrações pictográficas, proporcionou situações interessantes. Nas
primeiras audições, sentia uma angústia terrível por não conseguir ao menos
acompanhar as canções com as letras que estavam na minha frente. Tudo indicava que
aqueles textos correspondiam ao que eu estava escutando, mas não conseguia encontrar
tal conexão. Segui insistindo na tarefa quando, de repente, como num destapar dos
ouvidos, as letras começaram a se conectar com a audição e novas configurações de
sentido começaram a surgir. Voltei atrás nas canções que havia passado, e elas também
agora soavam e correspondiam as transcrições. Este processo não deixa de ser um modo
de aprendizado que possibilitou o acesso aos cantos. O segundo momento foi, então,
começar a identificar operações de transformações, repetições e diferenças, expressões
de rupturas, variações de acentos, enfim, toda uma gama de agenciamentos sonoros –
numa relação de continuidade/ruptura entre o canto e a fala, passando por onomatopeias
e outros recursos – postas em jogo nos cantos. Neste processo de aprendizado foi
prazeroso poder perceber o período limiar de transição do canto do xũnĩm para a
chegada do hemex, por exemplo. Este espírito-imagem traz consigo uma variedade de
outros grupos de yãmĩyxop, o que produz uma intensa trama de sonoridades. Mas os
cantos finais do xũnĩm apresentam um aumento de intensidade sonora, apontando para a
dramaticidade temática do momento ritual, concomitantemente entrecortado pelo som
grave do hemex e seus acompanhantes9. Esta transição é descrita por Tugny como
demonstrativo do aspecto qualitativo do tempo-espaço tikmũ’ũn, marcado pelos
percursos múltiplos e intensos e da diversidade de corpos que nele transitam. Este
tempo-espaço se opõe, segundo Tugny, àquele “espaço recortado, (...) o tempo-espaço
do modo capitalista de ser” (2009a: 35), fundado na ordem mensurável.

8
As gravações do espírito-morcego foram realizadas em dois momentos, primeiramente em
outubro de 2003, captadas durante o dia, na Aldeia Vila Nova da T.I. do Pradinho, e depois
em março de 2004, captadas à noite, na Aldeia Bom Jesus da T.I. do Pradinho.

9
Esta concomitância sonora de cantos xũnĩm e do hemex podem ser ouvidos a partir das duas
últimas faixas do DVD1 (2009a). No fim do canto 93, mãmxeka xop (traduzido por “peixes
grandes” na tradução da letra na página 243, e como “piabinha” no índice final do DVD, ao
que parece ser um erro de digitação), ouve-se a introdução dos assobios. Mas é no final do
canto 94, mãnkoxox kutok (“filhotes de traíra”) que o som grave do hemex se faz presente,
concomitantemente ao xũnĩm, juntamente com o aumento gradativo dos assobios,
onomatopeias, e sonoridades mais agudas das yãmĩyhex, sem dizer da interessante
participação de um cão latindo com vigor. Na sequência dos cantos os aspectos do hemex
vão se estabelecendo como centrais.

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 79

O canto do hemex vem acompanhado das sonoridades dos demais yãmĩyxop, yãmĩy10 e
yamĩyhex11, estas últimas sempre perseguidas pelos ĩmhup. Esta congregação de cantos-
espíritos repercute acusticamente numa profusão intensa de sonoridades distintas. Ouve-
se o som em tom grave do hemex, contrastado pelas vocalizações agudas dos múltiplos
yãmĩyhex, conjuntamente aos sons de gritos, injúrias e clamores dos ĩmhup - que estão
sempre buscando relações com as yãmĩyhex -, além de flautas, assobios e onomatopeias.
Como bem sinaliza Tugny, diferenciando os cantos xũnĩm do hemex, o primeiro aponta
para os deslocamentos do morcego-voador, e o segundo para a congregação dos povos-
espíritos na aldeia. Para a promoção deste encontro profícuo, o papel do mĩmãnãm –
“pau de religião” – seria o de, ao ser afetado pelas sonoridades, fazer chegá-las até os
povos alhures, numa espécie de “auto-falante cósmico”. Mas este procedimento de
afetação pelo som-imagem é o mesmo modo pelo qual os corpos dos tikmũ’ũn se
tornam pura vibração, abrindo-se às multiplicidades tornando-se corpos-afetos.

Yãmĩyxop Mõgmõka – o povo-gavião, corpo espiritado, parentesco e a saudade

O Yãmĩyxop Mõgmõka é traduzido como povo-gavião-espírito. O mito de origem do


mõgmõka narra sequências de eventos da transformação corporal de um xamã tikmũ’ũn
ancestral no povo-gavião. A elaboração narrativa do mito reafirma possibilidades de
suplementação e diluição pelos quais se desdobram os vínculos de parentesco e a
constituição do sócius tikmũ’ũn. Como afirma Tugny, “os mitos e os cantos do
mõgmõka agem como uma verdadeira máquina de dissolução da humanidade e
efetivação do parentesco” (2009b: 34), sendo o tema centralizador a saudade. O
ancestral ao comer carne “espiritada” 12, torna-se gavião e passa a voar e caçar outros
corpos, que são adicionados a si como subjetividades capturadas, possibilitando novas
experimentações, outras vozes.
Os cantos do gavião-espírito passam, portanto, pela descrição da movimentação dos
mõgmõka para o kuxex (“casa de religião”) da aldeia. Os mõgmõka são chamados pelos
tikmũ’ũn a habitar a aldeia, visitando seus parentes/aliados, sendo este momento de
chamado e consequente atendimento, marcas do primeiro conjunto de cantos 13. Na
descida na aldeia, dançando com os parentes, sobretudo as mulheres, o repertório de

10
Possuem grupos, mas não possuem agências animais ou corpos multiplicados, como os
yãmĩyxop. Vêm para as aldeias como “imagens-vozes” (koxuk).

11
São de certa forma o feminino de yãmĩy, mas têm especificidades outras, sendo fundamentais
nos processos de cura.

12
“Espiritado” se refere a qualidade de assumir múltiplas perspectivas, abrir-se a novas
possibilidades de acontecimentos. Esta capacidade pode ser nata ou adquirida pelos cantos,
pela ingestão de carne de um parente morto ou a inalação da fumaça, mas também no estado
de paptox, de “ver mais longe”.

13
No decorrer do ritual são recorrentes momentos de doação de alimentos aos espíritos. Os
cantos que dão início ao ritual dentro do kuxex não foram gravados. As gravações realizadas
e editadas no livro foram realizadas em outubro de 2003 na Aldeia do Gilmar, na T.I. de
Água Boa.

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 80

cantos se intensifica em euforia, sendo marcantes os gritos e assobios dos gaviões 14. Na
audição das gravações são identificáveis momentos limiares da chegada dos espíritos-
imagens à aldeia, como no canto mõgmõka pet yũpi (“mõgmõka vê sua casa”), onde se
ouvem a participação das crianças em estado eufóricos. Mas a euforia segue até o canto
olilião, onde xokanitnãg (um yãmĩyhex) lembra ao fim do canto, “vamos embora”. A
sequência ainda conta com todo o processo de doação de comida para os espíritos-
gavião e a execução de longos “cantos-listas” antes da efetivação da partida dos
espíritos, mas o que é significativo é a presença da nostalgia e da saudade 15
interrompendo o fluxo da euforia. O conjunto de cantos chamados “cantos-listas” são
procedimentos mnemônicos realizados pelos yãmĩyxop como formas de revitalização do
espírito e das vozes, mas, sobretudo, como técnica de desenvolvimento da memória.
Nestes são listadas inúmeras espécies de arvores, animais, raízes, corpos, espíritos,
procedimento que sugere uma prática que revitaliza a sociocosmologia tikmũ’ũn. Mas a
ênfase geral do corpus musical está mobilizada para o vínculo de parentesco e a
presentificação do sentimento da saudade. É um refazer do caminho de volta do
ancestral e de sua transformação em gavião e posterior partida em novos voos.
Na experimentação de escuta do corpus de cantos do mõgmõka e acompanhamento das
traduções e pictografias dos cantos-imagens, tem-se a noção da fecundidade das
operações de repetições e diferenciações que o sistema articula. A estrutura que se
apresenta aponta sempre para graus de variações e transformações, repetições que
implicam diferenciações, movimentos de tempo-espaço. Esta dinâmica se dá na medida
da proliferação de sujeitos enunciadores, que têm duração de deslocamentos tempo-
espaciais diferenciados. O mesmo dito, será outro tempo. Repetição e diferença. Tudo
se passa como se o sistema buscasse uma estética musical de evitação da
uniformidade16.
O anúncio da saudade através das vozes dos pássaros acionados pelo corpus dos cantos,
proporciona a expressão reforçada e deslocada do lamento nostálgico a outras vozes
enunciadoras. Assim como se faz com os laços de parentesco, dissolvidos e reativados
em outros lugares, a saudade aciona processos de diferenciação, tornando os integrantes
do sócius, distantes e diferentes, ainda que com um passado comum de fundo. É neste
sentido que trabalha os cantos do mõgmõka, capturando “os afetos não-humanos, a
potencialidade dos seus corpos, o que permite entre as diferentes corporalidades sua
continuidade” (Tugny, 2009b: 36). A gravação do último canto do mõgmõka, o ãtãm
(“João-porca”), traduz de forma singular o sentimento estético da saudade, numa longa
despedida permeada de lamento. Aqui se ouve a distância sendo articulada numa
dinâmica da espacialidade onde o canto vai se afastando, até sumir ao fim do mõgmõka.

14
Gavião resume uma gama de outros pássaros que estão juntos, como uma multiplicidade
constitutiva.

15
Há aqui certa aproximação da ideia de nostalgia (oniska) na poética xamanística marubo,
conforme apresentada por Cesarino (2011).

16
Menezes Bastos (no prelo) apresenta de forma consistente e precursora, as relações de
homologias nos planos sequenciais do ritual do Yawari entre os Kamayurá, como
explicitações por excelência de processos de repetições e diferenças.

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.
Música e Cultura, vol. 6 81

Cantos: substâncias, caminhos, distâncias, corpos, devires e imagens.

A título de conclusão, remarco o valor inegável dos livros-DVDs, que repousam sua
densidade de conteúdo, significativamente, na própria matéria etnográfica, numa opção
de narrativa que põe no plano discursivo nativo o principal foco reflexivo. A exposição
e disposição dos cantos-imagens e narrativas, em conjunto com a tradução e as
gravações, trazem em si potência conceitual, que não pode ser resumida (e aqui
confesso a dificuldade de se fazer esta resenha), pois sua eficácia argumentativa
depende dos atos de ler-ouvir-olhar, que por si só, são uma experiência com o
pensamento e conhecimento tikmũ’ũn. A fenda aberta neste emaranhado conceitual que
são os mundos ameríndios, através de um esforço de abordagem virtuosa dos aspectos
da mito-poética-pictórica-musical xamânica, possibilita um amplo e fecundo caminho
para novos estudos e aprofundamentos, envolvendo, por exemplo, a questão da dança
neste complexo multissemiótico. O encontro entre os yãmĩyxop e demais espíritos e
seres com os tikmũ’ũn (maxakali) não são apenas estabelecimentos de comunicação
entre âmbitos diferentes (humanos/não-humanos) mas eventos de afetação mútua que
aponta para a formação de coletivos-devir, constituição de alianças e parentesco.
Deixar-se afetar pelo complexo dos cantos-espíritos tikmũ’ũn é um modo de
experimentar intensivamente a alteridade.

Lacerda, Izomar. Resenhas de livros: Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Cantos e Histórias do gavião-espírito. Música e Cultura, vol.
6, 2011, p. 72-79. Disponível em <http://musicaecultura.abetmusica.org.br/artigos-06/MeC06-Resenha-Tugny.pdf>.

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